Resumo
O
presente artigo analisa o processo de criminalização dos movimentos sociais,
suas determinações e consequências. Para tanto apresenta alguns conceitos
importantes para o desenvolvimento da análise e esclarece o significado do
conceito de criminalização, bem como suas formas de manifestação. A explicação
da criminalização ocorre através de sua relação com a repressão estatal. A
criminalização é entendida como uma forma de legitimação da repressão estatal,
mas que é insuficiente e por isso é abordado também o processo complementar de
deslegitimação e incriminação dos movimentos sociais.
Palavras-Chave:
Repressão, Crime, Ação coletiva, Deslegitimação, Incriminação.
Abstract
This article analyzes the
process of criminalization of social movements, their determinations and
consequences. In order to do so, it presents some important concepts for the
development of the analysis and clarifies the meaning of the concept of
criminalization, as well as its forms of manifestation. The explanation of the
criminalization occurs through its relation with the state repression.
Criminalization is understood as a form of legitimation of state repression,
but it is insufficient and therefore the complementary process of
delegitimation and incrimination of social movements is also addressed.
Keywords: Repression, Crime, Collective action,
Delegitimation, Injury.
Um tema recorrente nos meios
militantes e alguns setores dos meios intelectuais é a questão da
criminalização dos movimentos sociais. Apesar da recorrência, há pouca reflexão
teórica sobre esta questão. O nosso objetivo no presente texto é justamente esboçar
uma contribuição teórica para a discussão sobre o problema da criminalização
dos movimentos sociais.
Uma reflexão teórica sobre a
criminalização dos movimentos sociais requer esclarecimentos conceituais
(movimentos sociais, criminalização e conceitos correlatos e derivados),
explicação da razão e forma de criminalização, bem como elementos derivados
desse processo analítico. Isso significa que a questão é bem mais complexa do
que aparece à primeira vista. O nosso objetivo aqui é justamente realizar esse
processo de forma introdutória.
A reflexão sobre este tema
aponta para explicitar o que são movimentos sociais, ou seja, deixar claro quem
é criminalizado. Existem inúmeras definições de movimentos sociais e por isso
não pretendemos realizar tal discussão aqui (GOSS e PRUDÊNCIO, 2004; VIANA, 2016a).
Para nosso objetivo é suficiente esclarecer qual conceito vamos utilizar. Os
movimentos sociais são movimentos de grupos sociais (JENSEN, 2014; VIANA, 2016a)
que surgem devido a uma insatisfação social gerada a partir de uma situação
social que, por sua vez, geram senso de pertencimento, mobilização e objetivos
(VIANA, 2016a). Assim, as bases sociais dos movimentos sociais são grupos
sociais (negros, mulheres, estudantes, etc.) e suas reinvindicações são
direcionadas para tais grupos. Isso mostra que movimentos sociais são distintos
de movimentos de classes sociais, pois estas possuem outra dinâmica e
reivindicações, pois são constituídas na divisão social do trabalho e isso gera
interesses e formas de luta distintas, tal como a distribuição de renda,
aumento salarial, alteração das condições de trabalho, transformação das
relações de produção, etc. (VIANA, 2016a, VIANA, 2016b, JENSEN, 2014). Da mesma
forma, os movimentos sociais são distintos de outros fenômenos sociais,
incluindo manifestações, protestos, etc. (COSTA, 2016), pois protestos e
manifestações, por exemplo, podem ser realizadas por classes sociais, categorias
profissionais ou pela multidão (uma parte da população reunindo diversas
classes, grupos, etc.). Protestos e manifestações são ações e não movimentos,
sendo que os movimentos sociais podem realizar tais atos, mas não podem ser
reduzidos a eles. O conjunto de fenômenos que poderiam ser considerados
movimentos sociais podem ser ilustrados pelo movimento estudantil, movimento
negro, movimento feminino, movimento ecológico, entre outros.
O movimento social só existe
quando parte do grupo social de base do mesmo (negros, mulheres, estudantes,
ecologistas, etc.) entram em fusão, ou seja, quando se unem e realizam
mobilizações. Isso significa dizer que a existência do grupo social não é a
mesma coisa que um movimento social. O grupo social pode existir, mas só quando
parte dos seus integrantes entram em fusão, ou seja, se unem com determinado
objetivo, é que surge um movimento social. As mulheres, por exemplo, sempre
existiram como um grupo social, mas o movimento feminino só vai surgir em
determinadas condições históricas e sociais. É essa parte do grupo que entra em
fusão é que constitui um movimento social e não a totalidade dos indivíduos
integrantes do grupo (muitos podem, inclusive, ser contra o movimento social
derivado do grupo).
É por isso que temos que dividir
o movimento social como um todo e suas ramificações (organizações,
representações e ideologias, tendências, etc.). Um movimento social é o
conjunto dos indivíduos e ações dos seus integrantes, tal como o movimento
negro, feminino, estudantil, entre outros. As ramificações são partes dele, tal
como organizações, concepções, tendências, etc. Assim, o movimento estudantil
(universitário, mais especificamente) gera um conjunto de organizações,
oficiais e extraoficiais (VIANA, 2016c), como a UNE (União Nacional dos
Estudantes), DCEs (Diretórios Centrais de Estudantes), CAs (Centros
Acadêmicos), associação de casa de estudante, organizações específicas, etc. A
UNE é parte do movimento estudantil, uma ramificação do mesmo. A UNE não é “o”
movimento estudantil, nem é um movimento social, é uma ramificação de um
movimento específico que é o estudantil. Isso vale também para as diversas
ideias e concepções existentes no interior do mesmo, bem como suas tendências
internas. O movimento negro gera uma diversidade de organizações: UNEGRO, MNU
(Movimento Negro Unificado), MNS (Movimento Negro Socialista), etc. O mesmo
vale para as distintas tendências (orientações políticas) que podem surgir no
mesmo, bem como ideologias, representações, doutrinas, etc. Assim, setores do
movimento negro o articulam com o socialismo, o que significa que suas
reinvindicações não são apenas as específicas do grupo, mas também a
transformação social. Essa concepção desses setores é uma ramificação do
movimento negro e não ele como um todo, que convive com outras concepções.
Esclarecido o que entendemos por
movimentos sociais, falta esclarecer o que é “criminalização”[1]. De forma mais simples,
criminalizar é o ato de tornar criminosa determinada ação. No entanto, o que é
um “crime”? Não apontaremos as várias definições de crime, mas vamos partir de
uma delas para poder esclarecer o que entendemos por crime. Segundo Durkheim
(1995), o crime é um ato que ofende os estados fortes e definidos da
“consciência coletiva”[2]. Essa definição é
interessante, mas inexata. Um crime é um ato contra a legislação instituída.
Essa legislação pode expressar a “consciência coletiva” em uma determinada
sociedade, mas isso não ocorre sempre, pois a constituição das leis é um
processo derivado da luta de classes e outras lutas sociais, com o predomínio
dos interesses da classe dominante[3]. Os atos contrários à
“consciência coletiva”, para utilizar expressão durkheimiana, podem ser, em
determinado momento histórico, considerados “crimes”, mas em outro não, pois pode
ser visto apenas como “imoral”, por exemplo. Em síntese, o crime é um ato que
contraria a legislação existente e é esta que define o que é ou não um crime,
bem como ela condensa os interesses da classe dominante, tal como o direito à
propriedade[4].
Por conseguinte, a
criminalização dos movimentos sociais significa tornar crime determinadas ações
realizadas por eles. Os exemplos de ações de movimentos sociais que podem ser
consideradas crimes são vários: ocupações (de prédios públicos, terras
privadas, etc.), atos de depredação, bloqueio de vias públicas, atos de
violência contra os policiais, etc.
Uma vez que esclarecemos os
conceitos e os fenômenos que estamos analisando, podemos passar para a parte
explicativa do processo de criminalização. A criminalização dos movimentos
sociais não ocorre aleatoriamente ou ao acaso. Há uma razão para se
criminalizar os movimentos sociais. Mas, antes disso, é preciso esclarecer que
existem duas formas de criminalizar os movimentos sociais. A primeira forma é a
criminalização derivada. A criminalização derivada é o que ocorre quando uma
ramificação de um movimento social (organização, por exemplo) realiza um ato
que é considerado crime por ser contrário a alguma expressão das relações
sociais dessa sociedade que foi cristalizada na lei e que possui uma
não-relação direta com as lutas sociais. A legislação, por exemplo, garante o
direito de propriedade e já fazia isso antes de existirem movimentos sociais[5]. Por isso é uma
criminalização derivada da legislação anteriormente existente.
A segunda forma de
criminalização dos movimentos sociais é a direcionada. A criminalização
direcionada é aquela voltada especificamente para criminalizar os movimentos
sociais (e o movimento operário)[6]. Esse é o caso, por
exemplo, da proibição de manifestações sem “aviso prévio às autoridades” ou
então, como no caso de uma lei estadual no Rio de Janeiro, que proíbe o uso de
máscaras. Segundo a Lei Estadual 6.538/2013, do Estado do Rio de Janeiro, temos
o seguinte:
Art. 3º O direito constitucional à reunião pública
para manifestação de pensamento será exercido:
I - pacificamente;
II - sem o porte ou uso de quaisquer armas;
III - em locais abertos;
IV - sem o uso de máscaras nem de quaisquer peças que
cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação;
V - mediante prévio aviso à autoridade policial.
§ 1º – Incluem-se entre as armas mencionadas no inciso
II do caput as de fogo, brancas, pedras, bastões, tacos e similares.
§ 2º - Para os fins do inciso V do caput, a
comunicação deverá ser feita à delegacia em cuja circunscrição se realize ou,
pelo menos, inicie a reunião pública para manifestação de pensamento.
§3º – A vedação de que trata o inciso IV do caput
deste artigo não se aplica às manifestações culturais estabelecidas no
calendário oficial do Estado.
§4º – Para os fins do Inciso V do caput deste artigo a
comunicação deverá ser feita ao batalhão em cuja circunscrição se realize ou,
pelo menos, inicie a reunião pública para a manifestação de pensamento;
§5º –
Considera-se comunicada a autoridade policial quando a convocação para a
manifestação de pensamento ocorrer através da internet e com antecedência igual
ou superior a quarenta e oito horas.
Portanto, se uma ação coletiva
não cumpre com as exigências acima, ela será enquadrada como crime. Se
aparecerem manifestantes usando máscaras, isso será crime. Podemos ver também,
no Diário da República de Angola I Série nº 20 de 11 de Maio de 1991, a lei sobre
o direito de reunião e das manifestações, o seguinte:
ARTIGO 4.°
(Limitações ao exercício do direito)
1. O exercício do direito à reunião e manifestação não
afasta a responsabilidade pela ofensa à honra e consideração devidas às pessoas
e aos órgãos de soberania.
2. Não é permitida a realização de reuniões ou manifestações
com ocupação não autorizada de locais abertos ao público ou particulares.
3. Por
razões de segurança, as autoridades competentes poderão impedir a realização de
reuniões ou manifestações em lugares públicos situados a menos de 100 metros
das sedes dos órgãos de soberania, dos acampamentos e instalações das forças
militares e militarizadas, dos estabelecimentos prisionais, das representações
diplomáticas ou consulares e das sedes dos partidos políticos.
Outro artigo coloca o seguinte:
ARTIGO 5.°
(Limitações em função do tempo)
1. As reuniões e manifestações não poderão
prolongar-se para além da meia-noite, salvo se realizadas em recintos fechados,
em salas de espetáculos em edifícios sem moradores ou, em caso de terem
moradores, se forem estes os
promotores ou tiverem dado o seu assentimento por
escrito.
2. Os
cortejos e os desfiles não poderão ter lugar antes das 19.00 horas nos dias
úteis e antes das 13.00 horas aos sábados, salvo em situações devidamente
fundamentadas e autorizadas[7].
Aqui temos limites impostos pela
legislação no que se refere a horários, localização, etc. Outro exemplo é a Lei
Antiterrorismo, aprovada em fevereiro de 2016 durante o governo Dilma Roussef,
que foi questionada até pela ONU[8]. A definição de “atos de
terrorismo” é a seguinte:
“Sabotar o
funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou
servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que
de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos,
aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde,
escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem
serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia,
instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de
petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento”[9].
Esta lei apresentaria uma
definição de terrorismo que, segundo seus críticos, seria ampla e poderia ser
utilizada contra os movimentos sociais:
O ato
terrorista ficará sujeito a livre interpretação. Poderá ou não ser, dependerá
de quem analisará o acontecimento e também da repercussão nos meios de
comunicação. Pretendem criar um fato típico extremamente elástico, adaptável a
inúmeras situações que talvez nada terão a ver com o verdadeiro terrorismo. Uma
encomenda sob medida para um regime qualquer enquadrar os seus adversários como
terroristas (REBOLLA, 2017).
Esses seriam casos de
criminalização direcionada. A criminalização direcionada pode ocorrer através
da autodeclaração – como no caso da lei estadual do Rio de Janeiro – ou da
camuflagem – tal como no caso da lei de antiterrorismo.
Assim, essas duas formas de
criminalização (derivada e direcionada) são aspectos importantes para entender
uma das formas de relação entre Estado e movimentos sociais. O Estado se
relaciona com os movimentos sociais através de um conjunto complexo de relações
e tanto através da iniciativa estatal quanto da iniciativa civil (VIANA,
2016a). A iniciativa estatal ocorre através da cooptação, burocratização,
repressão, omissão (VIANA, 2016a). Não poderemos tratar da dinâmica relacional
entre aparato estatal e movimentos sociais, mas tão somente os elementos dessa
relação que nos ajudam a explicar a criminalização. O aparato estatal visa
reproduzir as relações de produção capitalistas, o que significa garantir a
expressão jurídica dessas relações, ou seja, a propriedade privada[10]. Para garantir esse
processo, o aparato estatal usa vários recursos e um dos principais é a
legitimação através de ideologias, valores, etc. Quando o processo de
legitimação falha, geralmente em épocas de crise de legitimidade, ou então
quando as crises no/do capitalismo[11] geram grandes lutas, lhe
resta outro recurso: a repressão.
No entanto, a repressão não é
utilizada apenas nesse momento. Ela é usada cotidianamente. Sem dúvida, o
aparato repressivo combate a criminalidade, mas também os elementos
“subversivos”, ou seja, aqueles que são revolucionários. A criminalidade é constituída
pelo conjunto de atos criminosos, o que significa que atentam contra as leis
vigentes, enquanto que os atos revolucionários são considerados “políticos”, já
que seu objetivo é transformar a sociedade. Assim, por exemplo, se um criminoso
rouba um indivíduo, ele está infringido a lei por interesse próprio e que torna
o objeto do roubo sua propriedade, reproduzindo as relações sociais existentes,
mas se um revolucionário distribui panfletos, ele não infringe nenhuma lei (a
não ser que seja criada, o que é um processo de criminalização). O processo de
repressão também atinge os contestadores e setores das classes trabalhadoras
que reivindicam e realizam ações que saem do mero discurso. É possível, de
acordo com o aparato jurídico burguês, fazer discurso revolucionário, mas não é
possível realizar ações revolucionárias[12]. Da mesma forma, ações
coletivas que entram em confronto com os interesses do aparato estatal e do
capital são passíveis de repressão. Se uma ramificação de um movimento de luta
por moradia ocupa uma propriedade privada ou estatal, a lei será acionada para
realizar a “reintegração de posse”. Nesse momento, o aparato repressivo será
utilizado para garantir a reintegração de posse, caso isso não seja feito
voluntariamente pelos ativistas a partir da decisão judicial e do temor da
repressão.
A repressão estatal atinge
principalmente os movimentos sociais populares e o movimento estudantil, bem
como os movimentos de classes (principalmente do proletariado, campesinato e
lumpemproletariado)[13]. Ela também atinge
protestos e manifestações (que podem ser geradas por classes sociais, partidos
políticos, movimento social, multidão ou diversos responsáveis por sua
realização)[14].
No entanto, a repressão é uma faca de dois gumes, pois, sendo considerada
injusta, violenta (considerada “brutal” ou “truculenta”), ou seja, se não for
legítima, poderá gerar o efeito contrário ao desejado (TARROW, 2009). A
repressão precisa ser legítima, pois caso contrário poderá gerar indignação e
apoio popular daqueles que foram reprimidos.
Assim, a repressão traz a
necessidade de legitimação. É preciso que as ações repressivas sejam
consideradas legítimas para não provocar um efeito colateral contrário ao
objetivo de reproduzir os interesses da classe capitalista. A criminalização é
uma forma de legitimação. Ela é uma legitimação parcial necessária. No entanto,
ela é insuficiente. Uma lei que proíbe manifestações de rua pode não ser
considera legítima pela maioria da população, por exemplo. Logo, a repressão em
relação a uma manifestação de rua é possível devido à criminalização, mas esta
nem sempre consegue legitimar essa ação policial.
A criminalização deve, por isso,
ser complementada com a deslegitimação da ação coletiva que está sendo
reprimida e a sua incriminação. A deslegitimação significa transformar
determinada ação em ilegítima. Essa deslegitimação pode ocorrer em relação às
suas reivindicações, sua forma de ação, seus ativistas, etc. A deslegitimação dos
ativistas pode ocorrer através da classificação negativa[15]. Esse foi o caso das
manifestações de junho de 2013, quando a Rede Globo dividiu os manifestantes
entre “pacíficos” e “vândalos”. A classificação de uma parte dos manifestantes
como “pacíficos” é positiva e a dos demais como “vândalos” é negativa. Esse
processo classificatório acima também ajuda a entender a classificação negativa
das formas de ação: uma é pacífica (positiva) e outra é depredação e destruição
de bens públicos, ou seja, vandalismo (negativa). A deslegitimação em relação
às reivindicações é realizada através da contraposição com a lei, moral,
valores dominantes, interesses de outros, etc. Assim, quando há ocupação de
terra, a deslegitimação aponta para sua ilegitimidade diante da lei, do valor
da propriedade individual, dos interesses dos proprietários (legais e
legítimos), etc. O caráter de classe de grande parte desse processo de
deslegitimação é bem visível:
Considera-se que remover moradores, que
ocuparam áreas para moradia ocupadas, para periferias sem infraestrutura fará
avançar o progresso com desenvolvimento econômico. O argumento é que ocupam
indevidamente propriedades privadas. Procede-se à reintegração de posse, com
forte aparato policial, e as manifestações de trabalhadores são punidas
violentamente, com poder de polícia. Por outro lado são tidas como
manifestações violentas: greves, ocupações de terras para plantar, para morar,
passeatas ou demonstrações públicas. Afirma-se que este tipo de manifestação,
são violações cometidas pelos inimigos da sociedade, como se os ocupantes,
grevistas e outras manifestantes não integrassem a sociedade. Na realidade, com
estes discursos, impede-se que estas manifestações sejam entendidas com as que
mostram os problemas reais e cotidianos da maioria sociedade (RODRIGUES, 2016,
p. 189-190).
A incriminação é outro
complemento necessário. A criminalização, tal como foi aqui definida, significa
produção de leis que tornam crime determinadas ações, como no exemplo da
proibição de uso de máscaras em manifestações no Rio de Janeiro. A
deslegitimação dos mascarados é realizada através do questionamento dos seus
motivos para usar máscara (tem algo a esconder?) e apontar para um processo de
desconfiança em relação a tais pessoas e sua classificação como “vândalos” (ou
subversivos), pois o uso de máscara seria para não poder serem punidos pelos
crimes que cometeriam. A incriminação significa imputar a alguém uma ação
criminosa. A incriminação busca convencer a população de que se trata legitimamente
de um crime. Ela possui, portanto, dois elementos: um seria afirmar que é crime
e o outro é a busca de convencer que a lei que qualifica determinado ato como
criminoso é legítima. A incriminação é realizada através de um discurso
legitimador da legislação e da infração da lei por parte dos responsáveis pela ação
acusada de ser crime.
A criminalização é um processo
real no qual a produção de uma lei torna determinadas ações criminosas e a
incriminação é um processo intelectual de afirmar que se trata legitimamente de
um crime (pois desrespeita a lei e está é apresentada como legítima) e que os
ativistas são culpados/criminosos. A incriminação é um reforço intelectual
(através de valores, concepções, sentimentos) da percepção de que um crime deve
ser condenado ou que certas ações são criminosas. Como a lei não é produzida
pela população, então uma vez que ela exista e criminalize determinadas ações,
então cria-se a necessidade de incriminação, que é uma busca de legitimação da
legislação e deslegitimação dos infratores da lei.
A criminalização é uma ação
estatal, mas a deslegitimação e incriminação são produzidas tanto pelo aparato
estatal quanto pelo capital comunicacional (meios oligopolistas de
comunicação), instituições, intelectuais, etc. O processo de deslegitimação e
incriminação é produzido no âmbito estatal e também da sociedade civil. Esse
processo visa constituir uma corrente de opinião favorável ao processo de criminalização,
o que impediria o efeito colateral negativo da indignação da população e
possíveis reações coletivas.
Esse processo expressa a realidade
cotidiana da relação entre aparato estatal e formas de resistência e luta dos
trabalhadores e movimentos sociais. Lisandro Braga, ao analisar o chamado
“Massacre de Avellaneda”, em 2002 na Argentina, expressa como esse processo de
deslegitimação e incriminação ocorre num caso concreto. Segundo Braga, o
conjunto discursivo das matérias do jornal Clarín apontava para ocultar a
realidade do massacre e produzir uma “corrente de opinião favorável ao poder”.
Acrescenta que:
A verdade
é que o jornal Clarín deliberadamente ocultou a responsabilidade da repressão
policial pelas mortes dos dois piqueteiros e insinuou, durante todos os
discursos veiculados naquela edição, que o movimento piqueteiro especialmente
os setores apresentados como duros, mais radicalizados, violentos e
antidemocráticos, eram os responsáveis pela escalada de violência. A forma como
o Clarín realizou esse processo de criminalização contou com a estratégia
discursiva de implicitamente afastar a responsabilidade pelas mortes do aparato
policial, alegando ser a crise a responsável pelas mesmas, deixando “livre”
para intepretações (não se sabe ainda quem disparou; só se sabe que os dois
jovens morreram por impactos de bala), e, ao mesmo tempo, fornecendo
explicitamente elementos que induzam a uma interpretação extremamente parcial
de que foram os próprios piqueteiros, que por isso eram constantemente
apresentados como violentos e antidemocráticos, a Aníbal Verón – o setor dos
piqueteiros duros, setor piqueteiro mais radicalizado, caóticos, vândalos,
delinquentes, agressores, armados e dispostos ao enfrentamento (e outras inúmeras caracterizações
negativas, apresentadas sistematicamente pelo capital comunicacional), e que de
forma deliberada tais setores buscavam a morte de alguns piqueteiros para poder
tirar proveito político dessa situação.
O autor mostra como que no caso
concreto do jornal Clarín se utilizou o processo de deslegitimação (a
classificação negativa da ala radical do movimento piqueteiro como “duros”,
“vândalos”, “delinquentes”, etc. e a de suas formas de ação e interesses), bem
como buscou incriminar os piqueteiros. O processo de atribuição de caráter
violento aos piqueteiros é uma forma de classificação e de incriminação, pois
não só classifica negativamente os militantes, como também os tornam criminosos
pela linguagem utilizada, o que significa um processo de incriminação. Assim,
criminalização, deslegitimação, incriminação andam juntas e os casos concretos
confirmam sua inseparabilidade.
O nosso objetivo foi apresentar
uma reflexão sobre a questão da criminalização dos movimentos sociais. A
questão da criminalização remete, necessariamente, ao problema da repressão e
das formas de justificação de ambas, o que explica sua razão de ser e suas
formas e elementos derivados. Esse processo analítico aponta para novas
questões que precisam ser desenvolvidas e aprofundadas a partir de novas
reflexões e pesquisas.
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* Professor da Faculdade de Ciências
Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de
Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília.
[1] A questão da
criminalização é geralmente abordada juntamente com a questão da repressão (BRAGA,
2013; BRAGA, 2016; MARTINS, 1989; BUHL e KOROL, 2008) e mais adiante estaremos
abordando a relação entre esses dois fenômenos.
[2] Durkheim, posteriormente,
abandonaria a expressão “consciência coletiva” e passaria a utilizar
“representações coletivas” (DURKHEIM, 1996), mas o conteúdo da definição é o
mesmo.
[3] Marx apresenta uma
concepção crítica sobre o crime e seu envolvimento com as
classes sociais e com a totalidade da sociedade capitalista: “Um
filósofo produz ideias, um poeta versos, um pastor sermões, um professor
manuais etc. Um criminoso produz crimes. Se considerarmos um pouco mais de
perto a relação que existe entre este ramo da produção e o conjunto da
sociedade, revelaremos muitos preconceitos. O criminoso não produz apenas
crimes, mas ainda o Direito Penal, o professor que dá cursos sobre Direito Penal
e até o inevitável manual onde esse professor condensa o seu ensinamento sobre
a verdade. Há, pois, aumento da riqueza nacional, sem levarmos em conta o
prazer do autor. O criminoso produz ainda a organização da polícia e da Justiça
penal, os agentes, juízes, carrascos, jurados, diversas profissões que
constituem outras categorias da divisão social do trabalho, desenvolvendo as
faculdades de espírito, criando novas necessidades e novas maneiras de
satisfazê-las. Somente a tortura possibilitou as mais engenhosas invenções
mecânicas e ocupa uma multidão de honestos trabalhadores na produção desses
instrumentos. O criminoso produz uma impressão, que pode ser moral ou trágica;
desta forma ele auxilia o movimento dos sentimentos morais e estéticos do público.
Além dos manuais de Direito Penal, do Código Penal e dos legisladores, ele
produz arte, literatura, romances e mesmo tragédias. O criminoso traz uma
diversão à monotonia da vida burguesa; defende-a do marasmo e faz nascer essa
tensão inquieta, essa mobilidade do espírito sem a qual o estímulo da
concorrência acabaria por embotar. O criminoso dá, pois, novo impulso às forças
produtivas…” (apud. LEFEBVRE, 1979, p. 68-69).
[4] A criminologia crítica vai
apresentar a tese da emergência do crime e sua relação com as “sociedades
proprietárias” (TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1980).
[5] A partir do conceito de
movimentos sociais que utilizamos, ao contrário de outros autores que usam um
termo muito mais amplo (McCARTHY e ZALD, 2017; FRANK
e FUENTES, 1989), e dos fenômenos que abarcamos ao utilizá-lo, os movimentos
sociais somente surgem na sociedade capitalista (VIANA, 2016a). Essa
compreensão é também defendida pela abordagem neoinstitucionalista (também
conhecida como “teoria do processo político”, entre outras denominações) dos
movimentos sociais (TARROW, 2009), mas tendo outros pressupostos. É somente quando emerge uma sociedade civil organizada e há o
desenvolvimento de meios de comunicação e transporte, que se torna possível a
“fusão” de parte do grupo social que faz emergir os movimentos sociais, o que
não era possível em sociedades pré-capitalistas, pois se já existiam situações
sociais que geravam insatisfações, não existia condições para gerar o senso de
pertencimento, o estabelecimento de objetivos e mobilização (VIANA, 2016a).
Alguns grupos sociais, por sua vez, somente emergem no capitalismo (estudantes,
ecologistas, pacifistas, etc.), o que, obviamente, que o movimento social
derivado também só pode surgir nessa sociedade.
[6] O
movimento operário é mais visado no processo de criminalização, pois suas
lutas, interesses, etc., entram em confronto direto com a classe capitalista e
o aparato estatal. No entanto, não focalizamos o movimento operário por ser um
movimento de classe e não um movimento social, tal como distinguimos
anteriormente.
[10] Marx apontou para o
caráter de todo estado ser uma “associação da classe dominante” (MARX e ENGELS,
1983) para fazer valer os seus interesses de classe e o caráter do Estado
capitalista, “comitê para gerir os interesses da burguesia” (MARX e ENGELS,
1988). Uma das formas utilizadas pelo aparato estatal
para garantir os interesses da classe dominante é o aparato jurídico. O
objetivo fundamental do aparato estatal na sociedade moderna é garantir a
reprodução das relações de produção capitalistas, ou seja, o processo de
produção e apropriação de mais-valor pela classe capitalista, gerando a
acumulação de capital. No plano jurídico isso aparece como preservação da
“propriedade privada”, que segundo Marx (1989) é uma
expressão jurídica dessas relações de produção, o que significa dizer que é a
forma ideológica na qual o direito traduz tais relações.
[11] Crises
no capitalismo são recorrentes e assumem várias formas, como crises
financeiras, políticas, etc. Crise do capitalismo é quando o processo de
reprodução dessa sociedade está ameaçado, o que ocorre em época de revoluções
sociais (VIANA, 2014).
[12] O discurso revolucionário
existe, mas é marginalizado, sufocado, etc. No entanto, ele não é abertamente
proibido. Essa marginalização e sufocamento é sutil, passando pelo domínio do
capital da produção cultural, desde o capital comunicacional (“indústria
cultural”) ao controle burocrático das instituições de ensino, até chegar aos
processos de censura velada que existe no conjunto da sociedade.
[13] Algumas reflexões sobre
isso foram desenvolvidas por alguns autores (MARTINS, 2000; VIANA, 2016d;
BRAGA, 2016).
[14] É
esse processo repressivo específico que faz com que Della Porta aborde
especificamente a repressão policial aos protestos (DELLA PORTA, 1999).
[15] Falcone (2011, p. 19)
trabalha com uma concepção que tem algumas semelhanças com a nossa, usando o
termo “categorização”: “Relacionar o estudo da prática jornalística com a noção
de categorização mostra-se relevante quando entendemos que o jornalismo atua
discursivamente no processo de categorização de atores e grupos sociais. E isso
se dá na construção de modelos cognitivos dominantes, a partir do forte
controle dos grupos sociais que têm acesso ao discurso da imprensa”.
Abstract
This article analyzes the process of criminalization of social movements, their
determinations and consequences. In order to do so, it presents some important
concepts for the development of the analysis and clarifies the meaning of the
concept of criminalization, as well as its forms of manifestation. The
explanation of the criminalization occurs through its relation with the state
repression. Criminalization is understood as a form of legitimation of state
repression, but it is insufficient and therefore the complementary process of
delegitimation and incrimination of social movements is also addressed.
Key words: Repression; Crime; Collective action; Delegitimation; Injury.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Criminalização dos Movimentos Sociais. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico (Online), v. 17, p. 125-136, 2018.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Criminalização dos Movimentos Sociais. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico (Online), v. 17, p. 125-136, 2018.
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