A Luta de Classes no Brasil (2013-2015)
Nildo Viana
A sociedade brasileira, a partir de 2013, entrou num
processo de crescentes conflitos sociais. Sem dúvida, esse processo se inicia
antes, mas é a partir desse ano que os conflitos sociais se tornam mais
visíveis e profundos. O nosso objetivo é analisar a luta de classes no Brasil a
partir desse momento até a atualidade, no sentido de explicar sua dinâmica e
tendências. Nesse sentido, vamos realizar uma breve contextualização da
sociedade brasileira, focalizando principalmente o Governo Dilma, tendo em
vista sua importância no processo de constituição da situação atual.
A sociedade brasileira vive, desde 1990, sob o governo Collor,
época em que emerge no Brasil o regime de acumulação integral subordinado. A reestruturação
produtiva começava a avançar e o Estado Neoliberal, representado pelo Governo
Collor, realiza as primeiras políticas neoliberais. A crise de governabilidade
e o Impeachment geraram o Governo
Itamar Franco, que deu continuidade moderada ao neoliberalismo. A consolidação
do neoliberalismo ocorre com o Governo Fernando Henrique Cardoso, em seus dois
mandatos. No plano político institucional, a disputa principal era entre o
bloco dominante, representado pelo governo, partidos aliados e setores da
burguesia mais consolidados, e o bloco progressista, hegemonizado pelo Partido
dos Trabalhadores e aglutinando burocracias partidárias e sindicais, entre
outros setores.
A vitória de Luís Inácio Lula da Silva, nas eleições
presidenciais de 2002, altera o quadro político nacional. O que ocorre é que o
bloco progressista é desintegrado, sendo que sua maior parte e mais forte se
torna parte do bloco dominante. O aparato estatal não muda em nada
substancialmente, continuando neoliberal. Isso vale para o Governo Lula, com
seus dois mandatos, bem como para o Governo Dilma, também em ambos os mandatos,
sendo que o segundo mandato, nesse caso, está no início. O que caracteriza os
governos do Partido dos Trabalhadores (Lula e Dilma) é o neoliberalismo
neopopulista.
O que caracteriza o neoliberalismo neopopulista? Essa é uma
forma específica de neoliberalismo, unindo aspectos que remetem à
especificidade da sociedade brasileira com os interesses da burocracia
partidária petista. O PT mostrou que não tinha um projeto de reformas
macroestruturais, tal como propõe a social-democracia, nem um projeto de
transformação social. O PT tinha como grande ambição e objetivo a conquista do
poder estatal, não para apresentar um projeto político, seja qual for
(governamental, revolucionário, etc.) e sim para obter as vantagens de se
aquartelar no aparato estatal. Assim, o único projeto real do PT era o de
ascensão ao poder estatal e preservação do mesmo. Ou seja, no fundo o PT tinha
e é o que ainda tem, um projeto de poder, de conquista e preservação do poder
estatal. No entanto, uma vez no poder e usufruindo dos seus privilégios,
cargos, recursos (por via legal ou ilegal), é preciso também governar. Qualquer
governo, no capitalismo, deveria ter um projeto de desenvolvimento nacional.
Esse projeto é o que aponta como o desenvolvimento capitalista ocorre no âmbito
nacional e inserido na dinâmica internacional. Os governos petistas nunca
tiveram tal projeto.
E é isso que caracteriza o neoliberalismo neopopulista dos
governos petistas. Na falta de um projeto de desenvolvimento nacional e diante
da pressão internacional, adota o neoliberalismo e dá prosseguimento às
políticas dos governos anteriores. Assim, as políticas neoliberais são adotadas
rigidamente, seguindo as diretrizes internacionais (FMI, Banco Mundial, Unesco,
etc.). No entanto, o projeto de poder do PT gerou algumas especificidades no
seu neoliberalismo[1].
Ele realizou uma versão do neoliberalismo no qual se busca criar uma base de
apoio, representado por um conjunto de partidos aliados, setores da burguesia,
junto com uma parte do lumpemproletariado e burocracias (partidárias,
sindicais, governamentais, etc.) e setores dos movimentos sociais. Para
conseguir isso, realizou um conjunto de políticas estatais neoliberais que eram
simultaneamente neopopulistas. No interior destas se destaca as políticas segmentares,
que visa cooptar segmentos sociais específicos e setores dos movimentos
sociais, e as políticas assistencialistas, desde o “Fome Zero”, que foi um
fiasco, até as bolsas de auxílio para a parte mais empobrecida da população.
Apresentando uma versão brasileira das políticas de ação
afirmativa, as políticas de cooptação apresentam algumas propostas que são mais
gerais, como a política de cotas raciais, e geração de empregos, cargos,
financiamento de pesquisas na área, entre outros elementos, que realizam uma
cooptação mais direta de diversos setores da população negra. Isso também
ocorre com as mulheres, homossexuais, etc. O objetivo de tal política
neopopulista, é cooptar setores da sociedade sem grandes gastos estatais,
máxima neoliberal. Esse processo de cooptação se caracteriza por criar uma
forte adesão, através dos beneficiários diretos de tais políticas (os cooptados
diretos) e da manipulação dos sentimentos e necessidades dos demais (cooptados
indiretos), que devido ao vínculo identitário, mesmo não sendo beneficiado
diretamente, apoia integralmente e inclusive com forte teor sentimental.
No entanto, tais políticas são relativamente frágeis. Isso
ocorre devido ao fato de que esses setores cooptados não são grandes
mobilizadores sociais e seu apoio é mais eleitoral e no interior de
determinados instituições (especialmente as estatais). A parte do
lumpemproletariado que recebe as bolsas, tal como a bolsa-família, e os setores
cooptados de movimentos sociais e determinados grupos sociais, não possuem condições
políticas para garantir uma base sólida para o governo. A fragilidade dessa
base de apoio se torna ainda mais evidente devido ao seu relativo sucesso
apenas em períodos de estabilização. Enquanto há estabilidade financeira e política,
ela é suficiente para garantir a governabilidade e sucessos eleitorais.
Contudo, a partir do processo de desestabilização, sua fragilidade se torna
mais que evidente. O PT ao invés de criar bases de apoio junto aos
trabalhadores, o que levaria, fatalmente, ao confronto com setores do capital
(já que demandaria reforma agrária, nova política salarial, etc.), mas que
teria solidez, preferiu unir as políticas neoliberais com o neopopulismo e
assim conseguiu o aparelhamento do aparato estatal e manter a governabilidade e
estabilidade durante o período de estabilização do regime de acumulação
integral subordinado. Esse, no entanto, começa a mostrar seus primeiros sinais
de desestabilização em 2012. É nesse contexto antecedente que podemos avançar
na compreensão da luta de classes a partir de 2013 no Brasil.
O ano de 2012 foi marcado por uma ascensão do movimento
grevista. O número de greves ultrapassou a dos anos anteriores e a situação
financeira do país começava a sair da estabilidade e equilíbrio. A precarização
do trabalho continuava se ampliando. A precarização dos serviços públicos,
incluindo das universidades federais, que entraram em greve nesse ano, era
outro sintoma do fim da estabilidade.
O início de 2013 já apontava para uma possibilidade de ascensão
das lutas sociais. Havia uma expectativa de aumento da inflação, o que se
verificou nesse ano em escala microscópica aliado com o descontentamento dos
movimentos grevistas que não conseguiram grandes resultados no ano anterior, serviços
públicos precarizados, problemas no transporte coletivo, mostram a existência
de uma insatisfação silenciosa. O movimento estudantil, especialmente o seu
setor não burocratizado, apontava para uma retomada das lutas dos anos
anteriores[2] e
o aumento do preço das passagens acaba desencadeando um fortalecimento das
lutas estudantis sobre a questão do transporte coletivo. As manifestações
estudantis se ampliam em maio de 2013 e a repressão estatal também. A violência
estatal incentivou novas manifestações e os estudantes passaram a receber amplo
apoio popular[3].
E, nesse contexto, eclodiram as manifestações populares de junho de 2013. Essas
manifestações promoveram mudanças na dinâmica da luta de classes no Brasil e
por isso merecem uma análise mais detalhada.
As manifestações de junho de 2013 foram derivadas das
manifestações estudantis, sendo manifestações espontâneas (MARQUES, 2013;
VIANA, 2013a; VIANA, 2013b). A sua eclosão teve como origem a insatisfação
social gerada pela precarização e conjunto de outros processos sociais
(incluindo acusações de corrupção e autoritarismo tanto do governo federal
quanto de alguns governos estaduais), bem como pela expectativa de aumento da
inflação, serviços de transporte coletivo, educação e saúde extremamente
precarizados, aliado ao impacto do aumento do preço da passagem e repressão
violenta dos estudantes. Nesse contexto, a insatisfação passou a se explicitar
e as ruas foram tomadas. Estas manifestações, no entanto, superaram as
manifestações estudantis, tanto pela quantidade muito maior de manifestantes,
como também pela ampliação das reivindicações e maior pluralidade de posições
políticas. A composição social era policlassista, contando com setores das
classes privilegiadas e das classes desprivilegiadas, gerando um processo de ação
coletiva sem maior direcionamento e unidade. Os representantes do movimento
estudantil, em alguns casos, se afastaram das manifestações (tanto por falta de
estratégia quanto por interesses político-partidários, entre outras motivações)
e assim aqueles que iniciaram o processo e tinha respeitabilidade e tinham
maiores possibilidades de conseguir unificar as manifestações em torno de um
projeto político, se abstiveram e enfraqueceram as mobilizações. Em algumas
cidades, como em Goiânia, mantiveram sua participação, mas agora concorrendo
com partidos políticos, inclusive o PT, e com um setor da população descontente
mas sem grande politização. Nesse caso, se tentou disputar a hegemonia do
movimento, mas sem estratégia e agindo mais no dia e momento das manifestações,
ao invés de realizar um trabalho anterior.
Diante desse contexto, a reação governamental foi de
repressão e ao notar que isso era impopular e fazia crescer a insatisfação,
passou a querer dividir as manifestações em dois grupos: os “legítimos” (que
seriam pacíficos e estariam em seu pleno direito de protestar) e os “vândalos”
(os mais radicais e os que exerciam atos de violência). O capital
comunicacional (meios oligopolistas de comunicação) seguiu a mesma dinâmica,
passando da crítica das manifestações para a crítica do setor mais
radicalizado. A intenção era aparentar ser democrático e, ao mesmo tempo,
reforçar a hegemonia burguesa no interior das manifestações, tentando criar uma
corrente de opinião[4]
desfavorável aos radicais, buscando, assim, evitar que este influenciasse o
restante da população e manifestantes.
O bloco dominante usou a estratégia de isolar o bloco
revolucionário[5].
As manifestações de 2013 marcaram um momento de radicalização da população e
lutas espontâneas, que se espalharam até pelas pequenas cidades do interior,
promovendo um breve processo de politização da sociedade. O bloco
revolucionário, muito fraco anteriormente, sendo composto por pequenos grupos
políticos, alguns poucos intelectuais, setores da juventude, algumas tendências
de movimentos sociais, etc. estava
presente mas sem grande influência no processo geral. Nesse momento, com a
politização e ala radical do movimento estudantil, aliado com a insatisfação de
amplos setores da população e juventude, se iniciou um processo de
fortalecimento do bloco revolucionário. Apesar disso, por falta de estratégia
de alguns, pouco tempo de ação devido ao caráter inesperado das manifestações
espontâneas, e contradições internas de grupos e indivíduos, o processo de
avanço do bloco revolucionário foi limitado. O bloco progressista, por sua vez,
se aliou ao bloco dominante e combateu as manifestações[6].
Isso ocorreu tanto devido às ideologias vigentes nos partidos progressistas[7],
tal como o bolchevismo e seu vanguardismo antiespontaneísta, quanto à recusa
dos mesmos (e dos partidos em geral) pela maioria dos manifestantes. Isso
significou que as primeiras manifestações populares espontâneas de grande
envergadura explicitaram uma recusa dos partidos políticos, incluindo os
progressistas.
As manifestações ocorreram durante o mês de junho, tanto em
grandes quanto em pequenas cidades e no seu final começou a ter uma presença de
trabalhadores em atos localizados. Contudo, como era de se esperar, as
manifestações não se sustentam por tempo indefinido. A falta de objetivos
concretos, pois existiam múltiplas reivindicações (sendo as principais voltadas
para educação, saúde, condenação de corrupção, transporte coletivo) e de um
projeto político ou alternativo que apontasse para sua concretização eram outros
elementos enfraquecedores das mobilizações. Assim, a multiplicidade e falta de
unidade das manifestações, aliados com seu desgaste natural, acabaram
fortalecendo sua tendência ao esgotamento. O grande problema é que isso gerou
uma politização momentânea e uma corrente predominante de opinião mais avançada
e que apontavam para uma autonomização da população que, no entanto, não
conseguiu criar um processo cumulativo para as lutas posteriores. Isso pode ser
explicado pela ausência do proletariado, como classe (ou seja, fazendo
reivindicações explicitamente relacionadas com sua situação de classe social),
e pela fraqueza do bloco revolucionário, tanto teórica quanto estratégica,
sendo que a primeira reforça a segunda. As manifestações deveriam ter gerado um
fortalecimento do bloco revolucionário e das lutas proletárias, o que ocorreu
muito limitadamente.
As promessas da presidente Dilma Roussef durante o período
das manifestações (punição dos corruptos, reforma política, etc.) retrocederam
tão rapidamente quanto as mesmas. A luta de classes perde a radicalidade que se
esboçou em maio e junho de 2013 e as manifestações e outras ações passaram a se
limitar ao que já era realizado anteriormente. O bloco revolucionário não conseguiu
superar sua debilidade teórica e estratégica, com raras exceções, e continuou
preso, na maioria das suas tendências, ao praticismo e obreirismo. A luta
cultural de alguns setores passou a refletir mais sobre as tendências das lutas
de classes na sociedade brasileira e assim houve uma contribuição real expressa
nas análises das manifestações, das tendências posteriores, a crítica do bloco progressista, apontamentos sobre importância da luta cultural e da necessidade de
estratégia revolucionária, etc. Esse é o caso exemplar da Revista Enfrentamento e outros setores e intelectuais que apontaram
para uma perspectiva revolucionária.
O ano seguinte foi marcado por um processo de amenização das
lutas de classes em comparação com 2013. Dois eventos contribuíram para isso: a
Copa do Mundo de Futebol e as eleições presidenciais e para governos estaduais,
senado e câmara legislativa federal e estadual. As mobilizações mais fortes
foram dos atingidos pelas obras da copa, estudantes ativistas que foram
protagonistas no ano anterior e mais alguns poucos grupos e ações sem grande
repercussão. A ação principal foi efetivada pelo Estado. O Estado, como
“capitalista coletivo ideal”, realiza uma política de repressão preventiva
visando conter o avanço das lutas sociais e especialmente, nesse contexto, os
protestos a respeito da Copa do Mundo de Futebol. Esse evento, cujas obras
faraônicas, acompanhadas de denúncias de corrupção, bem como criação de estádios
em cidades de pouca tradição futebolística, torcida e usos posteriores para os
mesmos, aliados ao desalojamento de inúmeras pessoas de regiões utilizadas para
as construções, era uma vitrine mundial que os protestos poderiam manchar a
imagem do país e do governo. A truculência policial e a prisão de diversos
militantes promoveram um recuo dos ativistas estudantis e em geral. A repressão
preventiva e o medo foram as principais armas do aparato estatal nesse
contexto.
A derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo, algo
inesperado por sua tradição futebolística e estar disputando esse torneio no
próprio país, e o vexame da goleada sofrida pela seleção da Alemanha, abalou
ainda mais a credibilidade do governo. Esse elemento apenas acrescentava (junto
com o processo de manifestações do ano anterior e repressão preventiva) um
motivo a mais para a derrota do PT e seus aliados nas eleições presidenciais do
segundo semestre. No entanto, isso não ocorreu. O segundo semestre de 2014 é
marcado pela busca do governo e dos blocos dominante e em canalizar a luta de
classes para a disputa eleitoral. O bloco dominante se dividia entre a ala
governista, representada pelo PT e aliados, e a ala oposicionista, representada
pelo PSDB e aliados. Outras forças políticas menores atuaram, mas não
conseguiram ultrapassar essa polarização, a não ser durante um período curto no
qual houve a comoção com a morte do candidato Eduardo Campos, o que ajudou sua
substituta, Marina Silva, ganhar um apoio eleitoral inesperado. A alegria durou
pouco, pois a fraqueza da candidata, tanto discursiva nos debates quanto em matéria
de propostas e estratégia eleitoral e sua força partidária restrita não sustentava uma posição permanente na preferência eleitoral e assim acabou tendo sua candidatura sendo superada pela retomada da
polarização no interior do bloco dominante representada pela candidata à
reeleição pela ala governista, Dilma Roussef, e o candidato do PSDB, Aécio
Neves, pela ala oposicionista.
O bloco progressista tentou se recompor e retomar um certo
espaço na sociedade civil e no plano eleitoral. No entanto, passaram a
reproduzir a estratégia petista, no qual o foco no moralismo progressista
(fundado na ideologia do gênero, politicamente correto e afins)[8] se
tornaram prioridade para alguns partidos progressistas, especialmente o PSOL, o
maior dentre eles. Com um discurso ideológico e reprodutor da hegemonia petista,
esse partido não conseguiu aglutinar e se tornar uma alternativa, ficando em
uma posição eleitoral insignificante. Da mesma forma, outros partidos pequenos,
de todas as posições políticas, não conseguiram ir além de debates estéreis e
pouca presença no interior da população.
O bloco revolucionário recuou drasticamente, especialmente
no ativismo. A derrota das manifestações de 2013 e principalmente a repressão
preventiva do aparato estatal no primeiro semestre, aliado com a canalização da
luta de classes para a instância eleitoral, reduziu seu espaço de atuação. A
ação efetiva de maior peso nesse momento foi a luta pelo “voto nulo
autogestionário” e as campanhas anarquistas em favor do voto nulo ou abstenção.
Além disso, havia a continuidade das formas de luta comuns em períodos de recuo
das lutas de classes.
A dinâmica eleitoral gerou um segundo turno na eleição
presidencial entre os candidatos Dilma Roussef e Aecio Neves. A candidata
petista usou várias estratégias para angariar votos, tal como o discurso do
medo (apelando para as poucas melhorias existentes a partir dos governos
petistas e abstraindo suas origens nos governos do PSDB). O candidato do PSDB
não conseguiu ir além da demonstração de maior competência discursiva e mais
desenvoltura nos debates televisivos. O debate foi totalmente despolitizado por
todos os candidatos e tudo passou a girar em torno da competência gerencial e
de questões isoladas (educação, saúde, segurança, etc.). O segundo turno foi
acompanhado do uso dos mesmos procedimentos pouco éticos na disputa eleitoral,
principalmente pela candidatura petista. A candidata petista tinha maior apoio
na classe burocrática e na classe intelectual, apesar de sua política de precarização
das universidades que havia gerado o movimento grevista de 2012, e nos setores
mais empobrecidos da população e o setor da sociedade cooptado pelas políticas
segmentares (sexo, raça, sexualidade, etc.). No entanto, o setor mais ativista,
devido às práticas governamentais de repressão nos dois últimos anos, tendia ao
voto nulo e isso lhe retirou um volume considerável de votos. No segundo turno,
ela conseguiu ganhar com o discurso do medo, o apoio (“crítico”) da maior parte
do bloco progressista e maior quantidade de votos no nordeste do país[9].
Assim, a vitória da ala governista do bloco dominante num
segundo turno e de forma muito apertada mostrou que sua hegemonia já estava
enfraquecida. Isso fortaleceu tanto a oposição oficial e principal no plano eleitoral,
representado pelo PSDB, quanto a ala extremista do bloco dominante que passou a
ter maior presença no cenário nacional. As razões da vitória apertada de Dilma
Roussef foi o deslocamento do apoio de parte da burguesia para o PSDB e a ala semiproletária
do bloco revolucionário ter se afastado e deixado de votar no PT (acompanhando
a ala proletária do mesmo), e, principalmente, grande parte da população
insatisfeita, especialmente das classes desprivilegiadas, que engrossaram a
abstenção e o voto nulo (a soma de votos nulos, brancos e abstenções constituiu
um terço do eleitorado total do país). Assim, a ala oposicionista do bloco
dominante se tornou mais presente e ousada. O PSDB declara que sua oposição não
será apenas nas disputas eleitorais, mas durante os quatro anos de mandato. Uma
ala extremista, bem como grupos religiosos mais conservadores, passam a ter
maior presença na sociedade civil.
Assim, o resultado eleitoral promoveu uma cisão no bloco
dominante. A unidade e unificação relativa para manter a governabilidade e a
reprodução do capital foi substituída pela luta permanente pelo poder. Após as
eleições, os escândalos de corrupção e as manifestações solicitando impeachment e intervenção militar
mostram um pouco da situação de governabilidade instável a partir desse
momento. A ala governista do bloco dominante vai perdendo apoio e a crise
financeira que emerge a partir do início de 2015 acaba reforçando seu desgaste.
O caso da corrupção na Petrobrás e seus desdobramentos facilitam os ataques
oriundos do capital comunicacional e demais alas do bloco dominante. Isso cria
afastamento dentro do próprio PT, tal como indivíduos e grupos que abandonam o
partido, seja por estar mais à esquerda seja por oportunismo ao ver que o barco
está afundando.
Esses acontecimentos apenas mostram a cisão do bloco
dominante e sua luta pelo poder estatal junto com as necessidades do capital de
aumentar a exploração e diminuir mais ainda os gastos estatais, sendo que o
governo petista vem realizando ou permitindo isso paulatinamente, mas sem
romper com certos compromissos que podem minar o que restou de sua base de
apoio eleitoral. A popularidade da presidente caiu para menos de 10% e o barco
parece estar desgovernado. A crise financeira e os cortes de verbas para as
universidades, gerou um novo movimento grevista em mais de 50 instituições, bem
como em outras instituições federais, o crescimento da inflação, desvalorização
da moeda, desenvolvimento do capital (“crescimento econômico”) desacelerado,
entre outros processos, complementam o quadro estabelecido.
Nesse contexto, o bloco progressista se divide entre os
apoiadores discretos do governo com medo da “intervenção militar” ou “fascismo”
e outros mais ousados que apoiam greves e outros processos. O bloco
revolucionário que tendia para um fortalecimento diante da conjuntura, não
conseguiu grande avanço além do que já realiza normalmente, embora novas manifestações
e ações tendam a ocorrer graças às políticas do governo federal e dos governos
estaduais e isso pode reforçá-lo. Nesse caso, a juventude aparece como uma das principais
forças em luta, tal como se pode observar nas ocupações de escolas em São Paulo
depois da investida do governo estadual de Geraldo Alckimim (PSDB) propondo sua
“reorganização”.
O bloco dominante, apesar das rachaduras e divisão interna,
mantém a hegemonia com a criação imaginária de duas falsas polarizações: entre PT e
PSDB (e oposição em geral) e entre moralismo conservador e moralismo
progressista. A crise política-institucional que surge em 2015, tendo como
elementos propulsores as denúncias de corrupção e a campanha pelo impeachment, ao lado da estratégia do
PSDB de fazer oposição cotidiana e no âmbito político-institucional
(principalmente no parlamento e meios de comunicação), foi se agravando com as
investidas de punição de corruptos e desgaste do governo, tanto por sua
incompetência quanto por seu imobilismo. Isso é reforçado pela crise financeira
iniciada, não tão grave quanto anunciado pela grande imprensa, mas também não
desprezível, como propagandeado pelos pró-governistas, e que foi se
aprofundando e aumentando a gravidade, especialmente pela falta de reação
concreta por parte do governo.
Essa polarização, alimentada por governistas e
antigovernistas na política institucional e reforçada nos meios oligopolistas
de comunicação e na internet, especialmente nas redes sociais, acaba ofuscando
os reais problemas sociais e as possíveis soluções dos mesmos. A ala governista
do bloco dominante se mostra inoperante e acuada, esboçando reações que pouco
avançam no sentido de reverter o quadro político-institucional. A ala
oposicionista do bloco dominante, realiza avanços e recuos e também não
apresenta nenhuma proposta concreta de solução dos problemas existentes, se
limita a focalizar o governo como problema e o impeachment como solução[10]. Além
de cargos e posições em disputas no âmbito governamental, o ponto central são
as eleições presidenciais. Esse processo tem um efeito despolitizador e graças
aos meios oligopolistas de comunicação, temos um fortalecimento do
conservadorismo na maioria da população. Ou seja, apesar do objetivo principal
da disputa no interior do bloco dominante seja por cargos e eleições, ele
também tem o objetivo de afastar o fantasma de 2013 que poderia desembocar num
outro tipo de polarização, a de classes. Esse processo é facilitado pela
estratégia de identificar o PT com a esquerda e assim torna possível combater o
primeiro em nome do segundo e vice-versa.
Uma outra polarização, secundária, ocorre no plano
comportamental e moral. Nas últimas eleições presidenciais, foi expressa, sob
forma cômica[11],
no “debate” entre Levy Fidelix (PRTB) e Luciana Genro (PSOL). Nesse caso se
institui uma polarização entre o moralismo conservador e o moralismo
progressista[12].
O moralismo conservador consegue força e apoio de setores de igrejas mais
ortodoxos e de grande parte da população, especialmente das classes
desprivilegiadas e setores mais conservadores das classes privilegiadas,
enquanto que o moralismo progressista tem suas raízes e força nos meios
intelectualizados e em certos setores das classes privilegiadas. Essa
polarização secundária cumpre o mesmo papel que a primária, pois a luta de
classes é substituída por disputas sobre comportamento, sexualidade, etc., com
altas doses de dogmatismo e pouca racionalidade, de ambos os lados, bem como
confusão (intencionais ou inintencionais, dependendo do caso) entre interesses
pessoais e grupais. O domínio dos dogmas (seja da religião, da ideologia
liberal ou da ideologia da moda, entre diversas outras possibilidades) e os
extremismos derivados, garantem escandalização e violência, gerando cada vez
mais afastamento da grande maioria da população e antipatia de antigos
simpatizantes. Esse processo tem um efeito político significativo por ocorrer
no interior dos meios intelectualizados e movimentos sociais, que é de onde emergem
um número expressivo, proporcionalmente falando, de indivíduos e grupos do
bloco revolucionário, que ao se enfraquecer não só permite a reprodução das
polarizações anteriores como também o elo entre forças políticas e organizadas
de caráter proletário e proletariado. Há um potencial explosivo que pode se manifestar, pois o descontentamento das classes desprivilegiadas é grande e tende a crescer. as duas falsas polarizações estão freando a realização desse potencial, mas ele está latente na sociedade brasileira.
Assim, as duas falsas polarizações engendradas pelo bloco dominante (com apoio do bloco progressista) acabam promovendo um processo crescente de despolitização e de aumento de sentimentos antipáticos, maniqueísmos, intolerância, ressentimentos e também conflitos que cada vez mais tendem a ser violentos. Esse processo gerou um estado de letargia que não aponta para nenhuma alternativa ou perspectiva. No entanto, a alternativa está presente e, tal como em 2013, pode explodir a qualquer momento e, tal como no ano que antecedeu este, vários sintomas e processos vão se constituindo para perceber sua tendência. A crise financeira e a busca de solução dela através de mais neoliberalismo só tende a agravar as questões sociais e o empobrecimento da população. Ao lado disso, as falsas polarizações tendem a revelar seu verdadeiro sentido quando o caráter de classe do processo em curso vir à tona. Esses sintomas são visíveis com as políticas de austeridade e mais neoliberalismo, por um lado, e novas lutas que começam a emergir. Depois do presente, virá o futuro.
Assim, as duas falsas polarizações engendradas pelo bloco dominante (com apoio do bloco progressista) acabam promovendo um processo crescente de despolitização e de aumento de sentimentos antipáticos, maniqueísmos, intolerância, ressentimentos e também conflitos que cada vez mais tendem a ser violentos. Esse processo gerou um estado de letargia que não aponta para nenhuma alternativa ou perspectiva. No entanto, a alternativa está presente e, tal como em 2013, pode explodir a qualquer momento e, tal como no ano que antecedeu este, vários sintomas e processos vão se constituindo para perceber sua tendência. A crise financeira e a busca de solução dela através de mais neoliberalismo só tende a agravar as questões sociais e o empobrecimento da população. Ao lado disso, as falsas polarizações tendem a revelar seu verdadeiro sentido quando o caráter de classe do processo em curso vir à tona. Esses sintomas são visíveis com as políticas de austeridade e mais neoliberalismo, por um lado, e novas lutas que começam a emergir. Depois do presente, virá o futuro.
Referências
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VINICIUS, Leo. A Guerra da Tarifa. Rio de Janeiro:
Faísca, 2004.
[1] Em
sua autoimagem ideológica, necessária para se apresentar como não sendo
neoliberal, os ideólogos petistas criaram o termo “neodesenvolvimentismo”,
menos comprometedor que neoliberalismo.
[2] As
lutas estudantis anteriores remontam as ações e manifestações do Movimento
Passe Livre e outras iniciativas. Sobre isso é possível consultar: Vinicius (2004).
[3]
Esse processo foi analisado por diversos autores e obras, sendo que se destacam
as seguintes contribuições: Marques (2013); Maia (2013), Viana (2013a), Viana (2013b),
Davis (2013).
[4]
Para entender melhor esse processo é importante entender a dinâmica das
correntes de opinião e as forças formadoras das mesmas (VIANA, 2015).
[5]
Abordamos as lutas de classes no Brasil através da análise das classes sociais
e suas lutas, bem como de suas expressões mais conscientes e organizadas,
expressas nos blocos sociais. Nesse caso, temos três grandes blocos sociais. O
bloco dominante, que expressa os interesses da classe dominante e tem como
integrantes o aparato estatal, as instituições da burguesia, a classe
capitalista, a maior parte da burocracia e da intelectualidade, os partidos
declaradamente de direita e os governistas (que podem se dizer de “esquerda”,
tal como PT e PC do B – Partido Comunista do Brasil, entre outros que são a
base partidária do governo petista aliado com partidos declaradamente
direitistas). O bloco progressista é composto por parte da burocracia e
intelectualidade, especialmente as burocracias partidárias dos partidos mais
radicais ou de oposição ao governo, que, no caso brasileiro, são o PSOL
(Partido Socialismo e Liberdade), PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores
Unificado), PCO (Partido da Causa Operária) e diversos outros pequenos partidos
e grupos aspirantes a se tornarem partidos. O bloco revolucionário é composto
por grupos políticos, tendências dos movimentos sociais, jovens e operários
revolucionários, alguns intelectuais, tal como o Movaut – Movimento
Autogestionário, alguns grupos anarquistas, a ala revolucionária do movimento
das mulheres e outros movimentos sociais e um grande contingente radicalizado
mas desvinculado de organizações políticas.
[6]
Esse processo é muito comum e basta ver as experiências da Revolução Portuguesa
(VARELA, 2013) ou do Maio de 1968 (BRINTON, 2002) para ver o papel dos partidos
comunistas e semelhantes na luta contra as ações espontâneas dos trabalhadores.
Isso é derivado do seu caráter burocrático e dirigista, expressão dos
interesses da burocracia como classe social, que deve desconfiar e lutar contra
as formas de luta não controladas por eles.
[7] O
termo “progressista”, aqui, não tem uma conotação positiva. Progressista, em
nossa concepção, é uma posição política que visa o progresso no interior da
sociedade burguesa, o que revela seus limites intransponíveis. O progresso no
interior da sociedade burguesa só pode ser o progresso capitalista, ou seja, um
desenvolvimento ou reforma do mesmo, o que significa sua manutenção. Logo,
tanto as concepções social-democratas, quanto as bolchevistas e semelhantes,
são progressistas. Aqueles que se dizem “revolucionários” e pregam a luta
armada também são progressistas, pois sua concepção de “socialismo” não
ultrapassa o âmbito de um capitalismo reformado.
[8] O
capitalismo contemporâneo, com a hegemonia pós-estruturalista e neoliberal, gerou
novas concepções vigentes, incluindo um moralismo progressista (que tem
vertentes diferenciadas, como a neoindividualista e acaba derivando dele um imoralismo)
e também, em certos contextos, gerou mais força para o moralismo conservador,
também em diversas vertentes. A identificação das forças progressistas
(especialmente partidos comunistas e social-democratas e, no caso brasileiro, o
PT) como sendo “esquerda” acaba gerando a falsa ideia de que o moralismo
progressista é uma concepção esquerdista. Ele é, no fundo, uma versão do
moralismo burguês, e, portanto, é direitista tanto quanto o moralismo
conservador. A confusão terminológica que os progressistas e conservadores
realizam hoje é uma estratégia para polarizar entre eles e ofuscar uma
concepção realmente revolucionária. Não deixa de ser curioso ver como os
liberais contemporâneos estão querendo ressignificar os termos “direita” e
“esquerda”. Isso aparece, por exemplo, na concepção que afirma que a direita
defende a liberdade e a esquerda a igualdade (ou outras dicotomias no interior
da sociedade capitalista, como mercado X estatismo; individualismo X coletivismo,
etc.). Na concepção marxista, direita significa a posição política da burguesia
e esquerda a posição política proletária, tendo um caráter de classe e
concreto, sendo que a liberdade proposta pela classe dominante é a individual e
formal e a igualdade sendo coisa secundária e apenas de “oportunidades”
enquanto que para o marxismo a liberdade e a igualdade são inseparáveis e
objetivos do comunismo. Para fugir da confusão e dessa dicotomia, talvez seja
mais estratégico abandonar o uso desses termos e usar nova terminologia para
distinguir os dois polos da luta de classes.
[9] As
eleições presidenciais no Brasil acompanham a diversidade e diferença regional
(e de classe, embora nesse aspecto sem homogeneidade). O PT, quando tinha um
discurso mais oposicionista, ganhava menos votos no nordeste e norte e ganhava mais
votos no sudeste e no sul. No entanto, o seu principal apoio eleitoral foi se
deslocando com o passar do tempo. O nordeste, mais empobrecido, e mais sensível
às bolsas-família e outras migalhas oferecidas pelo governo federal, acabou
oferecendo uma votação mais expressiva para a candidata do PT, bem como no
norte. No centro-oeste houve equilíbrio e no sul e sudeste o PSDB ganhou. Isso
gerou um certo preconceito em relação aos nordestinos pelos mais direitistas na
região sul e sudeste, incentivado pelo seu peso eleitoral na eleição
presidencial.
[10]
Não existe consenso na ala oposicionista. O principal representante dessa
tendência é o PSDB, mas no seu interior se agrupam também tendências
semifascistas, neoliberais de diversos tipos, setores “democráticos” e
“reformistas”, etc. Alguns defendem o impeachment
e outros não, para citar um exemplo de diferença no seu interior.
[11]
Aliás, a comicidade é uma característica perene da política institucional
brasileira. Basta ouvir os discursos da presidente Dilma Roussef, dignos de um
programa televisivo de humor, para se ter uma noção disso. Há um humor
involuntário que é inofensivo em si, como os discursos presidenciais
anteriormente citados, como um que é cômico apenas por seu caráter absurdo,
como as práticas parlamentares. Isso apenas revela o baixo nível da política
institucional brasileira.
[12] A
moral pode ser aqui compreendida como um conjunto de normas produzidas
socialmente e impostas posteriormente aos indivíduos. O moralismo é
caracterizado por uma prática de julgamento e condenação com base em uma determinada
moral (VIANA, 2015). O moralismo progressista formalmente é igual ao conservador,
a diferença está no conteúdo, pois sua base moral é distinta.
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