A
ESFERA CIENTÍFICA NO CINEMA
Nildo
Viana
Resumo:
A
ciência e a produção científica são objetos de representações por elas mesmas
e, de forma mais aprofundada, pela sociologia da ciência, filosofia da ciência
e história da ciência. O cinema através de suas produções fílmicas também
apresentam aspectos da ciência e de sua produção intelectual. O presente artigo
objetiva analisar três filmes (A Fúria
pela Honra; Óleo de Lorenzo; O Informante) e observar quais representações
eles produzem a respeito da ciência, da esfera científica e da produção que
esta realiza. A conclusão é que estes filmes revelam a dinâmica dominante na esfera científica, comandada pelo capital, burocracia e Estado, elementos complementares, além da dinâmica interna da mesma.
Palavras-chave:
Esfera Científica, Cinema, Competição, Burocracia, Capital.
Resumé:
Des sciences
et de la production scientifique sont des représentations d'objets par
eux-mêmes et, plus en profondeur, la sociologie de la science, la philosophie
de la science et de l'histoire de la science. Le film à travers ses productions
filmiques comportent aussi des aspects de la science et de la production
intellectuelle. Cet article vise à analyser trois films (Le Fury par honneur, Huile de Lorenzo, L'informateur.) et observer
ce qu'ils produisent des représentations sur la science, la sphère scientifique
de la production et que cette porte. La conclusion est que ces films révèlent
la dynamique dominante dans le domaine scientifique de ses liens avec la
capitale, et la bureaucratie d'Etat, étant complémentaires, puisque chaque
concentre sur un aspect de ces relations.
Mots-clés:
Sphère Scientifique, Cinéma, Competition, Bureaucratie, Capitale.
A ciência e a produção
científica possuem diversas características analisadas pelas ciências humanas,
especialmente a sociologia da ciência, e a historiografia, bem como também pela
filosofia da ciência, entre outras disciplinas. As obras cinematográficas
manifestam, muitas vezes, aspectos da ciência e produção científica. Os filmes
de ficção científica são bons exemplos, apesar de geralmente ficarem na
superficialidade, pelo menos na maioria dos casos. Alguns filmes de terror
também mostram[1]
questões sobre a ciência, inclusive os seus resultados mais negativos. Há
também outras produções além dos filmes de ficção científica e terror que
abordam questões relacionadas à ciência. Este é o caso de vários filmes, mas
destacamos três para poder extrair uma análise crítica da esfera científica: A Fúria pela Honra, Shi-Zheng Chen (EUA, 2007); O Óleo de Lorenzo, George Miller (EUA, 1993) e O Informante, Michael Mann (EUA, 1999).
Antes de iniciar nossa
análise, no entanto, observamos a necessidade de explicar o que significa o
conceito de esfera científica. A esfera científica é uma das esferas sociais
constituídas na sociedade capitalista, fruto da ampliação da divisão social do
trabalho intelectual, e que possui um conjunto de indivíduos que são os seus
agentes diretos, os cientistas, instituições, concepções e valores próprios,
que possui um modus operandi próprio,
entre outros aspectos[2].
Enfim, a esfera científica é um setor da divisão social do trabalho responsável
pela produção da ciência e que é composta, principalmente, pelos cientistas.
Esfera científica, competição e
academia em A Fúria pela Honra.
O filme A Fúria pela Honra é importante para
compreender um aspecto fundamental da esfera científica: a produção científica
e suas determinações. Uma das determinações da produção científica é o espaço
onde ela se realiza: universidades, institutos de pesquisa, etc. Aqui temos a
relação entre esfera científica e instituições. No caso do filme, a produção
científica ocorre no interior de uma universidade. O personagem Liu Xing se transfere da China para os Estados
Unidos para trabalhar sob a supervisão do renomado cientista Jacob Reiser. A relação entre ambos é de
subserviência. O cientista explora o orientando com diversos trabalhos e devido
sua competência vai ganhando espaço, ao lado dos demais orientandos, mas com
certo destaque.
Assim, Liu Xing tem uma rápida ascensão. Ele tem uma grande
ambição, o que está relacionado com as expectativas dos pais e sua vontade de
ajudá-los, além dos seus próprios valores e desejo de reconhecimento na esfera
científica, o que se percebe pela ideia de ganhar o prêmio Nobel devido a uma
grande descoberta que pretende fazer. Um dos pontos fortes do filme é quando o
cientista afirma ao estudante que um artigo famoso que ele publicou foi uma
crítica ao seu orientador. O estudante retruca dizendo que na China isso não
acontece, pois lá é preciso respeitar o orientador, não podendo criticá-lo. O
cientista retruca dizendo que nos Estados Unidos ele pode criticar o orientador,
inclusive Liu Xing poderia criticá-lo, embora, acrescenta, “ele sempre estaria
certo”. Pouco depois, Jacob Reiser, em uma apresentação pública, é questionado
pelo seu antecessor e ex-orientador. Reiser fica sem resposta e é salvo pelo
orientando, Liu Xing, que meio atrapalhado e com muitos papéis, acaba lhe
fornecendo a resposta.
A partir daí Liu Xing amplia seus estudos e realiza uma
descoberta, o que era sua grande ambição e passo necessário para o tão sonhado
prêmio Nobel. O problema é que sua tese, embora seja de certa forma uma
continuidade da do seu orientador, ia além e realizava uma crítica parcial da
mesma. Isso lhe traz inúmeros problemas com as bancas que passa e a publicação
de um artigo, sem a “autorização” do seu orientador[3] e
possuindo caráter crítico (da mesma forma que ele fez no passado), acaba lhe
rendendo uma reprovação através de subterfúgios por parte dos membros da banca,
e isso acaba destruindo não somente seus grandes sonhos, mas também lhe
fechando as portas e ele acaba como vendedor de cosméticos, uma ironia, já que
era especialista em cosmologia, o que uma garota, uma garçonete que ele tinha
ilusões de relação amorosa, havia confundido com cosmética no início do filme.
O que o filme mostra,
no fundo, são algumas das características fundamentais da produção científica.
Nem sempre as melhores ideias são aceitas e muito menos são reconhecidas
publicamente. A produção científica é perpassada por relações de poder, aqueles
que já possuem fama, posições nas universidades, etc., acabam determinando um
processo de reprodução de suas ideias e/ou das concepções estabelecidas. Toda
história mostra, também, a competição constante no interior da universidade e
dos meios científicos. Nesta competição, há a oposição entre os velhos e os
novos, os consagrados/estabelecidos[4] e
os iniciantes, professores e estudantes. O conflito entre consagrados e/ou
estabelecidos e iniciantes pode ocorrer pelo fato de existir, no último caso,
muita pressa em reconhecimento – com ou sem mérito real, entrando em jogo
questões psíquicas e outras – ou em destaque real por desenvolvimento de grande
potencialidade, sendo que as duas coisas podem ocorrer simultaneamente no mesmo
indivíduo, aumentando o potencial de conflito. Este é o caso de Liu Xing. Claro que nem sempre existe tal
oposição, pois foi o caso do aluno excepcional que permitiu a superação da
subserviência. A disputa entre os antigos professores, que viveram a situação
de orientador e orientando, é uma competição de gerações que revelam disputas
políticas e por reconhecimento. A nova luta é uma reprodução da antiga, com a
diferença de que o cientista Jacob Reiser soube esperar o seu momento, ou seja,
após muito tempo e depois de garantir seu espaço institucional é que combateu o
seu antigo orientador. Este, no entanto, continua existindo e lhe combatendo. É
por isso que Reiser diz que Liu Xing “não
é um jogador”, ou seja, não sabe “jogar” e desconhece as regras do jogo, o modus operandi da esfera científica.
Isso revela os valores
e interesses dentro da esfera artística. Obviamente que os cientistas, enquanto
indivíduos que vivem numa sociedade capitalista, precisam de dinheiro para
sobreviver e geralmente estão de acordo com os valores dominantes, que Liu Xing reproduz (veja afirmação de que queria
ganhar o premio Nobel e se casar com uma loira americana). Contudo, a luta pelo
reconhecimento é um dos elementos mais constantes da esfera científica e isso
se faz através de várias formas, e no fundo se dá em torno do que cada um
produz. A disputa entre Reiser e Liu Xing
expressa justamente a tentativa de um garantir a manutenção do seu
reconhecimento com sua descoberta que não poderia ser criticada e o outro
tentando produzir algo inovador e original, o que acaba conseguindo, e que é
rechaçado por ter entrando em contradição com a descoberta do orientador e, por
conseguinte, por causa das relações de poder favorável ao primeiro.
O fracasso de Liu Xing mostra, também, que o compromisso com
a verdade não é um valor fundamental na esfera científica, bem como que as
ideias hegemônicas nesta esfera não são as melhores e mais fundamentadas. São o
resultado de relações de poder num processo competitivo que não ganha o mais
apto intelectualmente e sim o mais bem posicionado na esfera científica, com
raras exceções. Os alunos de maior sucesso, mais “apto” (no fundo, mais
adaptado), em grande parte das vezes, é o subserviente, tal como se percebe no
caso do colega de Liu Xing que acabou
ganhando a vaga que seria dele caso não houvesse o conflito, ou seja, se ele
soubesse ou seguisse “as regras do jogo”, se fosse um jogador, humilde,
subserviente.
Assim, a hierarquia
acaba sendo uma determinação do processo de quais ideias científicas obterão
êxito e reconhecimento e há uma luta constante entre os mais antigos, os
consagrados e os estabelecidos, e entre estes e os estudantes, bem como acordos
e alianças, tal como se percebe na banca instituída para avaliar o trabalho de Liu Xing. No caso de Liu Xing há uma luta por reconhecimento e ascensão social, o que
o envolve numa competição com seu orientador, e com seus colegas, sendo que os
demais são cooptados e conseguem se adaptar ao jogo apesar de menos
competência.
O diferencial de Liu Xing é sua competência maior, o que lhe
colocava em confronto com o orientador e sua persistência em dizer a verdade,
não tanto pelo compromisso com a verdade, mas pelo seu interesse de
reconhecimento e ascensão social. Em síntese, o filme mostra a competição na
academia e na produção científica, demonstrando com a universidade como
instituição e seus processos burocráticos e hierárquicos acabam sendo um
obstáculo para o desenvolvimento do saber.
Esfera Científica, burocracia e
interesses em Óleo de Lorenzo
O filme Óleo do Lorenzo oferece um quadro
complementar ao primeiro filme analisado. Neste filme temos o caso de um casal
preocupado com uma doença rara que acomete o filho e pai e mãe buscam de todas
as formas encontrar uma cura para ela. Eles consultam médicos, organizam um
simpósio científico, etc. até que passam, eles mesmos, a estudar medicina e
buscar a cura por conta própria.
Nesse processo, baseado
em uma história real, alguns elementos são mostrados a respeito da esfera
científica. Um deles é o processo burocrático de formação. Apenas os diplomados
(os estabelecidos) é que podem exercer medicina e isso é parte de sua formação.
É necessário o diploma. Essa oposição é colocada em várias oportunidades no
filme, no qual a percepção acrítica da especialização é acompanhada pela
desqualificação do saber não especializado e institucionalizado. O saber real é
menos importante do que o saber formal representado pelos diplomas, aliás, o
que já estava teorizado por Weber (1971) ao destacar sua importância crescente
na sociedade moderna e que é expressão do que Marx (1978) chamou “batismo
burocrático do saber”, parte do processo de autolegitimação da esfera
científica. Isso também reflete a oposição entre intelectuais profissionais,
hegemônicos, e intelectuais amadores. Os consagrados e estabelecidos buscam
constantemente desqualificar o saber dos amadores e aspirantes, reproduzindo a
competição social e ao mesmo tempo realizando sua autolegitimação. Assim, tanto
aqueles que são da esfera científica quanto aqueles que são externos e atuam
sobre ela, são envolvidos nessa competição e os externos ou aspirantes internos
são colocados como “inferiores”, mesmo que possuam uma real competência e
contribuição intelectual.
Aqueles que possuem a
hegemonia na esfera científica possuem, nessa competição, as instituições ao
seu lado, pois seu saber é institucionalizado. Ele é sancionado pela
instituição estatal (regularização jurídica) e pelas instituições específicas
ligadas à esfera científica (universidade, institutos de pesquisa, associações
profissionais). O saber institucionalizado possui não só hegemonia, mas os seus
“detentores” possuem o poder de censurar, reprimir, desqualificar, o saber não
institucionalizado, tal como ocorre com o casal. E para tanto existem diversos
argumentos, que podem ser observados no filme, desde o argumento de autoridade,
passando pela necessidade de institucionalização, necessidade de reconhecimento
pela esfera científica, etc.
Outro elemento
importante da esfera científica apresentada no filme é sua relação com o
capital e Estado, o que está intimamente ligado ao ponto anterior. Essa ligação
perpassa o processo de formação, principalmente, mas não unicamente, no caso do
Estado. Contudo, a interferência estatal na esfera científica não ocorre apenas
através da formação, mas também através do financiamento, da regularização
jurídica, da regulamentação da profissão, etc. É nesse contexto que novamente
emerge a competição e a burocracia na esfera científica. Esse processo não só
deixa vagaroso qualquer avanço, como tornam os cientistas extremamente
moderados, o que é mais forte em algumas áreas da produção científica. Além
disso, devido aos interesses próprios dos cientistas, constituídos na esfera,
não se pode ser “ousado” demais e não se deve adotar novas linhas de pensamento
ou assumir descobertas e propostas inovadoras. É uma forte tendência da esfera
científica, mesmo para os estabelecidos, e até para alguns consagrados, o medo
da ousadia, da inovação, da transformação.
Um elemento fundamental
do filme é mostrar a força dos interesses e a sua relação com a verdade. Os
profissionais da esfera científica possuem interesses próprios e estes limitam
suas ações e processos de descoberta, inovação, assimilação de saberes
externos, etc. Os interesses próprios constituídos na esfera científica entram
em contradição com o compromisso com a verdade.
A ciência submetida ao capital em O Informante
O filme O Informante se passa noutro contexto de
produção científica. O filme mostra, baseado em fatos reais, a situação de Jeffrey Wigand, um cientista, doutor em bioquímica,
empregado no capital tabaqueiro (ou “indústria do tabaco”), que é despedido e
ameaçado por ter informações sigilosas da empresa e, ao mesmo tempo, é
procurado por um jornalista, Lowell Bergman, para expor a história na rede de
televisão norte-americana CBS. Ao conceder a entrevista, ele sofre as
consequências, perda de benefícios advindos da rescisão contratual, ameaça de
morte, perseguição, divórcio, e acaba terminando modestamente como professor de
química.
O que
o filme mostra é a submissão do cientista na situação de trabalhador para empresas
privadas. O capital tabaqueiro contrata cientistas, financia pesquisas, e usa
isso para seus interesses. O seu interesse é, obviamente, o lucro. Os
cientistas, nesse caso, são pagos para produzir aquilo que remete aos seus
interesses. No caso do filme, o interesse é afirmar que não sabe que a nicotina
possui característica de viciar e outros segredos da produção desta empresa
capitalista. Contudo, Wigand revela não apenas que a empresa sabia das
características viciantes da nicotina como, ainda, adicionavam aditivos
químicos para reforçar tal característica. Obviamente, isso faz parte da
necessidade do capital de promover, junto com a produção cada vez maior de suas
mercadorias, uma reprodução ampliada do mercado consumidor (VIANA, 2009).
Os
cientistas empregados em empresas capitalistas como estas estão totalmente
submetidos ao capital. A sua produção científica e suas pesquisas são voltadas
para os interesses do capital, mesmo que isso signifique prejudicar, o que
geralmente ocorre, a população. É uma situação pior do que a dos cientistas
empregados em universidades e outras instituições, pois sua margem de liberdade
é muito menor. Isso revela um elemento interessante da esfera científica: ela
está submetida ao capital. Isso não só se manifesta no caso das instituições de
ensino e pesquisa financiadas e controladas pelo capital, mas também por
empresas capitalistas que diretamente usam e financiam pesquisas. Desta forma,
a esfera científica possui graus distintos de determinação de sua produção e
pesquisa pelo capital, e para aqueles empregados em grandes empresas
capitalistas, sua autonomia e liberdade são mínimas. Ou é livre para servir ao
capital.
Obviamente
que existe a possibilidade de romper com tais empresas. O que o filme mostra,
nesse caso, é que devido ao sigilo necessário, a ruptura seria traumática e
poderia colocar em risco a própria vida do cientista. As ameaças, a vigilância,
se dão simplesmente por sua saída da empresa. Quando resolve expor o que sabia
para a imprensa, a pressão aumenta e a vida de Wigand se torna um verdadeiro
inferno. Até mesmo o grande capital comunicacional, no caso a CBS, é ameaçado e
colocado em questão, o que gera problemas para o jornalista Bergman e toda
equipe, sendo este o único que decide comprar a briga. Isso demonstra o poder
do capital e como os cientistas (e não só eles, mas também os jornalistas)
estão submetidos e podem pagar muito caro por não seguir suas diretrizes.
O
processo de pressão começa com os contratos e a burocracia, avança para ameaças
e uso do poder financeiro, chega, no momento da denúncia e processo, a
vasculhar a vida privada de Wigand, na qual pequenos deslizes e detalhes são
utilizados contra ele e ganhando grandes proporções, e as ações do capital tabaqueiro
são minimizadas. A ameaça de morte e perseguição à família é apenas um capítulo
desse processo de ataque do capital ao cientista. Por conseguinte, há uma
grande pressão sobre os cientistas, que ficam acorrentados ao capital. Se o
cientista tenta se desvencilhar, sabe que perderá seus privilégios e sua vida
tende a ser destruída. Nesse sentido, a esfera científica não possui autonomia
absoluta, mas tão-somente relativa, mas isso é variável de acordo com a
situação específica e certos setores da esfera científica possuem uma autonomia
muito restrita, alguns chegando a não ter autonomia praticamente nenhuma. A
proeminência do poder financeiro em certos setores da produção científica é evidente
e o filme mostra o seu de tal poder não apenas para financiar, mas para
controlar, censurar e reprimir a verdade.
O
filme revela, ainda, a dificuldade em dizer a verdade, aspecto já tematizado
por Bertolt Brecht, sendo a coragem a primeira delas:
É evidente que o escritor deve
dizer a verdade, não a calar nem a abafar, e nada escrever contra ela. É sua
obrigação evitar rebaixar-se diante dos poderosos, não enganar os fracos,
naturalmente, assim como resistir à tentação do lucro que advém de enganar os
fracos. Desagradar aos que tudo possuem equivale a renunciar seja o que for.
Renunciar ao salário do seu trabalho equivale por vezes a não poder trabalhar,
e recusar ser célebre entre os poderosos é muitas vezes recusar qualquer
espécie de celebridade. Para isso precisa-se de coragem (BRECHT, 1982, p. 36).
Assim, O Informante complementa o processo de
mostrar o funcionamento da esfera científica e revela sua ligação com o capital
e sua reprodução. A saga de Jeffrey Wigand é a
que foi seguida por poucos e evitada por milhares, revelando que os discursos
sobre a ciência, geralmente produzido pelos próprios cientistas, nem sempre
colocam aquilo que deveria colocar a imagem heroica do cientista, que existe e
se manifesta em alguns casos, é mais exceção do que a regra, pois sair das
regras, além de não ser desejável para quem compartilha os valores dominantes
da nossa sociedade, tem consequências prejudiciais para os indivíduos.
Considerações finais
Os filmes aqui
comentados são complementares, pois juntos oferecem uma percepção, ainda que
longe de ser completa, mais geral da esfera científica. Eles mostram como a
esfera científica está envolvida com as instituições (tal como a academia), a
burocracia/governos e empresas capitalistas,
especialmente manifestando a questão dos interesses constituídos a partir dela
pelos cientistas.
Esses
interesses, muito longe de beneficiarem o compromisso com a verdade, na maioria
dos casos, são obstáculos. O objetivo que predomina na produção científica não
é o bem estar da população, nem supostamente a verdade e sim a satisfação de
determinados interesses que vão contra ambos. Aqui temos o mesmo caso que na
ideologia, um sistema de pensamento ilusório que contribui para o reforço da
dominação. Ilusão e dominação se complementam, ao contrário do que afirmam alguns[5].
Esse processo, que ocorre na vida real, na qual os intelectuais, devido suas
posições na divisão social do trabalho e na esfera científica mais
especificamente, assumem determinados posicionamentos, e assim acabam
reproduzindo a sociedade capitalista tanto em suas produções científicas
(ideologias, técnicas, tecnologias, etc.), quanto em suas práticas cotidianas.
Os
interesses dos consagrados e estabelecidos geralmente é, embora não seja o caso
de todos os indivíduos nessa situação, a reprodução da esfera científica e de
sua posição privilegiada (quando a tem, quando não a tem, o interesse é
adquiri-la)[6], o que pressupõe
reproduzir as estruturas burocráticas das instituições e as regras do jogo. Da
mesma forma, o interesse do reconhecimento, retorno financeiro, entre outros
existem e silenciam milhares de cientistas. Ambos são elementos da sociedade
capitalista reforçados por sua sociabilidade e mentalidade dominantes.
Isso é
o que ocorre na vida real e é reproduzido no universo ficcional da produção
fílmica. Quando se baseiam em “fatos reais” a proximidade, intencional ou não,
da equipe de produção, com a realidade, é maior. Estes filmes mostram, através
da ficção, a realidade concreta da esfera científica e de seus laços
indissolúveis com o capital e o poder.
Nesse
sentido, os três filmes aqui apresentados são interessantes para despertar a
reflexão crítica sobre a ciência e a esfera científica, com focos diferentes e
que, com a sua reunião, possibilitam uma análise mais global desta esfera
social e sua dinâmica de funcionamento e envolvido com a sociedade capitalista.
Referências
BOURDIEU
Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro:
Difel, 1989.
BOURDIEU, Pierre. O
Campo Científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994.
BRECHT,
Bertolt. As Cinco Dificuldades em Dizer a Verdade. In: Sobre a Verdade. Lisboa: Nova Aurora, 1982.
MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Lisboa, Presença, 1978.
ROUANET,
Sérgio Paulo. Imaginário e Dominação.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
VIANA, Nildo. A Esfera
Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre:
Zouk, 2007.
VIANA,
Nildo. A Esfera Científica.
Florianópolis: Bookess, 2014b.
VIANA,
Nildo. As Esferas Sociais. Curitiba: CRV, 2014a.
VIANA, Nildo. Cinema e Mensagem. Análise e Assimilação. Porto
Alegre: Asterisco, 2012.
VIANA,
Nildo. Imaginário e Ideologia: As Ilusões nas
Representações Cotidianas e no Pensamento Complexo. Revista Espaço Livre, v. 08, num. 15, jan./jun. de 2013. Acessado
em 10 de Junho de 2013. Disponível em: http://revistaespacolivre.net/el15.pdf
VIANA,
Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação
Integral. São Paulo, Idéias e Letras, 2009.
WEBER, Max. Ensaios
de Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1971.
[1] Aqui deixamos claro que essa
mostração não é a mesma coisa que uma mensagem intencional, mas ao reproduzir
acontecimentos reais ou mesmo ficções cuja inspiração tem origem na realidade,
se mostra a realidade e, ao fazê-lo, permite que aquele que assiste ao filme
possa ir além do que o próprio filme coloca e possibilita sua assimilação no
sentido crítico e de apoio para objetivos educacionais, psicanalíticos, políticos,
etc. (VIANA, 2012).
[2] Uma definição mais detalhada de
esferas sociais (VIANA, 2014a) e esfera científica (VIANA, 2014b) seria útil,
mas ultrapassaria nossos objetivos e a consulta à bibliografia citada resolve
essa lacuna. Claro está que tal concepção tem semelhanças com a concepção de
Bourdieu a respeito do “campo científico” (1994) e sua teoria geral dos campos (BOURDIEU,
1989), ou, ainda, com a ideia de esfera especializada em Weber (1971), mas se
distingue de ambas em diversos aspectos, incluindo sua não autonomização
demasiada, o reconhecimento de sua relação com a luta de classes, etc.
[3] Coisa que no Brasil, em alguns
casos, os orientadores querem controlar, e tem casos em que vão mais longe, inclusive
até que disciplinas os orientandos devem cursar em pós-graduação, o que é ainda
manifesto no regimento de alguns cursos.
[4] Os consagrados são aqueles que
já possuem status e fama, enquanto
que os estabelecidos são aqueles que apenas possuem posição institucional (são
professores estáveis, por exemplo), inclusive há uma hierarquia entre eles, tal
como se pode ver no próprio filme na banca, na qual Jacob Reiser, um
consagrado, acaba se impondo aos demais, os estabelecidos, mesmo quando um,
numa determinada oportunidade, tenta argumentar em favor do aluno. Claro que
nem sempre isso ocorre, pois existem outras determinações que podem constituir
processos diferenciados. Esse processo de competição é comum tanto na esfera
científica (VIANA, 2014b; BOURDIEU, 1994) quanto na esfera artística (VIANA,
2007).
[5] Rouanet (1978) afirma que se a
ideologia é ilusão, não pode servir para a dominação, o que é um equívoco grave
(VIANA, 2013), pois o processo de produção de representações ilusórias serve
para ocultar a realidade e realizar interesses de reprodução do capitalismo,
sendo que, as representações verdadeiras, as teorias, são elementos de
contradição e luta. Um elemento interessante a se destacar é que as ideologias
e representações cotidianas ilusórias não são apenas falsidade, pois possuem
momentos de verdade, o que, no entanto, não abole sua essência de pensamento
ilusório. Um pensamento totalmente ilusório não teria eficácia, seria
considerado pura “ficção”. No entanto, a ideologia é um sistema de pensamento
ilusório, pois predomina nela o que é falso, e embora isso entre em contradição
com a realidade, acaba mantendo unidade com determinados interesses, valores,
concepções e setores da sociedade, e, ainda, é reforçada pelo fato de que vive
no mundo das aparências ou do formalismo, sendo que atingir a verdade exige um
esforço teórico mais profundo e assim aparentam expressar o real, quando, na
verdade, o deformam.
[6] Essa é uma das diferenças entre
nossa análise e a de Bourdieu, cuja concepção mostra uma incompreensão da existência
de indivíduos fora ou contra o campo. O nosso foco aqui, no entanto, foi a
reprodução da esfera científica e os intelectuais marginais (amadores,
engajados) ficaram de fora da análise.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Esfera Científica no Cinema. Revista Alceu. vol. 15, num. 31, jul./dez. de 2015.
http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu%2031%20pp%2089-98.pdf
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Esfera Científica no Cinema. Revista Alceu. vol. 15, num. 31, jul./dez. de 2015.
http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu%2031%20pp%2089-98.pdf
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