Materialismo Histórico e História do Cinema
Nildo Viana
Resumo:
A historiografia tradicional do cinema é
descritiva e pouco contribui para um entendimento das mutações do processo de
produção dos filmes e dos conteúdos veiculados por eles. Os poucos estudos de
orientação marxista sobre o cinema padecem de problemas metodológicos e
teóricos devido a influência da teoria do reflexo de Lênin e da estética
realista derivada dela. O materialismo histórico assume, portanto, um papel
fundamental para ultrapassar tantos os limites da historiografia tradicional do
cinema quanto as contribuições pretensamente marxistas nesta área. As
categorias de totalidade e determinação fundamental e os conceitos de
capitalismo, luta de classes, ideologia, entre outros, são a chave para a
produção de uma reconstituição histórica do cinema tendo por base o
materialismo histórico.
Palavras-Chave:
História do Cinema, Materialismo Histórico, Filme, Totalidade, Ideologia.
Abstract: The traditional
historiography of the movies is descriptive and little contributes to an
understanding of the mutations of the process of production of the films and of
the contents transmitted by them. The few studies of Marxist orientation on the
movies suffer of methodological and theoretical problems due to influence of
the theory of the reflex of Lênin and of her derived realistic aesthetics. The
historical materialism assumes, therefore, a fundamental paper to surpass so
many the limits of the traditional historiography of the movies as the
contributions supposedly Marxists in this area. The totality categories and
fundamental determination and the concepts of capitalism, fight of classes,
capital accumulation, ideology, among other, they are the key for the
production of a rebuilding history of the movies tends for base the historical
materialism.
Word-keys: History of the
Movies, Historical Materialism, film, totality, Ideology.
O presente texto visa discutir, do ponto de vista teórico-metodológico, a
história do cinema numa abordagem marxista. Isto significa, em primeiro lugar,
que não se trata de re-apresentar uma história do cinema, mas sim discutir, por
um lado, a historiografia tradicional do cinema e, por outro, as contribuições
de pesquisadores influenciados pelo marxismo e a contribuição teórico-metodológica
do materialismo histórico-dialético para a análise do cinema. Iniciaremos
apresentando uma breve reflexão sobre a relação entre história e cinema, para
depois introduzir a questão da historiografia tradicional do cinema e seus
limites. Após esta parte mais geral, iremos apresentar as concepções ditas
marxistas e sua análise do cinema, para, posteriormente, apresentar uma reflexão
sobre a contribuição do materialismo histórico ao estudo da história do cinema.
Assim, o percurso deste trabalho aponta para a necessidade de uma revisão da
historiografia do cinema e de se produzir um arcabouço teórico-metodológico
para tal, cuja base é o materialismo histórico, possibilitando assim a produção
de uma nova perspectiva para a história do cinema.
História e Cinema
A relação entre história e cinema pode ser abordada sob variadas formas.
O historiador Marc Ferro (1992), autor de vários artigos sobre cinema que
depois se tornou cineasta-documentarista, discute as formas de se entender a
relação entre cinema e história. Segundo este autor, é possível compreender
esta relação a partir de três prismas: o do cinema como agente da história, o da
leitura cinematográfica da história e o da leitura histórica do cinema. O
cinema como agente da história busca abordar a influência social do cinema,
destacando o momento quando se torna instrumento de propaganda política, tal
como ocorreu durante o nazismo na Alemanha e o Stalinismo na Rússia. A leitura
histórica do filme, que, segundo Ferro, permite “atingir zonas não visíveis do
passado das sociedades”, pois pode revelar “as autocensuras e lapsos de uma
sociedade, de uma criação artística”, ou “o conteúdo social da prática
burocrática na época stalinista”. Já a leitura cinematográfica da história “coloca
para o historiador o problema de sua própria leitura do passado” (Ferro, 1992,
p. 19). Embora coloque estas questões, Ferro não as desenvolve, apenas
exemplifica com suas análises de filmes. No entanto, o que observamos em Ferro
é a visão do cinema enquanto documento histórico, isto é, como fonte para se
repensar a história social, bem como o papel do cinema enquanto interventor no
processo histórico.
Antônio Costa já coloca a relação entre história e cinema de forma diferente,
embora inspirado em Marc Ferro. Para ele, as relações entre história e cinema
podem ser resumidas em três formas: a) a história do cinema, que é abordada
pela historiografia cinematográfica, que é uma “disciplina com metodologia
própria e um objeto de investigação, como outras histórias setoriais” (Costa,
1989, p. 29); b) a história no cinema, que significa conceber os filmes como
documentos históricos, útil para os historiadores que o consulta junto com
outras fontes; c) O cinema na história, que toma os filmes enquanto agentes de
propaganda política e difusão de ideologia, isto é, enquanto instrumentos
capazes de intervenção social.
As observações de Ferro e Costa são interessantes, pois colocam em
evidência o processo no qual o filme exerce influência social e seu caráter de
documento histórico. Mas o terceiro elemento colocado por Costa, a da
disciplina “história do cinema”, acaba sendo de fundamental importância,
inclusive para o tratamento do cinema na história. É aqui que devemos colocar em
questão o processo de pesquisa do cinema e ao fazê-lo, passamos a conceber qual
é o papel social do cinema, bem como o seu processo de constituição.
No entanto, o processo de produção social do filme aparece relativamente
ausente na abordagem dos dois autores citados. De nossa parte, o nosso
interesse, no presente texto, é a história do cinema, isto é, o processo
histórico de constituição e evolução dos filmes e os modos de se buscar
reconstituir esta história. Isto traz diversas problemáticas, entre as quais a
questão da historiografia do cinema e suas limitações; a questão metodológica;
a própria concepção do que seja cinema e suas determinações e características.
O filme como documento histórico é importante, bem como a influência social do
filme e dedicaremos alguns apontamentos sobre isso no final do presente texto,
pois consideramos que somente através da percepção da produção social do filme
é que podemos avaliar adequadamente estes aspectos.
A historiografia do cinema deveria ter refletido e avançado nas questões
de caráter teórico-metodológico, o que, no entanto, não ocorreu. Os
historiadores do cinema são inúmeros. Temos as histórias clássicas do cinema de
Sadoul e outros, bem como autores menos conhecidos que trabalharam a história
do cinema. Alguns se dedicaram à história geral do cinema, outros a história
nacional (história do cinema norte-americano, italiano, espanhol, etc.), ou em
aspectos ainda mais particulares (história do cinema mudo, história dos filmes
de faroeste, história do expressionismo alemão, etc.). No entanto, a grande
maioria dos livros sobre história do cinema não foi produzida por historiadores
e sim por profissionais da área de cinema e de outras áreas. Isto talvez
explique parcialmente o estado rudimentar, do ponto de vista teórico e
metodológico, da historiografia do cinema.
Se tomarmos a História do Cinema
Mundial, de Georges Sadoul (1963), teremos o exemplar típico da
historiografia do cinema e de seus limites. Nesta obra, considerada clássica,
apenas temos a sucessão cronológica dos filmes, algumas breves informações
sobre o contexto de sua produção e descrições sucintas dos conteúdos dos
mesmos. O mesmo se pode dizer do pequeno livro de Gérard Betton (1989), História do Cinema, mais resumido,
devido ao seu caráter de livro de bolso em apenas um volume, ao contrário do
extenso livro de Sadoul. A lista poderia ser ampliada com o livro de Román
Gubern (1982), História del Cine;
Athur Knight (1970), Uma História
Panorâmica do Cinema; passando também por obras que apresentaram aspectos
mais específicos da história do cinema, tal como História Social do Cinema Americano, de Robert Sklar (1978), um
livro mais ousado, no sentido de estabelecer conexões extra-cinematográficas de
forma estrutural, mas que não consegue ir muito longe, por deficiências
teórico-metodológicas.
Além destes, poderíamos citar as obras sobre cineastas, movimentos,
gêneros ou épocas. No entanto, as limitações para uma abordagem histórica do
cinema já se colocam ao escolher um determinado cineasta para análise (Chaplin,
Griffith, Eisenstein, Orson Welles, etc.), inclusive cai na ilusão da autoria
da produção cinematográfica pelo cineasta. Aliás, aqui se revela um dos maiores
problemas da historiografia do cinema feita por não historiadores ou demais
cientistas sociais: a sua submissão a uma ideologia cinematográfica, da qual
trataremos adiante. Os livros sobre movimentos e tendências cinematográficas
(expressionismo alemão, neo-realismo italiano, etc.) também apresentam os
mesmos problemas de falta de base teórico-metodológica. Os livros sobre
determinadas épocas do cinema também padecem da mesma limitação, tal como
podemos observar no exemplo dos livros de Veillon sobre história do cinema
americano. O que se vê em O Cinema
Americano dos Anos Trinta (1992) e O
Cinema Americano dos Anos Cinqüenta (1993) é um desfile descritivo tomando
como parâmetro os cineastas. O mesmo ocorre nas obras dedicadas a determinados gêneros
cinematográficos, como o Western, o Noir, etc., que não ultrapassam o
caráter descritivo e/ou apologético, com raras exceções, que deixaremos para
adiante.
Assim, o grande problema da historiografia tradicional do cinema é o
fetichismo do cinema. A concepção fetichista do cinema se revela na idolatria:
o cinema, um produto humano (e, portanto, social e histórico, o que traz
inúmeras outras implicações) aparece como algo com vida própria, autônomo,
independente. O criador se rende à sua criatura, que passa a ter uma “beleza
própria”, uma “essência”, uma qualidade mágica. Na verdade, o fetichismo do
cinema é nada mais do que o fetichismo da arte em uma forma particular. Segundo
Bourdieu:
“O produtor
do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção enquanto
universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir
a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe
enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou
seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição
e da competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a
ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas
também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da
obra” (Bourdieu, 1996, p. 259).
Assim, temos a criação do fetichismo, ou illusio, para usar linguagem de Bourdieu:
“Cada campo
(religioso, artístico, científico, econômico, etc.), através da forma
particular de regulação das práticas e das representações que impõe, oferece aos
agentes uma forma legítima de realização de seus desejos, baseada em uma forma
particular de illusio. É na relação entre o sistema de
disposições, produzido na totalidade ou em parte pela estrutura e o
funcionamento do campo, e os sistemas das potencialidades objetivas oferecidas
pelo campo que se define em cada caso o sistema das satisfações (realmente
desejáveis) e se engendram as estratégias razoáveis exigidas pela lógica
imanente do jogo (que podem estar acompanhadas ou não de uma representação explícita
do jogo)” (Bourdieu, 1996, p. 259).
Estas colocações de Bourdieu nos ajudam a entender o fetichismo do
cinema. São os agentes envolvidos no processo de produção e reprodução de
determinada forma artística, que criam o valor da obra de arte, e, mais que
isso, criam a adesão, as crenças, o interesse, os critérios de análise de
“competência estética”, etc. Esta religião laica, secular, se fundamenta muito
mais em crenças do que em algo dotado de racionalidade, cristalizando e
canonizando valores culturais que passam a ser tidos como naturais, essenciais,
e, na maioria das vezes, inacessíveis aos não-iniciados, demasiadamente
“brutos” e “ignorantes” para entender a magnitude de uma obra de arte, ou de um
filme, para ser mais específico.
Depois dos especialistas e entendidos colocarem os meros mortais em seu
devido lugar, estes se recolhem modestamente ao seu lugar, e assume sua
ignorância e sua vontade de sair do mundo das trevas e um dia chegar ao mundo
das luzes do saber artístico, ou, mais especificamente, do saber
cinematográfico. Claro que os agentes de produção e reprodução do cinema
compartilham e reproduzem tudo isso e mesmo alguns meros mortais e
não-iniciados que, bastando ter um pouquinho de leitura sobre a arte em
questão, já se sentem do seleto clube dos competentes para falar para seus
oponentes “ignorantes” que seu gosto artístico é tão rude e ruim, “por que não
entendem disso”, transformando em questão de “entendimento” o que é da esfera
dos valores (Viana, 2002a).
O fetichismo do cinema transforma o filme em algo valoroso, grandioso,
espetacular. Este processo de produção de idolatria é realizado pelos agentes
de produção e reprodução do cinema. No entanto, uma vez que estes agentes
produzem suas representações ilusórias sobre sua própria prática, eles abrem espaço
para os ideólogos sistematizarem estas representações cotidianas e transformá-las
em ideologias, isto é, uma falsa consciência sistematizada, sob linguagem
científica (ou filosófica). Este é o mesmo processo que Marx analisou no que se
refere ao processo de produção capitalista:
“É (...)
igualmente natural que os agentes reais da produção se sintam completamente à
vontade nessas formas alienadas e irracionais de capital – juros, terra –
renda, trabalho – salário, pois elas são exatamente as configurações da
aparência em que eles se movimentam e com as quais lidam cada dia. Por isso é
igualmente natural que a Economia vulgar, que não é nada mais do que uma
tradução didática, mais ou menos doutrinária, das concepções cotidianas dos agentes
reais da produção, nas quais introduz certa ordem compreensível, encontre,
exatamente nessa trindade em que todo o nexo interno está desfeito, a base
natural e sublime, acima de toda e qualquer dúvida, de sua jactância
superficial. Ao mesmo tempo, essa fórmula corresponde ao interesse da classe
dominante, à medida que ela proclama e eleva a dogma a necessidade natural e
legitimação eterna de suas fontes e rendimentos” (Marx, 1988, p. 262).
Assim, devemos distinguir entre as representações cotidianas que os
agentes de produção e reprodução do cinema produzem, e a transformação destas
representações em ideologia. A partir dos agentes de produção e reprodução do
cinema e de suas representações ilusórias, se erigiu um conjunto de ideologias
cinematográficas que, no seu período de formação, foram produzidas principalmente
por alguns dos próprios agentes de produção do cinema. Posteriormente, também
ideologicamente, estas concepções passaram a ser denominadas “teorias do
cinema”, sendo, inclusive, título de várias obras (Stam, 2003; Tudor, 1985; Andrew,
2002; Kracauer, 1989; Aristarco, 1961). Tendo em vista que o número de
ideologias cinematográficas é bastante extenso, iremos abordar apenas algumas
delas – algumas sendo apenas citadas, outras sendo analisadas – e depois
faremos uma avaliação geral destas ideologias.
As ideologias cinematográficas nascem com a própria origem do cinema. A
partir do aparecimento do cinema os próprios envolvidos no seu processo de
produção passam a elaborar teses formalistas, tecnicistas e normativas sobre o
cinema. O nascimento do cinema provoca as primeiras observações sobre este novo
fenômeno, mas as reflexões mais sistemáticas surgem com os próprios agentes da
produção cinematográfica.
Segundo Aristarco, “o primeiro e verdadeiro iniciador da teoria
cinematográfica é um italiano: Ricciotto Canudo” (1961, p. 101). O seu
“Manifesto da Sétima Arte”, na qual afirma que o cinema é o resumo de todas as
artes, é uma das primeiras manifestações de uma ideologia cinematográfica. Além
dele, Louis Delluc e Germaine Dulac, não somente pioneiros na chamada “crítica
cinematográfica” como cineastas experimentais do movimento do cinema
impressionista francês, fizeram várias reflexões técnicas sobre a “nova arte”, e
também fizeram parte da primeira safra de ideólogos do cinema na França.
Temos ainda a vertente russa de Vertov-Kulechov com a ideologia do
cine-olho. Estes dois pioneiros do cinema russo, juntamente com outros
cineastas russos, produziram uma das mais influentes ideologias
cinematográficas, que recebe vários nomes, tal como cine-verdade, cine-câmara,
cine-olho ou, de forma mais conhecida, “realismo socialista”. A idéia básica do
movimento é a de reproduzir “a vida como ela é”. Todas essas ideologias cinematográficas,
e outras do período, eram, entretanto, bastante incipientes e não tiveram
grande influência posterior, com exceção do “realismo socialista”, que, no
entanto, terá mais influência a partir da tendência de Eisenstein, que irá se
diferenciar da tendência de Vertov.
Entre os mais destacados deste período de nascimento das ideologias
cinematográficas temos Sergei Eisenstein e por isso iremos abordar sua
concepção de forma mais detalhada. Ele se destaca como um artífice do
cinema-montagem. Embora fazendo parte do conjunto de cineastas e ideólogos
sobre cinema da URSS, ele se distinguia dos demais na sua concepção que
posteriormente foi, ideologicamente, denominada “realismo socialista”. Por um
lado, tínhamos a ideologia do cinema-verdade, ou cinema-olho. Esta concepção se
fundamentava num realismo pobre, partindo do pressuposto de que o cinema deve
simplesmente manifestar a realidade. Eisenstein, ao contrário, partia de uma
visão diferente de realismo. Ele defendia o cine-punho em contraposição ao cine-olho.
Ele escreveu o seguinte sobre a concepção de Vertov:
“O Kinoglaz
[cine-olho – NV] é não só o símbolo de uma visão, mas também o de uma
contemplação. Mas nós não devemos contemplar, mas agir. Não nos é necessário um
‘cine-olho’ mas um ‘cine-punho’. O cinema soviético deve rachar cabeças! E não
é ‘pelo olhar reunido de milhões de olhos que nós lutaremos contra o mundo
burguês (Vertov) – plantar-nos-ão a seguir milhões de lampiões sob esses
milhões de olhos! Rachar cabeças com um cine-punho, nelas penetrar até à
vitória final, e agora, diante da ameaça de contaminação da revolução pelo
espírito ‘cotidiano’ e pequeno-burguês, rachar, mais que nunca! Viva o
cinema-punho” (apud. Ramos, 1981, p. 69).
A base da concepção eisensteiniana é a ideologia leninista do reflexo, segundo
a qual o conhecimento é um reflexo da realidade, concepção compartilhada por
Vertov e os outros ideólogos cinematográficos russos do período. É por isso que
a idéia do cine-olho foi desenvolvida por Vertov. Segundo este,
“A objetiva é
exata, infalível e deve ser colocada no centro dos acontecimentos, dos fatos
reais, rodados fora do estúdio, sem intervenção de atores, sem cenários,
argumentos ou planificações. Eu sou o olho cinematográfico” (apud. Aristarco,
1961, p. 160).
Sua concepção nega o drama, considerado arma do capitalismo:
“O drama
cinematográfico e a religião são armas mortais nas mãos dos capitalistas. O
argumento é uma fábula acerca de nós inventada pela literatura. Abaixo a
fábula-argumento! Viva a vida tal como é! O ‘Kino-glaz’ é ‘Kino-Pravda’,
‘cine-verdade’”(apud. Aristarco, 1961, p. 160-161).
Apesar da base ideológica ser a mesma, a ideologia leninista do reflexo, existia
uma forte diferença entre as duas visões. A visão de Vertov é contemplativa, o
cine-olho, tal como denunciado por Eisenstein, enquanto que este pensava na
intervenção, o cine-punho. A raiz da diferença está na influência de Pavlov
sobre Eisenstein. O psicólogo russo Pavlov produziu a ideologia dos reflexos
condicionados, um derivado da ideologia leninista do reflexo e ficou famoso por
suas experiências com cachorros.
“(..) a
importância fulcral da montagem em Eisenstein (...) tem também a ver com as
concepções que, então, a psicologia experimental fazia do psiquismo humano.
Quando Eisenstein afirmava que ‘na obra de arte (...) é, antes de tudo, um
trator que trabalha a fundo o psiquismo’, ele baseava-se numa visão de homem
que era, essencialmente, a da escola russa de Pavlov, então considerada
‘oficial’ pelo poder soviético. A Pavlov se devem algumas descobertas
fundamentais em torno da ‘teoria dos reflexos condicionados’. Segundo ele seria
possível controlar e mesmo determinar reações consciente e, à primeira vista,
voluntárias, mercê de estímulos e condicionamentos nervosos apropriados”
(Ramos, 1981, p. 23).
É por isso que Eisenstein considera que “uma obra de arte, entendida
dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na
mente do espectador” (Eisenstein, 2001, p. 21). A montagem proposta por
Eisenstein, nas suas variadas formas, busca justamente provocar reações
emocionais no público, intervindo, sendo um cine-punho e não apenas um
cine-olho.
A concepção eisensteiniana possui limitações tanto no nível
técnico-formal no qual move seu pensamento quanto em suas bases ideológicas.
Sem dúvida, a idéia de reflexos condicionados pode ter alguma eficácia, mas
isto depende do público e das associações que este faz e não apenas da montagem
do filme e não se pode supor uma homogeneidade do público. Em seu filme A Greve, por exemplo, temos uma montagem
que relaciona os espiões da polícia czarista com determinados nomes e significados,
tal como “macaco” e “coruja”. Ora, dependendo do público, da cultura, etc., um
macaco ou uma coruja podem simbolizar coisas diferentes do que o cineasta esperava
e por isso a mensagem de sua montagem pode ser não compreendida (a mensagem
fica incompreensível) ou mal compreendido (uma diferença simbólica pode gerar
uma interpretação contrária ao que o cineasta pretendia passar). Embora
Eisenstein tivesse a percepção disso, isto não fez com que ele alterasse sua
concepção estética.
Mas tais aspectos não são os mais importantes para nossa análise. Aqui o
que nos interessa é demonstrar que a concepção de cinema de Eisenstein é,
fundamentalmente, não uma explicação do filme e sim uma determinada concepção
normativa do que deve ser um filme, segundo suas convicções políticas e bases
ideológicas. Assim, ao invés de expressar o que é o filme, ele ofusca uma percepção
do que ele significa e ao mesmo tempo produz uma falsa consciência sistemática
sobre o cinema.
Uma outra ideologia cinematográfica que surge a partir dos anos 50, é a
que Prokop (1986) denominou “teoria do reflexo”, cujo grande ideólogo é
Siegfried Kracauer (1989). Prokop afirma que a partir dos anos 50-60 houve uma
reformulação na sociologia do filme tendo por base a desconsideração das “coerções
externas”, sem analisar as “condições estruturais”.
“De fato, a
Sociologia das décadas de 1950 e 1960, na medida em que se ocupou com o cinema,
satisfez-se em investigar as conseqüências funcionais de um fenômeno dado, do
meio de entretenimento filme. Em virtude de não inserir este fato no pano de
fundo das condições estruturais do contexto, ela tornou-se necessariamente
ultraconservadora” (Prokop, 1986, p. 43).
Prokop cita a escola “kracaueriana” e sua análise sociológica inspirada
no “espelho”. As teses básicas são: 1) A indústria cinematográfica é um meio
neutro na formação das preferências do público; 2) o público é unitário, é “o
povo”. Um exemplo desta forma de encarar o público é o livro de Karl-Heintz
Gotte, O Filme e o Caráter Nacional nos
EUA. O filme é um espelho do público (inconsciente coletivo, valores,
neuroses, caráter, etc.).
Prokop questiona esta ideologia e coloca-se contra o ponto de vista sobre
a indústria cultural que subjaz esta concepção, especialmente a afirmação de
que ela seja um meio neutro que reproduz as preferências do público. “Em vez
disso, a indústria cinematográfica incide sobre as preferências dos
consumidores de forma somente seletiva; ela assimila apenas preferências
difundidas globalmente de camadas altamente participantes” (Prokop, 1986, p.
46). A indústria cinematográfica, afirma Prokop, produz o gosto do público.
Nesta escola, principalmente por meio da revista Filmkritik, se
reproduziu a teoria do reflexo de Kracauer com sua exclusão dos fatores
estruturais, que acabou conduzindo “à tentativa de explicar os conteúdos
fílmicos discutidos a partir de um inconsciente coletivo apenas obscuramente
palpável” (Prokop, 1986, p. 47), pulsões secretas, desejos secretos, arquétipos
nacionais, preconceitos pequeno-burgueses, etc.
Da denúncia da ideologia à apologia é um passo, tal como ocorreu com o
gênero faroeste, exaltado pela revista. Prokop questiona este ponto de vista
dizendo que o faroeste foi rejeitado em 40 e 60 “por todas as camadas sociais”,
não se tratando de “sonho da alma”, tal como coloca seus apologistas, mas de
“produções secundárias, que eram vendidas no monopólio com a ajuda da ‘vendas
em bloco’, na medida em que produzidas no monopólio internacional, até mesmo
independentemente das preferências do público” (Prokop, 1986, p. 48). Esta
tendência buscava um filme “livre de ideologia” (no sentido positivista do
termo, isto é, como pensamento valorativo). A base da concepção kracaueriana é
um realismo ingênuo. Segundo ele,
“As películas
podem expor a realidade física tal como se lhe aparecer aos sujeitos que se
encontram em estados mentais extremos, gerados por sucessos como os
mencionados, por um transtorno psíquico ou por qualquer outra causa interna ou
externa” (Kracauer, 1989, p. 87).
A ideologia cinematográfica do reflexo acaba tendo uma recaída na
concepção conservadora da “aura”, no qual são os especialistas que devem julgar
o filme (Prokop, 1986). Isto é derivado da concepção de Kracauer, e nisso tal
como André Bazin, segundo a qual, é a natureza do meio e não indivíduos
particulares que serve de critério para os juízos estéticos. Desta forma, a
pergunta não gira mais em torno do gosto dos avaliadores e sim se um filme é
“genuinamente cinemático”, se “realiza as potencialidades próprias do medium” (Tudor, p. 84). Tudor critica
esta posição afirmando que não possui um caráter de maior objetividade
simplesmente por se basear nas características centrais do meio, já que este é
um critério que tem um pressuposto, que o meio é a “essência” do cinema, que,
para outros, é apenas questão periférica e, por conseguinte, continua na esfera
da subjetividade. No fundo, Kracauer, e também Bazin, se fundamentam num
realismo ingênuo, que vai ser constante na história das ideologias
cinematográficas, desde Eisenstein e o “realismo socialista”, passando pelo
realismo e neo-realismo italiano e diversas manifestações da ideologia
“realista”.
Porém, inúmeras outras ideologias cinematográficas sucederam a estas
discutidas aqui (sobre isso existe uma bibliografia relativamente abundante e
já citada, embora nem sempre crítica: Tudor, Aristarco, Stam, Andrew), mas por
questão de tempo e espaço não poderemos expor outras (e mereceria atenção
algumas ideologias, como o autorismo, o estruturalismo, etc.) e por isso
faremos um balanço geral para encerrar este tópico de nossa discussão.
As ideologias cinematográficas traduzem as representações cotidianas
ilusórias dos agentes da produção cinematográfica em linguagem
técnica-científica e as transformam, assim, em ideologias. Um dos pontos comuns
e básicos deste procedimento reside em promover um fetichismo do cinema. Tais
ideologias, como não poderia deixar de ser, estão ligadas ao processo de
mudança social, o que gera mudanças no seu interior. A sucessão de ideologias
cinematográficas reproduz, por um lado, as mudanças sociais gerais (depois da
Segunda Guerra Mundial, a “política dos autores” e o estruturalismo são
expressões da nova situação social da Europa) e as mudanças no processo de
produção e reprodução cinematográficas, e que se reforçam reciprocamente.
As ideologias cinematográficas invertem a realidade, sistematizam as representações
ilusórias dos agentes do processo de produção e reprodução do cinema e
legitimam e justificam, com discurso científico, os valores produzidos nesta
esfera. Uma vez produzidas e divulgadas, estas ideologias passam por um
processo de difusão social, atingindo principalmente as camadas mais
intelectualizadas da população, mesmo que de forma fragmentária e superficial,
que acabam reproduzindo os valores e ilusões dos produtores e reprodutores do
cinema e criando os chamados “cinéfilos”, os amantes do cinema. Isto vai, inclusive,
gerar os preconceitos intelectualistas e uma classificação social que se
pretende “objetiva” que acaba sendo dominante na sociedade. Assim, as
expressões “filmes B”, “trash”, “cult”, entre outras, não são descrições
objetivas ou classificações técnicas ou ingênuas. São, na verdade, parte do
processo de dominação cultural e da hegemonia dos valores burgueses e de suas
classes auxiliares.
Marxismo e História do Cinema
A influência do marxismo na historiografia é amplamente conhecida. Porém,
o mesmo não se pode dizer no que se refere à historiografia do cinema, o que em
parte é justificado pelo pouco desenvolvimento desta no interior da produção
historiográfica. Infelizmente, não conhecemos nenhuma obra marxista de história
geral do cinema. Além disso, os pesquisadores do cinema que se dizem marxistas
são, na maioria das vezes, reprodutores das ideologias cinematográficas, não
possuindo o postulado da autonomia metodológica do marxismo defendida por
Korsch (1977) e Lukács (1989). É por isso que estes pesquisadores caem
geralmente numa visão esteticista e elitista do cinema.
A origem desta postura esteticista e elitista do cinema por parte de
pesquisadores que se dizem marxistas se encontra na ideologia leninista. A
derrota do movimento operário na Rússia com a ascensão do bolchevismo promoveu
a transformação do marxismo de teoria em ideologia (Korsch, 1979). Este
“marxismo” transformado em ideologia é deformado e seus conceitos se
transformam em construtos, falsos conceitos. Isto ocorre com o próprio conceito
marxista de ideologia. Para Marx, a ideologia era uma forma de falsa
consciência, produzida pelos ideólogos e originada da divisão entre trabalho
manual e intelectual (Marx e Engels, 2002). Assim, a concepção de ideologia em
Marx possui, pois, um conteúdo crítico-negativo. Na visão leninista, a forma
ideológica do “marxismo” russo, a ideologia passa a ser concebida como visão de
mundo e é por isso que Lênin e seus seguidores podem postular a existência de
uma ideologia proletária, bem como ideologia burguesa e pequeno-burguesa,
assumindo caráter neutro-positivo. A partir de sua ideologia do reflexo, tese
que afirma que a realidade objetiva é refletida na consciência, Lênin apresenta
uma concepção ideológica (falsa) de ideologia:
“Numa
palavra, toda a ideologia é historicamente relativa, mas é certo que a cada
ideologia científica (contrariamente ao que acontece, por exemplo, com a
ideologia religiosa) corresponde a uma verdade objetiva, uma natureza absoluta”
(Lênin apud. Moura, 1978, p. 233).
Assim, temos a ideologia como visão de mundo que pode ser científica,
religiosa, etc. A ideologia científica possui um caráter verdadeiro. Sem
dúvida, temos aqui uma ideologia que é justificativa de outra ideologia, a da
vanguarda. Lênin postula que o proletariado não desenvolve sua consciência de
classe socialista espontaneamente, pois para chegar até a ideologia socialista
é necessário ter acesso à ciência e quem tem acesso a esta são os intelectuais
burgueses e pequeno-burgueses do partido (Lênin, 1978).
O caráter de classe desta concepção é por demais evidente: trata-se de
uma ideologia (no sentido marxista do termo, isto é, falsa consciência) da
burocracia. Daí a crítica de Pannekoek a Lênin, na qual ele afirma que sua
visão de materialismo é semi-burguesa (Pannekoek, 1973). A burocracia é uma
classe auxiliar da burguesia (Viana, 1997) e por isso ao mesmo tempo em que
busca se autonomizar e se tornar a nova classe dominante não ultrapassa certos
limites, expressando uma visão burguesa do mundo. Esta classe auxiliar
compartilha determinados valores e interesses com a burguesia e por isso a
visão cientificista e elitista dos ideólogos leninistas.
Esta concepção de ideologia vai ser homóloga à concepção de arte do
leninismo. Mas neste caso a questão é mais nebulosa, pois uma teoria da arte
não foi produzida pelos teóricos marxistas. Embora Marx e Engels tenham feito
apontamentos sobre a questão da arte e muitos outros escreveram sobre arte sob
influência do marxismo, não ocorreu nenhuma síntese que produzisse uma verdadeira
teoria da arte. Esta situação fica mais precária ainda, quando notamos que o
leninismo acabou se tornando a corrente hegemônica na disputa pela “ortodoxia”
em matéria de marxismo e a maior parte das teses sobre arte, bem como
interpretação dos textos de Marx sobre arte, ocorreu sob a visão leninista.
A visão leninista da arte carregou esta, da mesma forma que havia feito
com a ciência, de um caráter neutro-positivo e assim se aproximou (tal como já
havia feito no que se refere à ciência) das concepções burguesas (elitistas e
esteticistas), concordando com a tese ideológica da autonomia da arte. De
acordo com um ideólogo leninista:
“A base
filosófica da teoria da imagem artística radica na teoria marxista-leninista do
conhecimento. Ao investigar a essência da imagem artística, tomo como ponto de
partida a teoria do reflexo, que considera a consciência humana em seu conjunto
como uma imagem da realidade circundante, com um quadro subjetivo do mundo
objetivo. A teoria leninista do reflexo ao descobrir as leis de toda a esfera
da consciência humana em seu conjunto, fundamenta as leis específicas da
reprodução artística da sociedade” (Zis, 1976, p. 72).
Por conseguinte, tendo por base a ideologia leninista do reflexo, é
possível descobrir as “leis específicas da reprodução artística da sociedade”.
O sistema de representação por imagens é a forma específica da arte refletir a
realidade (o que mostra sua especificidade e seu caráter universal) e isto é
diferente do “método de criação artística”. Se a ideologia leninista do reflexo
coloca em evidência, no que se refere à ciência, um universal (o conhecimento
como reflexo da realidade) e um particular (as diversas ideologias), um
absoluto (o leninismo) e um relativo (as ideologias burguesas e
pequeno-burguesas), temos o mesmo na esfera da arte: ela é um reflexo da
realidade (universal) mas possui várias manifestações (particular), é um
absoluto (o realismo socialista) e um relativo (os demais métodos de criação
artística). Assim, o método artístico do realismo socialista está
“organicamente vinculado ao marxismo-leninismo”.
Esta concepção se tornou hegemônica no interior do “marxismo”, tanto do
especificamente leninista, quanto em suas versões em escolas acadêmicas. Assim,
criou-se uma interpretação neutro-positiva de arte, o que reforça o fetichismo
da arte e a visão elitista e preconceituosa, derivadas dela. Esta aproximação
entre a concepção burguesa e a concepção leninista também é a posição da
maioria dos agentes da produção e reprodução da arte, já que está de acordo com
seus interesses. Assim, todas estas concepções irão distinguir entre a “alta” e
a “baixa” cultura, as grandes obras de arte e mera produção popular ou de
“massas”. Sem dúvida, alguns colocam outras camadas de produção artística além
da visão bipolar entre boa e má arte, mas mesmo os que assim procedem fazem
apenas uma pequena concessão. A arte popular e a arte comercial não possuem um
valor tão elevado para se comparar a arte de elite e, no caso do leninismo, a
arte engajada (engajamento no sentido restrito, político-partidário, e não no
sentido amplo, isto é, comprometido com a emancipação humana).
Isto vai se refletir nas análises marxistas do cinema, que irá partir de
uma concepção neutro-positiva de cinema[1]
e, muitas vezes, se aliar às teses básicas das ideologias cinematográficas. Ao
lado disso, o elitismo e preconceito complementam grande parte de tais
análises. Um exemplo deste tipo de posicionamento pode ser visto no caso do
cineasta e crítico de cinema, Eduardo Geada. Tomemos a análise deste autor
sobre o chamado western-spaghetti para
exemplificar este tipo de discurso.
Para Geada, o western-spaghetti é, como o resto do western europeu, um
cinema de estereótipos, um “cinema industrial de protótipos que são todos do
mesmo tipo”. O seu sucesso se fundamenta na repetição sistemática dos códigos,
bem como pelo uso exaustivo da mesma retórica sonora e visual. Este autor
acrescenta que as indústrias cinematográficas italianas e espanholas, tal como
no resto da Europa, não são mais que sucursais de Hollywood, com suas receitas
mecânicas que proporciona alta rentabilidade.
“A produção
em série de filmes estereotipados, como é o caso do western-spaghetti,
condiciona o mercado consumidor até as fronteiras da saturação partindo do
princípio, empiricamente aceite, de que o espectador médio procura no cinema um
divertimento digestivo que obedece a uma operação de reconhecimento (ver aquilo
que já se conhece empresta uma falsa sensação de inteligência) e nunca se
organiza segundo um trabalho produtivo de conhecimento (reflexão ativa e
crítica sobre o material fílmico proposto). Para que tal operação de
reconhecimento seja extremamente acessível a qualquer espectador, o cinema
‘popular’ utiliza todo um arsenal de chavões típicos que cristalizam, ao nível
da imagem e do som, por um lado, e ao nível da proposta ideológica, por outro,
num tecido iconográfico e mitológico que constitui o verdadeiro suporte e a
matéria-prima dos filmes” (Geada, 1978, p. 21).
Embora Geada reconheça que sua análise seguinte será “esquemática”,
podemos observar vários problemas tanto na citação acima quanto em sua análise
posterior. A acusação de maniqueísmo, esquematismo, formalismo, é complementada
por observações a respeito do uso de “armas e acontecimentos” não pertenciam à
“mitologia clássica do filme do Oeste americano”. Para Geada, a violência no
faroeste americano era justificada pelo contexto histórico preciso e isto
estaria ausente no western-spaghetti, que teria como característica o
anacronismo, tal como no exemplo do uso de metralhadoras. Aliás, o preconceito
contra o western-spaghetti não é apenas de Geada, pois Hennebelle (1978) o chama
de “gênero bastardo” com “heróis medíocres” (Ringo e Django) no único parágrafo
de cinco linhas dedicado a ele no capítulo de 9 páginas sobre o cinema
italiano. Obviamente, 7 páginas foram dedicadas ao neo-realismo italiano, pois,
afinal, os filmes neo-realistas são considerados “superiores”, “cult”.
O preconceito de Geada (e outros) nasce da própria visão de cinema, cuja
origem podemos remontar ao “realismo socialista”, inspirado em Eisenstein. A
posição elitista nasce da idéia de que o cinema comercial é um cinema de massas
e que estas não possuem capacidade crítica. Logo, massas ignorantes assistem
filmes ruins e estes atraem aquelas, um é o complemento natural de outro.
Assim, segundo a ideologia leninista, as massas não possuem uma consciência de
classe e chegam no máximo a uma consciência sindicalista. Falta a capacidade de
“reflexão ativa e crítica” que deve ser produzida pelos intelectuais que
possuem acesso à ciência. Da mesma forma, temos o seu contrario, que é o cinema
reflexivo e crítico, aquele produz filmes intelectualizados e representados
pelos grandes cineastas ou inspirados no realismo.
A análise do western-spaghetti é não só “esquemática”, como admite Geada,
mas é também superficial e carrega em si vários equívocos. O primeiro equívoco
está em colocar todos os filmes do western-spaghetti no mesmo nível. Não
distinguir os filmes de Sérgio Leone, Sérgio Corbucci, Damiano Damiani, por um
lado, e de Lucio Fulci e os copiadores desses, por outro, é uma falta de percepção
das diferenças existentes. A repetição é uma característica não apenas do
western-spaghetti, mas de quase toda produção filmica existente. A proposta
“ideológica” (no sentido positivista do termo, isto é, como significando algo
valorativo) do western-spaghetti tão pouco é homogênea e entre aqueles que os
produziram se encontram diretores, atores, etc., que se colocam à esquerda no
espectro político. O espectador médio não é destituído de capacidade crítica,
pelo menos não mais do que espectadores como Geada e outros mais intelectualizados
do que a “média”, pois o que diferencia um de outro são as bases (culturais,
valorativas, políticas) e objetivos quando assistem um filme, e não sua
“capacidade”.
O maniqueísmo que Geada vê no western-spaghetti pode ser visto de igual
forma na maioria absoluta dos filmes existentes e, além disso, não pode ser
atribuído indistintamente a todos os filmes do faroeste italiano,
principalmente nos personagens presentes nos filmes dirigidos por Leone e
Corbucci, no qual mostra, muitas vezes, as ambigüidades dos heróis. A crítica
ao uso de armas e acontecimentos não comuns na “mitologia clássica do oeste
americano” é sem sentido, pois, em primeiro lugar, os faroestes americanos não
são modelos exemplares a serem seguidos e a maior parte deles poderiam (e
deveriam) ter sido objeto de críticas bem mais fortes por parte de Geada. A
metralhadora e outras armas podem não ter sido de uso comum no Oeste americano
ou nos filmes americanos de faroeste, mas já existia. O fato de não ser comum o
seu uso, seja na realidade ou em sua representação fílmica holywoodiana, em
nada compromete o seu uso no western-spaghetti, já que um filme é uma ficção e
nesta tudo é permitido, a não ser que o critério de julgamento seja o modelo
realista. Além disso, em vários western-spaghetti o contexto histórico está
presente, como o próprio Geada observa em algumas passagens, inclusive os
diversos filmes ambientados durante a revolução mexicana.
Por fim, a idéia de que os filmes comerciais são todos, por natureza,
ruins e os espectadores são incapazes de reflexão crítica e ativa mostra apenas
os preconceitos de Geada e seu elitismo cultural. Os filmes comerciais podem
ser objetos de reflexão crítica e ativa, tanto quanto qualquer outro. Isto não
depende do filme em si e sim do espectador e da problematização que ele pode
fazer em torno do material que se coloca diante dele. Existem alguns filmes do
western-spaghetti que são realmente ruins, mas não se pode generalizar. Geada
não percebe a existência de contradições na indústria cinematográfica e por
isso não percebe que é possível a produção de filmes comerciais que não são
mero lixo cultural. Um filme como Django
ou Era uma Vez no Oeste possuem uma
profundidade que a análise superficial de Geada não pode perceber. Não deixa de
ser interessante como Geada quase desconhece o contexto histórico no qual se
produzem os filmes que ele comenta, com raras exceções, tal como no caso de
Eisenstein. O quadro analítico de Geada é não-marxista, por mais que tente ser,
pois é a-histórico e desconhece as suas bases sociais.
História do Cinema na Perspectiva do
Materialismo Histórico
A história do cinema só pode ser compreendida se inserida na totalidade
das relações sociais. O cinema possui uma historicidade, mas se trata de uma
historicidade dependente da história da sociedade. E não apenas a história dos
filmes, mas também dos gêneros, da tecnologia, dos temas, das mudanças, da
crítica cinematográfica, etc. Assim, a categoria de totalidade é fundamental
para uma análise da produção cinematográfica, bem como a percepção de seu
caráter social e histórico. É claro que aqui, por cinema, se entende os filmes,
produtos culturais específicos.
Desta forma, o ponto de partida é o reconhecimento da produção social do
filme. Isto quer dizer não somente que um filme é um produto de uma
coletividade (os agentes de sua produção, a equipe de produção) mas também que
é um fenômeno constituído socialmente. Porém, é preciso ir além desta
observação geral e buscar descobrir as determinações do cinema.
A determinação fundamental da produção cinematográfica é, sem dúvida, a
indústria cinematográfica. Os estudos de Prokop (1986) apontam para o papel
proeminente da indústria cinematográfica. O filme é uma mercadoria e por isso
requer investimento. O investimento é realizado não por artistas e sim por
empresários (na melhor das hipóteses, por um artista-empresário, que deve ser
um empresário como qualquer outro, isto é, deve estar submetido aos ditames do
mercado, senão a falência é resultado inevitável).
“Para pintar, escrever, compor uma partitura, não é
necessário dispor de um capital; as questões financeiras se colocam depois do
término do trabalho, quando se pensa no público. Porém, não existe cinema sem
dinheiro; a mais modesta realização supõe um gasto mínimo, impossível de
reduzir, para conseguir os aparatos, comprar a película e dispor de
laboratório. Quando a equipe termina de escrever seu argumento, deve lançar-se
na busca de um sócio capitalista” (Sorlin, 1992, p. 72).
Os custos da produção de um filme vão se tornando cada vez maiores e,
quanto mais ocorre o desenvolvimento tecnológico, maiores são os custos. É
claro que se realiza uma hierarquia no processo de produção cinematográfica, e
as produções de maiores custos serão os de maior investimento publicitário,
maior divulgação e distribuição e com mecanismos complementares de aquisição de
lucro (indústria de brinquedos, bonecos, roupas, etc.). A indústria
cinematográfica segue a lógica capitalista da concentração e centralização do
capital e, por conseguinte, a produção cinematográfica é concentrada e
centralizada. Sem dúvida, existem as exceções, mas elas dificilmente conseguem
competir em igualdade de condições e ter a mesma ressonância em matéria de
lucro, divulgação, público. O setor marginal da produção cinematográfica é
compatível com um público marginal, divulgação marginal e lucro menor.
A hegemonia mundial de Hollywood é produto desta concentração e
centralização do “capital cinematográfico”. A sua hegemonia que já se iniciava
na época do cinema mudo, se consolidou a partir da Segunda Guerra Mundial. As
demais indústrias cinematográficas nacionais buscaram resistir e tiveram um
novo fôlego com o advento do som, devido ao problema da tradução, inexistente
em território nacional (Turner, 1997). Assim, o processo evolutivo da produção
de filmes precisa, para ser apreendida, ser analisada com a percepção do
desenvolvimento da indústria cinematográfica e também do desenvolvimento tecnológico.
A lógica da indústria cinematográfica é a lógica do lucro e por isso existem
contradições entre a produção cinematográfica e determinados interesses e
valores, pois um filme contestador, se for um possível sucesso, tem tudo para
ser produzido e distribuído, enquanto que um filme conservador, mas sem
possibilidades de sucesso, dificilmente será produzido e distribuído, embora a
tendência seja que os filmes de maior sucesso sejam os mais conservadores, mas
existem brechas e situações que permitem as exceções.
As mudanças sociais (econômicas, políticas, culturais, etc.) também são
fundamentais para explicar a produção fílmica. Na verdade, o filme é um produto
histórico e social e a visão deste processo é ofuscada mas ganha visibilidade
em certos momentos históricos nos quais o Estado, as ideologias políticas, etc.
se manifestam de forma mais visível. Os filmes norte-americanos passaram de
pacifistas para abertamente favoráveis à entrada dos EUA na guerra nos anos
posteriores a 1915 (Furkhammar e Isaksson, 1976). O cinema inglês, russo, entre
outros, mostravam claramente o uso do cinema para representar os interesses
nacionais e bélicos. O cinema fascista (Itália) e nazista (Alemanha) são outros
exemplos.
“Quando os Estados Unidos entraram na II Guerra
Mundial, já se havia dado forma ao filme de guerra, só precisa ser firmemente
ancorado nos acontecimentos correntes e receber maior ênfase patriótica. Mas
havia outros gêneros, como a comédia, que eram facilmente encaminhados para a
propaganda, e vários musicais tocaram uma nota política sem comprometer suas
credenciais como divertimento nem sua tradição estilítisca. O Homem Invisível
tornou-se o inimigo número um da Gestapo em Invisible Agent (O Agente Invisível,
1942). O Pato Donald foi exposto ao terror nazista em Der Fuehrer’s Face (A
Cara do Füher, 1943). Tarzan luta contra soldados alemães em Tarzan Triumphs (O Triunfo de Tarzan, 1943). As aventuras de Sherlock Holmes o
levaram ao nível da política internacional numa série de filmes dos anos de
guerra (Sherlock Holmes and the Secret
Weapon – A Arma Secreta), e quando, em 1943 foi filmado Desert Song (Canção
do Deserto), uma pequena plástica transformou os vilões em nazistas. Na mesma
época, os homens-maus dos filmes de aventuras tornaram-se agentes alemães, e os
gangsteres dos policiais eram quinta-colunas nazistas. Os atores
característicos, que antes haviam se especializado em vilões, adquiriram um
sotaque alemão e começaram a trabalhar para Hitler, na medida em que desejavam
continuar interpretando papéis semelhantes, mas trocaram de uniforme quando os
vilões da Gestapo, com a guerra fria, viraram comunistas” (Furhammar e
Isaksson, 1976, p. 53).
A intervenção estatal também adquire grande importância, não apenas por
meio da censura, mas também pelo financiamento (tal como no caso de alguns
países, que é uma das principais fontes de recursos para o cinema nacional),
entre outras formas de intervir na produção cinematográfica.
A equipe de produção, se destacando o diretor e os roteiristas, é outro
elemento importante para se observar o processo de produção dos filmes. Outros
agentes (atores, técnicos, assistentes, etc.) também são importantes neste
processo e, em certos casos, o diretor terá maior ou menor autonomia,
dependendo de um conjunto de elementos (desde atributos individuais a processos
sociais). Estes produtores e reprodutores produzem representações sobre a
produção do filme e, em alguns casos, como já colocamos, produzem ideologias
sobre o cinema, que, uma vez existindo, acaba influenciando na produção dos
filmes. Além de representações e ideologias, valores e sentimentos são
produzidos pelos agentes do processo de produção e reprodução do cinema e isto
gera um processo de especialização e racionalização acompanhada de uma difusão
de idéias, valores e sentimentos que criam o fetichismo do cinema. No interior
de uma base valorativa, ideológica e sentimental comum, existem divergências e
diferenças, criando formas diferenciadas de se produzir e pensar o cinema.
Todo este processo social se condensa no filme, embora a força relativa
de cada um destes elementos varie dependendo do caso. Os filmes da chamada
“produção independente” diferem do circuito hollywoodiano em aspectos de suas
determinações, bem como em período de guerra o cinema se torna mais “militante”
em favor dos interesses representados pela indústria cinematográfica e de seu
Estado Nacional. Os diretores, que muitos consideram ideologicamente como
“autores”, possuem maior ou menor autonomia, dependendo de quem são os
produtores, dos recursos, condições de trabalho, equipe de produção, etc. Os
roteiristas produzem os roteiros mas não possuem controle sobre o seu processo
de filmagem. Os atores iniciantes ou sem renome são mais passivos enquanto que
os mais renomados são mais influentes. Isto significa que no processo de
produção de um filme existe um conjunto de relações sociais e que em muitos
casos gera conflitos e visões diferenciadas (é muito comum certos atores e
membros da equipe nem sequer entender o que queria dizer o roteiro do filme, o
que faz eles fazerem as interpretações mais divergentes da intenção seja do
diretor ou do roteirista, bem como conflitos entre estes últimos).
De todas estas observações, podemos colocar que o materialismo histórico
apresenta uma contribuição fundamental para a produção de uma história do
cinema. As categorias de totalidade, determinação fundamental, entre outras,
são a chave para uma história do cinema que ultrapasse a mera descrição, seja a
simples ou a “descrição contextualizada”, isto é, aquela versão que descreve a
sucessão de filmes e apresentam o contexto histórico-social sem fazer nenhuma
relação entre ambas. O materialismo histórico também contribui com a teoria do
capitalismo e de suas transformações, bem como da luta de classes que está na
sua base e é o que explica a produção cinematográfica, que manifesta valores,
concepções, sentimentos, cuja explicação não pode ser fornecida em si mesma,
mas através do seu processo social de constituição.
Um filme é uma produção coletiva, de caráter ficcional, que passa uma
mensagem através de meios de reprodução mecânica. Os meios de reprodução
mecânica (desde o cinematógrafo em seus primórdios e os desenvolvimentos
tecnológicos posteriores, imprimindo o som, a cor, etc.) são a base material e
tecnológica do filme. A equipe de produção, manuseando esta base material e
tecnológica, produz o filme. O elemento fundamental na análise do filme é sua
mensagem, pois é nesta esfera que se manifestam os valores, as concepções, os
sentimentos dos responsáveis pela sua produção, que são seres sociais e são
parte da totalidade da vida social e cultural existente. O filme, neste
sentido, é um produto social e histórico e, por conseguinte, possui uma
historicidade que é dependente da historicidade da sociedade. Os filmes são
criações coletivas que são manifestação social e do social. Por conseguinte, a
mensagem de um filme é constituída socialmente, através das determinações
anteriormente colocadas. O filme realiza uma reprodução da realidade social e o
faz de uma forma determinada. A compreensão desta forma remete ao contexto
histórico e social que estão na base de sua produção e os agentes que a
realizam.
No entanto, colocar que um filme é uma reprodução da realidade social não
significa cair na ideologia leninista do reflexo e nem optar por uma concepção
estética realista. Esta reprodução fílmica da realidade social é perpassada por
conflitos sociais, pelo efeito da luta de classes no seu processo de
constituição e, além disso, é feita de forma diferenciada dependendo dos
agentes de produção, podendo expressar a perspectiva de uma ou outra classe
social existente, ou outros grupos sociais existentes no interior da sociedade.
Por isso, no filme se encontra expresso um conjunto de valores, concepções,
sentimentos, que são diferentes em momentos históricos diferentes, em países
diferentes e agentes de produção diferentes. Esta reprodução pode reforçar ou
reproduzir ideologias ou representações ilusórias da realidade, que são parte
dessa mesma realidade, ou podem reproduzir teorias ou representações reais,
assim como valores e sentimentos distintos.
A partir desta concepção não é possível se deduzir uma concepção estética
realista, pois sendo o filme uma ficção, o que interessa não é garantir uma
reprodução fiel ou mecânica da realidade, e sim quais valores, concepções e
sentimentos ele manifesta, qual sua posição diante da realidade estabelecida. A
crítica da realidade estabelecida pode ser feita sob as mais variadas formas e
quando ela atinge a radicalidade de partir da perspectiva do proletariado,
assume um papel de contestação e negação da realidade da sociedade capitalista,
o que significa se “desprender” da realidade estabelecida.
A reprodução fílmica da realidade é passível de inúmeras interpretações,
algumas bastante arbitrárias. O problema da interpretação e análise do filme
remete ao problema do relativismo. Neste sentido, E. H. Hirsch Jr. oferece uma
excelente contribuição ao refutar o que ele denominou “relativismo dogmático” e
“ateísmo cognitivo” e colocar a possibilidade de uma “interpretação válida”,
pois, embora focalizando a questão da literatura, sua análise se torna
aplicável ao caso do filme:
“E. D. Hirsch Jr. argumenta vigorosamente em favor da
possibilidade da interpretação válida. Com particular referência aos textos
literários, ele reconhece haver sempre problemas de interpretação provocados
pela não-familiaridade dos leitores com o gênero, ou com o repertório
lingüístico do autor, ou com o período de que data o texto, não obstante, sua
opinião é a de que há uma interpretação ‘correta’, cabendo à erudição literária
chegar a ela. Trata-se do significado original do autor. Embora reconhecendo
que os novos leitores podem deduzir sempre significações novas e
não-intencionais do texto, Hirsch sustenta que isso não é o mesmo que descobrir
a significação original e intencional. Hirsch investe contra os
‘relativistas dogmáticos’ e os ‘ateístas cognitivos’ que acreditam que o
significado se modifica necessariamente com todo leitor e que não há
determinação ou prioridade de significado autoral” (apud, Wolf, 1982, p. 112-113).
Segundo
Hirsch,
“Embora não possamos nunca certificar-nos de que
nossas suposições interpretativas são corretas, sabemos que podem ser
corretas e que a meta da interpretação como disciplina é aumentar
constantemente a probabilidade de que sejam corretas (...). Só um problema
interpretativo pode ser respondido com objetividade: ‘o que, com toda
probabilidade, o autor pretendeu transmitir?” (apud. Wolf, 1982, p. 113).
Portanto, a
partir destas colocações, podemos buscar apontar alguns elementos que
contribuem para a compreensão de uma obra de arte. O elemento principal é descobrir
o significado original do autor. Claro que a interpretação tem outros
obstáculos, inclusive os valores, sentimentos e concepções do intérprete que,
dependendo de quais são, podem dificultar ou facilitar a descoberta do
significado original do autor. As diversas interpretações são outro aspecto que
merece análise e, no caso do filme, seria necessário, inclusive, observar como
determinados filmes são extremamente mal compreendidos, enquanto que alguns
recebem interpretações bastante negativas em um momento histórico e isto se
altera em outra época, demonstrando que a recepção e interpretação são
constituídas socialmente e demonstram o seu caráter social. Desta forma, para
analisar as interpretações é preciso pesquisar qual contexto social e histórico
surge a interpretação, quais são os valores, concepções e gostos do intérprete,
etc. A análise que fizemos anteriormente da interpretação de Geada sobre o
western-spaghetti se fundamentou mais na concepção estética do autor, mas que
tem por detrás de si um conjunto de valores, concepções, etc. que fornecem um
quadro mais amplo de análise de sua interpretação.
O principal
foco da análise deve incidir sobre o significado original do autor, buscando
assim descobrir o significado autêntico da obra. A intencionalidade do autor adquire
uma importância fundamental. Descobrir a intencionalidade do autor requer pesquisar
o contexto histórico-social e a biografia do autor. No caso do filme, como ele
é uma produção coletiva (ao contrário de outras manifestações artísticas em que
se pode falar na existência de autoria individual), então a pesquisa é mais
complexa, pois deve analisar o grau de autonomia do diretor, a intencionalidade
dos roteiristas, a relação de forças da equipe de produção, a influência da
indústria cinematográfica, etc. Assim, o significado original, neste caso, é do
conjunto de autores e não de um indivíduo e, neste caso, o papel principal na
constituição deste significa cabe aos roteiristas e diretor do filme.
No entanto,
existe numa obra de arte, além da intencionalidade, manifestações
não-intencionais do autor, a saber: a manifestação do inconsciente do autor
e a manifestação de uma historiografia inintencional. A manifestação do
inconsciente do autor é bastante difícil de se analisar, pois pressupõe um
conjunto de informações e detalhes sobre a vida do autor. Na ausência disto, é
possível lançar hipóteses e até fazer algumas descobertas a partir de uma análise
do inconsciente coletivo17 ou então a partir das relações
sociais, mas o que deve ser feito com cautela para se evitar conclusões
apressadas e generalizações abusivas. No caso do cinema, a questão do
inconsciente do autor é ainda mais complicada, pois como se trata de uma
produção coletiva, com indivíduos diferentes e inconscientes diferentes, a
situação é mais complexa e assim o inconsciente coletivo é o elemento
fundamental para uma psicanálise (marxista) do filme.
Outra
manifestação não-intencional, de mais fácil percepção, é a que Walter Benjamim
chamou de Historiografia Inconsciente:
“Benjamin insiste também muitas vezes na idéia de que
a literatura é uma historiografia inconsciente. As obras literárias, mesmo não
pretendendo ser e não sendo um mero registro histórico, acabam sendo também uma
historiografia inoficial. Na medida em que não querem ser documento, seu
caráter autônomo lhes permite uma liberdade de registro e transmissão que
escapa à historiografia oficial, comprometida com as omissões, cortes e
deformações que as relações de produção lhe impõem” (Kothe, 1976, p. 79).
Porém, a
expressão historiografia inconsciente pode dar margem a interpretações
equivocadas que podem confundir a palavra inconsciente com o sentido que Freud
deu a ela e por isso preferimos utilizar a expressão alternativa Historiografia
inintencional. As manifestações inintencionais na obra de arte podem ajudar
na sua explicação, principalmente em pontos obscuros, bem como possui um papel
importante para a história da obra de arte e também do contexto social no qual
ela emerge. No caso do cinema, estas manifestações inintencionais são
importantes não somente para a reconstituição da história do cinema, mas também
para a reconstituição da história da sociedade, do qual o filme é expressão.
Um filme, sendo uma produção coletiva no qual não se pode atribuir a
autoria a apenas um indivíduo, tal como pretendiam os adeptos da “política dos
autores” (Truffaut, Chabrond, Godard, etc.), é produto de diversos autores. Estes
diversos autores devem possuir algo em comum, o que forma uma equipe de
produção, apesar das diversas diferenças de valores, sentimentos, concepções,
posições políticas, que os indivíduos que fazem parte dela podem ter. Todo o
filme passa uma mensagem, inclusive os filmes mais banais e comerciais. Porém,
devido ao caráter coletivo da produção do filme, o significado original dos
autores é de mais difícil percepção, inclusive devido ao fato de podem
co-existir distintos significados. Apesar desta dificuldade, não é impossível descobrir
a significação original.
Em um filme existe o significado original da equipe de produção, mas
também existem significados adjudicados (atribuídos) pelos diversos
intérpretes. Uma precaução básica é buscar não confundir significado adjudicado
e significado original. O significado adjudicado é bastante importante para a
análise do filme, inclusive tendo em vista a dificuldade de descobrir o
significado original. A reprodução fílmica da realidade tem como referencial
esta realidade que é reproduzida e isto é independente da intenção original da
equipe de produção. Devido a isto, a análise de um filme é beneficiada com o
reconhecimento do significado adjudicado, desde que esse seja explicitado.
Assim, a reprodução fílmica da realidade é realizada de forma muitas vezes
inintencional. Esta reprodução inintencional pode ser recuperada por uma
significação adjudicada explícita do intérprete.
A história do cinema é, portanto, inseparável da história do capitalismo.
O preceito metodológico da historicidade dependente dos seres e objetos sociais
em relação à historicidade da sociedade (Viana, 1997) é um ponto fundamental
para uma concepção de história do cinema sob orientação do materialismo
histórico e para a superação da história descritiva do cinema. Os diversos
problemas colocados por uma história do cinema, com seus inúmeros aspectos
(tecnológico, político, fílmico, etc.) ganham no uso do método dialético as
categorias fundamentais (totalidade, determinação fundamental, etc.) para sua
reconstituição histórica, e os conceitos do materialismo histórico (luta de
classes, capitalismo, ideologia, divisão social do trabalho, etc.) fornecem a
base teórico-metodológica para sua realização.
Por conseguinte, a partir do esclarecimento desta base teórico-metodológica,
é possível se iniciar um programa de pesquisa voltado para a reconstituição
histórica da história do cinema com base no materialismo histórico. Assim, a
tarefa hoje é aprofundar este esclarecimento teórico-metodológico e análise da
especificidade do cinema enquanto fenômeno social e construir um programa de
pesquisa sobre a história do cinema. É uma tarefa nada fácil, mas necessária e
fundamental para fazer avançar a história do cinema, que deve sair do seu
estágio descritivo e passar para o estágio teórico.
Referências
Bibliográficas
Andrew,
J. D. As Principais Teorias do Cinema.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.
Aristarco,
G. História das Teorias do Cinema.
Vol. 1, Lisboa, Arcádia, 1961.
Benjamin,
W. Magia e Técnica, Arte e Política.
São Paulo, Brasiliense, 1996.
Betton,
Gérard. História do Cinema. Lisboa,
Europa-América, 1989.
Bourdieu,
P. As Regras da Arte. São Paulo,
Companhia das Letras, 1996.
Costa, A.
Compreender o Cinema. São Paulo,
Globo, 1989.
Eisenstein,
Sergei. O Sentido do Filme. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2002.
Ferro,
Marc. Cinema e História. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1992.
Furhammar,
L. e Isaksson, F. Cinema e Política. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1976.
Geada, E.
Cinema e Transfiguração. Lisboa,
Horizonte, 1978.
Gubern,
R. História del Cine. Vol. 1.
Barcelona, Lumem, 1982.
Hennebelle,
Guy. Os Cinemas Nacionais contra
Hollywood. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
Knight,
A. Uma História Panorâmica do Cinema.
São Paulo, Lidador, 1970.
Korsch,
K. Marxismo e Filosofia. Porto,
Afrontamento, 1977.
Korsch,
K. Teoria Marxista y Accion Política.
México, PYP, 1979.
Kothe,
Flávio. Para Ler Benjamin. Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1976.
Kracauer,
S. Teoria del Cine. La Redencion de la
Realidad Física. México, Paidós, 1989.
Lênin, W.
Que Fazer? São Paulo, Hucitec, 1978.
Lukács,
G. História e Consciência de Classe.
Rio de Janeiro, Delfos, 1989.
Marx, K.
e Engels, F. A Ideologia Alemã. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
Marx, K. O Capital. Vol. 2, 3ª edição, São Paulo,
Nova Cultural, 1988.
Moura, J.
B. Ideologia e Prática. Lisboa,
Caminho, 1978.
Panneokoek,
A. Lenin Filosofo. Córdoba, PYP, 1973.
Prokop,
D. O Papel da Sociologia do Filme no
Monopólio Internacional. In: Filho,
Ciro M. (org.). Prokop. São Paulo,
Ática, 1986.
Ramos, J.
L. Eisenstein. Lisboa, Horizonte,
1981.
Sadoul,
G. História do Cinema Mundial. São
Paulo, Martins, 1963.
Sklar,
Robert. História Social do Cinema
Americano. São Paulo, Cultrix, 1975.
Sorlin,
Pierre. Sociologia del Cine. México,
FCE, 1992.
Stam, R. Introdução à Teoria do Cinema. Campinas,
Papirus, 2003.
Tudor,
Andrew. Teorias do Cinema. Lisboa,
Edições 70, 1985.
Turner,
G. Cinema como Prática Social. São
Paulo, Summus, 1997.
Veillon,
O-R. O Cinema Americano dos Anos Cinqüenta.
São Paulo, Martins Fontes, 1993.
Veillon,
O-R. O Cinema Americano dos Anos Trinta.
São Paulo, Martins Fontes, 1992.
Viana, N.
A Consciência da História. Ensaios sobre
o Materialismo Histórico-Dialético. Goiânia, Edições Germinal, 1997.
Viana, N.
A Questão dos Valores. Cultura &
Liberdade, Ano 2, no 02, Abril de 2002a.
Viana, N.
Inconsciente Coletivo e Materialismo
Histórico. Goiânia, Edições Germinal, 2002b.
Wolf, J. A Produção Social da Arte. Rio de
Janeiro, Zahar, 1982.
Zis, A. Fundamentos de la Estética Marxista. Moscou, Progresso, 1976.
[1]
Podemos citar aqui até mesmo autores bem distantes do leninismo que apresentam
concepções ideológicas do cinema, tal como Walter Benjamin, que fez uma
verdadeira “apologia do cinema” (Benjamin, 1996).
[2] O conceito de inconsciente coletivo que trabalhamos aqui não tem nada a ver com
a concepção junguiana ou com a da historia das mentalidades. Na verdade, ela se
baseia numa definição inspirada no materialismo histórico que considera o
inconsciente coletivo como o locus de
manifestação das necessidades e potencialidade humanas reprimidas em um grupo
social particular ou na sociedade em seu conjunto (Cf. Viana, 2002b).
__________________________________________________________
Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Materialismo Histórico e História do Cinema. História Revista - Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Vol. 11, num. 02, 2006.
Este artigo foi desenvolvido e aprofundado, dando origem ao livro A Concepção Materialista da História do Cinema (Porto Alegre: Asterisco, 2009).
Veja resenha sobre este livro: Resenha de A Concepção Materialista da História do Cinema, de Nildo Viana - Alan Ricardo Duarte Pereira (Clique aqui).
Veja prefácio deste livro: Para Compreender as Produções Cinematográficas - Jean Isídio dos Santos (clique aqui).
Nenhum comentário:
Postar um comentário