MENTIRA E SOCIEDADE
Nildo Viana
Professor da
Faculdade de Ciências Sociais/UFG
A mentira é algo diferente da ilusão. As representações
cotidianas ilusórias, como qualquer outra forma de consciência ilusória,
expressa a situação dos indivíduos que pensam que a realidade é o que ela não
é. A ideologia, como sistema de pensamento ilusório, cria todo um conjunto de
ideias sistemáticas que invertem a realidade, tal como no cientista que
considera que as ideias são produto do cérebro, como se esse órgão produzisse
algo por si mesmo. Quando esse cientista afirma isso, ele demonstra possuir um
pensamento ilusório, falso, mas se ele acredita realmente nisso, não se trata
de mentira. A mentira é um falseamento da realidade realizado deliberadamente,
intencionalmente, pelo indivíduo que sabe que o que afirma é falso. No caso das
representações ilusórias, os indivíduos acreditam no seu discurso e no caso da
mentira, eles sabem que é falso.
Muitos devem considerar a mentira um fenômeno raro, ao
contrário das representações ilusórias, que seriam corriqueiras. Contudo, a
mentira é mais comum do que pode parecer à primeira vista. O falseamento
deliberado e consciente da realidade é um fenômeno social que é praticamente
inexistente nas sociedades simples, surge com as sociedades classistas, e
torna-se algo comum e generalizado na sociedade capitalista.
A questão é por qual motivo há esse processo de
generalização da mentira na sociedade capitalista. Obviamente a raiz desse
processo está na relação entre interesses e mentira. As pessoas mentem porque é
de seu interesse, ou seja, é provocado por seus objetivos, valores,
necessidades. Assim, as pessoas geralmente mentem para evitar serem
prejudicadas ou para conseguirem alguma vantagem. Há duas formas de mentira que
escapam disso, que é a altruísta e a civilizada, que serão abordadas adiante.
Se entendermos a sociedade de classes, vamos saber que a classe capitalista não
tem interesse na verdade, ela deve ocultar a verdade sobre a exploração e a
dominação, sobre o real papel do Estado, etc. Assim, as classes privilegiadas
recusam a verdade e por isso ela não é um valor dominante na sociedade moderna,
é um valor marginalizado. Claro está que no plano discursivo, quase todos
respeitam e valoram a verdade, mas isso é apenas mais uma mentira. Alguns
tentam racionalizar isso através do relativismo. O relativismo é uma forma de
transformar a mentira em verdade.
A competição social é um dos pilares da sociabilidade
capitalista e a mentira é uma das armas mais utilizadas para ganhar a
concorrência e conquistar a vitória, vantagem, riqueza, poder, status, fama, sucesso. Uma sociedade
competitiva é um forte incentivo para a mentira generalizada. Da mesma forma, a
mentira por causa do medo de ser prejudicado é um forte incentivo para sua
realização. Obviamente que as pessoas que mentem por serem competitivas,
elemento de sua mentalidade, pertencem, geralmente, às classes sociais
privilegiadas. A mentalidade burguesa, competitiva, acaba, de uma forma ou de
outra, variando em intensidade e grau, influenciando todas as pessoas, mas
existem casos em que isso é algo predominante e nesses casos a mentira é fiel
companheira de todas as horas. No caso das classes desprivilegiadas, o medo de
ser prejudicado é o principal elemento incentivador de mentiras, tendo um papel
defensivo. Afinal, diante dos superiores, patrões, professores, etc., numa
situação desigual e numa relação de poder, então a mentira é uma forma de se
defender dos opressores, exploradores, dominadores.
Há casos também de indivíduos que mentem sem grandes
necessidades. Alguns são mentirosos compulsivos, mas isto é o caso de pessoas
com desequilíbrio psíquico. Assim como o cleptomaníaco rouba sem motivo, muitos
mentem sem precisar, revelando, nos dois casos, que se trata de problemas cuja
origem se encontra no universo psíquico e só pode ser compreendido através da
psicanálise para remontar seu processo histórico de vida numa sociedade
destruidora dos seres humanos.
Na sociedade capitalista, os indivíduos são constrangidos a
mentir e isso surge com o próprio processo de socialização das crianças. Elas
são socializadas para mentir, mesmo quando os pais negam e combatem as mentiras
das crianças. Uma criança que sabe que os pais castigam se ela contar mentiras
pode, inclusive, dizer que não mentiu apesar de ter mentido. É uma mentira
sobre a mentira. Se a criança é castigada por derramar leite na cozinha e isso
ocorre outra vez e ninguém viu, ao ser indagada se foi ela, certamente dirá
“não”, ou seja, mentirá. Se ela não mentir, será prejudicada com o castigo. Se
ela quer matar aula, pode inventar que a escola a dispensou da mesma. Essa é
uma mentira que lhe traz uma vantagem.
Esse processo de socialização acaba sendo reproduzido no
resto da vida, pois a todo o momento os indivíduos devem mentir para evitar ser
prejudicado ou para conseguir alguma vantagem. O aluno ou trabalhador mente
para o professor ou o patrão dizendo que não foi na escola ou empresa por que
estava doente, pois não poderia dizer que é por causa de um jogo de futebol ou
desânimo mesmo. Num concurso ou processo seletivo com entrevista, o indivíduo
sabe que não pode dizer tudo que considera verdade e por isso mente para
agradar ou enganar a banca, não pode admitir que não tem interesses, leituras,
experiências que deveria ter para assumir o cargo ou vaga.
Na esfera científica, a mentira também é generalizada, não
apenas nas relações sociais entre os cientistas e nas instituições, mas também
na própria produção científica, nos produtos, sejam livros, aulas, teses, etc.
O plágio é uma das formas mais claras de mentira, já que um indivíduo mente
dizendo que aquilo que outro escreveu foi feito por ele. É fácil multiplicar os
exemplos: uso de dados falsos[1],
uso de ideias alheias sem colocar a fonte, defesa de ideias e autores por que
estão em evidência apesar de saber que são equivocados, etc. Na esfera
religiosa, a mentira também é bastante comum e basta ligar a televisão em
certos canais que será bem fácil ver retumbantes mentiras religiosas
objetivando enganar os outros e ganhar dinheiro com isso. Na esfera jurídica,
isso também é praticado constantemente. O filme O Mentiroso é bastante interessante para ver isso e como a verdade
é deixada de lado graças aos interesses profissionais (e financeiros) do
advogado.
A mentira está também na família, e a criança não é a única
mentirosa, pois os pais são os que ensinam a mentir não só por gerar o
constrangimento para tal, mas também porque, em muitos casos, dão o exemplo o
tempo todo. Nas organizações burocráticas, com seu sistema de controle e
dominação, a mentira é algo comum. O mundo da política institucional é o lugar
onde a mentira reina absoluta. O discurso eleitoral é um discurso mentiroso por
natureza. Nas histórias em quadrinhos de Ferdinando, há uma estória na qual
chega uma Águia Careca nos Estados Unidos e diante dela ninguém consegue mentir
e devido a isso a manchete nos jornais são as seguintes: “cancelados os
discursos dos políticos”, “advogados passam a procurar trabalho mais útil”.
Isso é a mais pura verdade.
Essas manifestações de mentira são generalizadas e comuns,
como já dissemos. Mas existem duas formas de mentira que não possuem as mesmas
motivações. A mentira altruísta é aquela realizada não para o indivíduo escapar
de uma situação na qual será prejudicado ou para obter vantagens e sim para
ajudar outras pessoas, evitar que elas fiquem tristes ou sofram. Quando uma mãe
solteira diz para a criança que o pai morreu, apesar de ter simplesmente abandonado
ambas, está apenas poupando a criança do sofrimento de saber que foi
abandonada, sendo uma mentira altruísta. Outra forma de mentira comum e não
prejudicial é a mentira civilizada, na qual a pessoa, por educação e
civilidade, não diz o que realmente pensa, tal como no caso de alguém que
pergunta sobre sua roupa, beleza, inteligência ou qualquer outro atributo, e a
pessoa indagada, mesmo considerando que a roupa, por exemplo, é feia, não
afirmará isso e sim o contrário. E também o caso de alguém perguntar como está
passando e ela diz que “está bem”, por pior que esteja. Estas formas amenas de
mentira acabam servindo para algumas pessoas justificarem e legitimarem as
mentiras em geral. Mas tornar essas formas de mentira equivalentes é apenas
contar mais uma mentira.
Além destas formas, existe também a mentira social. Essa é
uma mentira compartilhada e reproduzida por vários indivíduos, por grupos,
coletivos ou até uma sociedade inteira. É o caso de regimes ditatoriais nos
quais a mentira deve ser dita e repetida para se justificar (desde o nazismo ao
stalinismo e todos os demais regimes ditatoriais), nascendo no poder estatal e
se reproduzindo no interior da população, seja por medo, interesse ou
compartilhar as ideias dominantes da época. Isso também pode ocorrer por
vergonha ou trauma, tal como se pode observar no filme Uma Cidade Sem Passado, na qual o envolvimento da população com o
nazismo é substituído pela mentira de que seria apenas o ex-prefeito o único
envolvido com o Terceiro Reich. Há também mentiras institucionais, nas quais
para manter o poder, a burocracia acaba gerando mentiras sobre indivíduos
dissidentes ou mesmo grupos, para manter intacta a imagem institucional. A
mentira grupal, seja de círculo de políticos corruptos, seja de jovens que foram
responsáveis por uma morte, como nos filmes triviais norte-americanos, também é
comum e a razão é evitar a descoberta e as consequências.
Contudo, não é através do moralismo que se pode resolver
essa questão. O moralismo prega que mentir é “errado”, ou alguns religiosos
podem dizer que é “coisa do diabo” ou “pecado”. Assim, toda e qualquer mentira
é condenada e todo aquele que mente deve ser punido, independente do contexto,
de sua situação nele, entre outras determinações. As determinações das mentiras,
no discurso moralista, são abolidas e em seu lugar aparece a condenação. As
mentiras altruístas e civilizadas passam a ser tão condenáveis como a para
obter vantagens ou para manter o poder. A mentira por medo de ser prejudicado
de um indivíduo das classes exploradas e sem condições de se defender passa a
ser equivalente daquela feita por um corrupto com medo de sua punição ou um
assassino com medo da prisão. O moralismo, como prática de julgar e condenar os
indivíduos a partir de um conjunto de normas que formam um cânone abstrato, é
sempre descontextualizado e se caracteriza por um normativismo abstrato. Ele,
portanto, é incapaz de solucionar o problema da mentira, pois apenas julga e
condena, fora do contexto.
A superação da mentira generalizada pressupõe a superação da
sociedade que gera a sua necessidade. A sociedade capitalista é uma sociedade
fundada na mentira devido suas características essenciais. É somente a
transformação radical das relações sociais, abolindo os processos competitivos,
a exploração, a burocracia, a mercantilização, a mentalidade burguesa, etc. é
que a mentira poderá deixar de ser um fenômeno social generalizado. A sociedade
autogerida, ou “comunista” (nome que foi desgastado por ideologias e mentiras
divulgadas em nossa sociedade), é uma sociedade fundada na verdade. A luta pela
autogestão social é também uma luta da verdade contra a mentira e contra uma
sociedade que vive de mentiras.
[1][1]
Inclusive tendo alguns casos famosos, como no caso da ideologia do volume
cerebral, na qual ocorreu a falsificação deliberada dos dados.
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