O Significado Político da Comuna de
Paris
Nildo Viana
Resumo:
A Comuna de Paris foi uma
revolução proletária inacabada que teve como grande significado político a
manifestação de uma política proletária. Essa política proletária ficou
manifesta na essência autogestionária da mesma. A negação proletária das
instituições burguesas conviveu com o esboço de afirmação proletária da
autogestão social. Assim, é fundamental perceber as ações efetivadas pelos
proletários de Paris e a reação burguesa, nas quais se colocam frente a frente
duas formas de efetivar a luta política de classe. A luta proletária saiu
derrotada, mas deixou germinar a percepção do seu significado político, cujo
reconhecimento também depende da luta de classes. O que está em jogo na
revolução proletária são duas concepções e práticas políticas radicalmente
diferentes e antagônicas.
Palavras-chave: Comuna de Paris,
Política Proletária, Autogestão Social, Marxismo, Revolução Proletária.
Abstract:
The Paris Commune was
a proletarian
revolution was
unfinished great
political significance as
a manifestation of proletarian
politics. This policy
was manifested
in the essence of
proletarian self-management
of it. Denial
of proletarian
bourgeois institutions
lived with the draft
statement of
proletarian social
ownership. Thus, it is
crucial to realize the
effect the
actions of Paris
and the proletarian
bourgeois reaction, in
which are placed
face to face two
ways to accomplish
the political struggle
of class. The
class struggle has
lost out but failed
to germinate their
perceived political
significance, recognition of which also
depends on the class
struggle. What
is at stake in
the proletarian revolution are
two political
concepts and practices
radically different
and antagonistic.
Key-words: Paris
Commune, Proletarian Political, Social Self-Management, Marxism, Proletarian Revolution.
A Comuna de
Paris de 1871 foi um evento histórico marcante e cuja recordação traz elementos
fundamentais para se pensar a práxis política contemporânea. Não é sem razão
que foi e continua sendo objeto de inúmeras publicações e debates. O presente
artigo busca justamente resgatar o significado político da Comuna de Paris, ou
seja, quais lições ela deixou para a prática política norteada pela ideia da
emancipação humana, pela transformação social radical das relações sociais.
O significado
da Comuna de Paris é expresso no que ela foi. O que ela foi é o que ela
significa. Marx já havia alertado para isso quando afirmou que “a grande medida
social da Comuna foi sua própria existência ativa” (Marx, 2011, p. 27). Nesse
sentido, há uma unidade entre ser e significado, o significado está na essência
do ser. O que foi a Comuna de Paris? A Comuna de Paris foi um evento passado que
anuncia o porvir. Ela foi o passado que traz em si os germes do futuro. O ser
anuncia o vir-a-ser. Assim, o significado político da Comuna remete ao estudo
do que ela foi e expressou.
Política e Luta de Classes
Antes de
analisar o significado político da Comuna é necessário explicitar o conceito de
política. Esta palavra possui vários significados no idioma português: planejamento
estatal (é neste sentido que se fala em “política educacional”), política
institucional (a política do aparelho estatal e seus derivados), etc. Para
muitos, “há política simplesmente onde existe poder – onde há o exercício do
poder, a influência de um homem sobre o homem” (Calvez, 2002, p. 7). A política
também pode ser concebida como “esfera autônoma” da realidade, sendo aquilo que
manifesta o aparato estatal e suas circunscrições (Sartori, 1997). Assim, temos
uma concepção de política que a dilui em todas as relações sociais e perde sua
especificidade e outra que a restringe a uma esfera específica de atividade,
excluindo tudo o que está fora dessa esfera. A primeira é uma concepção “generalista”
e a segunda uma concepção “estatista”.
Porém,
utilizamos política aqui num sentido mais amplo do que a concepção estatista e
mais restrita que a concepção generalista. Em Marx, a política está intimamente
ligada à dominação e luta de classes (Miliband, 1979; Viana, 2003). Assim,
podemos definir política, no sentido marxista, como toda e qualquer forma de
manifestação das lutas de classes. As lutas de classes são aquelas travadas por
grupos sociais específicos, as classes, que possuem modos de vida, interesses e
oposição a outras classes derivados de sua posição na divisão social do
trabalho, que é determinada pelas relações de produção (Viana, 2011a).
No capitalismo,
a luta de classes é aquela que ocorre entre as diversas classes sociais
existentes, tais como a burguesia, burocracia, proletariado, campesinato,
lumpemproletariado, entre outras (Viana, 2011a). Porém, cada classe luta de uma
forma específica, de acordo com sua posição na divisão social do trabalho, suas
condições de vida, seus interesses, seus objetivos, etc. Assim, a política é
manifestação das lutas de classes, mas no seu interior vamos ter diversas
formas de manifestação e cada uma delas corresponde aos interesses de uma ou
outra classe social. Isto vai se desenvolver e expressar nas próprias
representações sobre o que é a política, se manifestando através de
determinadas ideologias, teorias ou representações cotidianas (“senso comum”).
Assim, podemos
conceber que a política é definida a partir de determinados interesses de
classes e que cada forma de luta política – ou seja, a forma como uma classe
realiza sua luta contra as demais classes antagônicas – é expressão de uma ou
outra classe. A forma da luta política está intimamente ligada ao conteúdo
dessa luta, o seu objetivo final e fundamental, ou seja, aos interesses
históricos, fundamentais, das classes sociais. Por conseguinte, a definição de
política como uma esfera de atividade específica que remete ao Estado e seus
aparatos é correspondente aos interesses de classe da burguesia como classe
dominante (e também de suas classes auxiliares). O seu objetivo é reduzir as
lutas políticas às lutas institucionais, reduzindo a política ao caso
específico da política institucional[1].
Essa ideologia é
mobilizadora e tem efeitos práticos, pois busca canalizar as lutas proletárias
e de outras classes exploradas e desprivilegiadas para o campo institucional,
ou seja, para o Estado, onde a classe dominante reina absoluta com suas classes
auxiliares (especialmente a burocracia)[2].
Assim, a política burguesa é voltada para a institucionalização das lutas de
classes (Viana, 2003). Ela faz isso tanto em suas representações quanto em sua
prática e uma reforça a outra.
A política
proletária, por sua vez, é antagônica à política burguesa, bem como, por
conseguinte, sua definição. Então a política proletária é anti-institucional,
ela não é canalizada para a luta pelo poder estatal e sim contra ele e suas
instituições. Por isso a definição de política que lhe corresponde e reforça
seus interesses é a que a coloca como toda forma de manifestação da luta de
classes. Logo, não existe despolitização na recusa das instituições burguesas e
também na negação da luta pelo poder estatal (Viana, 1991)[3].
Desta forma,
cada classe social institui sua política de classe, tanto em sua forma como em
seu conteúdo, que são inseparáveis. A forma da luta revela seus objetivos e conteúdo.
A política burguesa é voltada para a política institucional, através do Estado,
democracia, eleições, parlamento. Ela busca integrar o proletariado e outras
classes nas instituições burguesas e visa o institucional e a
institucionalização, pois assim amortece a luta de classes e fortalece sua
hegemonia e dominação, realizando a reprodução das relações de produção
capitalistas.
A política
proletária é, ao contrário, anti-institucional e anti-institucionalização. Ela
busca romper com a institucionalização e superar as instituições burguesas,
incluindo o Estado capitalista. Porém, a política proletária tem dois momentos,
o momento da negação e o momento da afirmação. A negação proletária é
caracterizada pela crítica e busca de superação das instituições burguesas e das
ideologias, chegando a lutar contra a totalidade da sociedade capitalista. A
afirmação proletária, por sua vez, traz formas embrionárias do novo, produção
de novas relações sociais, novas ideias e teorias. A afirmação do novo, dos
germes do futuro, acompanha a negação do velho mundo. Assim, a política
proletária nega e afirma, anunciando uma nova sociedade no interior da atual.
A Comuna de Paris como Política Proletária
A Comuna de
Paris foi uma manifestação da luta de classes radicalizada, que expressou a
supremacia da política proletária sobre a política burguesa, embora essa ainda
tivesse elementos presentes no decorrer do processo[4].
Assim, uma análise do processo da luta de classes na Comuna é de suma
importância para ver o processo de luta proletária e seu caráter de classe, já
que foi a primeira tentativa de revolução proletária na história do
capitalismo. A análise da Comuna feita por Marx foi uma das mais profundas e
que focalizou sua essência revolucionária e autogestionária (Viana, 2011b). Um
dos principais aspectos da Comuna foi a abolição do Estado, tal como descrito
por Marx:
“A Comuna de Paris havia obviamente de servir de modelo a todos os
grandes centros industriais da França. Uma vez estabelecido o regime comunal em Paris e nos centros
secundários, o antigo governo centralizado teria de dar lugar, inclusive nas
províncias, ao autogoverno dos produtores. No breve esboço de organização
nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver, estabeleceu-se claramente
que a Comuna havia de ser a forma política mesmo dos menores povoados do campo,
e que nos distritos rurais o exército permanente havia de ser substituído por
uma milícia popular, com um tempo de serviço extremamente curto. As comunas
rurais de todos os distritos administrariam seus assuntos coletivos através de
uma assembleia de delegados na capital do distrito correspondente e tais
assembleias, por sua vez, enviariam delegados à Assembleia Nacional de
Delegados de Paris, sendo todos substituíveis a qualquer momento e estariam
constrangidos ao mandato imperativo
(instruções formais) de seus eleitores. As poucas, mas importantes funções que
ainda restariam a um governo central não seriam suprimidas, como foi
intencionalmente dito de maneira deturpada, mas executadas por agentes
comunais, e, por conseguinte, estritamente responsáveis. A unidade da nação não
seria suprimida, mas, pelo contrário, organizada pelo regime comunal e
convertida em uma realidade ao destruir o poder de Estado, que pretendia ser a
encarnação daquela unidade, independente e superior à própria nação, de que não
era senão uma excrescência parasitária. Enquanto os órgãos meramente
repressivos do velho poder governamental haviam de ser amputados, as suas
funções legítimas haviam de ser arrancadas a uma autoridade que usurpava a
preeminência sobre a própria sociedade e restituídas aos agentes responsáveis
da sociedade. Em vez de decidir uma vez a cada três ou seis anos que membros da
classe dominante haveriam de “representar” e esmagar o povo no parlamento, o
sufrágio universal havia de servir o povo organizado em Comunas, da mesma forma
que a escolha individual serve aos patrões que buscam operários e
administradores para seus negócios. E é conhecido por todos que tanto as
empresas como os indivíduos, quando se trata de negócios, sabem geralmente como
colocar o homem certo no lugar correspondente e, se por acaso erram, sabem
corrigi-lo com rapidez. Por outro lado, nada poderia ser mais estranho ao
espírito da Comuna do que substituir o sufrágio universal pela investidura
hierárquica. Geralmente, as criações históricas completamente novas estão
destinadas a ser tomadas por uma reprodução de formas velhas, inclusive mortas,
da vida social, com as quais podem apresentar alguma semelhança. Assim, essa
nova Comuna, que destrói o poder estatal moderno, foi confundida com uma
reprodução das comunas medievais, que, tendo precedido a este Estado, e logo
lhe serviram de base. O regime comunal foi tomado erroneamente como uma
tentativa de fracionar, como sonhavam Montesquieu e os girondinos, essa unidade
de grandes nações em uma federação de pequenos Estados, que, em suas origens,
foi instaurada pela violência e se converteu hoje em um poderoso fator de
produção social. O antagonismo entre a Comuna e o poder estatal foi de forma
equivocada apresentado como uma forma exagerada da velha luta contra o
excessivo centralismo. Circunstâncias históricas peculiares podem, em outros
países, ter impedido o desenvolvimento clássico da forma burguesa de governo,
tal como se deu na França, e ter permitido, como na Inglaterra, completar nas cidades
dos grandes órgãos centrais do Estado com assembleias paroquiais (vestroes)
corruptas, conselheiros traficantes e ferozes administradores de assistência
pública, e, no campo, com juízes virtualmente hereditários” (Marx, 2011, p. 18-20).
Assim, a primeira
e mais importante ação da Comuna foi a destruição do poder estatal
centralizado. Marx, nos seus esboços das Mensagens para a Associação
Internacional dos Trabalhadores, que culminaria com o livro A Guerra Civil na França, a colocava
claramente como uma revolução contra o
Estado, ou seja, a execução de uma política proletária (anti-institucional)
contra a política burguesa (institucional, estatal):
“Foi uma revolução contra o Estado mesmo, este aborto sobrenatural da
sociedade, a reabsorção pelo povo e para o povo de sua própria vida social. Não
foi uma revolução que se fez para transferir esse Poder de uma fração das
classes dominantes à outra, mas uma revolução para acabar com a própria
horrenda maquinaria da dominação de classe. Não foi uma dessas lutas mesquinhas
entre as formas executivas de dominação de classe e as parlamentares, mas uma
rebelião contra estas duas formas juntas, que se integram uma à outra, e das
quais a forma parlamentar não era senão o enganoso apêndice do Executivo”
(Marx, 1978, p. 184-185).
A destruição
do Estado significou a efetivação radical de uma política proletária, que destrói
a principal instituição burguesa de reprodução do capital. Ela foi “uma negação
audaz” do Estado (Bakunin, 2011). A burocracia estatal, o exército permanente,
entre outros aspectos do Estado burguês, foram abolidos. Porém, não foi apenas
o aparato estatal que foi abolido, já que, relacionado mais diretamente ou não
com ele, outras relações sociais foram transformadas. A abolição da polícia e
do exército foi seguida pela abolição da Igreja.
“Uma vez suprimido o exército permanente e a polícia, elementos da força
física do antigo governo, a Comuna estava desejosa de quebrar a força
espiritual de repressão, o ‘poder dos padres’, pelo desmantelamento e
expropriação de todas as igrejas como instituições proprietárias. Os padres
foram devolvidos aos retiros da vida privada, para terem aí o sustento das
esmolas dos fiéis, à imitação dos seus predecessores, os apóstolos” (Marx,
2011, p. 17-18).
Sobre a
educação, as realizações da Comuna não avançaram como anunciavam, mas, de
qualquer forma, realizou algumas mudanças significativas. A Circular Vaillant (apud
Donois, 1968) afirma que é preciso que a “revolução comunal afirme seu caráter
essencialmente socialista” e por isso é preciso transformações no ensino, tal
como a instrução integral visando o desenvolvimento harmonioso das
potencialidades humanas, unindo cultura intelectual, física e técnica (Dunois,
1968, p. 71). Seria produzido um “plano completo de ensino integral”, mas,
enquanto isso não ocorria, algumas reformas imediatas seriam tomadas para
garantir, “num futuro próximo”, a transformação radical do ensino. Na
Proclamação da Comuna de Paris, pode-se ler:
“É abolida a escola ‘velha’. As
crianças devem se sentir como em sua casa, aberta para a cidade e para a vida.
A sua única função é a de torná-las felizes e criadoras. As crianças decidem a
sua arquitetura, o seu horário de trabalho, e o que desejam aprender. O
professor antigo deixa de existir: ninguém fica com o monopólio da educação,
pois ela já não é concebida como transmissão do saber livresco, mas como
transmissão das capacidades profissionais de cada um” (Nascimento, 2002, p. 39).
Assim, a
proposta da Comuna sobre o processo educacional aponta para a substituição do
ensino tradicional, especializado, burocrático, por uma nova forma de educação
e esboçou algumas mudanças e anunciou uma transformação radical da mesma. Entre
estas medidas realizou a separação entre escola e igreja, pois “todas as
instituições de educação foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo
desembaraçadas de toda a interferência da igreja e do Estado” (Marx, 2011, p. 18).
No que tange
às relações de produção capitalistas, a Comuna foi bastante moderada, colocando
determinados limites nas relações de trabalho e anunciando a autogestão das
fábricas abandonadas. Foi formada uma delegação do trabalho e do comércio,
constituída por socialistas revolucionários – já que na Comuna conviviam várias
tendências e concepções (Koechlin, 1965; Lopez e Turrado, 1966; Ollivier,
1971; Gonzalez, 1982) – e entre eles se encontrava Leo Frankel, militante
próximo das ideias de Marx. A delegação iniciou um processo de reforma,
revisão, pesquisa e análise da situação do trabalho e do comércio. Uma das mais
conhecidas ações nesse campo, popularizada por Marx, foi a proibição do
trabalho noturno:
“O delegado, Léo Frankel, fez-se auxiliar por uma comissão, constituída
por trabalhadores, encarregada de tomar iniciativas. Foram abertos, nos
distritos, registros para informar sobre ofertas e pedidos de empregos. A
pedido de muitos operários padeiros, a delegação suspendeu o trabalho noturno,
medida de higiene e de moral. Preparou um projeto de liquidação da Casa
Municipal de Penhor, um decreto referente aos descontos sobre os salários e
apoiou um outro relativo às oficinas fechadas por seus proprietários” (Lissagaray,
1995, p. 181).
As fábricas
abandonadas e a atitude diante delas anunciavam uma posição comunista e
revolucionária. Uma comissão deveria fazer levantamento das fábricas
abandonadas e preparar sua apropriação pelos trabalhadores (Lissagaray, 1995). No
dia 16 de abril foi realizada a requisição das empresas abandonadas, que visava
a formação de associações operárias para realizar sua autogestão (Dunois, 1968;
Lissagaray, 1995).
Outras
instituições burguesas foram enfraquecidas ou destruídas e existem diversas
obras que mostram esse processo, embora algumas problemáticas no nível
interpretativo e outras muito sintéticas (Dunois, 1968; Lissagaray, 1995;
Ollivier, 1971; Gonzalez, 1982; Jesus e Turrado, 1966; Marx, 2011). O que
importa resgatar aqui é esse papel destrutivo e anti-institucional da Comuna de
Paris, o que revela seu caráter de política proletária, na qual as decisões e
ações não se voltam para o aparato estatal e sim contra este aparato.
Por isso, é
fundamental compreender também o caráter afirmativo da política proletária
durante a Comuna de Paris. Tal como Marx coloca, a Comuna promoveu a
substitubilidade, removibilidade, elegibilidade e principalmente a
responsabilidade, como formas de auto-organização comunal. A revolução comunal
marcou não apenas a destruição ou início de destruição de instituições
burguesas, mas, ao mesmo tempo, instaurou novas relações sociais ou pelo menos
as esboçou. Isso se manifestou através de novas formas de auto-organização,
comandados pelos princípios da elegibilidade, removibilidade,
substitubilidade e responsabilidade.
O sufrágio
universal, aparentemente, é semelhante ao processo da democracia burguesa,
representativa, mas possui, no caso da auto-organização comunal, um caráter
totalmente distinto. Não se trata de eleições parlamentares, com períodos de
mandatos fixos, com os eleitos recebendo salários privilegiados e adquirindo
poder e estabilidade. Na verdade, o sufrágio universal significa a supremacia
da população sobre os delegados eleitos, cabendo a ela a escolha. Porém, esta
escolha remete aos demais princípios – e são estes que mostram a diferença
radical em relação à democracia representativa. O princípio da removibilidade
coloca que qualquer delegado pode ser removido a qualquer momento e o princípio
da substitubilidade deixa claro que pode ser substituído por outro. A decisão
sobre a remoção e substituição é realizada pela população e assim esta escolhe,
remove, substitui sempre que for necessário, sempre que o delegado não
corresponder ao esperado e não seguir as diretrizes às quais deve se submeter.
Daí vem o princípio
da responsabilidade, o mais importante de todos, o que significa que o delegado
escolhido não tem autonomia e nem pode criar interesses próprios, tal como na
democracia burguesa, e é o que garante a decisão coletiva das assembleias em
substituição à autonomização dos eleitos. O mandato imperativo, tal como Marx
já havia colocado, é um elemento fundamental, e é aí que temos a forma comunal
de impedir a burocratização e a instituição de relações de dominação e poder, a
relação entre dirigentes e dirigidos, pois os delegados não são dirigentes, são
apenas executores da decisão coletiva, por isso responsáveis, e, caso não o
sejam, podem ser removidos e substituídos. Assim, novas relações sociais são
esboçadas, nas quais a burocracia (relação dirigentes-dirigidos) é substituída
pela autogestão coletiva da população. Daí temos a abolição da heterogestão e
sua substituição pela autogestão social.
Nesse sentido, a
posição de Marx é correta: a Comuna de Paris é a forma finalmente encontrada de
autoemancipação proletária, meio de realização da emancipação humana. O
“autogoverno dos produtores” (Marx, 2011) é a forma de emancipação humana.
Claro que muitos não compreenderam nem a Comuna de Paris, nem o texto de Marx
sobre ela. Influenciados pela deformação do texto de Marx realizada pela
interpretação leninista (Lênin, 1987), até mesmo pensadores revolucionários
demonstraram incompreensão da análise de Marx sobre a Comuna (Korsch, 2011a;
Korsch, 2011b).
Quando Marx
afirma que a Comuna é a forma política finalmente encontrada de autoemancipação
proletária, ele mostra que é a forma de luta política proletária de
emancipação, que promove a destruição do aparato estatal e instaura a
autogestão social, ou “autogoverno dos produtores”, “livre associação dos
produtores”. Lênin e outros[5]
refletiam a partir da mentalidade burocrática e por isso não conseguiam
conceber a destruição do aparato estatal sem sua substituição por outro
aparato, por outra burocracia (Lênin, 1987). Daí suas tentativas de encontrar “centralismo”,
“burocracia” e outros aspectos na interpretação de Marx, que eram inexistentes
(Viana, 2011c). É daí também que vem a noção de “vazio” ou “vácuo” deixado pela
Comuna (e por outras experiências revolucionárias), já que nenhum aparato
estatal e burocrático assume o lugar do antigo estado capitalista e suas
instituições burocráticas. A concepção burocrática busca apenas substituir as
pessoas nas organizações burocráticas ao invés de abolir a burocracia. O
“vazio” é um sentimento de falta por parte daqueles que não conseguiram superar
a mentalidade burguesa ou burocrática e o processo de reprodução da divisão de
classe e das hierarquias.
Neste sentido, o
autogoverno dos produtores foi percebido por Marx como forma de emancipação
humana, meio para a realização do comunismo. A Comuna de Paris aparece, assim, como
resposta ao problema da revolução e forma de destruição (do capitalismo) e
constituição (do comunismo). A afirmação da política proletária não se deu
apenas no processo autogestionário marcado pela decisão coletiva
(elegibilidade, removibilidade, substitubilidade, responsabilidade), mas também
pela mudança em outras instâncias das relações sociais e também pela mudança de
mentalidade.
Isso pode ser
visto, por exemplo, não somente nas mudanças no processo educacional acima
aludidas (e outros aspectos omitidos, como o caso de novas escolas que vestiram
e alimentaram crianças), mas também na mudança de mentalidade, visível na declaração
da delegação do IV Distrito: “ensinar a criança a amar e a respeitar seu
semelhante, inspirar-lhe o amor à justiça, ensinar-lhe que deve se instruir
tendo em vista o interesse de todos: eis os princípios morais em que doravante
repousará a educação comunal” (apud. Lissagaray, 1995, p. 180)[6].
Assim, ao
contrário das concepções educacionais contemporâneas que se dizem
revolucionárias e cuidam apenas da forma (Viana, 2008), a educação comunal se
preocupava com o conteúdo, com os valores que eram repassados, e o humanismo e
a solidariedade substituíam o individualismo e a competição. Apesar dos limites
perceptíveis nas mudanças educacionais, em parte por que apenas se esboçaram,
tal como a Comuna como um todo, é visível a afirmação da política proletária,
onde não só as hierarquias, a burocracia, as instituições burguesas eram
destruídas ou enfraquecidas, como uma nova cultura emergia ao lado de novas
relações sociais esboçadas. Nesse sentido, Lissagaray escreveu que “a delegação
da educação tinha por obrigação escrever uma das mais belas páginas da Comuna”
(Lissagaray, 1995, p. 180).
A Comuna de Paris
esboçou a superação das instituições burguesas, em alguns casos efetivou tal
destruição, em outros apenas esboçou, sem citar os casos em que apenas imaginou
ou enfraqueceu. Obviamente que isso não pode ser extraído do contexto de sua
curta duração e da situação de uma cidade sitiada. Da mesma forma, anunciou,
esboçou e começou a concretizar a instauração de novas relações sociais. Nesses
dois casos, tanto a negação quanto a afirmação foram proletárias, negaram as
instituições burguesas e afirmaram a autogestão proletária, que não tem centro,
hierarquia, dirigentes, instituições petrificadas, logo, para os que não
ultrapassam os “limites da consciência burguesa” (Marx, 1988), ela é algo
inadmissível/incompreensível e a imagem do vazio logo vem à mente, bem como a
necessidade de uma organização burocrática para dirigir o processo, mas aqui já
estamos no campo da política burguesa e da mentalidade derivada. Assim, as palavras
de Marx mostram a essência de sua interpretação da Comuna de Paris:
“O regime comunal devolveu ao
organismo social todas as forças que até então vinha absorvendo o estado
parasita, que se nutre, à custa da sociedade e entorpece o seu livre movimento.
[...]. A própria existência da Comuna implicava, evidentemente, a autonomia
municipal, porém não mais como um contrapeso a um poder estatal, desnecessário
a partir desse momento” (Marx, 2011, p.
20).
Assim, o processo
revolucionário levado a cabo pelos comunardos foi a primeira experiência
revolucionária do proletariado e esse acontecimento extraordinário dificilmente
poderia ser compreendido pelos ideólogos, pelos indivíduos submetidos à
mentalidade burguesa ou burocrática, com seu pensamento ordinário. O pensamento
ordinário é incapaz de compreender o acontecimento extraordinário. Quando tenta
fazê-lo, busca colocá-lo no leito de Procusto, deformá-lo, cortá-lo,
descontextualizá-lo, transformá-lo em algo tão ordinário como o pensamento que
o interpreta.
A Comuna de Paris como
Revolução Proletária Inacabada
É preciso
recordar que a Comuna foi a primeira revolução proletária inacabada e por isso
devemos refletir sobre seu inacabamento e o que ela traz de alerta para nós
hoje. Uma revolução proletária inacabada significa que ela não cumpriu com
todas as tarefas de uma revolução proletária, ela iniciou uma ampla
transformação social que ficou incompleta. O caráter inacabado da Comuna foi
interpretado por muitos como revelando um caráter “republicano” (além dos
problemas interpretativos acima aludidos), ou focalizando seus “limites” e daí
sugerindo “soluções”. Realmente, devido seu inacabamento, existiram limites e,
por conseguinte, seria necessária uma radicalização da transformação e novas
relações sociais que acompanhariam esse processo. Porém, a partir da
perspectiva burguesa ou burocrática o que ocorre é uma abordagem enganosa a
respeito dos limites (encontrando-os onde não existem e não enxergando os que existiram)
e falsas soluções, que apontam para a política burguesa ao invés de apontar
para uma política proletária. Por isso se torna importante discutir esses
aspectos ligados ao inacabamento da Comuna de Paris.
Os limites
gerados pelo caráter inacabado da revolução comunal foram observados por Marx
(2011), Bakunin (2011), Kropotkin (2011), Korsch (2011a; 2011b), embora no caso
de Korsch, com certos problemas de interpretação e análise, derivados da
influência leninista (Viana, 2011d). O principal e fundamental limite da Comuna
de Paris foi a não abolição total e completa das relações de produção
capitalistas. Os limites colocados para a exploração do trabalho pelas empresas
capitalistas (proibição do trabalho noturno, por exemplo), a ocupação de
fábricas e autogestão em alguns casos, mostram a moderação nesse campo. Porém,
como se pode ler nos documentos da Comuna e ver nos textos de Marx (2011) e
Kropotkin (2011), a intenção dos comunardos era abolir o capital, as relações
de produção capitalistas[7].
Outros limites
importantes podem ser elencados, como a não destruição do Banco da França, etc.,
mas eles apenas mostram o caráter inacabado da Comuna de Paris. Mas este
caráter inacabado não foi produto dos limites do proletariado e da população
parisiense em geral e sim das condições sociais, do contexto de uma cidade
sitiada e da curta duração da experiência comunarda, que havia avançando no
sentido de superar tais limites. O proletariado parisiense era uma parte significativa
da população, mas numericamente não era tão grande assim, o capitalismo francês
ainda era relativamente incipiente. Da mesma forma, a cultura proletária e
revolucionária era parte da cultura contestadora da época, mas não tinha
hegemonia antes da proclamação da Comuna (os blanquistas e os proudhonianos
eram as forças políticas mais influentes, a primeira sendo um derivado do
jacobinismo e de tendência burocrática e os demais possuíam uma concepção
pequeno-burguesa, ligada à pequena propriedade). As minorias revolucionárias
eram compostas por poucos militantes e muitos com equívocos e limitações,
convivendo com outras tendências de caráter muito mais rebelde do que
revolucionário[8].
Além destes
limites internos da própria Comuna de Paris, haviam outros limites, os
externos. A luta da burguesia e outros setores conservadores contra a Comuna
(obviamente não esquecendo que dentro de Paris haviam setores conservadores
buscando boicotar suas ações) e o cerco de Paris por dois exércitos (o alemão e
o francês) não são desprezíveis e precisam ser levados em conta para mostrar o
inacabamento da revolução comunal. Porém, em que pese a união das limitações
internas e externas, a revolução comunal apontava para uma generalização da
política proletária, ou seja, para a destruição total das instituições
burguesas (relações de produção capitalistas e demais resquícios e instituições
burguesas) e para a autogestão coletiva generalizada em todas as instâncias da
sociedade, incluindo as fábricas.
Porém, para a
perspectiva burocrática, expressa principalmente pelo leninismo, os limites são
falta de política burguesa, ou seja, falta de instituições burocráticas para
dirigir e controlar a população. Eis a posição de Lênin:
“Não se pode falar da abolição da
burocracia de repente, em toda parte e totalmente. Isso é uma utopia. Porém
destruir de imediato a velha máquina burocrática e começar no mesmo instante a
construir outra nova, que permita ir reduzindo gradualmente toda burocracia,
não é uma utopia; é a experiência da
Comuna, é a tarefa essencial e imediata do
proletariado revolucionário” (Lênin, 1987, p. 93).
A questão que se
coloca para a perspectiva burocrática, que fica nos marcos da política
burguesa, é a substituição de uma organização burocrática por outra, ou, para
ser mais exato e deixando de lado suas falsas concessões linguísticas, a apropriação
das instituições burguesas, substituindo quem as dirige[9].
É por isso que Lênin quer manter a burocracia, quer um “estado de transição”,
um “estado operário”, bem como coloca como fundamental na Comuna de Paris o
princípio de que todos deveriam receber “salários de operários”, o que é apenas
uma regularização de relações de produção burguesas. É por isso também que
escreve que um dos “ensinamentos” da Comuna é não repetir erros como não se
apoderar “de instituições como, por exemplo, o banco” (Lênin, 1978, p. 21). A
ideia é sempre se apropriar das instituições burguesas e nunca destruí-las e é
por isso que o bolchevismo não ultrapassa os limites da política burguesa.
A
Comuna de Paris deixou evidente o perigo representado pelos “aliados” do
proletariado, o que tanto Marx (2011) quanto Bakunin (2011) perceberam. Da
mesma forma, a necessidade de uma ampla luta cultural para criar condições
favoráveis para a concretização da revolução se torna evidente, pois os avanços
da cultura revolucionária permitem um processo de avanço nas lutas práticas,
ou, como já dizia Korsch (1977), as ideias fazem parte da realidade e por isso
atuam sobre ela, ou, ainda, como coloca Pannekoek, “toda luta social é também
uma luta de ideias, de concepções, de pensamentos” (1977, p. 155), a
consciência é um dos elementos fundamentais na luta proletária[10].
O que Debord (2011) e Lefebvre (2011) denominaram “força do hábito” também
atingiu parte da população parisiense e foi outra dificuldade que necessitaria
ser superada e que em parte foi, mas não em sua totalidade.
Esse processo de
luta
cultural no sentido de maior esclarecimento do objetivo final e dos obstáculos
existentes facilitaria o reconhecimento da necessidade de abolição das relações
de produção capitalistas, do trabalho assalariado e do dinheiro. Marx citou o
fato dos funcionários receberem “salário de operário”, o que demonstra o
caráter inacabado da Comuna e não tomou isso como medida essencial e sim medida
provisória que deveria ser superada com o avanço da revolução proletária. Isso,
por exemplo, fica claro em seu texto Crítica
ao Programa de Gotha (Marx, 1978), na qual ele propõe, para a sociedade
comunista, em sua primeira fase, o “sistema de bônus”, o que significa abolição
do salariato e do dinheiro[11].
A
Comuna de Paris caminhava nesse sentido, mas a ação da burguesia impediu sua
concretização, e assim essa experiência heroica serviu para apontar caminhos e
formas, e, ao mesmo tempo, para alertar dos obstáculos e da necessidade de ir
além das revoluções inacabadas concretizando o projeto autogestionário em sua
totalidade. A política proletária é totalizante, não se limita a instâncias
isoladas da sociedade e combate a política institucional de agentes
especializados e a Comuna apontou para a superação desta última. Mas esta
sempre busca ressurgir, interna e externamente. E a derrota da política
proletária expressa na Comuna de Paris significou a vitória da política
burguesa, o retorno das instituições burguesas, como mostraremos a seguir.
A
Política Burguesa e a Derrota da Comuna
A
política proletária da revolução comunal foi derrotada pela política burguesa
do governo francês, que usou o exército, outra instituição burguesa, para
coordenar um massacre (Michel, 1971a; Lissagaray, 1995). Kropotkin assim
descreve a vingança da burguesia:
“Depois
de ter trancado o povo de Paris e fechado todas as vias de saída, o governo de
Versalhes soltou os soldados sobre ele; soldados brutalizados pela bebida e
pela vida do quartel, aos quais tinha sido publicamente dito que dessem cabo
‘dos lobos e suas crias’. [...]. E após essa orgia louca, essas pilhas de
cadáveres, esse total extermínio, veio a vingança mesquinha, os ferros no porão
do navio, os golpes e insultos dos carcereiros, a semi-inanição, todos os
refinamentos de crueldade” (2011, p. 120).
Na
peça teatral de Bertolt Brecht, ele coloca na boca do comunardo Langevin:
“Deslescluze
foi morto na Praça do Château d’Eau. Vermorel está ferido. Varlin combate na
Rua Lafayette. A carnificina é tal na Estação do Norte que as mulheres
precipitam-se para a rua, esbofeteiam os oficiais e vão elas próprias
enconstar-se à parede” (Brecht, 1981, p. 123).
Mas
antes de conseguir sua vitória sobre os comunardos – bem como depois – a
burguesia utilizou várias de suas instituições e classes auxiliares
aquarteladas nelas para combater a Comuna, na França e no exterior. Os “grandes”
literatos fizeram toda uma campanha e luta cultural contra a revolução comunal
(Lidski, 1971; Vallés, 1992), e nisso eram acompanhados pelos “pequenos”. Na
época se lia o que o famoso literato Gustave Flaubert escrevia sobre a Comuna:
“A Comuna reabilita os assassinos, assim como Jesus perdoava os ladrões, e
pilha as mansões dos ricos porque aprenderam a maldizer Lázaro, que era não um
mau rico, mas simplesmente um rico” (Flaubert, 1992, p. 198). Ele afirma que
odeia a democracia (p. 198) e diz que o remédio é acabar com o sufrágio, “a
vergonha do espírito humano”, onde um elemento domina os outros, ou seja, o
número passa por cima do espírito, instrução, raça e até mesmo do dinheiro (Flaubert,
1992, p. 203). Mas Flaubert não estava sozinho, inúmeros outros e tão famosos
quanto ele mostraram de que lado estavam no final das contas (Lidski, 1971;
Vallés, 1992). A imprensa em Paris, ainda sob domínio da burguesia, manifestava
sua perspectiva burguesa:
“Efetivamente,
usando do seu pleno direito de escritores num país livre, as redações de trinta
jornais parisienses, que tinham visto as intenções socialistas do novo governo,
entenderam dever protestar contra a convocação do povo às eleições comunais,
alegando que o único poder constituído com direito de fazer essa convocação era
a Assembleia nacional, e apreciando, como entendiam, os atos dos insurgentes”
(Pinheiro Chagas, s/d [1872], p. 102).
Esse
jornalista português partidário da burguesia expressa seu apoio e concordância
com os jornalistas parisienses, a reação interna e externa se complementam e
unificam sua voz usando a imprensa, outra instituição burguesa, para manifestar
sua luta cultural contra a Comuna de Paris. Porém, este é apenas um breve
apanhado das inventivas das instituições burguesas contra a revolução comunal.
Assim,
a política burguesa conseguiu suplantar a política proletária e um dos grandes
motivos para isso não foi a fraqueza dos comunardos e sim a não insurgência do
resto do proletariado francês e em outros países, apesar das experiências comunardas
em outras cidades, como em Lyon, Saint-Etienne, Creusot, Marselha, Toulose e
Narbonne (Lissagaray, 1995; Michel, 1971b; Ollivier, 1971). Essas outras
experiências comunardas foram derrotadas com maior rapidez e não tiveram a abrangência
e duração da Comuna de Paris. O poder financeiro, as forças repressivas, junto
com as demais instituições burguesas, agem em bloco para combater os comunardos
que acabaram ficando isolados, apesar dos apoios externos, sem grande força e
sem poder oferecer ajuda direta. As instituições burguesas – especialmente, mas
não unicamente, o estado burguês – conseguiram realizar a contrarrevolução e,
assim, retomar o domínio destas instituições, o que significa a retomada da
supremacia da política burguesa.
Nesse
contexto, a revolução comunal foi prematura e de um espírito prometéico de
sacrifício pela humanidade e o banho de sangue mostrou que o vermelho da
vitória pode ser o vermelho da derrota, mas, no futuro, o vermelho da derrota
pode ser o vermelho da vitória. O exemplo da Comuna de Paris abre campo para
novas experiências revolucionárias, em muito melhores condições, embora ainda
em situação desfavorável, que, no entanto, abrem novas perspectivas e oferecem
novas lições, que, hoje, abrem espaço para uma transformação radical das
relações sociais no sentido da autogestão social, quando o domínio do capital e
desenvolvimento tecnológico se generalizam mundialmente e, contraditoriamente, permitem
a revolução mundial. Não pode haver cerco contrarrevolucionário se não houver
centro revolucionário.
Considerações Finais
O
significado político da Comuna de Paris foi, enfim, a primeira demonstração
revolucionária da política proletária, da forma de autoemancipação proletária
(Marx, 2011), da autogestão das lutas que gera a autogestão social. A
experiência comunarda foi execrada pela burguesia, caluniada pela
intelectualidade, menosprezada pela burocracia, mas elogiada e celebrizada pelo
proletariado e seus aliados, bem como por aqueles que expressam seus
interesses. A Comuna de Paris manifestou um dos capítulos mais belos e mais
feios da luta de classes entre burguesia e proletariado, belo pela ousadia e
novo mundo esboçado, feio pela derrota e carnificina dos proletários
parisienses. Nas ruas de Paris, mas também nos outros lugares do mundo, naquela
época, mas ainda hoje, a Comuna é palco de luta de classes. Hoje a luta se dá
em torno de sua interpretação, uns buscando se apropriar dela para justificar
suas práticas e objetivos burocráticos, outros buscando resgatá-la para mostrar
a possibilidade da emancipação humana.
A
Comuna de Paris mostra que a política proletária caminha para o processo
revolucionário e sua explosão significa a emergência do extraordinário, da
historicidade, da transformação total. Por isso Marx afirmou que devido a ela “conquistamos
um novo ponto de partida de uma importância histórica universal” (Marx, 1979,
p. 23). A Comuna de Paris manifestou na prática o desejo (consciente ou
inconsciente) de liberdade, de libertação, de transformação do cotidiano. O
desejo de “mudar a vida”, como dizia Rimbaud, um dos poucos artistas que
ficaram ao lado da Comuna e por isso se preocupou com as crianças, as mulheres,
a totalidade.
A
Comuna de Paris foi uma revolução proletária inacabada, mas não uma revolução
burguesa, parcial, meramente política, foi uma revolução social, total. Mostrou
na prática o que Marx já havia colocado na teoria: a autoemancipação proletária
significa a emancipação humana. A ruptura revolucionária realizou a utopia e a
negação do existente, mostrou a historicidade e finitude do capitalismo.
Mostrou, também, a práxis revolucionária, o processo de espontaneidade
revolucionária e a emergência do novo. As palavras de um comunardo mostra a
antítese entre a política proletária e a política burguesa, entre o velho e
novo, o pensamento conservador e o pensamento revolucionário:
“Em 1871,
a Comuna de Paris não é senão – e segundo proclama de maneira algo
grandiloquente um de seus mais hábeis ‘gerentes’, o jornalista Félix Pyat – um ‘poder
natural, espontâneo, nem falseado, nem forçado, nascido da consciência pública
da ‘vil multidão’ provocada, atacada e levada à situação de legítima defesa; um
poder que nada deve à influência dos nomes, à autoridade das glórias, ao
prestígio dos chefes, ao artifício dos partidos...’ Em nome do caráter popular
da revolução comunista, Pyat rejeita implicitamente, como vemos, qualquer
possibilidade de diferenciação entre a natureza do poder revolucionário e a
maneira de exercê-lo. Sugere uma democracia total em que o povo administra
diretamente as instituições por ele criadas no movimento da revolução,
dispensando qualquer espécie de mandatários ou hierarquia” (Decouflé, 1970, p.
75).
Unificou
projeto revolucionário e prática revolucionária, totalidade e historicidade[12].
Provou que a revolução é possível, mesmo nas condições mais adversas, o que
deveria servir de alerta para aqueles que imaginam a revolução num futuro
longínquo. Estes apenas mostram sua incapacidade de pensar além do horizonte,
pois seus desejos estão ofuscados pelo horizonte burguês do qual não conseguem
se livrar.
Assim,
a revolução comunal contribuiu com novas revoluções, as do século 20, na
Rússia, Alemanha, Hungria, Itália, Espanha, Portugal, Polônia e diversos outros
países e em diversos momentos da história do capitalismo. As mudanças do
capitalismo trouxeram novos problemas apenas esboçados no caso da Comuna de
Paris, tal como a burocracia como classe social que busca substituir o
proletariado, mas também trouxeram novas lições e produziram novas relações
sociais em uma situação de capitalismo mais desenvolvido, tal como a emergência
dos conselhos operários e a luta contra a burocracia.
Assim,
hoje, a Comuna de Paris continua sendo objeto de disputas, de luta de classes e
prova, mais uma vez, a necessidade de uma ampla luta cultural que abarque a
totalidade das relações sociais do presente e do passado, incluindo a
necessidade da memória histórica das lutas proletárias e outras classes
exploradas e grupos oprimidos. Ela é fonte de inspiração e deixa o exemplo da
percepção da necessidade e potencialidade do novo. A Comuna de Paris é uma
ponte entre o passado e o futuro, pois mostra a potencialidade do futuro no
passado, inspirando o presente a libertar suas potencialidades e realizar suas
promessas. O que a Comuna de Paris não foi, mas anunciou, se concretiza no
futuro e germina no presente.
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___________________________________________________
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. O Significado Político da Comuna de Paris.
Revista Em Debate, num. 06.
[1] Aqui usamos o conceito de instituição como forma
organizacional burocrática, ou seja, toda organização burocrática é uma
instituição e o estado é a principal instituição da sociedade burguesa. Nesse
sentido, tal como coloca Poulantzas: “As instituições, consideradas do ponto
de vista do poder, somente podem ser relacionadas às classes sociais que detêm poder.
Esse poder das classes sociais está organizado, no seu exercício, em
instituições específicas, em centros de poder, sendo o Estado, nesse contexto,
o centro do exercício do poder político” (Poulantzas, 1978, p. 56). O Estado
cria ou incentiva a produção de diversas outras instituições que realizam um
processo de mediação entre ele e as classes sociais, indivíduos, etc., tais
como partidos, sindicatos, igrejas, etc.
[2] Não é possível, por
questão de espaço, aprofundar o conceito de classes sociais e alguns conceitos
relacionados aqui utilizados, tal como classes auxiliares, burocracia, etc.
Para isso remeto a uma bibliografia que discute e define tais conceitos (Viana,
2011b; Viana, 2007; Viana, 2011a). Sinteticamente podemos dizer que as classes
auxiliares, no capitalismo, são formadas por trabalhadores assalariados
improdutivos que exercem atividades cuja finalidade é a reprodução das relações
de produção capitalistas e, entre estas, há a burocracia, classe social que
exerce o papel de dirigente nas instituições sociais existentes e, portanto,
realiza um prática conservadora e reprodutodas das instituições voltadas para a
reprodução das relações de produção capitalistas.
[3] No chamado campo da
“esquerda”, essa posição é defendida pela socialdemocracia e, de forma mais
moderada, pelo leninismo. Obviamente que ambas não expressam os interesses de
classe do proletariado e sim da burocracia como classe auxiliar da burguesia.
[4] Obviamente existiam outras
classes participando da luta e ficando sob hegemonia proletária ou sob
hegemonia burguesa. Sem dúvida, as classes desprivilegiadas tendem a se aliar
ao proletariado e é por isso que Marx, discutindo a questão camponesa, diz que
sua hegemonia expressa os interesses dos camponeses e de todos os elementos
“sãos” da sociedade (Marx, 2011). Assim, o proletariado “ao contrário de junho
de 1848, quando tinha ‘todas as classes sociais contra si’ (Marx), em 1871 ele
conta com o apoio da pequena burguesia e até mesmo do lumpenproletariat. Quanto ao campesinato, seja ele republicano ou chouanne, quer apenas ir a Paris,
salvaguarda da França e centro de todas as resistências. Daí o êxito fulgurante
da insurreição de 18 de março de 1871” (Guillerm e Bourdet, 1976, p. 110).
[5] Engels (1986) abriu brecha
à deformação do pensamento de Marx ao escrever o prefácio ao livro A Guerra Civil na França e seu descuido
formal e incompreensão do significado profundo da Comuna de Paris e do
pensamento de Marx, destacando, o que será reproduzido por Lênin, a
elegibilidade e salários de operários para os funcionários e deixando de lado
aspectos essenciais apresentados por Marx, especialmente a responsabilidade,
mas também os demais aspectos.
[6] “A liberdade total
confiada aos meninos não foi um retorno à selvageria. Ao contrário, a Comuna,
fiel à autogestão, deixou às municipalidades distritais (realidade viva na
época, podendo ser traduzidas por comitê de bairro), o cuidado de promover a
instrução pública, não para se furtar à tarefa, mas para confiá-la às massas”
(Guillerm e Bourdet, 1976, p. 112).
[7] “A Comuna – exclamam – pretende
abolir a propriedade, base de toda civilização! Sim, cavalheiros, a Comuna pretendia abolir essa propriedade de
classe que converte o trabalho de muitos na riqueza de alguns poucos. A Comuna aspirava à expropriação dos
expropriadores. Queria tornar uma
realidade a conversão da propriedade individual, transformando os meios de
produção – a terra e o capital, que hoje são fundamentalmente meios de
escravização e de exploração do trabalho – em instrumentos do trabalho livre e associado. Porém, isso é o comunismo, o comunismo
‘impossível’!” (Marx, 2011, p. 22).
[8] Para uma discussão entre a
diferença entre pessoas de caráter rebelde e de caráter revolucionário, cf.
Fromm, 1986.
[9] “O que faltou
principalmente à Comuna foi um partido fortemente organizado, do qual o
programa fosse a expressão das massas proletárias” (Luquet, 1968, p. 41); “a
capacidade guerreira de um exército exige sobretudo a existência de um aparelho
de direção regular e centralizado” (Trotsky, 1968, p. 207). “A falta de um
líder, natural ou não, foi crucial. Eleito presidente, Charles Beslay,
engenheiro, 75 anos, digno e moderado, não detinha praticamente qualquer
autoridade executiva: a Comuna pretendia governar Paris por meio de comitês
democráticos, onde personalidades dominadoras não teriam vez. Pode-se especular
sobre o que aconteceria caso um Robespierre, ou um Lênin, tivesse surgido – a
Comuna é um dos raros episódios revolucionários que não suscita a lembrança de
vultos heroicos ou carismáticos. Se o maior exemplo de julgamento equivocado
que ela nos legou foi a decisão de deixar incólume o Banque de France, seu
grande azar terá sido a ausência de Auguste Blanqui – trancafiado em Toulon,
longe o bastante para não causar problemas” (Christiansen, 1998, p. 279). Na
perspectiva burocrática, o mérito se torna demérito. Seria possível citar
inúmeros outros exemplos de concepções burocráticas colocando a necessidade de
direção, burocracia. A interpretação deformadora não é só da Comuna, mas também
das análises de Marx sobre a Comuna: “baseando-se na experiência da Comuna,
Marx e Engels expuseram com maior força ainda a necessidade de criar um partido
proletário forte, centralizado e combativo” (Sovolev, 1946, p. 168). Marx nunca
afirmou isso, aliás, nunca defendeu nem sequer criação de partido, no sentido
moderno da palavra, seja de que tipo fosse.
[10] Isso foi percebido por
diversos comunardos, incluindo Eugène Varlin (Varlin, 1977). Claro que a luta
cultural deve ser anterior ao processo revolucionário e continuar com o seu
desencadeamento. Essa observação, obviamente, nada tem a ver com as concepções
individualistas burguesas que querem supervalorar indivíduos – no caso Varlin –
e desviar a percepção do caráter de classe da luta, com objetivos e concepções
simultaneamente individualistas e burguesas.
[11] A perspectiva burocrática é
outra. Lênin saldou o “salário de operário” como uma das questões mais
fundamentais para a passagem do capitalismo para o comunismo, ou seja, a
reprodução de relações sociais burguesas (Lênin, 1987; Viana, 2011c).
[12] “Totalidade e
historicidade específica estão intimamente ligadas ao projeto revolucionário e
permitem assim atribuir à revolução uma fisionomia individual na espessa massa
dos processos coletivos de transformações sociais e mentais, alguns dos quais
coexistem no projeto revolucionário com este ou aquele aspectos das mesmas”
(Decouflé, 1970, p. 35).
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