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domingo, 13 de agosto de 2017

O Significado Político da Comuna de Paris


O Significado Político da Comuna de Paris

Nildo Viana
Resumo:
A Comuna de Paris foi uma revolução proletária inacabada que teve como grande significado político a manifestação de uma política proletária. Essa política proletária ficou manifesta na essência autogestionária da mesma. A negação proletária das instituições burguesas conviveu com o esboço de afirmação proletária da autogestão social. Assim, é fundamental perceber as ações efetivadas pelos proletários de Paris e a reação burguesa, nas quais se colocam frente a frente duas formas de efetivar a luta política de classe. A luta proletária saiu derrotada, mas deixou germinar a percepção do seu significado político, cujo reconhecimento também depende da luta de classes. O que está em jogo na revolução proletária são duas concepções e práticas políticas radicalmente diferentes e antagônicas.

Palavras-chave: Comuna de Paris, Política Proletária, Autogestão Social, Marxismo, Revolução Proletária.

Abstract:
The Paris Commune was a proletarian revolution was unfinished great political significance as a manifestation of proletarian politics. This policy was manifested in the essence of proletarian self-management of it. Denial of proletarian bourgeois institutions lived with the draft statement of proletarian social ownership. Thus, it is crucial to realize the effect the actions of Paris and the proletarian bourgeois reaction, in which are placed face to face two ways to accomplish the political struggle of class. The class struggle has lost out but failed to germinate their perceived political significance, recognition of which also depends on the class struggle. What is at stake in the proletarian revolution are two political concepts and practices radically different and antagonistic.

Key-words: Paris Commune, Proletarian Political, Social Self-Management, Marxism, Proletarian Revolution.


A Comuna de Paris de 1871 foi um evento histórico marcante e cuja recordação traz elementos fundamentais para se pensar a práxis política contemporânea. Não é sem razão que foi e continua sendo objeto de inúmeras publicações e debates. O presente artigo busca justamente resgatar o significado político da Comuna de Paris, ou seja, quais lições ela deixou para a prática política norteada pela ideia da emancipação humana, pela transformação social radical das relações sociais.
O significado da Comuna de Paris é expresso no que ela foi. O que ela foi é o que ela significa. Marx já havia alertado para isso quando afirmou que “a grande medida social da Comuna foi sua própria existência ativa” (Marx, 2011, p. 27). Nesse sentido, há uma unidade entre ser e significado, o significado está na essência do ser. O que foi a Comuna de Paris? A Comuna de Paris foi um evento passado que anuncia o porvir. Ela foi o passado que traz em si os germes do futuro. O ser anuncia o vir-a-ser. Assim, o significado político da Comuna remete ao estudo do que ela foi e expressou.
Política e Luta de Classes
Antes de analisar o significado político da Comuna é necessário explicitar o conceito de política. Esta palavra possui vários significados no idioma português: planejamento estatal (é neste sentido que se fala em “política educacional”), política institucional (a política do aparelho estatal e seus derivados), etc. Para muitos, “há política simplesmente onde existe poder – onde há o exercício do poder, a influência de um homem sobre o homem” (Calvez, 2002, p. 7). A política também pode ser concebida como “esfera autônoma” da realidade, sendo aquilo que manifesta o aparato estatal e suas circunscrições (Sartori, 1997). Assim, temos uma concepção de política que a dilui em todas as relações sociais e perde sua especificidade e outra que a restringe a uma esfera específica de atividade, excluindo tudo o que está fora dessa esfera. A primeira é uma concepção “generalista” e a segunda uma concepção “estatista”.
Porém, utilizamos política aqui num sentido mais amplo do que a concepção estatista e mais restrita que a concepção generalista. Em Marx, a política está intimamente ligada à dominação e luta de classes (Miliband, 1979; Viana, 2003). Assim, podemos definir política, no sentido marxista, como toda e qualquer forma de manifestação das lutas de classes. As lutas de classes são aquelas travadas por grupos sociais específicos, as classes, que possuem modos de vida, interesses e oposição a outras classes derivados de sua posição na divisão social do trabalho, que é determinada pelas relações de produção (Viana, 2011a).
No capitalismo, a luta de classes é aquela que ocorre entre as diversas classes sociais existentes, tais como a burguesia, burocracia, proletariado, campesinato, lumpemproletariado, entre outras (Viana, 2011a). Porém, cada classe luta de uma forma específica, de acordo com sua posição na divisão social do trabalho, suas condições de vida, seus interesses, seus objetivos, etc. Assim, a política é manifestação das lutas de classes, mas no seu interior vamos ter diversas formas de manifestação e cada uma delas corresponde aos interesses de uma ou outra classe social. Isto vai se desenvolver e expressar nas próprias representações sobre o que é a política, se manifestando através de determinadas ideologias, teorias ou representações cotidianas (“senso comum”).
Assim, podemos conceber que a política é definida a partir de determinados interesses de classes e que cada forma de luta política – ou seja, a forma como uma classe realiza sua luta contra as demais classes antagônicas – é expressão de uma ou outra classe. A forma da luta política está intimamente ligada ao conteúdo dessa luta, o seu objetivo final e fundamental, ou seja, aos interesses históricos, fundamentais, das classes sociais. Por conseguinte, a definição de política como uma esfera de atividade específica que remete ao Estado e seus aparatos é correspondente aos interesses de classe da burguesia como classe dominante (e também de suas classes auxiliares). O seu objetivo é reduzir as lutas políticas às lutas institucionais, reduzindo a política ao caso específico da política institucional[1].
Essa ideologia é mobilizadora e tem efeitos práticos, pois busca canalizar as lutas proletárias e de outras classes exploradas e desprivilegiadas para o campo institucional, ou seja, para o Estado, onde a classe dominante reina absoluta com suas classes auxiliares (especialmente a burocracia)[2]. Assim, a política burguesa é voltada para a institucionalização das lutas de classes (Viana, 2003). Ela faz isso tanto em suas representações quanto em sua prática e uma reforça a outra.
A política proletária, por sua vez, é antagônica à política burguesa, bem como, por conseguinte, sua definição. Então a política proletária é anti-institucional, ela não é canalizada para a luta pelo poder estatal e sim contra ele e suas instituições. Por isso a definição de política que lhe corresponde e reforça seus interesses é a que a coloca como toda forma de manifestação da luta de classes. Logo, não existe despolitização na recusa das instituições burguesas e também na negação da luta pelo poder estatal (Viana, 1991)[3].
Desta forma, cada classe social institui sua política de classe, tanto em sua forma como em seu conteúdo, que são inseparáveis. A forma da luta revela seus objetivos e conteúdo. A política burguesa é voltada para a política institucional, através do Estado, democracia, eleições, parlamento. Ela busca integrar o proletariado e outras classes nas instituições burguesas e visa o institucional e a institucionalização, pois assim amortece a luta de classes e fortalece sua hegemonia e dominação, realizando a reprodução das relações de produção capitalistas.
A política proletária é, ao contrário, anti-institucional e anti-institucionalização. Ela busca romper com a institucionalização e superar as instituições burguesas, incluindo o Estado capitalista. Porém, a política proletária tem dois momentos, o momento da negação e o momento da afirmação. A negação proletária é caracterizada pela crítica e busca de superação das instituições burguesas e das ideologias, chegando a lutar contra a totalidade da sociedade capitalista. A afirmação proletária, por sua vez, traz formas embrionárias do novo, produção de novas relações sociais, novas ideias e teorias. A afirmação do novo, dos germes do futuro, acompanha a negação do velho mundo. Assim, a política proletária nega e afirma, anunciando uma nova sociedade no interior da atual.
A Comuna de Paris como Política Proletária
A Comuna de Paris foi uma manifestação da luta de classes radicalizada, que expressou a supremacia da política proletária sobre a política burguesa, embora essa ainda tivesse elementos presentes no decorrer do processo[4]. Assim, uma análise do processo da luta de classes na Comuna é de suma importância para ver o processo de luta proletária e seu caráter de classe, já que foi a primeira tentativa de revolução proletária na história do capitalismo. A análise da Comuna feita por Marx foi uma das mais profundas e que focalizou sua essência revolucionária e autogestionária (Viana, 2011b). Um dos principais aspectos da Comuna foi a abolição do Estado, tal como descrito por Marx:
“A Comuna de Paris havia obviamente de servir de modelo a todos os grandes centros industriais da França. Uma vez estabelecido o regime comunal em Paris e nos centros secundários, o antigo governo centralizado teria de dar lugar, inclusive nas províncias, ao autogoverno dos produtores. No breve esboço de organização nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver, estabeleceu-se claramente que a Comuna havia de ser a forma política mesmo dos menores povoados do campo, e que nos distritos rurais o exército permanente havia de ser substituído por uma milícia popular, com um tempo de serviço extremamente curto. As comunas rurais de todos os distritos administrariam seus assuntos coletivos através de uma assembleia de delegados na capital do distrito correspondente e tais assembleias, por sua vez, enviariam delegados à Assembleia Nacional de Delegados de Paris, sendo todos substituíveis a qualquer momento e estariam constrangidos ao mandato imperativo (instruções formais) de seus eleitores. As poucas, mas importantes funções que ainda restariam a um governo central não seriam suprimidas, como foi intencionalmente dito de maneira deturpada, mas executadas por agentes comunais, e, por conseguinte, estritamente responsáveis. A unidade da nação não seria suprimida, mas, pelo contrário, organizada pelo regime comunal e convertida em uma realidade ao destruir o poder de Estado, que pretendia ser a encarnação daquela unidade, independente e superior à própria nação, de que não era senão uma excrescência parasitária. Enquanto os órgãos meramente repressivos do velho poder governamental haviam de ser amputados, as suas funções legítimas haviam de ser arrancadas a uma autoridade que usurpava a preeminência sobre a própria sociedade e restituídas aos agentes responsáveis da sociedade. Em vez de decidir uma vez a cada três ou seis anos que membros da classe dominante haveriam de “representar” e esmagar o povo no parlamento, o sufrágio universal havia de servir o povo organizado em Comunas, da mesma forma que a escolha individual serve aos patrões que buscam operários e administradores para seus negócios. E é conhecido por todos que tanto as empresas como os indivíduos, quando se trata de negócios, sabem geralmente como colocar o homem certo no lugar correspondente e, se por acaso erram, sabem corrigi-lo com rapidez. Por outro lado, nada poderia ser mais estranho ao espírito da Comuna do que substituir o sufrágio universal pela investidura hierárquica. Geralmente, as criações históricas completamente novas estão destinadas a ser tomadas por uma reprodução de formas velhas, inclusive mortas, da vida social, com as quais podem apresentar alguma semelhança. Assim, essa nova Comuna, que destrói o poder estatal moderno, foi confundida com uma reprodução das comunas medievais, que, tendo precedido a este Estado, e logo lhe serviram de base. O regime comunal foi tomado erroneamente como uma tentativa de fracionar, como sonhavam Montesquieu e os girondinos, essa unidade de grandes nações em uma federação de pequenos Estados, que, em suas origens, foi instaurada pela violência e se converteu hoje em um poderoso fator de produção social. O antagonismo entre a Comuna e o poder estatal foi de forma equivocada apresentado como uma forma exagerada da velha luta contra o excessivo centralismo. Circunstâncias históricas peculiares podem, em outros países, ter impedido o desenvolvimento clássico da forma burguesa de governo, tal como se deu na França, e ter permitido, como na Inglaterra, completar nas cidades dos grandes órgãos centrais do Estado com assembleias paroquiais (vestroes) corruptas, conselheiros traficantes e ferozes administradores de assistência pública, e, no campo, com juízes virtualmente hereditários” (Marx, 2011, p. 18-20).
Assim, a primeira e mais importante ação da Comuna foi a destruição do poder estatal centralizado. Marx, nos seus esboços das Mensagens para a Associação Internacional dos Trabalhadores, que culminaria com o livro A Guerra Civil na França, a colocava claramente como uma revolução contra o Estado, ou seja, a execução de uma política proletária (anti-institucional) contra a política burguesa (institucional, estatal):
Foi uma revolução contra o Estado mesmo, este aborto sobrenatural da sociedade, a reabsorção pelo povo e para o povo de sua própria vida social. Não foi uma revolução que se fez para transferir esse Poder de uma fração das classes dominantes à outra, mas uma revolução para acabar com a própria horrenda maquinaria da dominação de classe. Não foi uma dessas lutas mesquinhas entre as formas executivas de dominação de classe e as parlamentares, mas uma rebelião contra estas duas formas juntas, que se integram uma à outra, e das quais a forma parlamentar não era senão o enganoso apêndice do Executivo” (Marx, 1978, p. 184-185).
A destruição do Estado significou a efetivação radical de uma política proletária, que destrói a principal instituição burguesa de reprodução do capital. Ela foi “uma negação audaz” do Estado (Bakunin, 2011). A burocracia estatal, o exército permanente, entre outros aspectos do Estado burguês, foram abolidos. Porém, não foi apenas o aparato estatal que foi abolido, já que, relacionado mais diretamente ou não com ele, outras relações sociais foram transformadas. A abolição da polícia e do exército foi seguida pela abolição da Igreja.
“Uma vez suprimido o exército permanente e a polícia, elementos da força física do antigo governo, a Comuna estava desejosa de quebrar a força espiritual de repressão, o ‘poder dos padres’, pelo desmantelamento e expropriação de todas as igrejas como instituições proprietárias. Os padres foram devolvidos aos retiros da vida privada, para terem aí o sustento das esmolas dos fiéis, à imitação dos seus predecessores, os apóstolos” (Marx, 2011, p. 17-18).
Sobre a educação, as realizações da Comuna não avançaram como anunciavam, mas, de qualquer forma, realizou algumas mudanças significativas. A Circular Vaillant (apud Donois, 1968) afirma que é preciso que a “revolução comunal afirme seu caráter essencialmente socialista” e por isso é preciso transformações no ensino, tal como a instrução integral visando o desenvolvimento harmonioso das potencialidades humanas, unindo cultura intelectual, física e técnica (Dunois, 1968, p. 71). Seria produzido um “plano completo de ensino integral”, mas, enquanto isso não ocorria, algumas reformas imediatas seriam tomadas para garantir, “num futuro próximo”, a transformação radical do ensino. Na Proclamação da Comuna de Paris, pode-se ler:
“É abolida a escola ‘velha’. As crianças devem se sentir como em sua casa, aberta para a cidade e para a vida. A sua única função é a de torná-las felizes e criadoras. As crianças decidem a sua arquitetura, o seu horário de trabalho, e o que desejam aprender. O professor antigo deixa de existir: ninguém fica com o monopólio da educação, pois ela já não é concebida como transmissão do saber livresco, mas como transmissão das capacidades profissionais de cada um” (Nascimento, 2002, p. 39).
Assim, a proposta da Comuna sobre o processo educacional aponta para a substituição do ensino tradicional, especializado, burocrático, por uma nova forma de educação e esboçou algumas mudanças e anunciou uma transformação radical da mesma. Entre estas medidas realizou a separação entre escola e igreja, pois “todas as instituições de educação foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo desembaraçadas de toda a interferência da igreja e do Estado” (Marx, 2011, p. 18).
No que tange às relações de produção capitalistas, a Comuna foi bastante moderada, colocando determinados limites nas relações de trabalho e anunciando a autogestão das fábricas abandonadas. Foi formada uma delegação do trabalho e do comércio, constituída por socialistas revolucionários – já que na Comuna conviviam várias tendências e concepções (Koechlin, 1965; Lopez e Turrado, 1966; Ollivier, 1971; Gonzalez, 1982) – e entre eles se encontrava Leo Frankel, militante próximo das ideias de Marx. A delegação iniciou um processo de reforma, revisão, pesquisa e análise da situação do trabalho e do comércio. Uma das mais conhecidas ações nesse campo, popularizada por Marx, foi a proibição do trabalho noturno:
“O delegado, Léo Frankel, fez-se auxiliar por uma comissão, constituída por trabalhadores, encarregada de tomar iniciativas. Foram abertos, nos distritos, registros para informar sobre ofertas e pedidos de empregos. A pedido de muitos operários padeiros, a delegação suspendeu o trabalho noturno, medida de higiene e de moral. Preparou um projeto de liquidação da Casa Municipal de Penhor, um decreto referente aos descontos sobre os salários e apoiou um outro relativo às oficinas fechadas por seus proprietários” (Lissagaray, 1995, p. 181).
As fábricas abandonadas e a atitude diante delas anunciavam uma posição comunista e revolucionária. Uma comissão deveria fazer levantamento das fábricas abandonadas e preparar sua apropriação pelos trabalhadores (Lissagaray, 1995). No dia 16 de abril foi realizada a requisição das empresas abandonadas, que visava a formação de associações operárias para realizar sua autogestão (Dunois, 1968; Lissagaray, 1995).
Outras instituições burguesas foram enfraquecidas ou destruídas e existem diversas obras que mostram esse processo, embora algumas problemáticas no nível interpretativo e outras muito sintéticas (Dunois, 1968; Lissagaray, 1995; Ollivier, 1971; Gonzalez, 1982; Jesus e Turrado, 1966; Marx, 2011). O que importa resgatar aqui é esse papel destrutivo e anti-institucional da Comuna de Paris, o que revela seu caráter de política proletária, na qual as decisões e ações não se voltam para o aparato estatal e sim contra este aparato.
Por isso, é fundamental compreender também o caráter afirmativo da política proletária durante a Comuna de Paris. Tal como Marx coloca, a Comuna promoveu a substitubilidade, removibilidade, elegibilidade e principalmente a responsabilidade, como formas de auto-organização comunal. A revolução comunal marcou não apenas a destruição ou início de destruição de instituições burguesas, mas, ao mesmo tempo, instaurou novas relações sociais ou pelo menos as esboçou. Isso se manifestou através de novas formas de auto-organização, comandados pelos princípios da elegibilidade, removibilidade, substitubilidade e responsabilidade.
O sufrágio universal, aparentemente, é semelhante ao processo da democracia burguesa, representativa, mas possui, no caso da auto-organização comunal, um caráter totalmente distinto. Não se trata de eleições parlamentares, com períodos de mandatos fixos, com os eleitos recebendo salários privilegiados e adquirindo poder e estabilidade. Na verdade, o sufrágio universal significa a supremacia da população sobre os delegados eleitos, cabendo a ela a escolha. Porém, esta escolha remete aos demais princípios – e são estes que mostram a diferença radical em relação à democracia representativa. O princípio da removibilidade coloca que qualquer delegado pode ser removido a qualquer momento e o princípio da substitubilidade deixa claro que pode ser substituído por outro. A decisão sobre a remoção e substituição é realizada pela população e assim esta escolhe, remove, substitui sempre que for necessário, sempre que o delegado não corresponder ao esperado e não seguir as diretrizes às quais deve se submeter.
Daí vem o princípio da responsabilidade, o mais importante de todos, o que significa que o delegado escolhido não tem autonomia e nem pode criar interesses próprios, tal como na democracia burguesa, e é o que garante a decisão coletiva das assembleias em substituição à autonomização dos eleitos. O mandato imperativo, tal como Marx já havia colocado, é um elemento fundamental, e é aí que temos a forma comunal de impedir a burocratização e a instituição de relações de dominação e poder, a relação entre dirigentes e dirigidos, pois os delegados não são dirigentes, são apenas executores da decisão coletiva, por isso responsáveis, e, caso não o sejam, podem ser removidos e substituídos. Assim, novas relações sociais são esboçadas, nas quais a burocracia (relação dirigentes-dirigidos) é substituída pela autogestão coletiva da população. Daí temos a abolição da heterogestão e sua substituição pela autogestão social.
Nesse sentido, a posição de Marx é correta: a Comuna de Paris é a forma finalmente encontrada de autoemancipação proletária, meio de realização da emancipação humana. O “autogoverno dos produtores” (Marx, 2011) é a forma de emancipação humana. Claro que muitos não compreenderam nem a Comuna de Paris, nem o texto de Marx sobre ela. Influenciados pela deformação do texto de Marx realizada pela interpretação leninista (Lênin, 1987), até mesmo pensadores revolucionários demonstraram incompreensão da análise de Marx sobre a Comuna (Korsch, 2011a; Korsch, 2011b).
Quando Marx afirma que a Comuna é a forma política finalmente encontrada de autoemancipação proletária, ele mostra que é a forma de luta política proletária de emancipação, que promove a destruição do aparato estatal e instaura a autogestão social, ou “autogoverno dos produtores”, “livre associação dos produtores”. Lênin e outros[5] refletiam a partir da mentalidade burocrática e por isso não conseguiam conceber a destruição do aparato estatal sem sua substituição por outro aparato, por outra burocracia (Lênin, 1987). Daí suas tentativas de encontrar “centralismo”, “burocracia” e outros aspectos na interpretação de Marx, que eram inexistentes (Viana, 2011c). É daí também que vem a noção de “vazio” ou “vácuo” deixado pela Comuna (e por outras experiências revolucionárias), já que nenhum aparato estatal e burocrático assume o lugar do antigo estado capitalista e suas instituições burocráticas. A concepção burocrática busca apenas substituir as pessoas nas organizações burocráticas ao invés de abolir a burocracia. O “vazio” é um sentimento de falta por parte daqueles que não conseguiram superar a mentalidade burguesa ou burocrática e o processo de reprodução da divisão de classe e das hierarquias.
Neste sentido, o autogoverno dos produtores foi percebido por Marx como forma de emancipação humana, meio para a realização do comunismo. A Comuna de Paris aparece, assim, como resposta ao problema da revolução e forma de destruição (do capitalismo) e constituição (do comunismo). A afirmação da política proletária não se deu apenas no processo autogestionário marcado pela decisão coletiva (elegibilidade, removibilidade, substitubilidade, responsabilidade), mas também pela mudança em outras instâncias das relações sociais e também pela mudança de mentalidade.
Isso pode ser visto, por exemplo, não somente nas mudanças no processo educacional acima aludidas (e outros aspectos omitidos, como o caso de novas escolas que vestiram e alimentaram crianças), mas também na mudança de mentalidade, visível na declaração da delegação do IV Distrito: “ensinar a criança a amar e a respeitar seu semelhante, inspirar-lhe o amor à justiça, ensinar-lhe que deve se instruir tendo em vista o interesse de todos: eis os princípios morais em que doravante repousará a educação comunal” (apud. Lissagaray, 1995, p. 180)[6].
Assim, ao contrário das concepções educacionais contemporâneas que se dizem revolucionárias e cuidam apenas da forma (Viana, 2008), a educação comunal se preocupava com o conteúdo, com os valores que eram repassados, e o humanismo e a solidariedade substituíam o individualismo e a competição. Apesar dos limites perceptíveis nas mudanças educacionais, em parte por que apenas se esboçaram, tal como a Comuna como um todo, é visível a afirmação da política proletária, onde não só as hierarquias, a burocracia, as instituições burguesas eram destruídas ou enfraquecidas, como uma nova cultura emergia ao lado de novas relações sociais esboçadas. Nesse sentido, Lissagaray escreveu que “a delegação da educação tinha por obrigação escrever uma das mais belas páginas da Comuna” (Lissagaray, 1995, p. 180).
A Comuna de Paris esboçou a superação das instituições burguesas, em alguns casos efetivou tal destruição, em outros apenas esboçou, sem citar os casos em que apenas imaginou ou enfraqueceu. Obviamente que isso não pode ser extraído do contexto de sua curta duração e da situação de uma cidade sitiada. Da mesma forma, anunciou, esboçou e começou a concretizar a instauração de novas relações sociais. Nesses dois casos, tanto a negação quanto a afirmação foram proletárias, negaram as instituições burguesas e afirmaram a autogestão proletária, que não tem centro, hierarquia, dirigentes, instituições petrificadas, logo, para os que não ultrapassam os “limites da consciência burguesa” (Marx, 1988), ela é algo inadmissível/incompreensível e a imagem do vazio logo vem à mente, bem como a necessidade de uma organização burocrática para dirigir o processo, mas aqui já estamos no campo da política burguesa e da mentalidade derivada. Assim, as palavras de Marx mostram a essência de sua interpretação da Comuna de Paris:
O regime comunal devolveu ao organismo social todas as forças que até então vinha absorvendo o estado parasita, que se nutre, à custa da sociedade e entorpece o seu livre movimento. [...]. A própria existência da Comuna implicava, evidentemente, a autonomia municipal, porém não mais como um contrapeso a um poder estatal, desnecessário a partir desse momento” (Marx, 2011, p. 20).
Assim, o processo revolucionário levado a cabo pelos comunardos foi a primeira experiência revolucionária do proletariado e esse acontecimento extraordinário dificilmente poderia ser compreendido pelos ideólogos, pelos indivíduos submetidos à mentalidade burguesa ou burocrática, com seu pensamento ordinário. O pensamento ordinário é incapaz de compreender o acontecimento extraordinário. Quando tenta fazê-lo, busca colocá-lo no leito de Procusto, deformá-lo, cortá-lo, descontextualizá-lo, transformá-lo em algo tão ordinário como o pensamento que o interpreta.
A Comuna de Paris como Revolução Proletária Inacabada
É preciso recordar que a Comuna foi a primeira revolução proletária inacabada e por isso devemos refletir sobre seu inacabamento e o que ela traz de alerta para nós hoje. Uma revolução proletária inacabada significa que ela não cumpriu com todas as tarefas de uma revolução proletária, ela iniciou uma ampla transformação social que ficou incompleta. O caráter inacabado da Comuna foi interpretado por muitos como revelando um caráter “republicano” (além dos problemas interpretativos acima aludidos), ou focalizando seus “limites” e daí sugerindo “soluções”. Realmente, devido seu inacabamento, existiram limites e, por conseguinte, seria necessária uma radicalização da transformação e novas relações sociais que acompanhariam esse processo. Porém, a partir da perspectiva burguesa ou burocrática o que ocorre é uma abordagem enganosa a respeito dos limites (encontrando-os onde não existem e não enxergando os que existiram) e falsas soluções, que apontam para a política burguesa ao invés de apontar para uma política proletária. Por isso se torna importante discutir esses aspectos ligados ao inacabamento da Comuna de Paris.
Os limites gerados pelo caráter inacabado da revolução comunal foram observados por Marx (2011), Bakunin (2011), Kropotkin (2011), Korsch (2011a; 2011b), embora no caso de Korsch, com certos problemas de interpretação e análise, derivados da influência leninista (Viana, 2011d). O principal e fundamental limite da Comuna de Paris foi a não abolição total e completa das relações de produção capitalistas. Os limites colocados para a exploração do trabalho pelas empresas capitalistas (proibição do trabalho noturno, por exemplo), a ocupação de fábricas e autogestão em alguns casos, mostram a moderação nesse campo. Porém, como se pode ler nos documentos da Comuna e ver nos textos de Marx (2011) e Kropotkin (2011), a intenção dos comunardos era abolir o capital, as relações de produção capitalistas[7].
Outros limites importantes podem ser elencados, como a não destruição do Banco da França, etc., mas eles apenas mostram o caráter inacabado da Comuna de Paris. Mas este caráter inacabado não foi produto dos limites do proletariado e da população parisiense em geral e sim das condições sociais, do contexto de uma cidade sitiada e da curta duração da experiência comunarda, que havia avançando no sentido de superar tais limites. O proletariado parisiense era uma parte significativa da população, mas numericamente não era tão grande assim, o capitalismo francês ainda era relativamente incipiente. Da mesma forma, a cultura proletária e revolucionária era parte da cultura contestadora da época, mas não tinha hegemonia antes da proclamação da Comuna (os blanquistas e os proudhonianos eram as forças políticas mais influentes, a primeira sendo um derivado do jacobinismo e de tendência burocrática e os demais possuíam uma concepção pequeno-burguesa, ligada à pequena propriedade). As minorias revolucionárias eram compostas por poucos militantes e muitos com equívocos e limitações, convivendo com outras tendências de caráter muito mais rebelde do que revolucionário[8].
Além destes limites internos da própria Comuna de Paris, haviam outros limites, os externos. A luta da burguesia e outros setores conservadores contra a Comuna (obviamente não esquecendo que dentro de Paris haviam setores conservadores buscando boicotar suas ações) e o cerco de Paris por dois exércitos (o alemão e o francês) não são desprezíveis e precisam ser levados em conta para mostrar o inacabamento da revolução comunal. Porém, em que pese a união das limitações internas e externas, a revolução comunal apontava para uma generalização da política proletária, ou seja, para a destruição total das instituições burguesas (relações de produção capitalistas e demais resquícios e instituições burguesas) e para a autogestão coletiva generalizada em todas as instâncias da sociedade, incluindo as fábricas.
Porém, para a perspectiva burocrática, expressa principalmente pelo leninismo, os limites são falta de política burguesa, ou seja, falta de instituições burocráticas para dirigir e controlar a população. Eis a posição de Lênin:
Não se pode falar da abolição da burocracia de repente, em toda parte e totalmente. Isso é uma utopia. Porém destruir de imediato a velha máquina burocrática e começar no mesmo instante a construir outra nova, que permita ir reduzindo gradualmente toda burocracia, não é uma utopia; é a experiência da Comuna, é a tarefa essencial e imediata do proletariado revolucionário” (Lênin, 1987, p. 93).
A questão que se coloca para a perspectiva burocrática, que fica nos marcos da política burguesa, é a substituição de uma organização burocrática por outra, ou, para ser mais exato e deixando de lado suas falsas concessões linguísticas, a apropriação das instituições burguesas, substituindo quem as dirige[9]. É por isso que Lênin quer manter a burocracia, quer um “estado de transição”, um “estado operário”, bem como coloca como fundamental na Comuna de Paris o princípio de que todos deveriam receber “salários de operários”, o que é apenas uma regularização de relações de produção burguesas. É por isso também que escreve que um dos “ensinamentos” da Comuna é não repetir erros como não se apoderar “de instituições como, por exemplo, o banco” (Lênin, 1978, p. 21). A ideia é sempre se apropriar das instituições burguesas e nunca destruí-las e é por isso que o bolchevismo não ultrapassa os limites da política burguesa.
A Comuna de Paris deixou evidente o perigo representado pelos “aliados” do proletariado, o que tanto Marx (2011) quanto Bakunin (2011) perceberam. Da mesma forma, a necessidade de uma ampla luta cultural para criar condições favoráveis para a concretização da revolução se torna evidente, pois os avanços da cultura revolucionária permitem um processo de avanço nas lutas práticas, ou, como já dizia Korsch (1977), as ideias fazem parte da realidade e por isso atuam sobre ela, ou, ainda, como coloca Pannekoek, “toda luta social é também uma luta de ideias, de concepções, de pensamentos” (1977, p. 155), a consciência é um dos elementos fundamentais na luta proletária[10]. O que Debord (2011) e Lefebvre (2011) denominaram “força do hábito” também atingiu parte da população parisiense e foi outra dificuldade que necessitaria ser superada e que em parte foi, mas não em sua totalidade.
Esse processo de luta cultural no sentido de maior esclarecimento do objetivo final e dos obstáculos existentes facilitaria o reconhecimento da necessidade de abolição das relações de produção capitalistas, do trabalho assalariado e do dinheiro. Marx citou o fato dos funcionários receberem “salário de operário”, o que demonstra o caráter inacabado da Comuna e não tomou isso como medida essencial e sim medida provisória que deveria ser superada com o avanço da revolução proletária. Isso, por exemplo, fica claro em seu texto Crítica ao Programa de Gotha (Marx, 1978), na qual ele propõe, para a sociedade comunista, em sua primeira fase, o “sistema de bônus”, o que significa abolição do salariato e do dinheiro[11].
A Comuna de Paris caminhava nesse sentido, mas a ação da burguesia impediu sua concretização, e assim essa experiência heroica serviu para apontar caminhos e formas, e, ao mesmo tempo, para alertar dos obstáculos e da necessidade de ir além das revoluções inacabadas concretizando o projeto autogestionário em sua totalidade. A política proletária é totalizante, não se limita a instâncias isoladas da sociedade e combate a política institucional de agentes especializados e a Comuna apontou para a superação desta última. Mas esta sempre busca ressurgir, interna e externamente. E a derrota da política proletária expressa na Comuna de Paris significou a vitória da política burguesa, o retorno das instituições burguesas, como mostraremos a seguir.
A Política Burguesa e a Derrota da Comuna
A política proletária da revolução comunal foi derrotada pela política burguesa do governo francês, que usou o exército, outra instituição burguesa, para coordenar um massacre (Michel, 1971a; Lissagaray, 1995). Kropotkin assim descreve a vingança da burguesia:
“Depois de ter trancado o povo de Paris e fechado todas as vias de saída, o governo de Versalhes soltou os soldados sobre ele; soldados brutalizados pela bebida e pela vida do quartel, aos quais tinha sido publicamente dito que dessem cabo ‘dos lobos e suas crias’. [...]. E após essa orgia louca, essas pilhas de cadáveres, esse total extermínio, veio a vingança mesquinha, os ferros no porão do navio, os golpes e insultos dos carcereiros, a semi-inanição, todos os refinamentos de crueldade” (2011, p. 120).
Na peça teatral de Bertolt Brecht, ele coloca na boca do comunardo Langevin:
“Deslescluze foi morto na Praça do Château d’Eau. Vermorel está ferido. Varlin combate na Rua Lafayette. A carnificina é tal na Estação do Norte que as mulheres precipitam-se para a rua, esbofeteiam os oficiais e vão elas próprias enconstar-se à parede” (Brecht, 1981, p. 123).
Mas antes de conseguir sua vitória sobre os comunardos – bem como depois – a burguesia utilizou várias de suas instituições e classes auxiliares aquarteladas nelas para combater a Comuna, na França e no exterior. Os “grandes” literatos fizeram toda uma campanha e luta cultural contra a revolução comunal (Lidski, 1971; Vallés, 1992), e nisso eram acompanhados pelos “pequenos”. Na época se lia o que o famoso literato Gustave Flaubert escrevia sobre a Comuna: “A Comuna reabilita os assassinos, assim como Jesus perdoava os ladrões, e pilha as mansões dos ricos porque aprenderam a maldizer Lázaro, que era não um mau rico, mas simplesmente um rico” (Flaubert, 1992, p. 198). Ele afirma que odeia a democracia (p. 198) e diz que o remédio é acabar com o sufrágio, “a vergonha do espírito humano”, onde um elemento domina os outros, ou seja, o número passa por cima do espírito, instrução, raça e até mesmo do dinheiro (Flaubert, 1992, p. 203). Mas Flaubert não estava sozinho, inúmeros outros e tão famosos quanto ele mostraram de que lado estavam no final das contas (Lidski, 1971; Vallés, 1992). A imprensa em Paris, ainda sob domínio da burguesia, manifestava sua perspectiva burguesa:
“Efetivamente, usando do seu pleno direito de escritores num país livre, as redações de trinta jornais parisienses, que tinham visto as intenções socialistas do novo governo, entenderam dever protestar contra a convocação do povo às eleições comunais, alegando que o único poder constituído com direito de fazer essa convocação era a Assembleia nacional, e apreciando, como entendiam, os atos dos insurgentes” (Pinheiro Chagas, s/d [1872], p. 102).
Esse jornalista português partidário da burguesia expressa seu apoio e concordância com os jornalistas parisienses, a reação interna e externa se complementam e unificam sua voz usando a imprensa, outra instituição burguesa, para manifestar sua luta cultural contra a Comuna de Paris. Porém, este é apenas um breve apanhado das inventivas das instituições burguesas contra a revolução comunal.
Assim, a política burguesa conseguiu suplantar a política proletária e um dos grandes motivos para isso não foi a fraqueza dos comunardos e sim a não insurgência do resto do proletariado francês e em outros países, apesar das experiências comunardas em outras cidades, como em Lyon, Saint-Etienne, Creusot, Marselha, Toulose e Narbonne (Lissagaray, 1995; Michel, 1971b; Ollivier, 1971). Essas outras experiências comunardas foram derrotadas com maior rapidez e não tiveram a abrangência e duração da Comuna de Paris. O poder financeiro, as forças repressivas, junto com as demais instituições burguesas, agem em bloco para combater os comunardos que acabaram ficando isolados, apesar dos apoios externos, sem grande força e sem poder oferecer ajuda direta. As instituições burguesas – especialmente, mas não unicamente, o estado burguês – conseguiram realizar a contrarrevolução e, assim, retomar o domínio destas instituições, o que significa a retomada da supremacia da política burguesa.
Nesse contexto, a revolução comunal foi prematura e de um espírito prometéico de sacrifício pela humanidade e o banho de sangue mostrou que o vermelho da vitória pode ser o vermelho da derrota, mas, no futuro, o vermelho da derrota pode ser o vermelho da vitória. O exemplo da Comuna de Paris abre campo para novas experiências revolucionárias, em muito melhores condições, embora ainda em situação desfavorável, que, no entanto, abrem novas perspectivas e oferecem novas lições, que, hoje, abrem espaço para uma transformação radical das relações sociais no sentido da autogestão social, quando o domínio do capital e desenvolvimento tecnológico se generalizam mundialmente e, contraditoriamente, permitem a revolução mundial. Não pode haver cerco contrarrevolucionário se não houver centro revolucionário.
Considerações Finais
O significado político da Comuna de Paris foi, enfim, a primeira demonstração revolucionária da política proletária, da forma de autoemancipação proletária (Marx, 2011), da autogestão das lutas que gera a autogestão social. A experiência comunarda foi execrada pela burguesia, caluniada pela intelectualidade, menosprezada pela burocracia, mas elogiada e celebrizada pelo proletariado e seus aliados, bem como por aqueles que expressam seus interesses. A Comuna de Paris manifestou um dos capítulos mais belos e mais feios da luta de classes entre burguesia e proletariado, belo pela ousadia e novo mundo esboçado, feio pela derrota e carnificina dos proletários parisienses. Nas ruas de Paris, mas também nos outros lugares do mundo, naquela época, mas ainda hoje, a Comuna é palco de luta de classes. Hoje a luta se dá em torno de sua interpretação, uns buscando se apropriar dela para justificar suas práticas e objetivos burocráticos, outros buscando resgatá-la para mostrar a possibilidade da emancipação humana.
A Comuna de Paris mostra que a política proletária caminha para o processo revolucionário e sua explosão significa a emergência do extraordinário, da historicidade, da transformação total. Por isso Marx afirmou que devido a ela “conquistamos um novo ponto de partida de uma importância histórica universal” (Marx, 1979, p. 23). A Comuna de Paris manifestou na prática o desejo (consciente ou inconsciente) de liberdade, de libertação, de transformação do cotidiano. O desejo de “mudar a vida”, como dizia Rimbaud, um dos poucos artistas que ficaram ao lado da Comuna e por isso se preocupou com as crianças, as mulheres, a totalidade.
A Comuna de Paris foi uma revolução proletária inacabada, mas não uma revolução burguesa, parcial, meramente política, foi uma revolução social, total. Mostrou na prática o que Marx já havia colocado na teoria: a autoemancipação proletária significa a emancipação humana. A ruptura revolucionária realizou a utopia e a negação do existente, mostrou a historicidade e finitude do capitalismo. Mostrou, também, a práxis revolucionária, o processo de espontaneidade revolucionária e a emergência do novo. As palavras de um comunardo mostra a antítese entre a política proletária e a política burguesa, entre o velho e novo, o pensamento conservador e o pensamento revolucionário:
“Em 1871, a Comuna de Paris não é senão – e segundo proclama de maneira algo grandiloquente um de seus mais hábeis ‘gerentes’, o jornalista Félix Pyat – um ‘poder natural, espontâneo, nem falseado, nem forçado, nascido da consciência pública da ‘vil multidão’ provocada, atacada e levada à situação de legítima defesa; um poder que nada deve à influência dos nomes, à autoridade das glórias, ao prestígio dos chefes, ao artifício dos partidos...’ Em nome do caráter popular da revolução comunista, Pyat rejeita implicitamente, como vemos, qualquer possibilidade de diferenciação entre a natureza do poder revolucionário e a maneira de exercê-lo. Sugere uma democracia total em que o povo administra diretamente as instituições por ele criadas no movimento da revolução, dispensando qualquer espécie de mandatários ou hierarquia” (Decouflé, 1970, p. 75).
Unificou projeto revolucionário e prática revolucionária, totalidade e historicidade[12]. Provou que a revolução é possível, mesmo nas condições mais adversas, o que deveria servir de alerta para aqueles que imaginam a revolução num futuro longínquo. Estes apenas mostram sua incapacidade de pensar além do horizonte, pois seus desejos estão ofuscados pelo horizonte burguês do qual não conseguem se livrar.
Assim, a revolução comunal contribuiu com novas revoluções, as do século 20, na Rússia, Alemanha, Hungria, Itália, Espanha, Portugal, Polônia e diversos outros países e em diversos momentos da história do capitalismo. As mudanças do capitalismo trouxeram novos problemas apenas esboçados no caso da Comuna de Paris, tal como a burocracia como classe social que busca substituir o proletariado, mas também trouxeram novas lições e produziram novas relações sociais em uma situação de capitalismo mais desenvolvido, tal como a emergência dos conselhos operários e a luta contra a burocracia.  
Assim, hoje, a Comuna de Paris continua sendo objeto de disputas, de luta de classes e prova, mais uma vez, a necessidade de uma ampla luta cultural que abarque a totalidade das relações sociais do presente e do passado, incluindo a necessidade da memória histórica das lutas proletárias e outras classes exploradas e grupos oprimidos. Ela é fonte de inspiração e deixa o exemplo da percepção da necessidade e potencialidade do novo. A Comuna de Paris é uma ponte entre o passado e o futuro, pois mostra a potencialidade do futuro no passado, inspirando o presente a libertar suas potencialidades e realizar suas promessas. O que a Comuna de Paris não foi, mas anunciou, se concretiza no futuro e germina no presente.



Referências
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. O Significado Político da Comuna de Paris. Revista Em Debate, num. 06.





[1] Aqui usamos o conceito de instituição como forma organizacional burocrática, ou seja, toda organização burocrática é uma instituição e o estado é a principal instituição da sociedade burguesa. Nesse sentido, tal como coloca Poulantzas: “As instituições, consideradas do ponto de vista do poder, somente podem ser relacionadas às classes sociais que detêm poder. Esse poder das classes sociais está organizado, no seu exercício, em instituições específicas, em centros de poder, sendo o Estado, nesse contexto, o centro do exercício do poder político” (Poulantzas, 1978, p. 56). O Estado cria ou incentiva a produção de diversas outras instituições que realizam um processo de mediação entre ele e as classes sociais, indivíduos, etc., tais como partidos, sindicatos, igrejas, etc.
[2] Não é possível, por questão de espaço, aprofundar o conceito de classes sociais e alguns conceitos relacionados aqui utilizados, tal como classes auxiliares, burocracia, etc. Para isso remeto a uma bibliografia que discute e define tais conceitos (Viana, 2011b; Viana, 2007; Viana, 2011a). Sinteticamente podemos dizer que as classes auxiliares, no capitalismo, são formadas por trabalhadores assalariados improdutivos que exercem atividades cuja finalidade é a reprodução das relações de produção capitalistas e, entre estas, há a burocracia, classe social que exerce o papel de dirigente nas instituições sociais existentes e, portanto, realiza um prática conservadora e reprodutodas das instituições voltadas para a reprodução das relações de produção capitalistas.
[3] No chamado campo da “esquerda”, essa posição é defendida pela socialdemocracia e, de forma mais moderada, pelo leninismo. Obviamente que ambas não expressam os interesses de classe do proletariado e sim da burocracia como classe auxiliar da burguesia.
[4] Obviamente existiam outras classes participando da luta e ficando sob hegemonia proletária ou sob hegemonia burguesa. Sem dúvida, as classes desprivilegiadas tendem a se aliar ao proletariado e é por isso que Marx, discutindo a questão camponesa, diz que sua hegemonia expressa os interesses dos camponeses e de todos os elementos “sãos” da sociedade (Marx, 2011). Assim, o proletariado “ao contrário de junho de 1848, quando tinha ‘todas as classes sociais contra si’ (Marx), em 1871 ele conta com o apoio da pequena burguesia e até mesmo do lumpenproletariat. Quanto ao campesinato, seja ele republicano ou chouanne, quer apenas ir a Paris, salvaguarda da França e centro de todas as resistências. Daí o êxito fulgurante da insurreição de 18 de março de 1871” (Guillerm e Bourdet, 1976, p. 110).
[5] Engels (1986) abriu brecha à deformação do pensamento de Marx ao escrever o prefácio ao livro A Guerra Civil na França e seu descuido formal e incompreensão do significado profundo da Comuna de Paris e do pensamento de Marx, destacando, o que será reproduzido por Lênin, a elegibilidade e salários de operários para os funcionários e deixando de lado aspectos essenciais apresentados por Marx, especialmente a responsabilidade, mas também os demais aspectos.
[6] “A liberdade total confiada aos meninos não foi um retorno à selvageria. Ao contrário, a Comuna, fiel à autogestão, deixou às municipalidades distritais (realidade viva na época, podendo ser traduzidas por comitê de bairro), o cuidado de promover a instrução pública, não para se furtar à tarefa, mas para confiá-la às massas” (Guillerm e Bourdet, 1976, p. 112).
[7] “A Comuna – exclamam – pretende abolir a propriedade, base de toda civilização! Sim, cavalheiros, a Comuna pretendia abolir essa propriedade de classe que converte o trabalho de muitos na riqueza de alguns poucos. A Comuna aspirava à expropriação dos expropriadores. Queria tornar uma realidade a conversão da propriedade individual, transformando os meios de produção – a terra e o capital, que hoje são fundamentalmente meios de escravização e de exploração do trabalho – em instrumentos do trabalho livre e associado. Porém, isso é o comunismo, o comunismo ‘impossível’!” (Marx, 2011, p. 22).
[8] Para uma discussão entre a diferença entre pessoas de caráter rebelde e de caráter revolucionário, cf. Fromm, 1986.
[9] “O que faltou principalmente à Comuna foi um partido fortemente organizado, do qual o programa fosse a expressão das massas proletárias” (Luquet, 1968, p. 41); “a capacidade guerreira de um exército exige sobretudo a existência de um aparelho de direção regular e centralizado” (Trotsky, 1968, p. 207). “A falta de um líder, natural ou não, foi crucial. Eleito presidente, Charles Beslay, engenheiro, 75 anos, digno e moderado, não detinha praticamente qualquer autoridade executiva: a Comuna pretendia governar Paris por meio de comitês democráticos, onde personalidades dominadoras não teriam vez. Pode-se especular sobre o que aconteceria caso um Robespierre, ou um Lênin, tivesse surgido – a Comuna é um dos raros episódios revolucionários que não suscita a lembrança de vultos heroicos ou carismáticos. Se o maior exemplo de julgamento equivocado que ela nos legou foi a decisão de deixar incólume o Banque de France, seu grande azar terá sido a ausência de Auguste Blanqui – trancafiado em Toulon, longe o bastante para não causar problemas” (Christiansen, 1998, p. 279). Na perspectiva burocrática, o mérito se torna demérito. Seria possível citar inúmeros outros exemplos de concepções burocráticas colocando a necessidade de direção, burocracia. A interpretação deformadora não é só da Comuna, mas também das análises de Marx sobre a Comuna: “baseando-se na experiência da Comuna, Marx e Engels expuseram com maior força ainda a necessidade de criar um partido proletário forte, centralizado e combativo” (Sovolev, 1946, p. 168). Marx nunca afirmou isso, aliás, nunca defendeu nem sequer criação de partido, no sentido moderno da palavra, seja de que tipo fosse.
[10] Isso foi percebido por diversos comunardos, incluindo Eugène Varlin (Varlin, 1977). Claro que a luta cultural deve ser anterior ao processo revolucionário e continuar com o seu desencadeamento. Essa observação, obviamente, nada tem a ver com as concepções individualistas burguesas que querem supervalorar indivíduos – no caso Varlin – e desviar a percepção do caráter de classe da luta, com objetivos e concepções simultaneamente individualistas e burguesas.
[11] A perspectiva burocrática é outra. Lênin saldou o “salário de operário” como uma das questões mais fundamentais para a passagem do capitalismo para o comunismo, ou seja, a reprodução de relações sociais burguesas (Lênin, 1987; Viana, 2011c).
[12] “Totalidade e historicidade específica estão intimamente ligadas ao projeto revolucionário e permitem assim atribuir à revolução uma fisionomia individual na espessa massa dos processos coletivos de transformações sociais e mentais, alguns dos quais coexistem no projeto revolucionário com este ou aquele aspectos das mesmas” (Decouflé, 1970, p. 35).

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