A Miséria Acadêmica e a Dialética da Revolta
Nildo Viana
As universidades devem ser avaliadas criticamente. Elas servem para reproduzir as relações de produção capitalistas, a miséria intelectual, a ideologia dominante, principalmente num país que sofre uma intensa colonização cultural como é o caso do Brasil. Tal como diz Lima Barreto, em sua paródia da sociedade brasileira, a República de Bruzundanga: “é sábio, na Bruzundanga, aquele que cita mais autores estrangeiros; e quanto mais de país desconhecido, mais sábio é. Não é, como se podia crer, aquele que assimilou o saber anterior e concorre para aumentá-lo com os seus trabalhos individuais. Não é esse o conceito de sábio que se tem em tal país. Sábio é aquele que escreve livros com as opiniões dos outros. Houve um que, quando morreu, não se pôde vender-lhe a biblioteca, pois todos os livros estavam mutilados. Ele cortava-lhes as páginas para pregar no papel em que escrevia os trechos que citava e evitar a tarefa maçante de os copiar” (Lima Barreto, 1985, p. 119).
As universidades, para cumprir o seu papel, devem se organizar burocraticamente e em época de neoliberalismo, as universidades estatais devem se submeter a um processo ainda mais intenso de mercantilização. Mas ela também serve para “disfarçar o desemprego dos jovens”, é lugar de “trabalho improdutivo forçado” (Lettieri, 1989). A educação superior prepara hoje, mais do que antes, para o desemprego (Sanchis, 1997). A decadência da universidade faz parte de sua estrutura mas agora ela é reforçada pela nova configuração do capitalismo que produz reprodução ampliada da miséria acadêmica. Neste contexto, os mais atingidos são os estudantes e estes mostram uma grande passividade diante deste processo, mas às vezes se revoltam. É desta revolta que iremos tratar aqui, mas antes iremos abordar as razões da revolta, isto é, a miséria acadêmica.
A academia pode ser considerada, como muito bem colocou Maurício Tragtenberg, recordando o genial Lima Barreto, um “cemitério de vivos” (Tragtenberg, 1990). Os vivos “vivendo” num mundo sem vida. Devido aos objetivos das universidades, reproduzir as relações de produção capitalistas através da produção de ideologias e da formação de força de trabalho especializada, temos zumbis (professores) reproduzindo zumbis (alunos) e esta reprodução não-natural, mesmo porque os zumbis devem ser estéreis, para se realizar necessita de determinadas práticas, que podemos denominar “burocráticas”. É como o filme “A Madrugada dos Mortos”, onde os zumbis querem devorar os vivos e os transformam em zumbis tão patéticos quanto eles, se bem que é preferível o final da outra produção que apresenta uma sátira a este filme, “Todo Mundo Quase Morto”, pois nesse, pelo menos, os zumbis saem perdendo e são domesticados, passando a ter alguma “utilidade social”. Na realidade dos zumbis acadêmicos, temos outros métodos além da mordida: cooptação, sigilo burocrático, hierarquia, controle do saber, etc. (Tragtenberg, 1990). A lógica da reprodução acadêmica, com seus modismos superficiais e ideologias natimortas, sustenta uma burocracia universitária que zela para reproduzir o mundo atual e por isso a necessidade do controle. Controlar é a palavra chave. Não se trata de desenvolver o saber, mas de controlar o saber, parafraseando Rosa Luxemburgo que, em seu texto sobre Lênin, afirmava que este não queria “desenvolver o movimento operário” mas “controlá-lo” (Luxemburgo, 1985).
Mas as universidades (e aqui focalizamos as estatais, também conhecidas como “públicas”) estão envolvidas no processo de desenvolvimento histórico do capitalismo e hoje a dinâmica capitalista está fundada numa intensificação da exploração e da mercantilização que as atingem diretamente. Para os estudantes, além do ensino ficar mais repressivo – e não faltam ideólogos querendo “mais repressão” (Viana, 2002) –, devido a vinculação imediata com o mercado de trabalho, o que gera um neotecnicismo e criação de cursos ao sabor do mercado (inventam até mesmo “ciências”, do tipo “ciências imobiliárias”...) e a expansão do ensino superior privado marca também um processo de passagem em grandes proporções não somente do ensino superior como “disfarce de desemprego” mas também como produtor de desempregados diplomados, já que o mercado de trabalho não irá absorver o “exército industrial de diplomados de reserva”, o que tem como uma de suas conseqüências a precarização do trabalho docente, com o achatamento salarial, bem como de outros setores, graças a competição pelo mercado de trabalho. Mas outro elemento presente nas políticas neoliberais para a educação está no apoio ao ensino superior privado em detrimento do ensino superior estatal, o que acompanha a lógica neoliberal de diminuição de gastos estatais e é por isso que há a redução da política de assistência estudantil (fechamento de restaurantes universitários ou sua terceirização, falta de moradia estudantil, de auxílio para estudos e pesquisas, etc.), políticas paliativas visando a “inclusão” dos “excluídos”, tal como a política de cotas, que significa não aumentar vagas (mas substituir seus ocupantes) e fazer propaganda de que está incluindo pessoas no ensino “dito” público, etc. A diminuição das verbas também faz parte deste quadro e o sucateamento das estruturas físicas e a mercantilização do ensino nestas instituições (cursos de especialização e outros pagos, parceria e captação de recursos junto a empresas privadas, etc.).
Neste quadro da situação das universidades quem mais sofre é o estudante. No entanto, as novas gerações de estudantes muitas vezes desconhecem a existência, em períodos históricos anteriores, de política de assistência estudantil para os alunos mais carentes, por mais limitada que fosse, etc. mas conhecem a política de cotas para uma universidade cada vez mais sucateada e com menos condições de dar assistência estudantil, o que significa que a permanência na universidade estatal é algo cada vez mais difícil. Mas a situação vem se deteriorando com o passar dos anos e com o aprofundamento das políticas neoliberais, inclusive as implementadas pelos governos “ditos” de esquerda.
A revolta é um processo no qual existe(m) o(s) revoltado(s) e o motivo pelo qual ele(s) se revolta(m). Isto significa que toda revolta é uma resposta e toda resposta responde a alguma coisa. Logo, não existe revolta gratuita, sem motivação, sem razão. O revoltado pode atingir o alvo errado, a revolta pode ser ineficaz ou realizada de forma equivocada, mas toda revolta é legítima em si mesma. Por conseguinte, a idéia de punir os revoltados é apenas uma defesa da ordem e da situação que criou a revolta e não a abolição da revolta ou de suas condições de existência.
As revoltas estudantis coletivas sempre foram legítimas reações contra situações deploráveis. Hoje, mais do que nunca, a tendência é explodir revoltas e nesta explosão de revoltas, sob as mais variadas formas (individuais, coletivas, grupais, superficiais, reformistas, revolucionárias, cotidianas, coisificadas, etc.), se colocam aqueles que se preocupam em entender a situação da revolta e os revoltosos, enquanto que os outros se preocupam apenas em “vigiar e punir”, isto é, defender o status quo. A diferença é que alguns olham para as causas e outros apenas para os efeitos e se preocupam apenas com estes. Os revoltosos podem sofrer sanções, punições, mas nada disto irá impedir novas revoltas. Aliás, tende a intesificá-las. Um bom governo conservador, uma competente burocracia, nunca fornece motivos desnecessários para os explorados e oprimidos se rebelarem.
O caso recente dos estudantes da UNESP de Franca[1] é apenas um exemplo entre milhares de outros, tal como o caso da torta jogada no reitor da UnB[2], as revoltas e protestos estudantis na Europa, a luta pelo passe livre no Brasil, entre outros casos, são apenas parte do processo mais global de mobilização e revoltas coletivas que explodem no mundo contemporâneo, tal como ocorreu recentemente na França[3].
As revoltas estudantis, mais ou menos radicais, individuais ou coletivas, é apenas expressão da miséria acadêmica, e protesto contra ela. Tal como Marx colocou referente à religião, as revoltas estudantis possuem um caráter de expressão e de protesto. As revoltas estudantis, com exceção do momento em que elas realmente questionam a condição estudantil, a instituição universitária e se articula com o movimento operário e luta pela transformação social, são expressão da miséria acadêmica e, ao mesmo tempo, protesto contra ela. Elas são expressão da miséria acadêmica (e estudantil). Segundo Khayati, representante do situacionismo, “numa época em que a arte morreu, ele [o estudante – NV] continua sendo o principal fiel dos teatros e cineclubes, bem como o mais ávido consumidor de seu cadáver congelado e difundido em celofane nos supermercados para as donas-de-casa da abundância. Ele participa disso sem nenhuma reserva, sem segundas intenções e sem distanciamento algum. É o seu elemento natural. Se os ‘centros culturais’ não existissem, o estudante os teria inventado. Ele confirma com perfeição as análises mais banais da sociologia norte-americana do marketing: consumo ostentatório, estabelecimento de uma diferenciação publicitária entre produtos idênticos em nulidade (Pérec ou Robbe-Grillet, Godard ou Lelouch)”. Khayati continua: “incapaz de sentir paixões reais, ele se delicia com polêmicas sem paixão entre os ícones da ininteligência a respeito de falsos problemas cuja função é disfarçar os verdadeiros: Althusser – Garaudy – Sartre – Barthes – Picard – Lefebvre – Levi-Strauss – Halliday – Chatelet – Antoine. Humanismo – existencialismo – estruturalismo – cientismo – novo criticismo – dialeto-naturalismo – cibernetismo – planetismo – metafilosofismo”; “na sua aplicação, ele se considera de vanguarda porque assistiu ao último de Godard, comprou o último livro argumentista, participou do último happening desse Lapassade, uma besta. Ignorante, ele acredita serem novidades ‘revolucionárias’, garantidas por certificado, as piores versões de antigas pesquisas efetivamente importantes em seu tempo, edulcoradas para uso do mercado” (Khayati, 2002, p. 38).
Certamente não é possível concordar com a totalidade das afirmações de Khayati, e desconsiderar Jean-Paul Sartre, Henri Lefebvre e Georges Lapassade. Mas também é preciso ver que estes pensadores produziram coisas horrorosas. Por exemplo, Lefebvre e seu pequeno livrinho O Marxismo (1979), da coleção Que Sais-Je? ou, na edição luso-brasileira, Saber Atual, apresenta uma interpretação do marxismo que qualquer stalinista concordaria... e é claro que os problemas de sua produção não se limitam a isto, mas daí não se pode descartar a totalidade de sua produção, inclusive sua influência sobre o situacionismo, bem como ter antecedido vários elementos desenvolvidos pelos representantes desta tendência. Além disso, seria preciso uma atualização dos “ícones da ininteligência”: Kurz – Foucault – Deleuze – Guatari – Derrida – Negri – Pierre Levy – Maffesolli – Moscovici – Durand – Bourdieu – Touraine – Boaventura de Sousa Santos – Giddens. Pós-Modernismo – Pós-Marxismo – Multiculturalismo – Teoria Crítica Pós-Moderna – Globalismo – “Marxismo” Analítico – Escola da Regulação – Desconstrucionismo – Representações Sociais – História Cultural – Pós-Colonialismo – Culturalismo – Situacionismo. A quantidade de ícones deveria ser bem maior, mesmo porque o mercado capitalista de ideologias ampliou-se bastante dos anos 60 para cá. Aliás, não deixa de ser cômico como o situacionismo se transformou em mais um espetáculo debordiano... e como é caricaturizado contemporaneamente.
Mas as revoltas estudantis não são apenas os estudantes, são os estudantes em ação, são expressão da miséria acadêmica e da própria miséria, mas também são protesto, mesmo que miserável, contra tal miséria. O protesto estudantil contra a miséria estudantil e acadêmica pode ser miserável, mas continua sendo um protesto e continua sendo legítimo, pois assim como os servos da Idade Média se revoltam utilizando a linguagem religiosa dominante, os estudantes podem se revoltar utilizando a linguagem e cultura miserável dominante. Mas os estudantes também podem fazer um protesto não-miserável, ir além da miserabilidade existente e sair de sua mônada miserável. A luta miserável contra a miséria só pode reproduzir a miserabilidade a que pretensamente se opõe. A verdadeira luta contra a miséria existe na negação da miséria, inclusive no próprio processo de negação, o que faz com que ela seja simultaneamente uma afirmação. Quanto mais miséria, mais revoltas miseráveis. Neste sentido, existe um círculo vicioso da miserabilidade.
É preciso sair deste círculo vicioso. Mas este é um círculo vicioso formado não por materiais da natureza, objetos, e sim seres humanos. Estes criam as suas relações e por isso podem transformá-las, ou reproduzi-las.
Mas este não é o ponto de vista da burocracia universitária. Qualquer contestação, qualquer inovação, qualquer recusa da autoridade, por mais corriqueira ou banal que seja, por mais ineficaz ou infantil que seja, por mais irrelevante ou pouco radical que seja, por mais assimiláveis e plausíveis, do ponto de vista burocracia universitária, que sejam as reivindicações, ela deve controlar e punir, pois é para isso que ela existe. É por isso que a Unesp expulsa seus alunos recalcitrantes. Pessoalmente, por mais que se apresentem justificativas “estéticas” para o ato dos alunos, a sua ação foi, do meu ponto de vista, de mau gosto. No entanto, igualmente de mau gosto e despropositado é a expulsão deles, pois suas reivindicações são legítimas, afinal ninguém quer estudar num prédio caindo aos pedaços e que pode, literalmente, cair. Por isso é necessário, deixando de lado a forma como protestaram, defender a legitimidade de suas reivindicações e, por conseguinte, a ilegitimidade da expulsão.
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[1] Para uma descrição deste acontecimento veja o texto de João Bernardo, Um Acto Estético.
[3] Sobre alguns destes acontecimentos, veja: http://www.booklink.com.br/tribuna.htx?cod_autor=1420 e http://barcelona.indymedia.org/newswire/display/216772/index.php
Referências Bibliográficas:
Khayati, M. A Miséria do Meio Estudantil. In: Situacionista. Teoria e Prática da Revolução. São Paulo, Conrad, 2002.
Lefebvre, Henri. O Marxismo. 5ª edição, São Paulo, Difel, 1979.
Lettieri, A. A Escola e a Fábrica. In: Gorz, A. (org.). Crítica da Divisão do Trabalho. 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 1989.
Lima Barreto, A. H. Os Bruzundangas. São Paulo, Ática, 1985.
Luxemburgo, Rosa. Questões de Organização da Social-Democracia Russa. In: Lênin, W. e Luxemburgo, R. Partido de Massas ou Partido de Vanguarda. Polêmica Rosa/Lênin. São Paulo, Nova Stella, 1985.
Sanchis, E. Da Escola ao Desemprego. São Paulo, Agir, 1997.
Tragtenberg, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. 2ª edição, São Paulo, Cortez, 1990.
Viana, N. Violência e Escola. In: Vieira, R. G. e Viana, N. (orgs.). Educação, Cultura e Sociedade. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Miséria Acadêmica e a Dialética da Revolta. Revista Espaço Acadêmico. vol. 5, num. 55, dez. de 2005.
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