A AUTOGESTÃO SOCIAL*
Nildo Viana
INTRODUÇÃO
A idéia de uma sociedade autogerida surge com a formação do capitalismo.
Desde as formas mais simples até as mais complexas, diversos pensadores e
grupos políticos pensaram uma nova sociedade, na qual fosse abolida a
exploração e a dominação, dois aspectos inseparáveis e complementares de toda
sociedade dividida em classes sociais. Mas o que é “autogestão social”? Esta é
uma pergunta fundamental e que buscaremos responder no presente texto.
AUTOGESTÃO
E QUESTÃO DE ORGANIZAÇÃO
Os seres humanos são seres sociais, isto é, vivem associados e é isto –
juntamente com o trabalho como práxis – que lhe caracteriza como ser humano. Um
indivíduo que nasce e vive sozinho não é exatamente um ser humano, pois não
saberia falar, pensar, etc. O indivíduo humano é social. A história da
humanidade é a história da associação de seres humanos. Porém, existiram várias
formas de associação, isto é, várias formas de sociedade. A primeira forma foi
a chamada “comunidade primitiva”, fundada em relações igualitárias e sem
propriedade privada. Um longo e complexo processo histórico fez surgir as
sociedades de classes, fundadas em relações de exploração e dominação. A
sociedade escravista (Idade Antiga), a sociedade feudal (Idade Média) são
alguns exemplos de sociedades de classes que existiram na Europa Ocidental,
antes da sociedade capitalista, atual sociedade classista existente em todo o
mundo.
A base das sociedades de classes se encontra em determinados modos de
produção de meios de sobrevivência que possuem como fundamento a propriedade
privada dos meios de produção. A partir de certo desenvolvimento das forças
produtivas (meios de produção como máquinas, ferramentas, etc., e a habilidade
da força de trabalho), especialmente a agricultura, a metalurgia, a
domesticação de animais, surge uma ampliação da divisão social do trabalho.
Esta ampliação acaba gerando grupos sociais especializados em guerrear e tomar
conta do processo de produção e, posteriormente a propriedade privada e as
classes sociais. Deste longo processo histórico, as classes sociais existentes
vão entrar em constante conflito, pois as classes proprietárias e exploradoras
irão tentar manter seus privilégios e para isso irá utilizar o Estado enquanto
instituição que amortece os conflitos de classes e realiza a reprodução da
sociedade de classes em benefício da classe dominante. As classes não-proprietárias
entram em confronto para diminuir ou abolir o processo de exploração ao qual
estão submetidas.
Na história da humanidade, vários modos de produção existiram e foram
organizados em torno da existência da exploração de uma classe social sobre outras.
O capitalismo é a forma atual de sociedade de classes, no qual há a exploração
dos trabalhadores produtivos (proletariado) pela classe burguesa, capitalista,
ou seja, pelos patrões.
Assim, toda forma de sociedade é uma forma de organização social, uma
associação de seres humanos. A grande questão é como a sociedade se organiza.
As sociedades de classes (escravismo, feudalismo, capitalismo, etc.) se
organizam de forma burocrática. As organizações burocráticas são aquelas em que
as relações sociais no seu interior se fundamentam na divisão entre dirigentes
e dirigidos. A burocracia é formada pelos dirigentes. No capitalismo, muitas
vezes os patrões (capitalistas) são ao mesmo tempo os dirigentes, mas, na
maioria das vezes, são os burocratas que assumem o processo de direção. A
classe capitalista, formada pelos patrões, possui a necessidade de controlar o
processo de trabalho para aumentar a exploração, a extração de mais-valor[1].
No início da produção capitalista, a acumulação de riquezas através da pilhagem
realizada pelo sistema colonial (colonização da América) e outras formas de
produção capitalista, foi realizado através da separação do trabalhador e seus
meios de produção. No período da passagem do feudalismo para o capitalismo,
temos a corrosão do modo de produção artesão com sua cooperação simples que é
substituída pela cooperação capitalista, fundada na produção manufatureira, já
ligada à divisão social do trabalho e existência de uma burocracia, que passou
a dirigir o processo de produção. A cooperação simples era uma forma de
trabalho indiviso entre inúmeras pessoas, enquanto que a cooperação na
manufatura institui a divisão social do trabalho e a divisão entre dirigentes e
dirigidos.
A classe capitalista, com a fortuna monetária acumulada, resolveu
concentrar em um mesmo local de produção, as fábricas, os conjunto de
trabalhadores que já não são mais artesãos e sim operários, e os meios de
produção, passando a ter um controle sobre o processo de produção, que lhe
permitia maiores rendimentos e aquisição de lucro através da extração de
mais-valor. A passagem da manufatura para a grande indústria amplia este
processo e torna ainda mais necessária a burocracia, ou seja, os gerentes e
dirigentes que realizam o controle do processo de produção para a burguesia.
ALIENAÇÃO
E HETEROGESTÃO
É neste contexto que ocorre o que Marx[2]
denominou trabalho alienado. O trabalho, em si, não é um castigo, um mal a ser
evitado. O trabalho, na realidade, constitui uma necessidade-potencialidade
humana, no qual o ser humano se realiza, dá forma ao mundo, humanizando-o,
desenvolvendo suas capacidades físicas e mentais. Mas este é o trabalho como
objetivação, como realização humana, tal como quando um indivíduo produz um
brinquedo, um desenho, um utensílio, com suas próprias mãos. Porém, nas
sociedades de classes, o trabalho é geralmente e fundamentalmente trabalho
alienado. O trabalho alienado é aquele no qual o indivíduo não possui controle
sobre sua atividade, é controlado, dirigido, por outro. Daí ele não se reconhece
no produto do seu trabalho e não controla tal produto. Ao não controlar sua
atividade, seu trabalho, ele não controla o produto do seu trabalho, que passa
a pertencer a outro, e nem reconhece este produto como sendo sua produção.
Assim, o trabalho alienado é, fundamentalmente, heterogestão.
A grande distinção se torna entre heterogestão e autogestão. O trabalho
alienado é heterogestão, trabalho dirigido por outro; o trabalho como práxis,
objetivação, é autogestão, trabalho cuja finalidade e processo é controlado
pelo próprio trabalhador. O trabalho como práxis é algo marginal nas sociedades
de classes e não ocorre no processo de produção de meios de sobrevivência, já
que nesta instância há o controle por parte da classe dominante e suas classes
auxiliares. Assim, a práxis assume um caráter esporádico, marginal, cuja
realização é obstaculizada e impedida. Para as classes exploradas, isto ainda é
mais forte, pois o processo de produção é comandado pelo trabalho alienado e o
desgaste, tempo, etc. despendido neste diminui as energias disponíveis para
novos investimentos marginais de atividades não alienadas.
No capitalismo isto é intensificado. O trabalho alienado é uma negação da
natureza humana, da sua necessidade-potencialidade de criatividade, de
manifestar o conjunto de suas energias físicas e mentais. Por isso é um
trabalho forçado e por isso o trabalhador busca se livrar dele, se sente
insatisfeito, não apenas por não ter o produto do seu trabalho, o fruto da
exploração, mas também por estar submetido ao patrão e seus auxiliares, os
burocratas. O trabalhador, neste caso, “foge do trabalho como o diabo foge da
cruz”. Ele se desgasta, se sente infeliz. A atividade não é prazerosa, não lhe
agrada. O resultado do trabalho, o produto, é apropriado por outro, o patrão, o
capitalista. Ele não trabalha por gostar, mas por ser constrangido a trabalhar.
O trabalho se torna um meio desagradável de buscar satisfazer suas outras
necessidades, para adquirir os meios de sobrevivência através do salário. O
salário passa ser o objetivo do trabalho e não a auto-satisfação (seja pela
atividade ou pelas necessidades satisfeitas a partir de sua execução).
A
RECUSA DA HETEROGESTÃO
É por isso que o trabalhador resiste, nega o trabalho alienado. A negação
do trabalho alienado muitas vezes ocorre através de ações individuais. O
trabalhador deixa de ir ao trabalho, realiza sua atividade de forma lenta, não
concentra sua atenção. Ou então se entrega ao alcoolismo, opta pelo desemprego,
agride os chefes e patrões, etc. Estas formas individuais de resistência não
produzem nenhuma alteração na vida do trabalhador. Outra forma de resistência é
a imaginária, através dos sonhos, das fantasias, dos desejos e planos de “ter o
seu próprio negócio”, “trabalhar por conta própria”, “não receber mais ordens
de ninguém”, “ser seu próprio patrão”.
Estas formas de resistência são limitadas e não produzem nenhuma
transformação social ou mesmo individual, a não ser esporadicamente e sem
grande mudança na vida do indivíduo. As tentativas de “montar seu próprio
negócio” geralmente fracassam e quando se sustentam por algum tempo, é
realizada através de um enorme sacrifício sem grandes retornos financeiros ou
quaisquer outros. Os sonhos e fantasias que manifestam a recusa do trabalho
alienado apenas mantém acesa a chama da negação da alienação. A entrega aos
vícios (jogo, alcoolismo) apenas desvia as energias e debilita ainda mais o
trabalhador. A ação individual no trabalho, tal como a lentidão, desatenção,
etc., tende a ter um efeito maior, principalmente tendo em vista que este
processo pode ser uma iniciativa individual, mas que é compartilhado por outros
e, às vezes, quando ocorre o processo de comunicação entre os trabalhadores,
acaba sendo embrião de avanço na ação coletiva e desenvolvimento da consciência.
A recusa coletiva do trabalho alienado também ocorre e é a que possui
mais importância e eficácia. É quando os
trabalhadores começam a se organizar e desenvolver sua consciência num nível
mais elevado. As ações coletivas tal como conversas, discussões, elaboração de
reivindicações (sobre salário, condições de trabalho, etc.) são um processo
coletivo de resistência que, com seu desenvolvimento e aprofundamento, marcam a
passagem para um grau mais elevado da luta dos trabalhadores. A greve assume um
papel fundamental neste processo e é o ponto mais elevado da luta dos
trabalhadores neste contexto. O movimento grevista marca um momento de
resistência coletiva, mas, além disso, de desenvolvimento da consciência e da
auto-organização. O comitê de greve é uma primeira forma de auto-organização ao
lado das assembléias de trabalhadores. O processo de greve – e seus embates com
os patrões (capitalistas) – serve para uma experiência de luta que acaba
desvendando a luta de classes que fica oculta no cotidiano das relações de
trabalho e produção. O processo de paralisação, a forma mais primitiva do
movimento grevista, significa um primeiro passo do proletariado no sentido de se
associar e conscientizar das relações de antagonismo entre ele e a classe
capitalista, a classe dos patrões. A realização da greve, no entanto, faz com
que os patrões busquem combater o movimento grevista através da cooptação, de
ameaças, de demissões, etc. A classe capitalista evita negociar e aceitar as
reivindicações dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, busca o apoio dos seus aparatos
de repressão e controle coletivos, principalmente o Estado[3].
Neste momento, os patrões apelam para o aparato jurídico do Estado
visando decretar a ilegalidade da greve ou a volta imediata ao trabalho. Em outras
situações, pode apelar para o aparato repressivo (policial) para reprimir a
greve e suas manifestações. Desta forma, os trabalhadores avançam na
compreensão de que o Estado serve aos interesses da classe capitalista e não
aos interesses de toda a população. O Estado, historicamente, surge devido à
luta de classes, visando impedir que a luta dos trabalhadores chegue ao
processo de pôr em questão a propriedade
privada, a existência das classes sociais. Ele é controlado pela burocracia
estatal que, tal como os burocratas nas empresas (gerentes, administradores,
etc.), visa controlar a população e fazê-la aceitar a exploração e dominação às
quais está submetida. Esse processo de dominação burocrática que existe nas
fábricas e empresas em geral é reproduzido no Estado e nas instituições em
geral (escola, instituições, igrejas, sindicatos, partidos, etc.), que são,
todos, dominados por uma burocracia que busca sempre controlar tudo,
facilitando assim a reprodução do capitalismo, da exploração. Surge a ideologia
da organização, no qual há uma valoração do processo organizacional que é
apenas um disfarce de uma determinada forma de dominação, a organização
burocrática. Falar em organização significa falar em burocracia, ou seja, na
existência da relação entre dirigentes e dirigidos. A auto-organização, ou
organização autogerida, é apresentada como sendo impossível, pois é necessário
que existam chefes, líderes, dirigentes, ou, em uma palavra, é preciso de
burocratas. Assim, o processo de burocratização (isto é, de expansão do
processo de controle realizado por burocratas) é ampliado para todas as esferas
da vida social, pois se torna uma necessidade do capitalismo para impedir a
emancipação dos trabalhadores.
DA
HETEROGESTÃO À AUTOGESTÃO
Uma das grandes questões sobre a superação de uma sociedade de classes,
heterogerida, e sua substituição por uma sociedade sem classes, exploração e
dominação, autogerida, é a da passagem de uma para outra. Muitos pensadores e
grupos políticos discutiram isso, mas o fizeram sob a lógica do pensamento
burocrático, ou seja, das idéias dominantes em nossa sociedade, que são as
idéias da classe dominante. A instituição da autogestão social pressupõe a
autogestão coletiva do processo de produção de riquezas, pois se o conjunto da
população não autogerir esta produção, também não poderá gerir a distribuição
do que é produzido. Logo, o processo de autogestão tem que ocorrer,
necessariamente, no processo de produção. Sem isto a autogestão social é
impossível. Este é um dos motivos pelo qual a emancipação humana é obra dos
trabalhadores, que são aqueles que produzem as riquezas existentes e podem
iniciar o processo de autogestão das fábricas, empresas, etc., buscando
generalizar a autogestão para o conjunto das relações sociais.
Os trabalhadores precisam realizar a autogestão nas fábricas e empresas
existentes e assim abrir caminho para a reorganização geral da sociedade. Mas
como se inicia este processo? Isto se inicia a partir do momento que a luta dos
trabalhadores se radicaliza e generaliza. A constituição da sociedade
autogerida é realizada através de uma luta que se inicia na sociedade
capitalista, realizando a sua negação. Esta negação do capitalismo ocorre
através do processo de auto-organização e autoformação do proletariado. Este
processo de auto-organização e autoformação tem raiz nas lutas cotidianas
existentes na atual sociedade. É nas lutas sociais que o proletariado e outros
grupos sociais oprimidos vão desenvolvendo sua consciência e organização. Nas
fábricas e empresas este processo se inicia com a greve. É o movimento grevista
que fornece o primeiro momento da luta dos trabalhadores no qual já há um
avanço da auto-organização e autoformação. O movimento grevista abre espaço
para novas relações sociais, a solidariedade entre os trabalhadores que rompe
com a competição produzida pela sociedade capitalista, mostra já uma percepção
do antagonismo entre os trabalhadores, por um lado, e os patrões e seus
serviçais, por outro. A partir deste momento a luta pode avançar ou recuar. Por
um lado, as pressões, ameaças, etc., dos capitalistas e dos seus auxiliares
podem enfraquecer o movimento grevista ao atingir certas pessoas. O papel do
Estado e seu aparato jurídico e repressivo é outro elemento desarticulador do
movimento e a ação dos sindicatos e partidos políticos podem reforçar a
tendência ao recuo, pois através de seus interesses, acertos com os patrões,
acordos ou necessidades eleitorais, irão buscar controlar e frear a luta
proletária.
Caso o movimento grevista continue, ou seja, em caso de avanço da luta,
geralmente se passa para um processo de fortalecimento da organização e
consciência dos trabalhadores. A simples paralisação das atividades é ampliada
no sentido de evitar a cooptação e enfraquecimento do movimento. Uma das
estratégias fundamentais da classe capitalista é ameaçar de demissão e
contratar novos trabalhadores para realizar o processo de produção. Como a
classe capitalista cria um conjunto de desempregados – exército industrial de
reserva – que vive no desemprego ou subemprego, então é relativamente fácil
contratar novos trabalhadores e continuar o processo de produção. Assim, a
ameaça de perder o emprego é um ponto de enfraquecimento do movimento, já que o
trabalhador irá pensar em sua família e sobrevivência, sendo que alguns irão
ceder à chantagem capitalista. Outro problema é que se a classe capitalista
consegue novos trabalhadores e fazer as fábricas e empresas funcionarem
novamente, então poderá resistir e agüentar a greve indefinidamente.
Historicamente, os trabalhadores criaram sua contra-estratégia a esta
ação capitalista. Através do piquete, os trabalhadores impedem a entrada nas
fábricas daqueles trabalhadores que cedem às pressões capitalistas, os chamados
fura-greve. Estes são desmoralizados junto ao conjunto dos trabalhadores e o
piquete é um cordão de trabalhadores que impede a sua entrada. A classe
capitalista, porém, nestes casos, também reage e chama a polícia para afastar
os grevistas e deixar entrar os fura-greve (incluindo também os novos
trabalhadores contratados, quando isto ocorre). Outra ação proletária é a de
exigir, através do movimento, uma nova reivindicação, a re-contratação dos
demitidos. Porém, esta contra-estratégia é ainda limitada e com o processo de
avanço da consciência e da auto-organização, os trabalhadores avançam mais na
luta no sentido de ocupar as fábricas e empresas, instituindo a greve de ocupação.
Esta estratégia impede a entrada de fura-greve e o prosseguimento do
processo de produção, o que torna o movimento grevista mais forte, já que a
paralisação se torna total e efetiva, o que atinge o lucro das empresas. A
greve de ocupação marca também um avanço na auto-organização e autoformação dos
trabalhadores, não só pela decisão, mas também pela execução da ocupação, que
pressupõe aumentar as tarefas organizativas, a solidariedade, a percepção da
luta contra os patrões, etc.
Porém, os capitalistas não ficam de braços cruzados e reforçam a pressão
sobre os aparatos estatais e estes são acionados para combater o movimento
grevista, enquanto as possíveis negociações continuam ocorrendo paralelamente
com outras formas de luta, as já em execução juntamente com novas. Este
processo se amplia e torna-se mais importante com a passagem para a autogestão
das empresas, que significa a passagem da greve de ocupação para uma forma
superior: a greve de ocupação ativa.
Neste caso, os trabalhadores não apenas ocupam as fábricas e empresas, mas as
colocam para funcionar, sem a direção de burocratas e patrões. Embora este
estágio da luta seja mais eficaz quando se trata de um conjunto de greves em
diversas empresas.
Assim, o processo de ocupação e gestão de uma fábrica isolada ainda não
constitui autogestão da fábrica, pois a finalidade da produção continua sendo
definida por elementos externos aos trabalhadores da fábrica em questão e
também em relação ao proletariado como um todo, estando subordinado ao Estado
capitalista e ao mercado. A greve de ocupação ativa explicita, na verdade, uma
“ocupação ativa” que, para se tornar autogestão, precisa se ampliar para
diversas outras unidades de produção, transformando-se em greve geral e
instituindo novas formas de auto-organização dos trabalhadores, tal como os
conselhos de fábricas e os conselhos operários.
A greve geral é um processo que se realiza tendo por origem as
reivindicações comuns dos trabalhadores (aumento salarial, condições de
trabalho, readmissão de demitidos, liberdade de expressão e organização, etc.)
ou questões políticas (negação de instauração de um regime ditatorial, por
exemplo) e significa que as greves que ocorrem em
algumas empresas se espalham atingindo
diversas empresas. Esse processo no qual há uma ampliação para um grande número
de empresas e desenvolvimento de novas formas organizacionais que surgem a
partir dos comitês de greve, comissões, etc., os conselhos de fábrica, precisam
articular sua luta e assim surgem os conselhos operários. A partir do momento
que estes conselhos operários passam a existir e a ocupação ativa se torna
efetivamente autogestão, instaura-se um processo de dualidade política, no
qual, por um lado, há o Estado capitalista e seu aparato repressivo e
administrativo combatendo e buscando controlar o movimento grevista e, por
outro lado, os conselhos operários e outras formas de auto-organização dos
trabalhadores gerindo as empresas e outras atividades sociais, constituindo uma
autogestão dos trabalhadores.
Esse processo é mais forte e poderoso se ocorre em escala nacional (ou
mesmo em escala internacional, como ocorreu nas experiências autogestionárias
do início do século 20). Porém, mesmo em determinadas cidades ou regiões, passa
a existir uma dualidade política, entre o poder estatal e as auto-organizações
dos trabalhadores. Caso o poder estatal consiga destruir estas formas de
auto-organização ou retirar sua força nas empresas, ocorre um processo de
contra-revolução e a experiência autogestionária é derrotada. Caso os conselhos
operários e outras formas de auto-organização dos trabalhadores consigam
destruir o aparato estatal capitalista, então há a instauração da autogestão
social. Uma vez ocorrendo este processo, há uma progressiva generalização da
autogestão em todas as esferas da vida social (educação, serviços, etc.) e
ampliação espacial (escala nacional e internacional).
A sociedade autogerida começa a se concretizar em determinada região ou
país e sua instauração serve como exemplo e produz uma efervescência política
de alcance mundial. As relações de produção passam a ser autogeridas pela
população, o processo de produção de bens materiais e necessários passa a ser
realizados nas zonas industriais e comunas, proporcionando nova forma de
sociabilidade, de relações sociais em geral. A produção material deixa de estar
submetida a interesse de uma classe dominante e voltada para o lucro e passa a
estar submetida às necessidades sociais e controladas pela população, a
produção de valores de troca é substituída pela produção de valores de uso.
O
CONCEITO DE AUTOGESTÃO
Existem duas formas principais de entender a autogestão. A primeira forma
é a que pensa a autogestão no interior da sociedade capitalista, sendo uma
forma de gestão de empresas, cooperativas, etc. que conviveria com o mercado e
o Estado capitalista[4].
A autogestão seria neste caso uma forma de gestão de algumas unidades de
produção ou consumo, tal como empresas e cooperativas. Porém, esta forma de
compreender a autogestão é problemática, pois, neste caso, o controle estatal e
as necessidades da produção mercantil anulam o processo de decisão autônoma dos
produtores e coloca a necessidade de produção de valores de troca, mercadorias,
ou seja, para a venda, submetendo o processo produtivo ao mercado. Assim, a
produção não está voltada totalmente para a satisfação das necessidades dos
produtores, para a produção de valores de uso, e sim para o mercado, o que
significa que os produtores terão que adquirir matérias-primas, máquinas, etc.
e conseguir vender mercadorias de forma que seja suficiente para pagar estes
gastos ou então se endividar com o capital bancário. Isso, por sua vez,
significa uma subordinação à divisão social do trabalho e sua produção seria
produção de mercadorias.
No caso de gestão de empresas capitalistas, isto é, cuja propriedade não
pertence aos produtores, eles então são assalariados que estão submetidos às
diretrizes gerais da empresa, tal como seus objetivos de produção, a
necessidade do lucro, etc., e não tendo nada a ver com a necessidade direta dos
trabalhadores, a não ser o salário e a possível “participação (irrisória) nos
lucros”. As demais determinações, como o controle estatal e o mercado continuam
atingindo o processo de gestão e de forma mais intensa, pois está ligada à
propriedade privada de outro, do capitalista.
Estas formas de gestão, seja de empresas capitalistas ou de cooperativas,
não constituem uma verdadeira autogestão. Por conseguinte, podemos dizer que,
no interior da sociedade capitalista é impossível haver autogestão.
Podemos dizer, sucintamente, que autogestão é uma relação de produção. O
processo de autogestão social ocorre através da decisão coletiva, das auto-organizações
nas unidades de produção e moradia (conselhos, comunas), no qual a população de
determinada região decide o quê e como produzir no que se refere às
necessidades mais amplas de uma coletividade. Os produtores associados de
determinada comuna ou unidade de produção decidem como produzir os meios
necessários para sobrevivência e demais bens materiais e culturais. A produção
é de valores de uso e não de valores de troca, mercadorias, já que não se
produz para vender e sim para consumir.
A autogestão social é um conjunto de relações sociais, cuja fonte e
origem são novas relações de produção, ou seja, relações instauradas entre os
seres humanos no processo de produção das riquezas, sob a forma da igualdade,
decisão coletiva, etc., abolindo o salariato, o mercado, o dinheiro, o Estado,
a divisão social do trabalho entre dirigentes e dirigidos. Estas novas relações
de produção se generalizam por toda a sociedade e relações semelhantes passam a
existir em todas as atividades humanas. Desta forma, a sociedade autogerida é a
forma de associação de seres humanos que corresponde à natureza humana, uma
sociedade verdadeiramente humanizada.
AUTOGESTÃO
E IDEOLOGIA
A idéia de autogestão é um tanto quanto antiga. Os primeiros a esboçar
idéias autogestionárias foram alguns dos chamados “socialistas utópicos”,
especialmente Robert Owen, mas também Proudhon. Posteriormente, Bakunin e Karl
Marx também desenvolveram teses sobre a sociedade pós-capitalista. Marx foi o
pensador que mais aprofundou a questão da autogestão social, especialmente após
a experiência histórica da Comuna de Paris. A derrota da Comuna de Paris,
porém, foi acompanhada pela tentativa da classe dominante em cooptar vastos
setores do proletariado e foi neste sentido que os partidos políticos e sindicatos
antes combatidos passam a ser aceitos e legalizados. A legalização de partidos
e sindicatos foi uma forma encontrada para criar um processo de burocratização
destas instituições. Foi neste momento histórico que surgiram os partidos
social-democratas e posteriormente os partidos comunistas, responsáveis pela
deformação das teses de Marx e pelo esquecimento de sua concepção de sociedade
fundada na “livre associação dos produtores”.
A partir deste momento, a idéia de autogestão social passou a ser defendida
por algumas correntes políticas marginais e indivíduos, até que a nova ascensão
da luta proletária ocorresse: A Revolução Russa de 1905 faz emergir pela
primeira vez na história os conselhos operários. O movimento dos trabalhadores
russos fez emergir uma nova forma organizacional que permitia a autogestão das
unidades de produção e sua expansão para a autogestão coletiva da sociedade, já
que os conselhos operários alargavam o processo de gestão para toda uma região
e não apenas na fábrica. Os conselhos operários foram derrotados e
posteriormente ressurgiram em fevereiro de 1917 até ser novamente derrotados,
desta vez pelo bolchevismo, a deformação russa do marxismo realizado por
ideólogos como Lênin, Trotsky e Stálin[5].
Os conselhos operários emergiram também nas tentativas de revolução proletária
na Hungria, Itália e Alemanha.
É neste contexto histórico que irá emergir a expressão teórica do
movimento dos conselhos operários, o chamado “Comunismo de Conselhos”, expresso
por indivíduos e grupos, cabendo destaque para Anton Pannekoek, Karl Korsch,
Otto Rühle, Hermann Gorter, Paul Mattick, entre outros. Eles participaram das
lutas revolucionárias dos conselhos operários principalmente no caso da
Revolução Alemã e extraíram destas experiências a teoria dos conselhos
operários, atualizando teoricamente a forma de instauração da autogestão social[6].
Outras experiências históricas de autogestão social proporcionaram novos
desdobramentos teóricos, tal como a Guerra Civil Espanhola na década de 1930,
as lutas sociais do Maio de 1968 em Paris, a Revolução dos Cravos em Portugal
em 1974, a Revolução Polonesa contra o capitalismo estatal em 1980, entre
outras.
Apesar deste conjunto de experiências e diversas expressões teóricas
derivadas, as produções ideológicas da classe dominante e suas classes
auxiliares promoveram várias deformações da idéia de autogestão. Os ideólogos
buscaram transformar a autogestão apenas em gestão capitalista de empresas,
cooperativas, participação e controle operário ou co-gestão de empresas capitalistas,
“economia solidária”, ou mesmo “autogestão no capitalismo de estado” no caso iugoslavo[7].
Estas concepções ideológicas de autogestão apontam para o isolamento da prática
autogestionária em uma ou algumas empresas, que continuam sendo capitalistas e
sem nenhuma alteração radical nas demais relações sociais (permanece o mercado
e o Estado), transformando a referida autogestão em mero participacionismo dos
trabalhadores na gestão capitalista de empresas ou então em cooperativas
subordinadas ao capital e ao Estado, sendo mera propriedade nominal e que
funciona como pequenas propriedades capitalistas geridas e supostamente
pertencentes aos trabalhadores.
A autogestão social só se pode efetivar através da luta operária e da
auto-emancipação dos trabalhadores e isto ocorre via auto-organização e
autoformação, processo que se desenvolve a partir da luta, que ocorre em toda a
sociedade capitalista e que ao se radicalizar e aglutinar uma quantidade maior
de trabalhadores, abre espaço para a revolução proletária, que significa a
transformação do conjunto das relações sociais, a autogestão das unidades de
produção e sua posterior generalização para o conjunto da sociedade, realizando
a destruição do estado, órgão de dominação de classe. Nesse processo, surgem conselhos
de fábrica, conselhos operários, conselhos de bairros, que são órgãos de
autogestão que permitem a autogestão generalizada.
GLOSSÁRIO
Autogestão
Social: forma de sociedade na
qual a população como um todo e de forma coletiva organiza o processo de
produção e regularização da vida social, sem divisão social do trabalho,
Estado, mercado, etc. O processo de produção é gerido pelos próprios produtores
associados, a decisão é coletiva, a produção é voltada para valores de uso, e
isto ocorre em todas as relações sociais.
Conselhos
Operários: São formas de
auto-organização dos trabalhadores cuja base são os conselhos de fábrica, ou seja, por unidade de produção. Os conselhos de
fábrica ou empresa realizam a autogestão na unidade de produção e elegem seus
delegados (temporários, removíveis, com função executiva e não de decisão) que
passam a compor os conselhos operários, órgãos de autogestão social a nível
geral, região, cidade, etc. Veja Cadernos
de Formação 8: Os Conselhos Operários.
LEITURA PARA APROFUNDAMENTO
Berger,
C. Marx Frente a Lênin. Associación
Obrera o Socialismo de Estado. Madrid, Zero, 1977
Bricianer,
Serge (org.). Anton Pannekoek y los
Consejos Obreros. Buenos Aires, Schapire, 1975.
Bruno, Lúcia. O Que é
Autonomia Operária? São Paulo, Brasiliense, 1990.
Guillerm, Allain e Bourdet,
Yvon. Autogestão: Mudança Radical.
Rio de Janeiro, Zahar, 1986.
Lapassade, Georges. Grupos,
Organizações e Instituições. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988.
Marx,
Karl. A Guerra Civil na França. Rio
de Janeiro, Zahar, 1986
Massari,
R. Teorias de la Autogestion. 2ª
Edição, Madrid, Zero, 1977.
Pannekoek, Anton. A
Revolução dos Trabalhadores. Florianópolis, Barba Ruiva, 2007.
Tragtenberg, Maurício. Reflexões
Sobre o Socialismo. São Paulo, Cortez, 1988.
Viana, Nildo. Manifesto
Autogestionário. Rio de Janeiro, Achiamé, 2008.
Leia
outros Cadernos de formação do NUPAC:
01.
Capitalismo
– O Segredo da Exploração Capitalista
02.
A
Formação de Núcleos Revolucionários.
03.
Autogestão
Social
04.
Autogestão
e Ideologia
05.
Burocracia
[1]
Sobre isso veja: Cadernos de Formação, 01: Capitalismo – O Segredo da
Exploração Capitalista.
[2]
Veja Glossário ou Caderno de Formação: Karl Marx.
[3]
Para uma melhor compreensão disto, sugerimos o Caderno de Formação dedicado ao
Estado Capitalista.
[4]
Sugerimos a leitura do Caderno de Formação dedicado ao Estado Capitalista e o
Glossário, bem como as páginas seguintes para entender as implicações disto.
[5]
Sobre isso, veja os demais cadernos de formação, em preparação, sobre Marx,
Lênin, Trotsky, Stálin, marxismo, bolchevismo, entre outros.
[6]
Para não estender mais, sugerimos a leitura dos Cadernos de Formação sobre
“Experiências Autogestionárias” e “Teorias da Autogestão”, “Comunismo de
Conselhos”, que desenvolvem mais detalhadamente estes aspectos.
[7]
Sugerimos para aprofundamento, neste caso, a leitura do Caderno de Formação,
“Autogestão e Ideologia”.
VIANA, Nildo. A Autogestão Social. Cadernos de Formação do NUPAC, 03. 2016.
Para acessar versão PDF e Cadernos de Formação, clique aqui.
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