Capital Farmacêutico, Medicalização e Invenção de Doenças
Nildo Viana
O processo de medicalização da sociedade já vem sendo denunciado a muito tempo por parte de cientistas sociais e outros pesquisadores da área de ciências humanas. Porém, o processo de medicalização vem se aprofundando, apesar das críticas, e agora profissionais de outras áreas, incluindo medicina e biologia, aumentam o número dos críticos. Simultaneamente, o capital farmacêutico, o maior – mas não único – interessado nesse processo de medicalização, reforça suas estratégias publicitárias, seu investimento em pesquisa, não apenas no sentido de produzir medicamentos, mas também no sentido de produzir novas doenças. Nesse sentido foi cunhado o termo “disease mongering”, ou “invenção de doenças”.
O processo de invenção de doenças já é antigo e seu exemplo clássico é a psiquiatria e as “doenças mentais”, que depois das críticas viraram “transtornos mentais” e continuam existindo e sendo reforçados por profissionais da psiquiatria e com uma enorme ajuda do capital farmacêutico. Segundo o psicólogo L. Kamin, o biólogo Richard Lewontin e o geneticista S. Rose (1987), a cada dez anos surge uma nova doença mental e um novo remédio para ela. A fonte ideológica desse processo reside em transformar o que é psíquico – algo que é inorgânico, mental, cuja origem é social e/ou de caráter comportamental – em doença, ou seja, em algo delimitado organicamente que teria origem “biológica” (Szazs, 1979; Szazs, 1980; Viana, 2010). Assim, todos que saem do padrão de comportamento imposto socialmente podem ser considerados “anormais”, em contraposição ao “normal”, inclusive jovens, militantes políticos, entre outros. A ideologia da normalidade/anormalidade (Fromm, 1976; Horney, 1984) tem o papel social claro de padronizar comportamento e para isso usa um conjunto de mecanismos, inclusive a medicalização.
No entanto, esse processo de invenção de doenças se amplia cada vez mais e não é apenas mais relativo à mente ou comportamento, mas também relativo ao corpo, e isso se vê na atribuição da calvície como “doença” e junto com isso o “medicamento apropriado” e campanha publicitária. Porém, a lista é maior do que se pensa: menopausa, depressão, etc., são “doenças” que precisam ser tratadas. Segundo Moynihan e Cassels (2011):
“As definições das doenças são ampliadas, mas as causas dessas pretensas disfunções são, ao contrário, descritas da forma mais sumária possível. No universo desse tipo de marketing, um problema maior de saúde, tal como as doenças cardiovasculares, pode ser considerado pelo foco estreito da taxa de colesterol ou da tensão arterial de uma pessoa. A prevenção das fraturas da bacia em idosos confunde-se com a obsessão pela densidade óssea das mulheres de meia-idade com boa saúde. A tristeza pessoal resulta de um desequilíbrio químico da serotonina no cérebro”.
O capital farmacêutico gerou a produção de ideologias e financiou pesquisas sobre outra nova doença: “a disfunção sexual feminina”. O objetivo disso, obviamente, é a reprodução ampliada do mercado consumidor, conseqüência natural e lógica da reprodução ampliada do capital. A lógica da acumulação capitalista é a da reprodução ampliada: d – m – d’ – m – d’’ – m – d’’’ que significa dinheiro-mercadoria-dinheiro, no qual o capital investido através da exploração dos trabalhadores gera mais dinheiro que é reinvestido, aumentando a produção, que gera ainda mais dinheiro, que novamente é reinvestido e assim sucessivamente. Isso significa que é sempre necessário aumentar a produção e, junto com isso, aumentar o consumo. O capital farmacêutico, assim como o capital industrial e outros setores do capital, produzem cada vez mais e precisam vender cada vez mais, ou seja, reproduzir de forma ampliada o mercado consumidor. A publicidade é uma das estratégias utilizadas, mais o poder de convencimento de pesquisas científicas e da medicina.
A revista inglesa “British Medical Journal” relata e pesquisa de Ray Moynihan e Barbara Mitzes, Universidade de Newcastle (Austrália), contida no livro “Sex, Lies and Pharmaceuticals”, no qual denuncia a produção de uma nova doença, através da manipulação realizada por funcionários de laboratórios e “formadores de opinião pagos”. Assim, a união da campanha publicitária do capital farmacêutico, mais medicina e pesquisa científica financiada pelo mesmo capital farmacêutico, e reprodução em meios oligopolistas de comunicação, proporcionam um processo de invenção de uma nova doença, que os pesquisadores e propagandistas dizem ser “generalizado”, e sendo caracterizada como uma “desordem do desejo sexual hipoativo”. Os pesquisadores eram empregados ou financiados pelo capital farmacêutico. Outras pesquisas, fora do domínio do capital farmacêutico, questionavam a existência de suposta doença.
Ainda segundo o estudo de Moynihan e Mintzes, o laboratório Pfizer financiou cursos para médicos norte-americanos nos Estados Unidos na qual se colocava dados sobre a “doença inventada” (63% das mulheres estariam com “disfunção sexual”) e a solução (“cura”) seria testosterona com Sildenafil (princípio ativo do Viagra, produzido pelo mesmo laboratório), aliada com “terapia comportamental”. Na Alemanha, a Boehringer Ingelheim, outra grande representante do capital farmacêutico transnacional, anunciou o lançamento da “droga do desejo”, o Flibaserin, um antidepressivo. Porém, a agência de controle de medicamentos dos EUA o vetou e desaconselhou o uso do Sildenafil.
Porém, o efeito da propaganda é devastador, pois cria uma necessidade fabricada em torno de uma doença fabricada. Além disso, a disfunção sexual feminina, quando realmente existente algum desinteresse sexual, é relacionada com um problema orgânico, uma doença, sendo que sua real origem geralmente é psíquica e de nada adiantará uso de medicamentos, sem falar nos efeitos colaterais do mesmo. A sociedade competitiva e as formas de repressão e opressão social, convivendo com uma época de “luta contra o vazio” (Rojas, 1996), abrem espaço para a medicalização e invenção de inúmeras doenças, tais como a disfunção sexual feminina, bexiga hiperativa, depressão, calvície e diversas outras. Além dos efeitos colaterais, muitas vezes o medicamento gera aquilo que supostamente deveria combater:
“A venda de doenças é feita de acordo com várias técnicas de marketing, mas a mais difundida é a do medo. Para vender às mulheres o hormônio de reposição no período da menopausa, brande-se o medo da crise cardíaca. Para vender aos pais a idéia segundo a qual a menor depressão requer um tratamento pesado, alardeia-se o suicídio de jovens. Para vender os medicamentos para baixar o colesterol, fala-se da morte prematura. E, no entanto, ironicamente, os próprios medicamentos que são objetos de publicidade exacerbada às vezes causam os problemas que deveriam evitar” (Moynihan e Cassels, 2011).
O tratamento de reposição hormonal (THS) aumenta o risco de crise cardíaca entre as mulheres; os antidepressivos aparentemente aumentam o risco de pensamento suicida entre os jovens. Pelo menos, um dos famosos medicamentos para baixar o colesterol foi retirado do mercado porque havia causado a morte de “pacientes”. Em um dos casos mais graves, o medicamento considerado bom para tratar problemas intestinais banais causou tamanha constipação que os pacientes morreram. No entanto, neste e em outros casos, as autoridades nacionais de regulação parecem mais interessadas em proteger os lucros das empresas farmacêuticas do que a saúde pública (Moynihan e Cassels, 2011).
O resultado é campo de trabalho para médicos, lucros para o capital farmacêutico e invenção imaginária de doenças cujo tratamento gera doenças reais. Assim, as drogas legais passam a concorrer com as drogas ilegais, com a diferença é que quem lucra são outros e seu “público-alvo” é involuntário. O capitalismo contemporâneo, comandado por um novo regime de acumulação, cria uma reprodução ampliada de iatrogenese de doenças, para retomar conceito de Ivan Illich (1980)[1], a aplicação da ciência como força destrutiva, ao invés de produtiva.
O capital farmacêutico e a medicalização da sociedade são dois aspectos que caminham lado a lado e que expressam uma sociedade “doente”, no sentido de que sua reprodução é cada vez mais destrutiva, seja pela dinâmica do lucro, seja pela miséria psíquica reinante numa sociedade mercantil, burocrática e competitiva, fundada na exploração, dominação e opressão, criando um modo de vida fútil e o vazio daqueles que superaram a luta pela satisfação das necessidades básicas, e a miséria e a fome para milhões que não conseguiram nem isso. O capital farmacêutico é apenas mais uma peça na engrenagem do capitalismo. E, atualmente, sob o regime de acumulação integral (Viana, 2009) e a constante necessidade de reprodução ampliada do mercado consumidor, é preciso ampliar a existência de doenças e a medicalização da sociedade, inclusive com rapidez e velocidade de reposição do consumo, sendo o mesmo processo que ocorre hoje na esfera artística, tal como na música onde o capital fonográfico acelerou a substituição das modas. Aqui apenas se observa, novamente, que tudo foi absorvido pelo capital, cujo grande objetivo é aumentar a produção de mais-valor (exploração), que significa lucro, reprodução ampliada do capital e produção cada mais intensa de mercadorias e, por conseguinte, reprodução ampliada do mercado consumidor e do consumo. Doa a quem doer, mas não faltará remédio para esquecer a dor.
Referências:
FROMM, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. 6a Edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
HORNEY, Karen. A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo. 10ª edição, São Paulo, Difel, 1984.
ILLICH, Ivan. A Expropriação da Saúde. Nêmesis da Medicina. 2ª edição, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
Kamin, Leon; Lewontin, Richard; Rose, Steven. Genética e Política. Lisboa, Europa-América, 1987.
MOYNIHAN, Ray e CASSELS, Alan. Os Vendedores de Doenças. Le Monde Diplomatique. 01/05/2006 Disponível em: http://diplomatique.uol.com.br/acervo.php?id=1842 Acessado em: 01/03/2011.
O GLOBO. Sexo, Mentiras e Remédios. In: http://oglobo.globo.com/vivermelhor/mulher/mat/2010/10/01/industria-farmaceutica-teria-ajudado-inventar-disfuncao-sexual-feminina-para-vender-tratamentos-922674934.asp%20acessado%20em%2008/03/2011.
ROJAS, Enrique. O Homem Moderno. A Luta Contra o Vazio. São Paulo, Mandarim, 1996.
SZAZS, T. A Fabricação da Loucura. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.
SZAZS, T. O Mito da Doença Mental. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
VIANA, Nildo. Cérebro e Ideologia. Uma Crítica ao Determinismo Cerebral. Jundiaí, Paco Editorial, 2010.
VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo, Ideias e Letras, 2009.
[1] “O termo técnico que qualifica a nova epidemia de doenças provocadas pela medicina, iatrogenêse, é composto das palavras grega iatos (medido) e genesis (origem)” (Illich, 1984, p. 32).
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