Acumulação Capitalista e Golpe de 1964
Nildo Viana*
A história do golpe de 1964 possui vários aspectos que são abordados sob
os mais variados pontos de vista. A questão da relação entre acumulação
capitalista e golpe de 64 já recebeu alguns estudos, mas sob perspectivas que
deixam de lado o essencial, isto é, o processo de luta de classes a nível nacional
e internacional. É desta perspectiva que iremos analisar o fenômeno do golpe de
64 no presente artigo.
Para isto iremos discutir o desenvolvimento capitalista e os regimes de
acumulação que estão na sua base e as lutas de classes que se desenvolvem a
nível nacional e internacional. Após isto poderemos apresentar nossa hipótese
de que foram as lutas dos trabalhadores no contexto de crise internacional de
um regime de acumulação e busca de aumento da taxa de exploração que promoveu o
golpe de estado de 1964.
Regimes de Acumulação e Luta de Classes
Para compreender a relação entre acumulação capitalista e golpe de 64 é
necessário compreender a dinâmica do capitalismo mundial do pós-Segunda Guerra
Mundial e a inserção do Brasil neste contexto. A periodização do capitalismo
proposta por Benakouche (1980) fundada nos regimes de acumulação é uma
contribuição fundamental neste caso. Este autor considera que as fases do
capitalismo são marcadas por diferentes regimes de acumulação:
A mudança de formas é uma das características do modo
de produção capitalista. De fato, os modos e as formas da acumulação do capital
e, portanto, os modos de extração da mais-valia e a as formas que assumem as
relações sociais (inclusive as relações salariais) mudam em função de evolução
do capitalismo. E, se os modos e formas de acumulação de capital mudam com o
tempo, seus elementos de articulação, tais como os modos de extração da
mais-valia, as formas das relações sociais, as formas da estrutura de produção
ou a hierarquização do sistema produtivo nacional, os modos e as formas de
organização do processo de trabalho, o nível e o tipo de desenvolvimento das
forças produtivas, as formas do Estado, a estrutura social ou os modos e as
formas da luta de classes, os tipos e as formas de dominação nas relações econômicas
internacionais... evoluem ou mudam em função do grau atingido pelo
desenvolvimento do capitalismo (Benakouche, 1980, p. 24).
A periodização do autor se funda nos regimes de acumulação, que são
produtos da internacionalização dos ciclos do capital. Concordamos com a ideia
de que o capitalismo atravessa várias fases que caracterizam diferentes regimes
de acumulação. No entanto, não consideramos este processo como sendo
caracterizado por uma evolução linear e sim sob uma dupla articulação entre o
que podemos denominar desenvolvimento espontâneo do capitalismo, por um lado, e
luta operária, por outro. No primeiro caso temos o movimento do capital, isto
é, a ação do capital, expressando o predomínio do trabalho morto sobre o
trabalho vivo; no segundo caso, temos o movimento operário, isto é, a ação do
trabalho vivo contra o trabalho morto. A concepção fetichista da ciência
econômica enxerga apenas o primeiro momento, isto é, o trabalho morto, o
desenvolvimento espontâneo do capital, deixado ao seu bel-prazer. Na verdade,
isto pode ser expresso como uma luta de classes, embora nesta luta haja o
predomínio do capital, o que reforça a concepção fetichista que não ultrapassa
a aparência do fenômeno.
Assim, o desenvolvimento capitalista é marcado pela ação do capital e
pela luta operária com a primazia da primeira na maior parte do tempo, mas
sempre tendo a resistência proletária e as irrupções revolucionárias que abalam
tal desenvolvimento. Assim, existe uma tendência do desenvolvimento
capitalista, que é espontânea, desde que se pense na ação do capital sem a
irrupção do movimento operário indo além das lutas cotidianas. Estas teses são
importantes para compreendermos que as mudanças de regimes de acumulação não
são apenas produtos da concentração e centralização do capital, mas também da
luta operária. A passagem de um regime de acumulação para outro é produto das
lutas de classes, o que faz com que não seja um produto de mera ação do capital
e tem como consequência a percepção das mutações do capitalismo enquanto
estratégias do capital para manter sua reprodução e da ação proletária no
sentido de impedir a sua voracidade exploradora, num primeiro momento, e buscar
sua abolição, num segundo momento.
A partir destas considerações gerais podemos partir para uma análise do
desenvolvimento capitalista. A conceituação dos regimes de acumulação se torna
necessária. Para nós, um regime de acumulação se caracteriza por uma
determinada forma de organização do processo de trabalho – uma determinada
estratégia do capital para extrair mais-valor; uma determinada configuração
estatal – que define a ação do Estado e sua forma de organização; e uma
determinada articulação das relações internacionais, isto é, determinado modo
de exploração capitalista internacional.
Partindo desta definição inicial, podemos seguir a
periodização de Samir Amin (1977) e Rabah Benakouche para expor as fases do
capitalismo. A fase de surgimento é marcada pela acumulação primitiva de
capital que vai fornecendo as bases da acumulação capitalista propriamente
dita. Com o processo histórico surge a fase de consolidação e expansão, que vai
da revolução industrial até a metade do século 19, formando o regime de
acumulação extensivo, fundado na extração de mais-valor absoluto como elemento
central da acumulação capitalista. Este regime de acumulação é marcado por uma
alta taxa de exploração e entra em declínio com as lutas operárias que provocam
a diminuição da jornada de trabalho, o uso indiscriminado de trabalho infantil
e feminino e culmina com a Comuna de Paris.
A reação do capital assume a forma de reorganização do processo de
trabalho, com a implantação do taylorismo e a busca em aumentar a extração de
mais-valor relativo. Este período logo é abalado com as tentativas de revolução
no início do século 20 (Rússia em 1905 e 1917; Alemanha no final da década de
10 e início da década de 20; na Hungria em 1919; na Itália em 1914; etc.) e
culmina com as Guerras Mundiais.
A fase seguinte é constituída após a Segunda Guerra Mundial, com a
hegemonia norte-americana e com o fordismo assumindo o papel de utilizar a
tecnologia para aumentar a extração de mais-valor relativo combinado com o
aumento da exploração internacional, através da expansão transnacional. Este
novo regime de acumulação, conjugado (predominantemente intensivo nos países
imperialistas e extensivo nos países de capitalismo subordinado) começa a
entrar em crise nos anos 60 e vai buscando se reproduzir mas acaba cedendo
espaço para o atual regime de acumulação, o integral. O regime de acumulação
integral se funda na reestruturação produtiva, no neoliberalismo e no
neoimperialismo, no qual se busca aumentar a exploração tanto a nível nacional
e internacional, tanto no que se refere ao mais-valor absoluto quanto ao
mais-valor relativo.
Estes regimes de acumulação significaram não apenas determinada
organização do processo de trabalho, mas também determinadas formas estatais e
de relações internacionais. Por exemplo, o Estado liberal era a forma estatal
do regime de acumulação extensivo; o regime de acumulação intensivo, por sua
vez, possuía como forma estatal o Estado liberal-democrático, enquanto que o
regime de acumulação conjugado o Estado integracionista (do “bem-estar social”,
“intervencionista”) e o integral, o neoliberal. Também ocorrem mudanças
culturais, sociais, entre outras, que acompanham as mutações dos regimes de
acumulação. Mas devido aos objetivos do presente trabalho iremos deixar de lado
os detalhes componentes de cada regime de acumulação e focalizar apenas naquele
que tem importância crucial para nossa análise do golpe de 64, o regime de
acumulação conjugado.
A Crise do Regime de Acumulação Conjugado
O regime de acumulação conjugado marca uma nova etapa da exploração
internacional. O resultado das lutas operárias nos países imperialistas do
início do século 20 marcou um recuo da classe capitalista no processo de
exploração interna, compensada pelo aumento da exploração externa. O fordismo
marca uma tentativa de aumento de extração de mais-valor relativo através do
uso da tecnologia visando aumentar a produtividade. No entanto, o uso da
tecnologia avançada também significa custos mais altos e assim os ganhos não
foram tão elevados. Além disso, devido ao aumento da composição orgânica do
capital (cada vez se utiliza mais tecnologia, forças produtivas, e cada vez
menos força de trabalho, que é geradora de mais-valor) e a consequente tendência
declinante da taxa de lucro, se cria a estratégia de desviar a acumulação de
capital para a produção de bens de consumo em detrimento de meios de produção.
Sem dúvida, a expansão tecnológica foi extremamente elevada, mas isto foi
proporcionado pela expansão da produção de bens de consumo – que aumenta o
mercado consumidor de bens de produção – e caso o investimento não tivesse sido
prioritariamente desviado para a produção de bens de consumo, a composição orgânica
do capital seria mais elevada e a taxa de lucro teria caído muito mais
rapidamente. A expansão da produção de bens de consumo também traz a
necessidade de ampliação do mercado consumidor, o que provoca a integração de
camadas cada vez mais amplas do proletariado no círculo do consumo. Isto gera o
que alguns denominaram “sociedade de consumo”. O Estado integracionista visa
não só amortecer os conflitos de classes com a sua política de bem estar social
e cooptação da burocracia sindical como também desviar os investimentos para
setores de consumo e serviços. Isto tudo não seria suficiente para a reprodução
do capitalismo nos países imperialistas e por isso assume papel fundamental a
exploração internacional. O processo de descolonização era acompanhado pela expansão
transnacional como ponto forte da exploração internacional.
Neste contexto histórico, temos no capitalismo subordinado uma forma de
acumulação capitalista diferenciada. Este é o caso do Brasil, que possuía uma
acumulação capitalista subordinada. Nos países imperialistas, além da exploração
internacional, temos o predomínio do capital nacional. No capitalismo
subordinado, temos a chamada “tríplice aliança”, isto é, o capital estatal, o
capital nacional e o capital transnacional (Gorender, 1988). A diferença entre
a acumulação capitalista dos países imperialistas e a dos países subordinados
se encontra na transferência de mais-valor que aumenta o processo de acumulação
em uns e diminui em outros. Tanto o Estado quanto o capital nacional são
aliados subordinados do capitalismo imperialista e, por conseguinte, do capital
transnacional. Assim, a acumulação capitalista subordinada é mais lenta do que
a acumulação dos países imperialistas, pois no primeiro caso temos uma parte da
acumulação transferida para o exterior e no segundo uma incrementação devido à transferência
de mais-valor para o interior.
Esta situação faz do regime de acumulação no capitalismo subordinado um
elemento propulsor da acumulação imperialista e ao mesmo tempo faz com que o
processo global de acumulação capitalista nos países subordinados seja
deficitário e mais lento do que nos países imperialistas. Após a Segunda Guerra
Mundial, a implantação do regime de acumulação conjugado nos países
imperialistas se fez com alterações também nos países subordinados. No Brasil,
mais especificamente, ocorreu um processo de reconversão capitalista,
denominado por alguns autores como “modelo de substituição de importações”,
marcada por uma expansão industrial e também pela forma subordinada de
integracionismo, o populismo. O populismo brasileiro desde Vargas marca uma
certa concessão ao movimento operário com a CLT e outros elementos, além dos
ideológicos e culturais.
O desenvolvimentismo foi o complemento do populismo e o Governo Juscelino
Kubitschek cumpriu um papel simultaneamente de incentivo ao capital
transnacional e de expansão industrial. Este processo marcava a inserção do
Brasil na divisão internacional do trabalho sob a forma do desenvolvimento
subordinado, mantendo seu papel na engrenagem do capitalismo mundial. O que foi
denominado “modelo de substituição de importações” não é nada mais do que
expressão da constante reconversão capitalista que reproduz a subordinação
mundial dos países de capitalismo retardatário caracterizada por sua
modernização e reprodução da exploração internacional.
“As medidas adotadas em 1955 pelo
governo de Juscelino Kubitschek redundaram de fato na anulação das limitações
que se impunham à penetração do capital estrangeiro no Brasil. Com base nos decretos
governamentais e na Instrução no 113, a Superintendência da
Moeda e do Crédito – SUMOC – concedeu às companhias estrangeiras o direito de
levarem ao Brasil equipamento obsoleto. O governo brasileiro assumia o
compromisso de considerar novo esse equipamento, tomá-lo na qualidade de
investimento direto em divisas, como valor declarado pela empresa investidora
estrangeira, que dava direito a quaisquer vantagens: à isenção do imposto
alfandegário para a entrada no país, dos impostos federais e locais durante
vários anos, a uma taxa especial e vantajosa para a troca do cruzeiro por dólar
para efeitos de remessa de lucro para o exterior e assim por diante” (Michin,
1973, p.75).
A reconversão capitalista expressa a modernização subordinada, na qual se
reproduz a relação de exploração internacional através de irradiação de
mudanças dos países imperialistas para os países subordinados de forma
retardatária e reproduzindo a subordinação. Isto se vê no exemplo clássico da Índia,
que produzia e vendia algodão para a Inglaterra e comprava tecidos desta e,
posteriormente, passa a produzir e vender tecidos e comprar máquinas para realizar
esta produção e assim sucessivamente (Emanuel; 1981; Dowbor, 1987; Viana,
2000).
O populismo assumia a posição de forma subordinada de integração da
classe operária. No entanto, a integração da classe operária e outros setores
sociais no caso brasileiro sempre foi débil, pois aqui o processo de extração
de mais-valor era mais intenso devido à transferência de mais-valor para o
exterior. Além disso, as relações de produção não-capitalistas ainda existiam e
tinham que se inserir na nova dinâmica do país no interior do capitalismo
mundial. Assim, se desencadeia um acirramento das lutas de classes, que gera o
golpe de 1964, caracterizado pela a ascensão das lutas sociais, por um lado, e
pela crise do regime de acumulação conjugado, por outro.
A crise do regime de acumulação conjugado ocorre exemplarmente na grande
potência imperialista mundial, os Estados Unidos, embora atinja todo o bloco
imperialista. A balança comercial norte-americana apresenta, entre 1950 e 1957
um déficit de 16 bilhões de dólares. Esta situação irá se agravar a partir de
1958 (Granou, 1974). Inicia-se a tendência mundial de aumento dos preços e da
inflação a partir dos anos 60 (Benakouche, 1981).
Certamente que este processo todo é apenas uma antecâmara do que virá a
partir da segunda metade da década de 60 e na década de 70 (Mandel, 1990;
Benakouche, 1981; Granou, 1974). No entanto, esta crise marca a necessidade do
aumento da exploração internacional que já começa a ser gerado neste momento e
se intensifica com a formação da Comissão Trilateral e culmina com a
implantação do regime de acumulação integral a partir dos anos 80. Este
processo inicial de crise dos Estados Unidos, bem como de todo o mundo
capitalista, terá uma grande importância no desenvolvimento da sociedade
brasileira e será a determinação fundamental do golpe de 1964, como colocaremos
adiante.
As Lutas Sociais no Brasil e a Acumulação
Subordinada
As lutas dos trabalhadores no Brasil marcam um questionamento do Estado
populista já no final dos anos 50. O desenvolvimentismo do Governo Kubitschek
com a expansão da infraestrutura e a atração de capital estrangeiro marcou um
processo de desenvolvimento capitalista fundado no crescimento do capital
transnacional e no aumento da exploração da força de trabalho, ao lado de
várias outras mutações que significavam um avanço do capitalismo no país. A
expansão capitalista promove uma politização das lutas pela terra, pois as
relações de produção não-capitalistas são destruídas devido à valorização das
terras. Esta valorização ocorreu devido à construção de rodovias (Martins, 1986;
Dowbor, 1987) e também graças à valorização do açúcar, que depois da
desvalorização e arrendamento a foreiros, acabou tendo uma revalorização que
gerou a expulsão dos foreiros. Esta valorização das terras proporcionou vários
movimentos contestadores no campo, tal como as revoltas e ligas camponesas da
segunda metade da década de 50 (Martins, 1986). O movimento estudantil também
começa a se agitar e dar mostras de uma mobilização maior do que a de períodos
precedentes (Poerner, 1979).
O movimento operário também atravessou um período de mobilização
crescente. O movimento grevista cresce a partir do final dos anos 50 e
continuam no início da década seguinte (Castro, 1980).
“A escalada
inflacionária leva à uma escalada das greves. Ano após ano os recordes de horas
perdidas são batidos. Em 1958, destaca-se a paralisação por 7 dias da marinha
mercante em todo o país, com a participação de centenas de milhares de
marítimos. Malgrado a ilegalidade da greve, JK acabou concedendo à maioria das reivindicações.
Nos transportes urbanos, a greve dos carris do Rio de Janeiro, apoiada por
fortes e violentas manifestações estudantis, também termina vitoriosa” (Castro,
1980, p. 69).
Ainda em 1958, o movimento operário arranca 53% de aumento salarial do
governo JK mas tal aumento foi corroído pela inflação que em 10 meses chegou a
80%.
“Em 1959 não
somente as greves se intensificaram, como a desesperação pela contínua erosão
dos salários provocou a multiplicação de manifestações de rua com choques
violentos com as forças policiais. Protestos contra a alta dos preços
seguiam-se frequentemente de pilhagens de armazéns. Em vários casos as forças
policiais utilizaram armas de fogo ou baionetas para reprimir os manifestantes,
provocando ferimentos e a mote de dezenas destes” (Castro, 1980, p. 70).
O ano seguinte foi marcado pela continuidade da luta operária. Em 1959 houve
954 greves e em 1960, 01 milhão e meio de trabalhadores aderiram ao movimento
grevista e a greve geral da cidade de Santos foi o momento mais forte deste
processo de lutas. No final de 1960 aumentaram os confrontos entre o governo e
os trabalhadores do setor ferroviário, marítimo e portuário. Esta ampla
mobilização continua e em 1962 várias greves são desencadeadas pelos
aeroviários e estivadores, juntamente com diversas greves parciais, o que leva
o Governo Goulart a ceder aumentos salariais. Em outubro deste ano, 700 mil
trabalhadores entram em greve em São Paulo e conseguem aumentos salariais
(Castro, 1980). Assim, o movimento operário, bem como o movimento estudantil e
dos trabalhadores rurais, realizam uma ascensão em suas lutas que dificultava a
concretização dos interesses da classe capitalista que era aumentar a taxa de
exploração.
Todo este processo de ascensão das lutas sociais fazia com que as forças
políticas institucionais conservadoras ficassem temerosas e as populistas
buscassem intensificar sua proximidade com a população, radicalizando na medida
do possível o seu discurso. A história do salário mínimo dos operários (o que
exclui outros setores sociais) aponta para uma lógica de aumento da exploração
revezada com diminuição dependendo da força de pressão dos trabalhadores:
“Pode-se
perceber claramente três fases no comportamento do salário-mínimo real: a
primeira, entre os anos 1944 e 1951, reduz pela metade o poder aquisitivo do
salário; a segunda, entre os anos 1952 e 1957, mostra recuperações e declínios
alternando-se na medida do poder político dos trabalhadores: é a fase do
segundo Governo Vargas, que se prolonga até o primeiro ano do Governo
Kubitschek; a terceira, iniciando-se no ano de 1958, é marcada pela
deterioração do salário-mínimo real, numa tendência que se agrava pós-anos 64,
com apenas um ano de reação, em 1961, que coincide com o início do Governo
Goulart” (Oliveira, 1987, p. 51-52).
Assim, temos uma alta taxa de exploração – o que na verdade é algo
constante na história brasileira, pois a exploração visa sustentar não somente
a acumulação interna como também realizar transferência de mais-valor – que
possui altos e baixos no interior dela. É necessário ressaltar isto para não se
cair na ilusão da estatística que utiliza a comparação de um dado período com
outro sem apresentar o que significa o período que é ponto de partida, isto é,
que ele já tem embutido dentro de si uma alta taxa de exploração. No entanto,
alguns autores (Moraes, 1991) questionam a segunda fase apontada por Oliveira,
colocando que os níveis salariais são mais elevados do que ele apresenta. Sendo
assim, ou como coloca Oliveira (revezamento entre altos e baixos dependendo das
lutas dos trabalhadores) temos uma taxa de exploração que não cresce linearmente
e nem intensamente e ainda encontra obstáculos (tal como no caso de 1961, citado
por Oliveira).
A partir de 1961 há uma expansão do processo inflacionário e do déficit
estatal e assim começam as dificuldades no processo de acumulação capitalista
subordinada no Brasil. Antes de continuar seria interessante caracterizar esta
acumulação subordinada, tendo em vista que alguns autores buscaram dar resposta
a esta questão. Para alguns autores, o grande problema da acumulação
capitalista no Brasil residia no problema da realização, pois o processo de
acumulação tornaria necessário uma “terceira demanda”.
Esta é a posição de Tavares (1973), Salama (apud Moraes, 1991), entre
outros. Esta terceira demanda seria constituída pelas camadas médias,
consumidora de bens de consumo duráveis. Esta tese parte de uma incompreensão
da dinâmica da acumulação capitalista, isolando um setor de consumo e tornando
ele o centro da reprodução do capital. Na verdade, houve uma expansão da
produção de bens duráveis e o grande mercado consumidor destes bens era as
classes auxiliares da burguesia (“classes médias”) que também aumentou
quantitativamente. Porém, parte deste processo de acumulação era revertida para
os países imperialistas e esta expansão proporcionava a expansão (mesmo que em
menor medida) de outros setores. A tese complementar presente em Tavares é a de
que o grande problema ao lado da demanda foi o do financiamento.
“A inexistência de um volume adequado de
investimentos, capaz de assegurar a manutenção de uma alta taxa de expansão
econômica, não se relaciona estritamente com limitações da capacidade produtiva
(...), mas sim com problemas relacionados com a estrutura de demanda e com o
financiamento” (Tavares, 1973, p. 168).
Assim, nesta tese o problema da demanda é complementado pelo problema da
incapacidade de financiamento. O problema da demanda, segundo Tavares (e José
Serra, que foi coautor do capítulo no qual a autora aborda esta problemática) é
derivado do alto grau de concentração de renda eu diminuía a capacidade
aquisitiva dos “grupos médios”. A solução seria mudar a composição da demanda
em favor das “camadas médias” e altas, beneficiadas com a redistribuição da
renda pessoal. Assim, ocorreria um processo de “compressão, até mesmo absoluta,
das remunerações à massa de trabalhadores menos qualificados” (Tavares, 1973,
p. 169).
Neste contexto, o financiamento de novos investimentos privados se torna
comprometido. A relação excedente-salários comprometia este processo já que a
escalada inflacionária do período anterior proporcionava um amortecimento das
“tensões salários-lucros” e taxa ilusória de lucros que proporcionou novos investimentos,
mas que acabou perdendo sua funcionalidade.
“Com o descontrole de seus mecanismos de propagação, a
inflação se acelerou, perdendo sua funcionalidade; nem as altas taxas de
crescimento poderiam diminuí-la. A maior solidariedade dos preços relativos
impedia uma transferência intersetorial dos custos, desmistificava os lucros
ilusórios, estrangulava financeiramente as empresas. O acelerado ritmo do
aumento dos preços levou à intensificação das pressões trabalhistas, enquanto
os salários seguiam de perto os preços, limitando, assim, as possibilidades de
redistribuição forçada” (Tavares, 1973, p. 169).
O investimento estatal, por sua vez, estava comprometido pela relação
gastos-carga fiscal. Assim, o problema da demanda é reforçado pelo problema do
investimento público e privado, formando as causas da crise do início da década
de 60.
Esta tese apresenta vários problemas. A questão da demanda ganha a
importância que lhe é atribuída por Tavares devido ao fato da autora
setorializar e autonomizar os elementos componentes da produção. O setor de
produção de bem duráveis é isolado e autonomizado na abordagem de Tavares, ao
contrário do que ocorre na realidade concreta. Podemos dizer que o capital
transnacional era o principal (mas não único) produtor de bens duráveis e que
as classes auxiliares da burguesia eram o seu principal mercado consumidor, tal
como na tese de Tavares. No entanto, o consumo de bens duráveis também é
realizado pela classe dominante (inclusive com um poder aquisitivo muito mais
elevado) e, em menor grau, por alguns setores das classes exploradas em
melhores condições financeiras (e isto é mais facilmente compreendido se
recordarmos que os diferentes tipos de bens duráveis com diferentes preços,
alguns mais acessíveis do que outros). Além disso, para comprovar o problema da
demanda seria necessário demonstrar uma diminuição quantitativa das classes
auxiliares ou então de seu nível de renda, o que a autora não fez. A relação
salarial, no entanto, aponta para uma distribuição de renda favorável às
classes auxiliares em detrimento do proletariado:
“A relação entre os salários médios dos burocratas e o
dos operários é de 1,18 em 1949 e 2,23 em 1969, para o total da indústria de
transformação. Da mesma maneira, a taxa de crescimento do salário médio dos
burocratas supera em mais de duas vezes e meia a dos operários em 1949-58 e em
quase quatro vezes no período 1958-69 (o índice do valor absoluto do salário
médio dos operários passa de 100 em 1949, à 136 em 1969, enquanto que o dos
burocratas passa do índice 105 para 320, no mesmo período)” (Moraes, 1991, p.
36).
Além disso, faz parte da dinâmica do desenvolvimento capitalista o
processo de burocratização crescente e, por conseguinte, aumento quantitativo
das classes auxiliares da burguesia. Como a autora não apresentou nenhuma informação
sobre a diminuição quantitativa destas classes, então não existe nenhuma
comprovação para o chamado “problema da demanda”.
O processo inflacionário, por sua vez, ao contrário do que diz Tavares,
não beneficia os trabalhadores e cria taxas ilusórias de lucro, pois isto só
ocorreria se fosse comprovado que os aumentos dos preços fossem inferiores aos
aumentos salariais e as informações apresentadas por outros autores apontam
justamente para o contrário (Oliveira, 1987). Assim, o suposto problema de
demanda se revela uma hipótese não comprovada e que possui muitas informações
que lhe contradiz.
O problema do financiamento privado, por conseguinte, é inexistente, pois
as taxas de lucro do período não eram “ilusórias” e sim bastante reais. O
financiamento estatal derivado da relação custos-carga fiscal também não
recebeu nenhuma comprovação e mesmo que os investimentos estatais tenham
diminuído no período posterior ao Governo Kubitschek, seria necessário
demonstrar que tal diminuição foi significativa e, ainda, que tal diminuição
teria efeitos poderosos para o processo de acumulação.
O problema geral da acumulação capitalista subordinada é a convivência de
uma alta taxa de exploração e a transferência de mais-valor, o que proporciona
uma acumulação mundial elevada acompanhada de uma acumulação nacional limitada,
já que parte da acumulação é enviada para os países imperialistas. A principal
limitação é a dificuldade em aumentar a já intensa taxa de exploração e não
problema de demanda e financiamento, embora estes elementos possam contribuir
com as dificuldades da reprodução da acumulação em determinados contextos.
Uma outra tese explica a crise a partir das lutas dos trabalhadores. A
crise do início da década de 60 não foi de realização, pois havia um aumento da
taxa de exploração e assim um setor era marginalizado no consumo (os setores
mais empobrecidos e os trabalhadores, e isto atingia certos bens de consumo,
não-duráveis, como vestuário, alimentação, calçados, etc.) que era acompanhado
por um crescimento da “classe média”, consumidora de bens duráveis (Oliveira, 1987).
O que gerou esta crise foi o rompimento com o pacto populista e luta dos
trabalhadores:
“A luta que se desencadeia e que passa ao primeiro
plano político se dá no coração das relações de produção. Pensar que, nestas
condições, poder-se-iam manter os horizontes do cálculo econômico, as projeções
de investimentos e a capacidade do Estado de atuar mediando o conflito e
mantendo o clima institucional estável, é voltar ao economicismo: a inversão
cai não porque não pudesse realizar-se economicamente mas sim por que não
poderia realizar-se institucionalmente” (Oliveira, 1987, p. 63).
Sem dúvida, a luta dos trabalhadores foi fundamental para o
desencadeamento do golpe de 64 e das dificuldades de reprodução do capitalismo
brasileiro no início da década de 60. Porém, esta abordagem esquece a
especificidade da acumulação capitalista no Brasil, que reside em seu caráter
subordinado. A luta dos trabalhadores, sem dúvida, dificultava a intensificação
da taxa de exploração e ao mesmo tempo assustava os setores mais conservadores.
No entanto, isto não é suficiente para explicar o golpe de 1964. A
dificuldade na acumulação capitalista brasileira do início da década de 60 está
ligada, por um lado, ao seu caráter subordinado e, por outro, à luta dos
trabalhadores. A acumulação subordinada exige uma superexploração dos
trabalhadores e esta se intensificaria naturalmente se não houvesse
resistência. Mas como esta última existe e naquele contexto histórico estava se
tornando mais forte, então o processo de acumulação se encontra diante de uma
dificuldade em prosseguir.
A grande questão é que neste período histórico não apenas a acumulação
subordinada no Brasil atravessava dificuldades, pois o mesmo processo estava
presente nos Estados Unidos, como vimos anteriormente, e nos demais países.
Esta crise do regime de acumulação conjugado trazia a necessidade de aumento da
exploração em escala mundial no interior deste mesmo regime de acumulação. Isto
significava buscar aumentar o processo de exploração sem criar grandes
alterações no regime de acumulação[1].
Assim, as lutas dos trabalhadores criavam um obstáculo ao processo de intensificação
da exploração necessária para a acumulação subordinada brasileira e também
norte-americana. Assim, os setores conservadores (EUA, capital transnacional,
burguesia brasileira, classes auxiliares da burguesia) se uniram para combater
esta resistência e possibilitar uma intensificação ainda mais forte do processo
de exploração, tal como efetivamente ocorreu nos anos posteriores ao golpe de
1964, bem como a exploração internacional, que gerou, na década de 70, a
Comissão Trilateral, cuja grande preocupação era com o controle internacional
(Asmann, 1979), sendo uma tentativa de solução da crise do regime de acumulação
ainda no seu interior e ao mesmo tempo já anunciando elementos que seriam
desenvolvidos no regime de acumulação posterior, sendo, pois, expressão de um período
de transição. A ampla participação dos norte-americanos no desencadeamento do
golpe de 64 não era realizado sem razão, pois era uma necessidade do
capitalismo norte-americano em crise e que precisava aumentar a exploração
internacional para compensar suas dificuldades de reprodução.
Desta forma, o golpe de 1964 foi produto da ofensiva capitalista
realizada pelas potências imperialistas (principalmente os EUA) e, com o apoio
da burguesia brasileira e outros setores, consegue produzir um amplo aparato
repressivo e ao mesmo tempo desalojar do governo setores populistas e
reformistas que tinham dificuldades em atacar diretamente os trabalhadores e
aumentar o processo de exploração.
Assim, o discurso segundo o qual o golpe foi realizado para evitar
a formação de uma “república sindicalista”, para combater o comunismo ou a
corrupção, não passa de pretexto visando justificar e legitimar um processo
intensivo de repressão que vem para possibilitar um processo igualmente
intensivo de exploração, permitindo aumentar o processo de acumulação
capitalista no Brasil para sustentar as necessidades da burguesia brasileira e
a transferência de mais-valor para sustentar as necessidades dos países
imperialistas, principalmente dos Estados Unidos. Em síntese, é a ascensão da
luta operária e outros setores sociais que promoveu a necessidade de transição
da democracia burguesa para a ditadura, pois somente esta possibilitaria a ampliação
da taxa de exploração naquele contexto, o que era uma necessidade vital do
capital neste período.
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Vol. 20, no 1/2, Dez. 2000.
* Professor
da Universidade Estadual de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB.
[1] No
caso brasileiro, significou a passagem do regime de acumulação intensivo subordinado
para o conjugado subordinado.
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VIANA, Nildo. Acumulação Capitalista e Golpe de 1964. Revista História & Luta de Classes,
Rio de Janeiro, v. 01, n.01, p. 19-27, 2005.
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