A
MERCANTILIZAÇÃO DO LAZER
Nildo Viana
A sociedade moderna
produz um processo de expansão da divisão social do trabalho e uma
generalização do assalariamento que faz emergir a preocupação com o “lazer”. No
entanto, com o desenvolvimento capitalista, o lazer é cada vez mais absorvido
pela dinâmica do capital. Um dos elementos fundamentais desse processo é a
mercantilização do lazer, tema que nos deteremos aqui. Para tanto, é necessário
explicitar o conceito de lazer e o processo de transformação do capitalismo e
seu impacto sobre ele, observando, assim, o processo de crescente
mercantilização do lazer.
O
Conceito de Lazer
A definição do que é
lazer não é consensual. Alguns partem da oposição entre tempo de trabalho e
tempo livre, o que é ilusório, pois existem outros aspectos da vida que não
podem se restringir a estes dois. Sem dúvida, existe o tempo de trabalho, mas
nem tudo que está além dele é “tempo livre” e muito menos poderia ser
considerado “lazer”. O trabalho produz e condiciona diversas outras atividades
associadas a ele. O tempo gasto em transporte para o trabalho, cursos e outras
exigências de formação e qualificação, atividades do trabalho executadas em
casa são exemplos disso que podemos chamar, retomando Jofre Dumazedier (1994),
de “para-trabalho”, apesar de considerar que tal termo se refere a outras
atividades. Da mesma forma, existem diversas obrigações sociais (civis,
familiares, comunitárias, etc.) que não se constituem como tempo livre ou
lazer, tais como o pagamento de prestações, dívidas e despesas cotidianas,
atividades domésticas, participação em processo eleitoral, compras, levar as
crianças à escola (e outras atividades relacionadas: reuniões, matrícula,
etc.).
É possível pensar que,
uma vez excluído o tempo de trabalho, o tempo de para-trabalho e o tempo
dedicado às obrigações sociais, estamos diante do resto do tempo de forma
livre. Ledo engano, pois precisamos ainda de acrescentar o tempo gasto para a
satisfação das necessidades básicas: alimentação (almoço, jantar, etc.), sono,
higiene, etc. Se um trabalhador gasta diariamente oito horas de trabalho, mais
duas de para-trabalho (transporte, por exemplo), mais uma hora paras as
obrigações sociais, já temos onze horas diárias[1].
Ao somar isso com as atividades voltadas para a satisfação das necessidades
básicas, que pode girar em torno de dez horas (oito para dormir, por exemplo),
temos dezenove horas. Restam cinco horas diárias.
Obviamente que isto
varia de acordo com o indivíduo e suas condições de vida (distância entre local
de trabalho e local de moradia, meio de transporte utilizado, etc.), época
(cursos de qualificação são realizados em determinados períodos, mas nem
sempre, e sua duração é variável), tipo de trabalho específico (um professor
pesquisador leva muito mais trabalho para casa do que uma secretária), classe
social (que tem repercussão sobre todo o resto), etc. Nos fins de semana há muito
mais tempo, pois ocorre uma redução drástica do tempo de trabalho (para alguns
é inexistente) e do para-trabalho, e mais ainda nas férias.
As cinco horas diárias
que restaram podem, então, ser chamadas de tempo de “lazer” ou “tempo livre”? A
resposta vai depender do significado atribuído a estas palavras. A etimologia
das palavras ajuda a entender o processo de constituição histórica das mesmas,
mas nem sempre o seu significado que muda com as mudanças sociais e históricas.
Vamos começar pela etimologia para chegar ao seu significado atual. A palavra lazer
tem sua origem no latim, especialmente nas palavras licere e licet e
significava algo “lícito”, “ter o direito”, “permitido”, “poder” (GOMES, 2008).
O significado da palavra mudou muito com o processo histórico e hoje adquire
novos significados.
Na nossa concepção,
lazer significa um conjunto de atividades de recreação. A recreação também tem
origem no latim, recreatio, e quer
dizer recriação. Remete ao recreio, a busca da diversão, distração. É por isso que
nas escolas há o momento de recreio para as crianças, pois nele elas podem se
divertir e distrair, já que o ensino, assim como o trabalho, requer
concentração. A recreação significa o processo no qual os indivíduos podem
descansar mentalmente se distraindo de suas atividades laborais, educacionais,
obrigatórias. Nesse sentido, é algo espontâneo. Este é o sentido que a maioria
das pessoas atribui ao termo “lazer”. Por isto consideramos que este é composto
por momentos e atividades de recreação. Inclusive a sua função, como alguns
colocam, é renovar a força de trabalho ou todo aquele submetido a atividades
cansativas, desgastantes, que exigem certa concentração mental e/ou esforço
físico.
Contudo, além do lazer,
existem as atividades criadoras, nas quais o ser humano desenvolve suas
potencialidades e sua criatividade. Essa distinção é importante para
percebermos que tornar equivalente lazer e tempo livre é um equívoco. Só teria
sentido se fosse entendido como “livre de” e não como “livre para” (FROMM, 1981).
Nessas cinco horas o trabalhador pode estar livre do trabalho alienado e das
outras atividades sociais, mas não para desenvolver suas potencialidades e
criatividade[2].
A fusão entre lazer e criatividade é bastante rara, principalmente com o
desenvolvimento da modernidade, e por isso é possível distinguir entre o lazer
como momentos e atividades de recreação, tempo liberado de outras atividades, e
práxis[3],
momentos de atividades criadoras.
A atividade criativa
pressupõe que ela seja teleológica, ou seja, que sua razão de ser seja uma
finalidade conscientemente estabelecida pelo indivíduo (ou grupo) e que a
atividade desenvolva alguma potencialidade humana. Isso pode ocorrer sob a
forma individual (o que predomina na sociedade capitalista) ou através de uma
associação com outros seres humanos. Marx, utilizando outras palavras, já havia
feito tal distinção:
Economizar tempo
de trabalho é aumentar o tempo livre, isto é o tempo que serve ao desenvolvimento
completo do indivíduo. O tempo livre para a distração, assim como para as
atividades superiores, transformará naturalmente quem dele tira proveito num
indivíduo diferente (Apud. DUMAZEDIER, 1994, p. 47).
Claro que na época de
Marx, o lazer ainda não tinha sido usurpado pelo capital e por isso ainda era
possível pensar que seria “tempo livre”. De qualquer forma, Marx não pensava na
sociedade capitalista e sim em sua superação e por isso não havia o significado
que tem no capitalismo, muito menos nos dias atuais.
Essa distinção entra em
contradição com algumas definições de lazer, segundo as quais lazer e imposição
são coisas opostas:
‘recreação’ é um
termo frequentemente utilizado para designar algo semelhante ao lazer. A
recreação sempre indica algum tipo de atividade e, como o lazer e o jogo, não
possui uma forma única. Em seu sentido literal (re-criação), pode ser visto
como uma das funções do lazer: a de renovar o ego ou de preparar para o
trabalho. Esse elemento da recreação é o que mais a recomenda àqueles que
desaprovam o lazer ‘inútil’ ou ‘dissipado’, uma atitude sem dúvida bem
retratada na expressão ‘recreação sadia’. Mas é também esse elemento carregado
de valores que tem levado os críticos a comparar desfavoravelmente a recreação
ao lazer. Assim, Thelma McCormack escreve: ‘a recreação é um sistema de
controle social e, como todos os sistemas de controle social, é até certo ponto
manipulável, coercivo e doutrinador. O lazer não é nada disso’ (PARKER, 1978,
p. 23).
No entanto, esse tipo
de posição, além de não fundamentada, confunde o lazer real, concreto, com sua
projeção ideal, o que pensa que deveria ser ao invés do que efetivamente é.
Também abstrai que existem formas de recreação mais ou menos controladas e
outras fora do controle, ou seja, não é sua característica e sim condições
sociais que promovem a sua organização heterogerida. Essa idealização do lazer
provoca o ocultamento do seu verdadeiro caráter. Na verdade, o lazer, nessas
abordagens, é uma abstração metafísica, pois o seu processo de constituição
social e seu vínculo com a sociedade em geral são ofuscados. Porém, existem
abordagens mais adequadas para o entendimento do lazer, pois este, apesar de
ter menos controle, não é “uma escolha ou construção livre”:
Alguns autores
chegam a dar ao lazer, como sinônimo, a expressão tempo livre. É um traçado
plano, achatado. O conteúdo do tempo de lazer permanece sujeito a uma série de
circunstâncias sociais, culturais, econômicas, ideológicas e físicas, da mesma
forma que a qualidade ou a força de trabalho que se vende ou se troca. O lazer
será possível de acordo com a capacidade de consumo e com a posição ocupada na
estrutura social, conforme o capital escolar e as experiências vividas no
processo de socialização, de acordo com hábitos adquiridos ou predisposições
psíquicas. Dada a sua natureza duplamente subtrativa – do tempo produtivo e do
tempo residual ou complementar –, o lazer permanece como categoria interna da
economia política, sendo gerado e apropriado em decorrência das mesmas relações
sociais. É por isso que ele traduz – à sua maneira – as esferas da produção, da
distribuição, da troca e do consumo. Suas formas individuais e coletivas não
surgem nem são vividas, a não ser como emanações da própria economia política. É por essa razão que as classes de uma
sociedade praticam lazeres diferenciados, seja em relação à forma, ao conteúdo,
ao seu grau ou intensidade – mesmo naqueles países com menores disparidades de
renda e desequilíbrios sociais. E quanto mais acentuada a hierarquia de
classes, maiores se apresentam as distinções do tempo e das atividades de lazer
(CUNHA, 1977, p. 19-20).
Nesse sentido, o lazer
deve ser entendido como o conjunto de atividades recreativas desenvolvidas
pelos indivíduos e que são realizadas num tempo residual após o trabalho
alienado e outras atividades (para-trabalho, obrigações sociais). O lazer
existe em relação com o trabalho alienado, que é um trabalho heterogerido e
alheado (MARX, 1983; VIANA, 2012)[4].
Ele é um complemento dele ao promover um alívio e recuperação de forças para
voltar a exercê-lo, tal como diversos pesquisadores perceberam (VEGA, 1979; KRINPPENDORF,
2001). A distinção entre trabalho (alienado), para-trabalho, obrigações sociais
e lazer é produto da sociedade capitalista, pois ela amplia a divisão social do
trabalho e submete o indivíduo a elas (como especialista e como indivíduo
submetido a diversas outras especializações de outros indivíduos). Além desses
itens, poderíamos acrescentar a práxis, que não é realizada por todos os
indivíduos e é marginal na vida de quem a concretiza, mas, no processo de luta
pela transformação social, se amplia e com a superação do capitalismo,
reunifica em si tudo que foi dividido pelo capitalismo, abolindo tais
distinções.
O conceito de lazer
aqui apresentado é mais restrito do que outros, pois sua ampliação acaba
ofuscando seu real significado. Pensar em “três funções do lazer”, que
englobaria a função de descanso; a função de
divertimento/recreação/entretenimento e a função de desenvolvimento, como faz
Dumazedier (1976) é confundir e fundir o que é separado. O descanso e repouso
faz parte da satisfação de necessidades básicas e significa mais inatividade do
que atividade, e o lazer aqui e em grande parte das abordagens é algo ativo e
não mero ócio (outra palavra com vários significados e que varia com o idioma).
O desenvolvimento, nesse caso, pode ser entendido sob forma marxista, sendo práxis, ou sob forma útil para o
trabalho alienado, mera formação e qualificação da força de trabalho
(para-trabalho). Em nenhum dos dois casos isso pode ser considerado lazer, já
que exige esforço, concentração e outros aspectos presentes em atividades
produtivas e criativas, sendo distinto do lazer. Claro que para o aparato
estatal e o capital é interessante colocar as atividades de formação e
qualificação da força de trabalho como lazer, pois isso significa apresentar o
para-trabalho como sendo não-trabalho.
Em síntese, o lazer é
um produto da sociedade moderna (DUMAZEDIER, 1979). Isso não quer dizer que não
havia formas de distração e atividades lúdicas em sociedades pré-capitalistas,
mas que o lazer é a forma específica que assume na nossa sociedade. Isto é
coerente com o princípio da “especificidade histórica”, característica do
materialismo histórico (MARX e ENGELS, 1991; MARX, 1989) e enfatizado por Korsch
(KORSCH, 1983; VIANA, 2013).
Desenvolvimento
Capitalista e Mercantilização do Lazer
O lazer não é sempre o
mesmo, pois, embora mantenha o seu caráter essencial, ele sofre alterações
formais no decorrer da história do capitalismo. Da mesma forma, a mercantilização
é um processo que acompanha o desenvolvimento capitalista[5],
tal como outros, e sua ampliação pode ser interpretada como determinadas ondas
que se acrescentam às anteriores. Assim, a cada regime de acumulação uma nova
onda de mercantilização (e burocratização) ocorre, o que mostra o seu vínculo
indissolúvel com o desenvolvimento capitalista. O mesmo ocorre com o lazer,
pois ele é atingido nesse processo e quanto mais intenso é o processo de
mercantilização, mais ele se torna mercantilizado (e o mesmo vale para a
burocratização, que não é nosso foco aqui).
O lazer na sociedade
moderna tem a sua primeira manifestação, sob forma embrionária, a partir do
século 16. Essas formas embrionárias de lazer ocorriam por já estar esboçado o
modo de produção capitalista, através da produção manufatureira, e por já ter
um processo de mercantilização crescente das relações sociais e as classes
privilegiadas poderem adquirir o que posteriormente seria chamado de lazer. É
nesse contexto, por exemplo, que a aristocracia fazia viagens, esboçando o que
posteriormente seria o turismo. Essa é uma época de formação do capitalismo, na
qual o capital comercial oferecia a primazia para o capital manufatureiro
(MARX, 1988; VIANA, 2003). A expansão comercial era o elemento mais visível de
todo esse processo marcado pelo que Marx denominou “acumulação primitiva de
capital”.
A acumulação
capitalista propriamente dita passa a predominar com a chamada “Revolução
Industrial”. O desenvolvimento capitalista é marcado pela sucessão de diversos
regimes de acumulação (VIANA, 2009; VIANA, 2003) e é nessa época que passa a
predominar o regime de acumulação extensivo, com longas jornadas de trabalho e
alto grau de extração de mais-valor absoluto. Da mesma forma, o Estado liberal
e o neocolonialismo são outros elementos que caracterizam tal regime de
acumulação (VIANA, 2009; VIANA, 2003). O lazer, nesse contexto, passa a ser
privilégio da burguesia e de outras classes privilegiadas, mas não se constitui
ainda da forma mais acabada, sendo outra forma embrionária.
Sem dúvida, a classe
operária e outras classes desprivilegiadas também criavam suas formas de
recreação, apesar de serem distintas das formas das classes privilegiadas e, no
caso do proletariado, ocupar pequena parte de sua vida cotidiana. Tratavam-se
de formas variadas, algumas não-mercantilizadas e outras mercantilizadas. É o
caso das festas, principalmente no caso de determinadas regiões, especialmente
nas rurais, e da taberna, no caso do proletariado urbano. Marx já colocava que
a taberna era apenas um pretexto para uma reunião dos operários (MARX, 1989).
Segundo Engels, o mestre que ensinava na escola pública já afirmava que “gente
vulgar vai aos bares e gente de bem vai aos clubes” e como ele esteve em ambos
afirma que pode “testemunhar a veracidade destas propostas” (ENGELS, 1979, p.
26). Claro que a “gente vulgar” remete ao proletariado e a “gente de bem” se
refere à burguesia, e, em ambos os casos, às classes mais próximas (classes
desprivilegiadas e privilegiadas, respectivamente). Os bares e os clubes
revelam diferenças sociais das classes e do lazer.
A passagem para o
regime de acumulação intensivo, marcada pela redução da jornada de trabalho,
abre um espaço para maior desenvolvimento do lazer, mas muitas vezes sem o
domínio do capital sobre o mesmo. Esse é o caso do piquenique e do futebol de
várzea no Brasil no início do século 20. Contudo, há uma mutação que ocorre no
Brasil sob forma específica e um pouco posterior em comparação com os países de
desenvolvimento capitalista pioneiro, mas que segue a dinâmica dominante que é
aumentar o controle burocrático sob forma estatal e aliado ao processo de
burocratização das relações sociais em geral e da mercantilização do lazer:
As práticas
recreativas tradicionais dos trabalhadores recém-convertidos à nova ordem
industrial serão suprimidas e marginalizadas, pois temia-se que elas poderiam
ameaçar de algum modo a disciplina do trabalho necessária à nova ordem
econômica. As práticas de ócio e lazer, tanto das elites quanto da classe
trabalhadora, passam a se constituir, desse modo, em um importante espaço de
lutas sociais, culturais e políticas [...] (ALVAREZ, 2002, p. 118).
A instituição do lazer
de forma mais acabada ocorre, no entanto, no período posterior. É a partir da emergência
do regime de acumulação conjugado marcado pela hegemonia do fordismo (e do
sistema de crédito que lhe acompanha), do Estado integracionista (supostamente
do “bem estar social”) e da expansão do capital transnacional oligopolista, com
todo o processo derivado daí, o que aparentemente constituiu uma “sociedade de
consumo”, ou seja, quando ocorre uma “quarta onda de mercantilização” (e
burocratização). Nessa nova fase do capitalismo, o que ocorre é um processo de
aumento proporcional de produção de bens de consumo e um decréscimo da produção
de meios de produção (VIANA, 2008). Obviamente que ambos cresceram em
proporções elevadas, mas a produção de meios de consumo foi proporcionalmente
superior. A razão disso é a eterna luta do capital contra a tendência
declinante da taxa de lucro, provocada com o crescimento da produção de meios
de produção e tecnologia (VIANA, 2008).
É nessa época que
emerge novos setores para o mercado consumidor, sendo o carro e a televisão
algumas das principais mercadorias que se espalham pelo mundo, ao lado de
vários outros, principalmente eletrodomésticos. Mas além dessas mercadorias,
emerge a primeira fase de consolidação da mercantilização da cultura. É nessa
época que surgem os estudos sobre “indústria cultural” (ADORNO e HORKHEIMER, 1986)
e que a juventude emerge como novo mercado consumidor de cultura e lazer
(VIANA, 2014). O Rock and Roll, o jeans, o chiclete (gomas de mascar) e uma
enorme quantidade de novas mercadorias em geral são produzidas, criando novos
costumes e práticas de consumo. O lazer é cada vez mais mercantilizado. É nesse
momento histórico que ao lado dos bares e outras formas de lazer que ocorrem em
locais onde mercadorias são vendidas (nos bares, as bebidas, mas em outros
locais outras mercadorias), tais como clubes de jogos, bem como o processo de
profissionalização e mercantilização do futebol e outros esportes e da cultura
(música, cinema, etc.), abrem um novo campo de lazer mercantilizado: os
estádios de futebol e outros locais de eventos esportivos e culturais (clubes,
salas de cinema, etc.).
Nessa mesma época,
ocorre o que alguns estudiosos do turismo denominam massificação do mesmo. De
um produto antes considerado e praticado pelas chamadas “elites” (aristocracia,
burguesia), o turismo passa a ganhar um novo e grande filão de consumidores,
principalmente devido ao aumento do poder aquisitivo da classe trabalhadora e
outros setores da sociedade nos países capitalistas imperialistas, bem como o
desenvolvimento da tecnologia, dos meios de comunicação e transporte, e de um
conjunto de meios de consumo e produção. O automóvel e a televisão se tornam
artigos inicialmente de luxo mas que vão tendo sua posse e uso cada vez mais
generalizado e sendo formas de lazer, pois o carro permite um deslocamento mais
fácil e a televisão se torna um dos grandes veículos de lazer. As agências e
empresas de turismo emergem e passam a oferecer serviços que atingem um
contingente cada vez maior da população.
É neste contexto que o
capitalismo oligopolista transnacional buscará expandir a produção de
necessidades fabricadas, entre elas o lazer. A abundância crescente nos países capitalistas
imperialistas (e em menor grau no capitalismo estatal e no capitalismo
subordinado) aumenta proporcionalmente o esvaziamento da vida e crescimento da
insatisfação:
Contrariando-se,
opondo-se, implicando-se, misturam-se de um lado a satisfação, a procura obstinada
do estado ‘satisfeito’, e, de outro, a insatisfação, o mal-estar. O consumo de
espetáculo torna-se espetáculo do consumo. O consumo devorador do passado
(obras de arte, estilos, cidades), a saturação rápida e o tédio se encadeiam. A
partir daí, como não aspirar à ruptura? Como não querer fugir do cotidiano? Bem
entendido, esse desejo, essa aspiração, essa ruptura e essa fuga são rápida e
facilmente recuperáveis: organização do turismo, institucionalização,
programação, miragens codificadas, colocação em movimento de vastas migrações
controladas. Daí decorre a autodestruição do objeto e do objetivo: a cidade
pitoresca, a região turística, o museu desaparecem sob o afluxo dos
consumidores, que acabam consumindo apenas a sua própria presença e a sua própria
acumulação (LEFEBVRE, 1991, p. 94).
Assim, essa “sociedade
burocrática de consumo dirigido” (LEFEBVRE, 1991), que amplia demasiadamente a
burocratização e mercantilização das relações sociais (VIANA, 2008)[6],
acaba gerando duas formas de lazer:
A menor das
análises mostra que há duas espécies de lazer, bem distintos, ‘estruturalmente’
opostos: a) o lazer integrado na cotidianidade (leitura de jornais, televisão,
etc.), que deixa uma insatisfação radical, que se interessa pela situação
daquele senhor kierkegaardiano que rasga seu jornal diante da mulher e dos
filhos, gritando: ‘coisas possíveis! Coisas possíveis!’. B) a espera da
partida, a exigência de uma ruptura, a vontade de uma evasão: o mundo, as
férias, o LSD, a natureza, a festa, a loucura (LEFEBVRE, 1991, p. 95).
Esse processo, no
entanto, não termina aí, pois ele será substituído pela quinta onda de
mercantilização (e de burocratização) com o processo de passagem para o regime
de acumulação integral. É a partir dos anos 1980 que o capitalismo neoliberal e
o processo de hipermercantilização avançam, com a mercantilização crescente e
intensificada da cultura, informática, etc. O lazer também é afetado nesse
processo. Novas formas de lazer corriqueiro aparecem além do rádio e televisão:
videogames, computadores, internet, etc. Emerge também os shopping centers, que
unificam no mesmo espaço (gerando “comodidade” que estava esgotada nos grandes
centros urbanos e suas dificuldades de estacionamento, trânsito, distância
entre as lojas, locais de lazer, etc.) o processo de consumo e lazer.
Nesse contexto
histórico, também emergem formas sofisticadas e personalizadas de lazer. Os
aparelhos de televisão vão ganhando maior qualidade de imagem, novos atributos
(que passou pelos videocassetes até chegar ao DVD), bem como uma
hipermercantilização da cultura, tal como se observa na produção de cultura
descartável no campo musical e artístico em geral. A constituição de megashows[7],
grandes eventos esportivos, etc. e ampliação do turismo e de suas
possibilidades, são outros elementos presentes nesse processo. A tecnologia,
assim como a cultura, se torna cada vez mais descartável (computadores sempre
tornados obsoletos, bem como celulares, etc.) e meio para consumação do lazer.
Esse é o caso dos computadores, que servem para o trabalho, mas também através
dos jogos, música, etc., servem ao lazer e com a internet passou a ampliar
essas possibilidades e torná-las mais atrativas e socializadas. Os celulares,
por sua vez, deixaram de ser apenas telefones e passaram a integrar jogos,
música, entre inúmeros outros elementos, também ampliados com o acesso à
internet através deles, se tornando outro meio de consumação do lazer.
O lazer passa a ser,
predominantemente, tempo de consumo de mercadorias. As mercadorias consumidas
são as mais variáveis, como alimentação, tecnologia, corpo, esporte, etc. As
políticas neoliberais e o neoimperialismo facilitam o desenvolvimento do
capital improdutivo e este explora tudo o que é explorável, incluindo coisas
que até algum tempo atrás era considerado “inexplorável”. A mercantilização do
corpo, no caso da venda de órgãos, não remete ao lazer, mas a prostituição sim,
e a expansão do “turismo sexual de massa” (MICHEL, 2015) é apenas um exemplo
desse processo, que além de incentivado por essas determinações acima aludidas,
ainda é legitimado e justificado por ideologias (pós-estruturalismo em algumas
de suas vertentes), estilos de vida hegemônicos (hedonismo, neoindividualismo)
e adiaforização[8].
Assim, a
hipermercantilização do capitalismo neoliberal amplia e insere o lazer na
quinta onda de mercantilização. O lazer é um valor de troca e valor de uso,
pois deve ser comprado e consumido, pois outros o vendem e lucram com isso. A
mercantilização do lazer é inseparável de sua burocratização e, por
conseguinte, do seu controle. E se os indivíduos já se encontravam controlados
em seu trabalho, para-trabalho e obrigações sociais, agora mais um momento de
sua vida passa a sofrer um controle externo. A práxis é reduzida a quase nada,
sendo que em muitos casos se torna inexistente, e resta apenas o sono para ser
mercantilizado e burocratizado, ou seja, algo controlado e lucrativo para o
capital.
Considerações
finais
O presente texto
tematizou a mercantilização do lazer, partindo de sua conceituação e análise do
desenvolvimento histórico. A conclusão da análise histórica é a de que o lazer
é um produto do capitalismo e um mecanismo do mesmo que serve para sua
reprodução, não somente por supostamente renovar as energias dos trabalhadores
mas também por permitir lucro para o capital improdutivo e gerar renda e empregabilidade
para diversos setores, bem como gerar novas formas de envolvimento que desviam
os indivíduos da reflexão crítica sobre sua realidade e reais necessidades.
Esse processo todo é
realizado via mercantilização e burocratização, o que significa que é algo que
tem um preço e é controlado por outros. Nesse caso, o que vem ocorrendo na
história do capitalismo é expansão e ampliação da mercantilização e o lazer vem
sendo cada vez mais mercantilizado e burocratizado. No entanto, quanto mais
mercantilizado e burocratizado, menos atraente para alguns e menos satisfatório
para todos. Quanto maior o preço e a coisificação que lhe acompanha, bem como o
controle que lhe é inseparável, maior a insatisfação, a resistência, a luta,
que pode ser apenas revolta, mas se adquirir consciência do processo, pode se
tornar projeto alternativo e, por conseguinte, revolução.
Referências
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YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente. Exclusão Social, Criminalidade e Diferença
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[1]
Em muitos casos há uma mescla entre lazer e outras atividades. Ou seja, as
obrigações familiares podem ser em determinados casos momentos de lazer, bem
como em diversas outras oportunidades. Isso, no entanto, não ocorre sempre e
depende também dos valores e mentalidade dos indivíduos para considerar certas
atividades lazer.
[2]
O lazer poder ser, inclusive, imposto. Levar as crianças para o parque de
diversões pode ser muito pouco recreativo para determinados indivíduos, para
citar apenas um exemplo.
[3]
Práxis é uma palavra grega que ganhou
o significado semelhante ao de prática. No nosso caso, a concebemos aqui como
sinônimo de trabalho como objetivação, humanização do mundo, segundo Marx
(1988; 1983), possuindo caráter teleológico consciente.
[4]
O trabalho alienado é aquele no qual o trabalhador não controla a sua
atividade, o que gera a alienação do produto, pois ele ao perder o controle da
atividade também perde o controle do seu resultado. A alienação da atividade
gera a alienação do produto. Uma das consequências disto é que tal trabalho se
torna alheio a ele, bem como o seu produto (MARX, 1983; VIANA, 2012). Ambos
passam a pertencer ao não-trabalhador, o proprietário dos meios de produção.
Por conseguinte, a alienação não é um fenômeno da consciência, tal como na
filosofia hegeliana e nas representações cotidianas atuais, bem como nas
interpretações deformadas do pensamento de Marx. Inclusive as traduções
deformadoras, uma trocando inclusive “trabalho alienado” por “trabalho
estranhado” acabam transformando Marx novamente num pensador idealista,
enquanto que sua concepção era materialista.
[5] Para um aprofundamento sobre
isso, a obra no prelo A Mercantilização
das Relações Sociais – Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas,
é indicada, pois busca apresentar as características e dinâmica da
mercantilização e sua fonte geradora e demonstrar que ela é uma forma concreta
pela qual o modo de produção capitalista determina as formas sociais
(“superestrutura” ou “formas de regularização das relações sociais”).
[6]
Lapassade (1989) identifica nesse momento, marcado pelo capitalismo
oligopolista transnacional, sob a dinâmica do regime de acumulação conjugado,
como a fase B da burocratização da sociedade moderna. Poderíamos, no entanto,
dizer que aí ocorre a quarta onda de burocratização (e mercantilização, algo
deixado de lado por Lapassade, por focar apenas na questão da organização e
burocracia). As ondas de burocratização e mercantilização acompanham o
desenvolvimento dos regimes de acumulação: primeira onda, capitalismo comercial,
acumulação primitiva de capital; segunda onda, capitalismo liberal
(concorrencial), regime de acumulação extensivo; terceira onda, capitalismo
oligopolista, regime de acumulação intensivo; quarta onda, capitalismo oligopolista
transnacional, regime de acumulação conjugado; quinta onda, capitalismo
neoliberal, regime de acumulação integral.
[7] Desde os regionais até os
internacionais, como o Rock’n Rio, cantores internacionais, para citar o caso
brasileiro. Isso sem falar na ampliação da mercantilização de eventos mais
antigos e tradicionais, como o Carnaval, Copa do Mundo, Olimpíadas, etc., que
foram, historicamente, cada vez mais mercantilizados, e agora cada vez mais
fonte de interesses estatais, empresariais e de desvio de dinheiro através de
corrupção.
[8]
Adiaforização, pode ser definida como “tornar
certas ações ou certos objetos de ação moralmente neutros ou irrelevantes –
isentá-los da adequada categoria de fenômenos para a de avaliação moral” (BAUMAN,
2011, p. 202), sendo que o “efeito de adiaforização é alcançado pela exclusão
de algumas categorias de pessoas da esfera de sujeitos morais”, entre outros
possíveis efeitos. Jock Young afirma que na modernidade recente (capitalismo
neoliberal), em relação ao aparato jurídico, a adiaforização é ampliada ao se
referir às culturas: “outras culturas não são moralmente julgadas; itens de sua
agenda podem ser vistos com uma certa má vontade (e. g. critoridectomia e
amputação judicial), mas são vistos como separados das culturas elas mesmas,
que aí estão para serem celebradas em vez de julgadas” (YOUNG, 2002, p. 151). É
esse fenômeno que permite, por exemplo, algumas pessoas tentarem legitimar a
prostituição e pedofilia, acusando seus opositores de “moralistas”.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Mercantilização do Lazer. Revista Espaço Livre. vol. 09, num, 18, jul./dez. 2014.
Disponível em :http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/241
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