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quinta-feira, 3 de agosto de 2017

A crítica social no desenho animado das Meninas Superpoderosas



A CRÍTICA SOCIAL NO DESENHO ANIMADO DAS MENINAS SUPERPODEROSAS

Nildo Viana

O nosso objetivo no presente texto é analisar a crítica social efetivada em três episódios do desenho animado seriado “As Meninas Superpoderosas”. Para tal, iniciaremos com uma discussão teórica sobre desenhos animados e crítica social e, posteriormente, analisaremos três episódios nos quais se manifesta a crítica social.
O primeiro ponto a se destacar é que os desenhos animados, assim como as histórias em quadrinhos, geralmente são considerados como algo produzido para o público infantil e por isso seriam simples, cômicos, de fácil entendimento. Isso, por conseguinte, fariam deles algo desinteressante, com conteúdo limitado e sem relação com coisas mais complexas, como política, sociedade, etc. E por isso seria algo “infantil” também no sentido pejorativo do termo.
No entanto, nem sempre é assim. Sem dúvida, os desenhos animados[1] são, em sua grande maioria, produzidos para o público infantil. As crianças são o seu público-alvo em sua quase totalidade, pelo menos até algum tempo atrás. A proliferação da produção de obras televisivas com a expansão, consolidação e generalização do uso da TV permitiu um enorme processo de produção de desenhos animados. Com o passar do tempo surgiram desenhos animados voltados para a juventude e até para o público adulto. Assim, a simplicidade dos desenhos animados não é mais algo generalizado. Os Simpsons, Futurama, South Park, Uma Família da Pesada, entre diversos outros, não possuem como alvo o público infantil.
Porém, independente disso, os desenhos animados não são todos “simples”, de “conteúdo limitado”, etc. Todo desenho animado, por mais simples que seja, repassa valores, sentimentos, concepções, que constituem a sua mensagem. Isso pode ser realizado sob a forma espontânea ou refletida. A forma refletida que repassa mais explicitamente valores, concepções e sentimentos são os chamados desenhos animados educacionais[2]. Assim, podemos distinguir entre a mensagem intencional e a mensagem inintencional, entre o explícito e o implícito. Além disso, existem desenhos animados que são mais desenvolvidos e trazem mensagens mais complexas, sejam críticas ou apologéticas.
O nosso objetivo, no entanto, é mais específico. O nosso tema é a crítica social nos desenhos animados das Meninas Superpoderosas. O que é crítica social? Há uma certa confusão em torno dessa palavra, bem como algumas posições distintas. Aqui nos limitamos a esclarecer esse conceito a partir de nossa perspectiva:
O termo crítica social, embora alguns usem em sentido amplo, aplicando-o além da esfera artística, o que é um equívoco, remete ao problema da crítica do social na produção artística (música, literatura, cinema, quadrinhos, etc.). Assim, a crítica na esfera científica difere da crítica social, que se realiza na esfera artística, e é aí que se torna necessário o termo complementar “social”. A ideia de crítica social remete a uma determinada posição diante da sociedade, seja em sua totalidade ou em algum aspecto dela, através das obras artísticas. Ou seja, entre as diversas produções artísticas, existem aquelas que assumem um posicionamento crítico diante da realidade social (em sua totalidade ou partes dela) e tematizam e desenvolvem isso em sua produção. Isso significa que a crítica social pressupõe intencionalidade por parte de quem produz determinada obra artística (VIANA, 2013).
Aqui fica claro que crítica social se refere à produção artística. Entenda-se por arte, toda e qualquer expressão figurativa (ficcional) da realidade (VIANA, 2007), incluindo os desenhos animados[3]. Da mesma forma, é preciso compreender que a crítica social pode se manifestar sob várias formas: radical (totalizante e visando a transformação social), moralista (fundamentada numa determinada concepção moral), fragmentária (apontando para aspectos da realidade e não sua totalidade), pessimista (não apresenta solução, alternativa, etc.), entre outras possibilidades (VIANA, 2013). Uma outra forma de crítica social é a humanista[4]. O humanismo, por sua vez, também assume várias formas, tal como o radical, o generalista (abstrato, sentimental), o progressista e o conservador (burguês). A crítica radical é humanista, mas, nesse caso, é um humanismo igualmente radical. A crítica humanista não-radical é generalista, progressista ou conservadora.
A crítica radical raramente aparece em desenhos animados e em geral, o que não necessita explicação. Quando a crítica social se manifesta em desenhos animados, é geralmente sob a forma generalista, progressista ou conservadora. No entanto, não é possível pensar na crítica social e estendê-la mecanicamente a um desenho animado. Este possui uma configuração específica e isso faz parte de sua totalidade e por isso é necessário entender tal configuração para compreender a mensagem que determinado desenho animado busca repassar.
A configuração própria de um desenho animado assume, por sua vez, várias formas. No caso que nos interessa aqui, trata-se dos desenhos animados seriados, ou seja, aqueles que possuem uma série de episódios. Assim, o desenho animado O Rei Leão se distingue de Kimba, O Leão Branco, pois o primeiro é único (embora, posteriormente, tenha gerado séries) e o outro é uma série de episódios. O desenho animado seriado tem uma configuração própria que podemos denominar moldura[5]. A moldura é o conjunto que envolve uma estória ou enredo[6], A moldura de um desenho animado é composta por elementos permanentes e que se repetem em todos os episódios, tais como um conjunto de personagens permanentes com sua personalidade, o contexto narrativo (cidade, relações, etc.), a fórmula narrativa[7], etc. A moldura é fixa. A estória é mutável, mas ocorre no interior de uma moldura permanente. Em alguns casos, aspectos da moldura podem ser alterados em determinas estórias, que é quando essa envolve a moldura. Esse é o caso do episódio do desenho As Meninas Superpoderosas, intitulado “Florzinha vira má”, na qual há uma alteração temporária da personalidade da personagem. Em outros casos, a moldura pode ser alterada no decorrer da série.
Após estes elementos teóricos introdutórios podemos partir para a análise da crítica social presente no desenho animado das Meninas Superpoderosas (The Powerpuff Girls), criada por Craig McCracken. Esse desenho animado possui como moldura um conjunto de elementos ficcionais e personagens, a começar pela cidade de Townsville, Professor Utônio, o prefeito da cidade, a secretaria do prefeito Senhorita Belo (que só aparece do pescoço para baixo), Senhorita Keane, diversos supervilões (com destaque para Macaco Loco, Ele e Sedusa), o telefone de ligação direta entre prefeito e Meninas Superpoderosas (inspirado, assim como outros elementos, em Batman), o efeito de comicidade[8], entre outros aspectos.
O nosso foco aqui, será, no entanto, três estórias nas quais podemos identificar mais explicitamente a crítica social e não sua moldura. Trata-se de três episódios: Loco Linguagem, Salvem o Macaco Loco e De igual para igual.

“Loco Linguagem”:
Linguagem, competição e dominação em “As Meninas Superpoderosas”

O desenho animado “Loco Linguagem[9], das Meninas Superpoderosas, mostra o vínculo entre linguagem e dominação. O uso da linguagem para a efetivação da dominação assume várias formas e o desenho mostra uma delas: o discurso retórico, especialmente um de seus estratagemas, que é a “complexidade” vazia. O vínculo entre linguagem e dominação ou poder (BAKHTIN, 1990; VIANA, 2009) é fundamental para compreender esse processo. O desenho animado Loco Linguagem explora uma das formas como a linguagem se torna instrumento de poder: o processo de complexificação formal. Esse processo é muito utilizado em certos setores da sociedade, especialmente nas universidades e meios científicos[10]. Ele cria um processo de distinção (artificial e não real) entre linguagem complexa e linguagem cotidiana, dando aparência de saber e superioridade a algo que falta conteúdo. O excesso de forma apenas disfarça a falta de conteúdo.
A linguagem complexa quando utilizada para realizar a explicação das relações sociais ou fenômenos naturais é uma necessidade imposta pela própria realidade. Quando ela é apropriada pelo discurso retórico, acaba apenas se tornando um hermetismo ou prolixidade desnecessária, cujo objetivo é gerar a aparência de complexidade e inteligência, onde, no fundo, não há nenhum saber real e concreto. A sociedade capitalista, com o processo de desenvolvimento da divisão social do trabalho, cria um conjunto de ciências que usam linguagens especializadas, que é outro problema, pois cada ciência particular cria sua linguagem particular, mesmo quando abordando o mesmo fenômeno. Na filosofia, cada filósofo cria sua própria linguagem, tornando de difícil acesso, especialmente pelo número de filósofos existentes[11]. Porém, esses dois casos diferem do discurso retórico. A linguagem especializada se estrutura a partir de determinados fenômenos e a linguagem filosófica se estrutura a partir de elementos fundacionais de um discurso, mas, quando é realizado de forma competente e honesta, são produções intelectuais que não buscam intencionalmente vantagens pessoais, mesmo que seja meramente ganhar um debate, tal como o discurso retórico[12]. Ambos possuem limites e problemas que merecem crítica, mas são distintos do discurso retórico, muito inferior no plano do saber e também da ética.
O discurso retórico é utilizado para ganhar debates, ganhar reconhecimento, ter aparência de “inteligência”, de acordo com a lógica da competição social e servindo para a reprodução da dominação. O discurso retórico se manifesta, muitas vezes, de forma incompreensível, pois assim o não entendimento do ouvinte ou leitor lhe permite se passar por “culto”, “inteligente”, “superior”, apesar de sua falta de conteúdo, coerência e saber real.
Uma das formas de realizar esse processo é o discurso prolixo. O discurso prolixo se distingue do discurso prolífico, pois este último é carregado de significado real, enquanto que o outro é formalismo vazio. O discurso prolixo é extenso, mas marcado por repetições, detalhes sem grande importância, mudança de assunto, etc. O discurso prolífico é voltado não para a repetição e sim para o desenvolvimento, assim como é econômico nos detalhes e exemplos, bem como não foge do assunto em questão, promovendo um verdadeiro desenvolvimento do saber ou do pensamento.
Em Loco Linguagem, As Meninas Superpoderosas enfrentam um vilão, Macaco Loco[13], que usa a prolixidade para efetivar a dominação, tal como os detentores do poder e intelectuais que servem ao propósito de reproduzir a sociedade existente. O uso da prolixidade e formalismo vazio gera a impressão de sabedoria e gera vantagens competitivas para o seu utilizador.
O desenho inicia com o Macaco Loco sendo punido por um juiz por seus crimes. A punição é o serviço comunitário, mas sob forma sui generis: dar aulas num curso de extensão da Faculdade Comunitária de Townsville. O curso de extensão é sobre “aprender a falar melhor”, ou seja, falar corretamente o idioma. Logo, através da proliferação de redundâncias e detalhes, ele “ensina” os alunos a “loco linguagem”, o discurso prolixo sem conteúdo real. Os alunos espalham a “nova forma de se comunicar”, atraindo mais alunos e em pouco tempo a cidade inteira está dominada pela nova linguagem.
Isso cria o caos, tal como demonstrado no diálogo de uma pedestre idosa e um guarda de trânsito, no qual ambos demoram minutos com redundâncias e detalhes desnecessários, fazendo o trânsito parar. Isso funciona também como efeito de comicidade, somado a um motorista que, por irritação com o diálogo, bate a cara no volante do carro. As Meninas Superpoderosas são chamadas pelo prefeito da cidade para resolver um problema de assalto ao banco, mas o prefeito, usando a loco linguagem, não é claro e por isso elas pensam que poderiam ser o caos no trânsito o problema, mas isto não seria crime e sim algo “chato”. Depois encontram um assaltante de banco e uma bancária usando a loco linguagem, no qual não se compreendiam mutuamente. Uma questiona se isso é um assalto ao banco e a outra diz que está mais para “papo furado”.
Ao saírem do banco para descobrir o real crime que o prefeito estava se referindo, encontram a imagem projetada de Macaco Loco em um edifício colocando as vantagens da loco linguagem e percebem que este é o crime. Nesse momento, Lindinha usa a loco linguagem, dando o efeito de comicidade e provocando a irritação das outras Meninas Superpoderosas. Florzinha chega à conclusão que é preciso “reprogramar” a cidade para fazer “o seu discurso voltar ao normal”. Elas buscam pedir para que as pessoas falem diretamente, mas fracassam e Florzinha e Docinho usam a loco linguagem, num novo efeito de comicidade. Florzinha pensa em uma outra solução: o Cachorro Falante[14]. Este começa a reeducar a cidade para dar “respostas simples para perguntas simples”. O Macaco Loco também é reeducado com vídeos do Cachorro Falante e sob a supervisão de Docinho. No final, o narrado usa a loco linguagem em mais um efeito de comicidade.
Em síntese, este desenho traz, portanto, uma contribuição para a compreensão da força da linguagem nas relações sociais e como ela é usada para a reprodução da competição social e da dominação. Um supervilão pode controlar a cidade controlando o uso da linguagem. A força da linguagem se expressa nessa possibilidade, bem como fica explícito que o discurso prolixo, um dos estratagemas do discurso retórico, permite confundir, enganar, dominar, com o uso da linguagem.

 “Salvem o Macaco Loco”:
Oportunismo e Opressão em “As Meninas Superpoderosas”.
O desenho animado “Salvem o Macaco Loco[15], das Meninas Superpoderosas, mostra a questão do uso oportunista do discurso da opressão. A palavra oportunismo possui dois significados. O primeiro sentido é quando um indivíduo aproveita a oportunidade, ou seja, um indivíduo oportunista é aquele que tem senso de oportunidade. Esse é o sentido usado por locutores de jogos de futebol quando afirmam que um determinado jogador foi “oportunista” e marcou o gol, ou seja, aproveitou a oportunidade, como um descuido do zagueiro, e conseguiu o seu objetivo. Esse é o sentido positivo e pouco utilizado da palavra. O significado mais usual da palavra é o negativo e tem sua origem na política institucional, mas acabou se generalizando no conjunto da sociedade. O oportunismo, nesse caso, não significa mero senso de oportunidade e sim uma prática de usar certas oportunidades (circunstâncias favoráveis) para obter vantagens pessoais.
A sociedade capitalista tem como um elemento fundamental de sua sociabilidade a competição social. Isso é algo generalizado na sociedade e promove a constituição de uma mentalidade competitiva, elemento constitutivo da mentalidade burguesa, que se generaliza em toda a sociedade (VIANA, 2008). Assim, os indivíduos geralmente buscam ganhar a competição social na busca por riqueza, poder[16], status, fama, sucesso, etc. e, caso não consigam, buscam vencer qualquer outra competição menor. Isso gera certos problemas na luta política: muitos indivíduos que dizem lutar pela transformação social ou por mudanças na sociedade, no fundo, usam isso apenas como discurso para conseguir vantagens pessoais e ganhar a competição social; outros começam sinceramente lutando por mudanças, mas acabam se corrompendo e passando a priorizar sua ascensão social; outros acabam se tornando presas mais fáceis de cooptação e corrupção[17]. Assim, o oportunismo se torna uma forma de realizar a competição social visando vantagens pessoais. No entanto, diversos indivíduos sinceros acabam reproduzindo os discursos e as concepções geradas pelos oportunistas, por simplesmente não perceber sua origem, interesses e consequências (VIANA, 2017a).
A existência, real ou imaginária, de várias formas de opressão, permite o uso oportunista de uma questão coletiva para benefício pessoal. Nesse contexto, muitos indivíduos, quando são prejudicados ou contrariados, usam o discurso da opressão grupal visando vantagem pessoal. O processo consiste em colocar tudo que atinge um indivíduo particular como se fosse por motivação grupal. Cria-se uma fusão entre indivíduo e grupo. Esse é o caso de um indivíduo malvestido (mas poderia ser negro, judeu, mulher, etc.) que sai de uma loja com um objeto no bolso e é parado por um segurança e diz que isso foi realizado por ser “pobre”. Isso cria uma espécie de fórmula: indivíduo de grupo oprimido (pobre) + ato contrário = opressão (ou preconceito, discriminação, racismo, “machismo”, etc.).
Esse caso apenas mostra que não bastam esses acontecimentos para que haja a afirmação de que houve discriminação, ou seja, é uma possibilidade que tenha havido discriminação, mas não é algo certo. Para saber se realmente houve discriminação seria necessário saber a motivação do segurança: foi o objeto ou a roupa do indivíduo? A existência do objeto mostra um indício além da mera vestimenta do indivíduo. Se fosse um indivíduo bem-vestido, teria sido parado? Isso seria especulação. Nesse caso, pairam dúvidas, mas em outros, a arbitrariedade é muito maior, tal como um aluno que por ser de algum grupo oprimido queira tirar notas superiores simplesmente por isso. Ora, a nota busca avaliar o grau de aprendizagem e se este não ocorreu, não há sentido em apelar para a opressão para reivindicar notas imerecidas. A luta social que deveria ser realizada não seria para que indivíduo X do grupo oprimido Y receba notas imerecidas e sim para que o grupo oprimido Y deixe de ser oprimido e assim consiga, coletivamente e não individualmente, a solução do problema.
Isso é pior ainda quando se cria um maniqueísmo entre “grupo oprimido” e “grupo opressor”. Nesse caso, há uma santificação de todos os indivíduos do “grupo oprimido” e uma demonização de todos os indivíduos do “grupo opressor”. O maniqueísmo gera uma animosidade irracional contra os indivíduos pertencentes aos que foram identificados como sendo do “grupo opressor”, criando um dualismo problemático e descontextualizado e gerando o mesmo essencialismo, generalização e discriminação diz existir no outro grupo[18].
Em “Salvem Macaco Loco”, As Meninas Superpoderosas enfrentam um vilão que usa a questão da opressão sob forma oportunista, buscando, assim, vantagens pessoais, que, no caso, é cometer crime sem punição. Trata-se do Macaco Loco, o mais constante adversário das super-heroínas. O desenho começa abordando a harmonia e a boa relação entre homens e animais, tal como a ajuda mútua, em Townsville. Tudo se inicia num dia comum em Townsville, quando aparece a figura de “um animal que não sabe viver como os outros”, o “modificado” (ele foi produzido pelo Professor Utônio, assim como as Meninas Superpoderosas, mas involuntariamente) Macaco Loco. Ele se encontra numa loja de ferragens buscando materiais para construir sua máquina de destruição cujo objetivo é destruir Townsville. As Meninas Superpoderosas aparecem e o atacam, até que aparece um grupo de manifestantes (denominados posteriormente como “hippies” por Macaco Loco) que dizem que elas estão agindo contra a lei que impede crueldade com os animais. Macaco Loco percebe que pode tirar vantagem da situação e se coloca como vítima das malvadas Meninas Superpoderosas e afirma: “estou sendo oprimido!”. Docinho avança, mas o grupo começa a fazer uma manifestação e Florzinha começa e pensar que eles têm razão, pois ele é “protegido pela lei, assim como esse protesto pacífico” e enquanto os manifestantes estiverem por perto, “não poderemos tocar nele”.
Assim, o Macaco Loco começa a colocar em prática o seu plano de criar uma máquina para destruir Townsville e várias vezes as Meninas Superpoderosas tentam impedi-lo, mas elas são impedidas pelo grupo de manifestantes, pois todas as vezes que elas se aproximam, ele diz “estou sendo oprimido”. Até que consegue o último elemento para sua máquina, o computador poderoso do Professor Utônio, na própria casa das Meninas Superpoderosas.
As Meninas Superpoderosas resolvem procurar o prefeito para mudar a lei. Este, num efeito de comicidade, pergunta quem fez tal lei “idiota”, ao que Docinho responde irritada, “foi o senhor mesmo”. Elas dizem para ele mudar a lei e, noutro efeito de comicidade, ele pergunta se pode e que vai fazer alguma coisa “contra essa lei idiota de roubo em lojas”. Florzinha pede para ele concentrar-se e ler a lei contra crueldade com os animais, quando, com sua leitura, percebe a referência ao habitat dos animais.
As Meninas Superpoderosas procuram o grupo de manifestantes, que estão, noutro efeito de comicidade, admirando a máquina de destruição do Macaco Loco como produto de sua genialidade, e logo são rechaçadas mas conseguem ser ouvidas. E assim entram em acordo a respeito do Macaco Loco, que deveria estar em seu habitat natural e assim ele é enviado para uma ilha, onde, noutro efeito de comicidade, ataca dois macaquinhos que o incomodavam e sofre a represália de um gorila.
Este desenho animado contribui para a percepção de que muitos indivíduos pertencentes a grupos oprimidos reproduzem a mentalidade burguesa, valores dominantes, competição social, elementos que explicam o discurso oportunista sobre a opressão. O pertencimento ao grupo serve de pretexto para conseguir vantagens competitivas e, no caso do desenho animado, para não ser punido e realizar sua vontade. O Macaco Loco é o oportunista que se aproveita do grupo de manifestantes e do discurso da opressão que os mobiliza para impedir sua prisão pelas Meninas Superpoderosas. A estória reflete a realidade existente na sociedade capitalista do uso oportunista do discurso da opressão.





De Igual para Igual:
Maniqueísmo. Oportunismo e Feminismo em As Meninas Superpoderosas
Novamente o tema da opressão e do oportunismo reaparece no episódio “De igual para igual” (é o único título que se distancia mais do original, que no caso é: Equal Fights, que na tradução literal é “lutas iguais”)[19]. No entanto, trata-se de um caso específico de opressão, a feminina. Nesse contexto, temos a explicitação de um discurso maniqueísta, que opõe o bem e o mal, no caso, o feminino e o masculino.
A opressão da mulher no capitalismo ocorre como uma continuidade de um processo histórico e cultural anterior, assumindo uma forma específica e vinculada com a reprodução dessa sociedade. Nesse contexto, surgiram lutas de mulheres contra esse processo e, com o passar do tempo, surgiu a ideologia feminista. A ideologia feminista, como não poderia deixar de ser, emerge através de alguns indivíduos das classes sociais privilegiadas, e tem precursores como o ideólogo liberal Stuart Mill e seu livro sobre a “sujeição da mulher” e por mulheres que vão constituir diversas e distintas concepções de feminismo[20]. Uma parte das concepções feministas assume um nítido caráter maniqueísta, defendendo uma concepção de “guerra dos sexos”, que foi criticada por várias mulheres (REED, 1980).
Uma vez instituído o maniqueísmo, os homens passam a ser vistos, indistintamente, como inimigos, malvados, etc., gerando uma essencialização do masculino. As raízes concretas, ou seja, sociais e históricas, da opressão feminina, são abolidas e substituídas por uma culpabilização generalizada de todos os indivíduos do sexo masculino. Inclusive, a própria expressão “machismo” faz parte desse processo de essencialização (ANDERSON, 2016).
O maniqueísmo, seja moderado ou radical (expressando tendências distintas do feminismo)[21], muitas vezes se alia ao oportunismo. O maniqueísmo é uma concepção que parte de uma oposição que essencializa os opostos a partir de sua essencialização. O maniqueísmo, ao opor o “bem” o “mal”, considera o próprio grupo como manifestação do bem e o grupo oposto como sendo a manifestação do mal. Assim, um grupo seria portador de uma essência maligna e o outro de uma essência benigna.
O maniqueísmo vem se tornando cada vez mais comum em nossa sociedade. Muitas mulheres, vinculadas a ONGs (Organizações Não-Governamentais), partidos, instituições diversas, usam o discurso maniqueísta para conseguir vantagens competitivas. Isso, obviamente, vai além, pois numa sociedade competitiva, a competição está em todos os momentos e todos os lugares, gerando um imaginário conveniente embasado no discurso maniqueísta visando vantagens pessoais na vida cotidiana. Isso é exasperado com o subjetivismo reinante no capitalismo durante o regime de acumulação integral, no qual o hedonismo, neoindividualismo, narcisismo, etc., acaba se fortalecendo e produzindo uma geração na qual predomina pessoas pouco dispostas a qualquer sacrifício, esforço, trabalho e desejosos de obter rapidamente os resultados, benefícios, bem como ganhar a competição social. Isso reforça todos os discursos que servem de pretexto para obter vantagem sem grande esforço.
É nesse contexto que emerge o episódio “De igual para igual” das Meninas Superpoderosas. As Meninas Superpoderosas enfrentam uma vilã feminista que usa o discurso maniqueísta para ficar impune. O desenho começa, como em outras oportunidades, numa situação tranquila e harmoniosa em Towsville. O Professor Utônio estava lavando vasilhas e pede para as Meninas Superpoderosas o favor de levar o lixo para fora quando saírem, o que é prontamente atendido. Meninos e meninas brincando na escola tranquilamente. O desenho mostra relações entre os sexos que não são problemáticas. Até que o telefone de linha direta entre prefeito e Meninas Superpoderosas toca e é relatado um assalto a banco.
Num primeiro efeito de comicidade, o narrador pergunta “quem será esse bandido, esse brutamontes horrível que está assaltando o banco dessa vez”. No entanto “é uma mulher”, como diz um cliente do banco. A vilã diz: “isso mesmo sua coisa insignificante e completamente desamparada, você foi rendido por uma mulher, a Mulher Fatal”. E ela se apresenta como a “rainha da corrupção, a senhora dos delitos, a dama do desastre” e conclui: “vou roubar essa cidade e não há nada que vocês, machistas, possam fazer”. A arma da Mulher Fatal é o símbolo do feminino (Espelho de Vênus) e o mesmo se encontra em sua máscara. Ela manda o gerente colocar o dinheiro no saco e ao fazê-lo ela o questiona e diz “homens, não fazem nada direito”, pois as notas tinham a imagem de Benjamin Franklin e ela queria apenas notas com imagem de Susan B. Anthony[22].
É nesse momento que aparecem as Meninas Superpoderosas. Elas travam um combate e as Meninas Superpoderosas ganham e a levam para a prisão. Durante a luta, a Mulher Fatal dizem que as Meninas Superpoderosas são subestimadas e no caminho elas perguntam o que isso quer dizer. A Mulher Fatal diz que as super-heroínas não são adoradas da mesma forma que os super-heróis. Quando as Meninas Superpoderosas tentam retrucar, lembram da Supergirl e da Batgirl, e a Mulher Fatal afirma que são “uma farsa, não passam de meras extensões de seus colegas”, e pergunta sobre quem é uma legítima heroína além delas e Florzinha lembra de um único exemplo: A Mulher-Maravilha. Docinho concorda dizendo que não há mais ninguém, soltando a Mulher Fatal e um novo combate inicia[23]. A Mulher Fatal insiste e afirma que “os homens não admitem que somos melhores do que eles, então nos mantém oprimidas”. Ao ser novamente presa, afirma que elas estão protegendo a cidade delas, assim como Batman e Super-Homem, mas questiona ao afirmar que elas não têm o seu próprio filme. Se elas a prenderem, não haverá mais vilã em Townsville[24]. E conclui: se a enviarem para a cadeia, estarão arrasando com as mulheres, inclusive elas. As Meninas Superpoderosas acabam concordando com ela e deixam livre.
Assim, começa um festival de assaltos da Mulher Fatal, que fica cada vez mais rica. Enquanto isso, as Meninas Superpoderosas começam a mudar seu comportamento. Reprimem meninos na escola, o Professor Utônio pede para eles limparem o quarto delas e é reprimido, Florzinha queima um boneco masculino, e agridem verbalmente o Prefeito que pede ajuda para deter a Mulher Fatal. Num efeito de comicidade, o Prefeito diz que irá comprar flores e bombons, pois as garotas “adoram chocolate”.
No entanto, duas mulheres percebem esta mudança comportamental marcada pela animosidade em relação aos indivíduos do sexo masculino. A professora Keane e a Senhorita Belo (secretaria do Prefeito) e esta última telefona para elas e é prontamente atendida. As suas conversam com as Meninas Superpoderosas e estas tentam justificar suas novas ideias. Elas são solicitadas a fornecer exemplos e citam o menino na escola que derrubou a menina e a Senhorita Belo pergunta se foi de propósito e elas acabam reconhecendo que foi brincadeira. Elas então citam o Professor Utônio e elas (a professora e a secretaria) concordam dizendo que é injusto ele não fazer nada e querer que elas façam todo o trabalho, mas Florzinha reconhece que ele só pediu para arrumar o quarto. Até que Docinho coloca o exemplo do Prefeito, que deve administrar a cidade e sempre pedem para elas salvá-la para ele. A Senhorita Belo retruca ironicamente: “vocês estão absolutamente certas, ele teria que usar os próprios superpoderes para salvar a cidade”. Ao ficar sem argumento, Florzinha diz que as coisas não são justas e que existe apenas uma vilã na cidade e Docinho complementa: “temos que olhar umas pelas outras”. Neste momento são interrompidas por três mulheres: uma pergunta se é verdade e questiona se ela cuidava dela quando assaltou o seu banco, outra pergunta se cuidava dela quando quebrou o seu braço e uma terceira, num efeito de comicidade, indaga se cuidava dela quando roubou o seu penteado. A Senhorita Belo diz que elas têm razão em relação à existência de injustiça no mundo e a professora Keane diz que é por isso que a cidade as tem para proteger o direito de todos.
As Meninas Superpoderosas acabam revendo suas posições e entram novamente em confronto com a Mulher Fatal. Elas questionam se ela sabe quem foi Susan B. Anthony (conhecida como reformadora social), que infringiu a lei ao votar e o governo a perdoou por ser mulher, mas ela não quis tratamento especial, “ela quis ser tratada igualmente”, “ela exigiu que fosse mandada para a cadeia assim como qualquer homem que violasse a lei”. A Mulher Fatal é derrotada e presa pelas Meninas Superpoderosas e, num efeito de comicidade, diz que não podem prendê-la, pois roupa com listras horizontais, do uniforme de prisioneira, a deixam gorda. E o desenho se encerra com o narrador apresentando mais um efeito de comicidade ao afirmar que “já repararam que não existem narradoras” e depois de um barulho ele diz “ai, ai, quem atirou isso?”.
Enfim, este desenho apresenta uma crítica ao feminismo maniqueísta ao mostrar o oportunismo da Mulher Fatal em usar tal discurso para ficar impune e mostra que nem todos os homens são iguais, assim como as mulheres também não são iguais. O Professor Utônio é um exemplo de diferença, bem como a Mulher Fatal é outro exemplo. Tanto homens quanto mulheres podem ser bons ou maus, honestos ou desonestos, etc. O dito popular de que “todos os homens são iguais” ou “todas as mulheres são iguais” é enganoso, pois além das diferenças históricas, culturais, raciais, políticas, e, principalmente, de classe (VIANA, 2017b), dos indivíduos do mesmo sexo, existem ainda as singularidades psíquicas (personalidade) que expressam a individualidade, muito distintas, inclusive dependendo da sociedade até de forma coletiva[25]. A injustiça existe, mas a luta deve ser pela igualdade. E seria a lei que garantiria tal igualdade de direitos. Nesse sentido, há uma crítica da concepção de “guerra dos sexos”, do maniqueísmo, e do essencialismo masculino e feminino. Ao mesmo tempo, critica, novamente, o oportunismo em usar a opressão grupal (agora no caso feminino) para conseguir vantagens pessoais.
Um outro elemento importante é, novamente, a força do discurso. As Meninas Superpoderosas cedem ao discurso da Mulher Fatal e acabam reproduzindo ele e mudando seu comportamento, que se torna maniqueísta. Esse é o caso de muitas mulheres na sociedade contemporânea, que caíram no “canto de sereia” do feminismo maniqueísta e passam a interpretar o mundo como uma guerra dos sexos, um reducionismo que recusa a totalidade das relações sociais concretas e sua historicidade e se refugia numa explicação simples de culpabilização dos homens. As respostas simples e maniqueísmo são sedutores por sua facilidade de explicar tudo a partir de uma redução da realidade a uma dualidade entre bem e mal, o que também é atrativo por dispensar o esforço intelectual em entender uma realidade muito mais complexa[26]. Além disso, é extremamente vantajoso, no sentido pessoal, realizar esse processo de culpabilização e conseguir suposta solidariedade de outras pessoas do mesmo grupo social, o que muitas vezes é mobilizada em torno de questões individuais sem vínculo com o grupo. Mas, no caso das Meninas Superpoderosas, elas apenas foram convencidas por um discurso falacioso e tão logo tiveram acesso a outros argumentos, perceberam o equívoco e superaram isso. Esse é o caso de muitas mulheres na sociedade atual, embora algumas, por razões mais profundas (como no caso da Mulher Fatal, por oportunismo, ou por questões psíquicas, etc.), possuem maior dificuldade de superar tal discurso.
Outro elemento é que o oportunismo manifestado pela Mulher Fatal está intimamente ligado à sociabilidade capitalista, pois seu objetivo é o enriquecimento através do roubo e isso significa ganhar a competição social. A questão da mulher é apenas um pretexto para realizar seus objetivos baseados nos valores burgueses. Além disso, o seu discurso incentivava a competição por parte das Meninas Superpoderosas, pois elas eram comparadas com super-heróis e as demais super-heroínas e a questão central é o mais ou menos reconhecimento, etc., muito mais do que justiça ou qualquer outro valor.
Em síntese, esse episódio das Meninas Superpoderosas contribui para a percepção do equívoco que é o feminismo maniqueísta, o uso oportunista do discurso da opressão, a força dos discursos, a falácia da “guerra dos sexos”. Ele complementa o episódio sobre a questão da opressão apresentada em “Salvem Macaco Loco”, ao mostrar o mesmo processo de uso oportunista do discurso da opressão no caso específico do feminismo. No entanto, acrescenta a questão da força de convencimento do discurso maniqueísta. A força do discurso maniqueísta é demonstrada pelo fato de que até as Meninas Superpoderosas, as bondosas, generosas e justas heroínas do desenho animado, acabam sendo convencidas por ele.


Meninas Superpoderosas e Crítica Social
Esses três episódios do desenho animado das Meninas Superpoderosas são, entre os que conhecemos, os mais explícitos em sua crítica social. No entanto, resta saber qual tipo de crítica social se encontra em tal desenho animado seriado. Sem dúvida, não se trata de uma crítica radical, pois esta parte de uma perspectiva revolucionária e proletária que dificilmente se poderia ver em desenho animados seriados, especialmente os que conseguem espaço nas redes de televisão. Que tipo de crítica social se manifesta em tal desenho animado seriado?
Também não se trata de uma crítica fragmentária, pois não isola nenhuma relação social, mostrando os vínculos mais amplos. Da mesma forma, não se trata de uma crítica pessimista, porquanto acredita e defende a justiça, igualdade, etc. Resta, portanto, a hipótese de uma crítica moralista. Não se trata, no entanto, de um moralismo progressista, pois ele é (em uma de suas manifestações) alvo de críticas. Ao mesmo tempo não defende o moralismo conservador, pois não aponta para o tradicionalismo, nem para a conservação das relações sociais existentes, ao reconhecer a existência de injustiças. A única opção que resta é a crítica humanista.
O humanismo generalista é aquele que prega uma sociedade igualitária fundada na ideia de igualdade humana. O humanismo generalista, devido seu caráter generalizante, pode se aproximar mais da perspectiva proletária ou de uma perspectiva semiburguesa. No primeiro caso temos a experiência do socialismo utópico e, no segundo, a experiência de algumas manifestações da social-democracia e concepções semelhantes. Em cada uma dessas versões, a ideia do que é igualitário varia. No humanismo generalista utópico-abstrato (sentimentalista), a igualdade ocorre com a transformação social radical e no humanismo generalista semiburguês a igualdade ocorre através de reformas sociais (distribuição de renda, da honestidade, da ética, de leis justas, igualdade formal, etc.).
Após esses esclarecimentos iniciais, fica mais fácil entender que forma de crítica social se manifesta nos episódios analisados das Meninas Superpoderosas. Trata-se de uma crítica social fundada num humanismo generalista semiburguês. A razão disso se encontra na moldura do desenho animado seriado. As Meninas Superpoderosas são super-heroínas e, como tal, devem combater os criminosos, geralmente supervilões. Estes, por sua vez, são geralmente aqueles que reproduzem os valores dominantes, especialmente a competição social e busca de riqueza e poder. Assim, eles usam meios imorais e ilegais de conquistar aquilo que a burguesia possui (e, secundariamente, a burocracia, no que se refere à questão do poder). Ao fazerem isso, atentam contra o capital, ou sua expressão jurídica, o capital, e, por conseguinte, entram em confronto com o aparato de proteção desta, o Estado. Cabe a este punir os criminosos. Os super-heróis, geralmente, existem para combater os criminosos, com raras exceções[27]. Isso significa defender as leis, o aparato estatal e o capital, ou, em poucas palavras, a reprodução da sociedade existente (que é a criadora disso tudo e dos criminosos de todos os tipos, desde aqueles que por falta de dinheiro e condições de adquiri-lo rouba para sobreviver, até os grandes corruptos que querem enriquecer ainda mais). Por isso, os super-heróis são reprodutores do capitalismo (assim como os supervilões).
As Meninas Superpoderosas, como super-heroínas, padecem do mesmo mal. Constantemente elas entram em ação para combater assalto a banco e outros crimes, a pedido do prefeito e defendendo, por conseguinte, a reprodução da sociedade que gera os crimes e os criminosos. Embora sua posição seja humanista generalista, não ultrapassa os marcos da sociedade burguesa. Por isso é um humanismo generalista semiburguês. No entanto, ao contrário de certos super-heróis, assumidamente conservadores ou progressistas[28], elas avançam numa posição crítica de certos posicionamentos de ambos os lados. Ao criticar o oportunismo no uso do discurso da opressão (seja para tratar de diversos grupos considerados oprimidos, seja para tratar do caso específico das mulheres), mostrando a diferença entre indivíduo e grupo, o uso de causas nobres para objetivos pobres, o problema da generalização, etc. aponta para uma crítica da moral progressista. Da mesma forma, ao reconhecer a opressão e as injustiças, avançam numa percepção da realidade concreta e supera o mundo das aparências, o que entra em choque com o conservadorismo.
Dessa forma, podemos concluir que a crítica social presente nos três episódios das Meninas Superpoderosas parte de uma posição humanista generalista, em sua versão semiburguesa. Por conseguinte, é próxima do liberalismo democrático e da social-democracia com sua concepção de liberdade e igualdade formal. Apesar disso, é uma crítica social importante, pois rompe com algumas concepções, valores, sentimentos de setores supostamente avançados da sociedade e que também não ultrapassam os marcos da sociedade burguesa, bem como revela, algumas vezes inintencionalmente, algumas relações sociais dessa sociedade (competição social, axiologia, etc.) e algumas vezes intencionalmente, práticas condenáveis supostamente emancipadoras de certas tendências progressistas (oportunismo, maniqueísmo, generalizações, confusão entre indivíduo e grupo, doutrinas/ideologias, etc.). Se retirássemos a moldura que envolve cada estória dos três episódios analisados, seria uma crítica muito mais profunda e desenvolvida. A moldura é a parte repetitiva da estória e o contexto geral no qual ela se desenvolve, e, por conseguinte, A crítica social nos desenhos animados seriados das Meninas Superpoderosas é, independente dos seus limites, importante para superar determinadas concepções hegemônicas em certos setores dos movimentos sociais, bem como para a realização de uma crítica geral do oportunismo e do maniqueísmo, que nos desenhos aparecem como casos individuais, mas que são fenômenos que se manifestam em grupos e organizações inteiras da sociedade civil.

Referências

ANDERSON, Stella. Machismo ou Sexismo? Coletivo 8 de Março. http://coletivooitodemarco.blogspot.com.br/2016/03/machismo-ou-sexismo.html. 2016.
LOBROT, Michel. A Favor ou Contra a Autoridade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
MARQUES, Edmilson. Namor nas profundezas da axionomia: o tsunami que resiste à axiologia. In: Anais do I Encontro Nacional de Estudos Sobre Quadrinhos e Cultura Pop, 2011, Recife. UFPE\SCC-PPGS, UFAL\LACC, 2011.
MEAD, Margareth. Sexo e Temperamento. 3a edição, São Paulo: Perspectiva, 1988.
MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília: UnB, 1981.
REED, Evelyn. Sexo Contra Sexo ou Classe Contra Classe. São Paulo, Versus, 1980.
SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate sem precisar ter Razão. São Paulo: Topbooks, 2003.
SZELNICK, P. A Cooptação. In: CAMPOS, Edmundo (org.). Sociologia da Burocracia. 3ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
VIANA, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre, Zouk, 2007.
VIANA, Nildo. Breve História dos Super-Heróis. In: REBLIN, Iuri e VIANA, Nildo (orgs.). Super-Heróis, Cultura e Sociedade. Aproximações Multidisciplinares sobre o Mundo dos Quadrinhos. São Paulo: Ideias e Letras, 2011a.
VIANA, Nildo. Heróis e Super-Heróis nas Histórias em Quadrinhos. Rio de Janeiro, Achiamé, 2005.
VIANA, Nildo. Linguagem, Discurso e Poder – Ensaios sobre Linguagem e Sociedade. Pará de Minas: Virtualbooks, 2009.
VIANA, Nildo. O Doutor e outros contos incorretos. Rio de Janeiro: Booklink, 2007. Disponível em: http://2012.nildoviana.com/wp/wp-content/uploads/2017/07/O-Doutor-e-Outros-Contos-Incorretos.pdf
VIANA, Nildo. Quadrinhos e Crítica Social. O Universo Ficcional de Ferdinando. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.
VIANA, Nildo. Quadrinhos e Política. BOCC. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação. , v.1, p.1 - 20, 2011b. http://www.bocc.ubi.pt/pag/viana-nildo-quadradinhos-e-politica.pdf
VIANA, Nildo. Tio Patinhas: A Saga de um Capitalista. Revista Nona Arte. Vol. 04, num. 01, 2015. Disponível em: http://www2.eca.usp.br/nonaarte/ojs/index.php/nonaarte/article/view/155/147 acessado em 12/12/2015.
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.





[1] Aqui é necessário distinguir “desenho animado” de “narrativa ficcional animada”. Os desenhos animados são, como o próprio nome diz, desenhos, que se tornam animados com a sucessão deles, dando a impressão de movimento. Os desenhos animados eram produzidos manualmente e depois passam a ser produzidos digitalmente, através do uso do computador. O que se chama desenho de animação é parecido com o que é produzido manualmente, mas é feito em computador. Nesse sentido, a diferença está na forma como se realiza o processo de produção e não no produto, em si, apesar de algumas diferenças no resultado final. Isso difere do que aqui denominamos narrativa ficcional animada, também chamada de “filme de animação”. A narrativa ficcional animada é produzida por animação digital e seu processo, na produção fílmica, tem como antecedente a stop motion e foi se desenvolvendo até o uso dos atuais recursos tecnológicos e computadorizados, que permite, por exemplo, imagens em 3d. A narrativa ficcional animada se diferencia dos desenhos animados por causa de que não se trata de desenho. Sem dúvida, muitas narrativas ficcionais animadas podem ser direcionadas para o público infantil e usar vários recursos ficcionais dos desenhos animados, mas também podem ser voltadas para o público juvenil e adulto, bem como possui muitas diferenças em outros aspectos.
[2] Geralmente reprodutores dos valores dominantes e muitas vezes do elitismo.
[3] Aqui não se discute a qualidade das obras de arte e nem a distinção entre as formas de arte. Aqui recusamos tanto o elitismo que considera arte apenas as chamadas “belas artes” quanto o relativismo, que transforma a arte numa noite na qual todos os gatos são pardos.
[4] A crítica radical é fundada no humanismo radical; a crítica moralista pode ser fundamentada no humanismo generalista, progressista ou conservador; a crítica fragmentária e pessimista é geralmente não humanista.
[5] Isso não quer dizer que a moldura seja utilizada apenas em desenhos animados. Ela é comum a todas as produções culturais seriadas, tal como novelas, séries, histórias em quadrinhos, etc. Exemplos de uso exagerado da moldura, se tornando quase a totalidade da narrativa ficcional, podem ser vistos em Jaspion, Jiraia, Changeman, Power Rangers e os precursores deles: Ultraman, Ultraseven, Spectreman. Nesses casos, a moldura ocupa a quase totalidade da narrativa, gerando seu aspecto repetitivo e previsível.
[6] Sobre a diferença entre estória e enredo, cf. Viana (2013).
[7] Abordamos a questão da fórmula ao tratar das histórias em quadrinhos (VIANA, 2013; VIANA, 2015). A fórmula é uma parte da moldura. A moldura é a totalidade formal de uma história em quadrinhos, desenho animado, etc. e a fórmula é sua dinâmica narrativa.
[8] O efeito de comicidade é a busca por tornar engraçado diversos elementos contidos nas aventuras desenvolvidas, sendo um elemento de sua atratividade. O efeito de comicidade está tanto na moldura quanto nas estórias. Na moldura, é perceptível na construção dos personagens Professor Utônio, no prefeito da cidade de Townsville, em aspectos do Macaco Loco, etc.
[10] Veja uma sátira a isso no conto O Doutor (VIANA, 2007).
[11] Esse processo vai se tornando cada vez menos comum, pois com o processo de modernização da filosofia, o número de filósofos, no sentido original do termo, diminuiu drasticamente, restando os historiadores da filosofia.
[12] Schopenhauer realizou uma das mais interessantes discussões sobre retórica em seu livro “Como Vencer um Debate sem precisar ter razão” (SCHOPENHAUER, 2003).
[13] A pronúncia no desenho é exatamente esta e muitos escrevem “Macaco Louco”. O nome original é “Mojo Jojo”, em idioma espanhol, ou seja, “Macaco Jojo”. Como a palavra “Jojo” não tem tradução, por ser um nome próprio, então o mais correto é “Loco”, sendo também um nome próprio, parecido com louco, o que gera a confusão.
[14] Ele apareceu em alguns episódios da série. Trata-se de um cachorro que fala e que apareceu pela primeira vez em um episódio intitulado “Calem o Cãozinho” (https://www.youtube.com/watch?v=WZay4UbYXzQ), mas não há explicação sobre como aprendeu a falar.
[16] A competição pelo poder ocorre principalmente nas instituições da sociedade capitalista, desde o Estado (e governo, este através da competição eleitoral, entre outras) até as pequenas instituições, na busca por cargos ou por ascensão a cargos superiores.
[17] Esse processo tem várias formas, motivações, locais de manifestações, etc. No caso de partidos políticos, isso foi observado por Robert Michels (1981), no caso das organizações burocráticas em geral, isso foi analisado por Szelnick (1976).
[18] Uma das fontes psíquicas disso se encontra na “generalização afetiva”, apontada por Lobrot (1977), que mostra como alguns indivíduos generalizam suas experiências negativas com determinados indivíduos para todo um grupo social. Esse processo pode gerar o maniqueísmo, que será tematizado em outro episódio deste desenho animado e comentaremos adiante.
[20] A origem do movimento feminino se encontra no movimento socialista, expresso por Rosa Luxemburgo e outras mulheres militantes, e de forma minoritária com o liberalismo democrático. Uma história do movimento feminino e da ideologia feminista, sob perspectiva crítica, ainda está por ser realizada.
[21] E que se fortaleceram com a emergência de um novo paradigma hegemônico, o subjetivista, e suas ideologias derivadas (pós-estruturalismo, gênero, multiculturalismo, etc.) a partir dos anos 1980.
[22] Moeda que circulou nos Estados Unidos entre 1979 e 1981 e retornou em 1999 provisoriamente.
[23] Num outro efeito de comicidade, ela cai nos braços de um operário da construção civil que diz ao segurá-la que “é tudo que pediu para o Papai do Céu” e é esbofeteado pela Mulher Fatal.
[24] Não deixa de chamar a atenção para a parte em que ela diz que “estamos no mesmo barco, a vilania é um campo dominado pelos homens”, que é a estratégia de criar uma unidade artificial entre todas as mulheres (e, por conseguinte, em todos os homens), como se fossem dois lados opostos e acima de qualquer outra oposição no interior da sociedade (cultura, raça, classe, etc.) e, portanto, mulheres heroínas devem ajudar mulheres vilãs, pois estão no mesmo barco. Assim como o antagonismo de classe é substituído pela oposição de sexo, criando uma unidade imaginária, a personagem substitui o antagonismo entre supervilões e super-heróis por uma unidade imaginária das mulheres.
[25] Isso pode ser visto no estudo de Margareth Mead, Sexo e Temperamento (1988).
[26] E isso é mais atrativo ainda para pessoas com desequilíbrios psíquicos; pessoas que sofreram agressões por indivíduo (s) de um mesmo grupo social, o que possibilitou a generalização afetiva, etc., pois assim podem descarregar suas frustrações e raiva sobre todos os indivíduos de determinado grupo com uma justificação “racional”.
[27] Uma dessas exceções é Namor, O Príncipe Submarino (VIANA, 2005; MARQUES, 2011), bem como um ou outro super-herói secundário.
[28] Isso se manifesta em vários casos, inclusive é tematizado no mundo dos super-heróis em algumas oportunidades, como, por exemplo, em Heróis Não Votam (VIANA, 2011b), onde super-heróis conservadores confrontam super-heróis progressistas, apoiando distintos candidatos à presidência dos Estados Unidos ou se abstendo (alguns, como a Mulher-Maravilha, toma partido do conservadorismo, o candidato neoliberal, enquanto que Arqueiro Verde fica do lado do progressismo, o candidato democrata, enquanto Batman e Superman defendem a não-declaração de voto dos super-heróis, não por posição revolucionária e sim pela opção conservadora da “neutralidade”). Por outro lado, os super-heróis da Image Comics são em sua quase totalidade conservadores e anticomunistas (entendendo-se por comunismo o regime soviético), apesar de terem surgido após a queda do Muro de Berlim (VIANA, 2011a).

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