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terça-feira, 15 de setembro de 2020

CRÍTICA À RAZÃO TECNICISTA



CRÍTICA À RAZÃO TECNICISTA

 

Nildo Viana

 

A sociedade contemporânea vive num dilema: razão tecnicista ou razão neopopulista? Porém, como já dizia o compositor Herbert Vianna, esse é “um dilema que nem o cinema pode resolver”. É uma escolha entre o inferno e o purgatório. Ou, para ser mais exato, entre o inferno com um diabo mau encarado e um inferno com um diabo sorridente, ambos furando o corpo de suas vítimas com tridentes e um dizendo “não tem outro remédio” enquanto que o outro diz “vou fazer você feliz”. Vamos analisar, brevemente, a razão tecnicista e o diabo mau encarado no presente texto e posteriormente trataremos da razão neopopulista e do diabo sorridente.

O tecnicismo tem uma longa história como termo nas ciências humanas, bem como vários significados. Aqui nos referimos ao tecnicismo contemporâneo. A sua base ideológica é o neoliberalismo inflexível dos anos 1980, cuja ideia era aumentar a exploração e a precarização com base no cálculo mercantil. O cálculo mercantil (chamado por alguns ideólogos como “cálculo racional” ou “cálculo econômico”) quantifica e determina tudo em termos calculistas, quantitativistas e individualistas. O indivíduo age racionalmente no mercado, fazendo “escolhas racionais”, que beneficiam a ele e ao conjunto da sociedade (leia-se: “economia de mercado”, ou, em termos marxistas, modo de produção capitalista). É o neoliberalismo que afirma não existir “almoço grátis” (Milton Friedman). O mercado é o Deus supremo e todos devem se curvar diante dele. O estado, nesse contexto, deve ser “mínimo” e realizar o cálculo mercantil, equilibrando suas contas e evitando o déficit orçamentário. Ele deve, portanto, “fazer o que tem que ser feito”. Isso, obviamente, está de acordo com os interesses do capital oligopolista transnacional. A conclusão óbvia disso, que pode ser cantada com um soneto de fundo e que se encerra com uma chave de ouro malthusiana, é a de que o aparato estatal deve diminuir seus gastos, especialmente com “políticas sociais”. A lei da selva mercantil deve dominar para que os leões do capital reinem absolutos.

Assim, essa razão tecnicista, pois os argumentos são técnicos e fundados no cálculo mercantil, e inspirados nos patéticos economistas neoliberais do passado e do presente, aponta não só para a diminuição dos gastos estatais com “políticas públicas”, mas também com a previdência social (o envelhecimento populacional, por exemplo, “prova” que os gastos com aposentadoria se tornam cada vez mais amplos e desproporcional em relação à força de trabalho ativa) e diversos outros elementos cuja responsabilidade é do Estado. Um aparente realismo justifica e legitima decisões políticas extremamente prejudiciais para vastos setores da sociedade. O realismo mercantil mostra a soberania do mercado sobre os seres humanos.

Nesse contexto, o descontentamento tende a ser grande, especialmente nos setores mais atingidos e nos mais empobrecidos. Assim, a classe operária, os semiburgueses (pequenos proprietários, pequenos comerciantes, rentistas), o lumpemproletariado (aqui englobando todos os desempregados e semiempregados), o campesinato, etc., são atingidos negativamente pelas políticas neoliberais inflexíveis. Alguns setores da burocracia estatal (especialmente das instituições estatais, tal como se vê no caso de universidades, hospitais públicos, etc.), a redução do emprego “público”, etc., atinge também alguns setores da burocracia e da intelectualidade.

A precarização do trabalho, o desemprego, o empobrecimento, entre outros problemas sociais, tiveram uma expansão com a emergência do neoliberalismo, bem como violência e a criminalidade tendem a aumentar nesse contexto e foi o que ocorreu. Nesse contexto, o aparato estatal deve se tornar mais repressivo e emerge a chamada “política de tolerância zero” e por isso o Estado neoliberal foi denominado “Estado penal” pelo sociólogo Löic Wacquant (2001). Porém, isso ocorreu no período de implantação dos governos neoliberais, mais inflexíveis, ou seja, no momento de formação do regime de acumulação integral (VIANA, 2009). A crise do regime de acumulação anterior e sua substituição foi um período difícil e o novo regime de acumulação, graças ao aumento da exploração com a chamada “reestruturação produtiva”, ao neoliberalismo e ao hiperimperialismo, conseguiu retomar o ritmo da acumulação de capital[1], gerando uma relativa estabilidade do capitalismo mundial nos anos 1990 até meados dos anos 2000 (e, dependendo do país, um pouco antes ou um pouco depois).

O problema é que a acumulação de capital tem uma tendência cíclica e o ciclo dos regimes de acumulação apontam para isso. A crise financeira de 2008 abriu caminho para o desencadeamento de um processo tendencial já existente no sentido da desestabilização do regime de acumulação integral. Nesse contexto, reaparecem, novamente, os adeptos do neoliberalismo inflexível, mas sob forma ainda mais exagerada e metamorfoseada como neoliberalismo discricionário, diante da desestabilização e ameaça de crise geral do capitalismo (VIANA, 2020). Esse neoliberalismo discricionário começa a ser praticado em alguns países, com as chamadas “políticas de austeridade”. Essas políticas de austeridade visam resolver o problema da acumulação de capital a partir da própria lógica deste regime, ou seja, com mais neoliberalismo (VIANA, 2020). Assim, a razão tecnicista se torna ainda mais forte e truculenta.

Os representantes desta razão tecnicista são economistas neoliberais empedernidos, capitalistas, representantes de instituições internacionais e nacionais, entre outros. No Brasil, o atual Ministro da Economia, Paulo Guedes, é um deles, embora esteja limitado por um governo de orientação conservantista[2]. Se Paulo Guedes fosse soberano em suas decisões, o caos já havia tomado conta do país, pois a razão tecnicista é reducionista e não leva em consideração os aspectos políticos, as lutas de classes, o significado do Estado, entre outros processos. A realidade é vista a partir da ótica do cálculo mercantil como se fosse a única coisa existente e importante, e, ao desconsiderar todo o resto, acaba promovendo mais problemas do que soluções, embora possa dar resultados positivos para o capital em curto prazo, mas insustentáveis a longo prazo.

A razão tecnicista neoliberal não somente desconsidera as questões humanas, como também as políticas, entre outras. Trata-se um mundo intelectual pobre e nessa pobreza, onde reina a matemática financeira, a riqueza da realidade é ofuscada, e as decisões políticas são orquestradas por um maestro bitolado. E nesse contexto, o aparato estatal, a salvaguarda do capitalismo, é enfraquecido, tornando ainda mais potencialmente explosiva uma nova crise no capitalismo.

A única ação voltada para o “social” promovida pela razão tecnicista é a responsabilização da sociedade civil e do indivíduo. Assim, coisas como “meritocracia”, “empreendedorismo”, por um lado, visando o sucesso individual, e ações como incentivo de ONGs, voluntariado e outras, como colaboração da sociedade civil para substituir o Estado e sua omissão no que se refere às políticas de assistência social e falta de ação das instituições estatais (fechadas, privatizadas, precarizadas). Os gastos estatais com a educação especial são suspensos e em seu lugar emerge a chamada “política de inclusão”. O discurso da inclusão se torna hegemônico. O que não se esclarece é que se trata de uma inclusão marginal e que são os professores que são os responsabilizados por resolver os novos problemas criados. Isso vale para todos os tipos de “inclusão”, embora ela tenha, no seu interior, uma certa “inclusão seletiva” (para cargos, por exemplo), que é uma forma de cooptação de setores de determinados grupos sociais[3] e que significa tão somente a substituição de quem ocupará determinado cargo ao invés de mudanças reais.

Assim, a razão tecnicista de orientação neoliberal promove um processo de justificação e legitimação das políticas neoliberais em sua forma mais endurecida, que é no seu período de formação e no momento de desestabilização do regime de acumulação integral, gerando um processo de aprofundamento através do neoliberalismo discricionário. Ela é expressão, nua e crua, dos interesses capitalistas e, por conseguinte, da desumanização mais intensa da sociedade burguesa. Porém, essa não é a única possibilidade e expressão do neoliberalismo. Uma outra forma é a razão neopopulista, que, no entanto, será o tema de outro artigo.

 

Referências

MARX, Karl. O Capital. 5 vols. 1, 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

 

VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas. Curitiba: Appris, 2018.

 

VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Idéias e Letras, 2009.

 

VIANA, Nildo. Regime de Acumulação Integral e Dinâmica Histórica do Neoliberalismo. In: ALMEIDA, Felipe Mateus (org.). O Regime de Acumulação Integral. Retratos do Capitalismo Contemporâneo. Goiânia: Edições Redelp, 2020.

 

WACQUANT, Löic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.



[1] Um indivíduo numa rede social e outro numa palestra virtual provaram, com seus questionamentos, que, a despeito de serem dos meios intelectualizados e com formação universitária na área de ciências humanas, não entendem o significado de “acumulação de capital” e a confundem com “concentração de renda” ou acumulação de setores do capital (determinadas empresas, por exemplo). Diante da miséria intelectual contemporânea, isso não é tão fantástico assim. Quando usamos o termo “acumulação de capital” não estamos tratando de “concentração de renda” e nem de setores do capital e sim do processo social mais geral que é do conjunto do capital e referente à taxa de lucro. Isso nada tem a ver com concentração de renda, que pode ocorrer mesmo com o decréscimo geral da acumulação de capital e que não tem o mesmo significado, pois uma coisa é “renda” e outra coisa é “capital”. Se um indivíduo ganha na loteria, ele fica rico e concentra renda, mas não capital, e isso pode ocorrer, tal como efetivamente ocorre. Isso pode ocorrer em momento de recuo da taxa de lucro ou mesmo crise de um regime de acumulação. O que ocorre, nesse caso, é apropriação de mais-dinheiro via transferência de dinheiro e não acumulação de capital (VIANA, 2018). Infelizmente, esse esclarecimento tem que ser efetivado devido a um conjunto de indivíduos presunçosos que leram poucas coisas, ou garimparam algo na internet, e já se julgam entendidos de “economia”. Sem dúvida, para entender mais profundamente o que foi aqui esclarecido (e que algumas pessoas já tem noção e não realizam tal confusão), seria necessário um processo de pesquisa mais profundo e entendimento de conceitos como renda, capital, lucro, taxa de lucro, massa de lucro, reprodução ampliada do capital, etc., que, obviamente, não poderemos apresentar aqui (cf. MARX, 1988). Podemos sintetizar o que colocamos da seguinte forma: quando a taxa de lucro aumenta, o ritmo de acumulação de capital se acelera e isso tem efeitos globais na sociedade, enquanto que quando ela entra em declínio, ocorre o processo contrário. A taxa de lucro, por sua vez, não se confunde com massa de lucro, pois expressa a porcentagem da taxa de exploração, enquanto que a massa de lucro é em termos globais, a totalidade quantitativa do lucro.

[2] O conservantismo é estatista, ao contrário do neoliberalismo. A aliança de Bolsonaro – conservantista – e Paulo Guedes – neoliberal – foi produto do oportunismo eleitoral do primeiro, que queria apoio de setores do capital e diminuir a resistência ao seu nome por parte de outros, visando ganhar a eleição. Isso gerou um regime híbrido, uma espécie de liberal-conservantismo.

[3] Não se resolve o problema dos grupos sociais, pois a inclusão é de alguns poucos indivíduos e que, uma vez incluídos, passam a ter novos interesses, que geralmente não são mais (se um dia foram, dependendo do caso) o do grupo social de origem.

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Leia também: Crítica à Razão Neopopulista (em breve).

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