INTELECTUAIS
MIDIÁTICOS, OS NOVOS REACIONÁRIOS
Maurice T. Maschino
Ilusões perdidas,
desencanto ou, pura e simplesmente, oportunismo? Por que teriam os intelectuais
franceses de hoje dado uma guinada à direita? Le Monde diplomatique fez uma
pesquisa cujo resultado é publicado nesta edição. Maurice T. Maschino
Quando o povo está amordaçado e a democracia em perigo, “a
insurreição é o mais sagrado dos deveres”. De Rousseau a Sartre (“Temos razão
em nos revoltar!”), de Voltaire, que defendeu a viúva Callas, a Zola – que
denunciou a condenação injusta do capitão Dreyfus – e Gide, que se insurgiu
contra a guerra do Marrocos e contra o colonialismo no Congo, os intelectuais,
na França – pelo menos os mais representativos – estiveram, durante dois
séculos, na vanguarda do combate em prol da justiça e da liberdade.
De Rousseau a Sartre,
de Voltaire a Zola e Gide, os intelectuais franceses foram, durante dois
séculos, a vanguarda da luta pela justiça e pela liberdade
Sem temer o confronto com os poderes constituídos, sofrendo
pessoalmente as conseqüências (Hugo e Zola tiveram que se exilar), participaram
de todas as lutas contra opressores e tiranos. A guerra da Espanha
mobilizou-os, e Saint-Exupéry, Georges Bernanos, François Mauriac e André
Malraux, entre tantos outros, tomaram parte ativa na denúncia do fascismo. A guerra
da Argélia faria com que a maioria deles se opusesse à política de
“pacificação”: quase todos (François Mauriac, André Mandouze, Pierre-Henri
Simon) denunciaram a tortura e os excessos do exército francês, e mais de 121
deram apoiaram os desertores e os refratários num famoso Manifesto. Em primeiro
lugar, é claro, Jean-Paul Sartre e sua revista, Les Temps Modernes, mas também
etnólogos (Jean Pouillon), historiadores (Pierre Vidal-Naquet), orientalistas
(Maxime Rodinson), matemáticos de renome internacional (Laurent Schwartz),
escritores, artistas, atores, jornalistas… Atualmente, é difícil imaginar o
impacto que essa mobilização das maiores cabeças da época produziu na opinião
pública, e nos poderes constituídos.
As “aparências da história”
Pois os tempos mudaram. E se Maio de 68, para muitos, ainda
teve um cheiro de revolução, a descoberta do gulag e do socialismo real, bem
como a evolução dos países da África e Ásia recém-independentes, provocaram em
muitos intelectuais franceses um verdadeiro trauma.
A perda de suas ilusões, ou de suas esperanças, levou muitos
deles, nas décadas de 70 e 80, a se refugiarem num silêncio constrangido e a
renegarem os compromissos da juventude. Ou a intervirem, ruidosamente, com o
ímpeto e a má consciência dos arrependidos, em sentido inverso. Fazem mea
culpa, ou a dos que os precederam, acusados de se terem sempre enganado. Ou
ainda, aderindo ostensivamente à americanização do mundo, à globalização
econômica e à ideologia neoliberal, que antes denunciavam tão energicamente.
Atualmente, alguns não hesitam em assumir, sobre uma questão qualquer
(política, econômica ou cultural), posições que eles mesmos teriam qualificado,
alguns anos atrás, de extremamente reacionárias.
Outros continuam marcados pelo choque que sofreram na
juventude. Se o tempo das autocríticas acabou, o fracasso da Perestroika e o
colapso da União Soviética convenceram-nos de que a construção de um socialismo
de aspecto humano era apenas uma utopia. Longe de estimulá-los, a política que
François Mitterrand e a esquerda implementaram na década de 80 fortaleceu-os,
em seu ceticismo, e continuam decididos a não mais se deixarem enganar pelas
“aparências da história”.
Esquecendo o que foi escrito
A guerra da Espanha mobilizou Saint-Exupéry, Bernanos, Mauriac e
Malraux. A guerra da Argélia levou-os a denunciarem a tortura e os abusos do
exército
O próprio termo intelectual engajado é por eles repudiado.
Refugiados em universidades, confinados em seus gabinetes e só se manifestando
em revistas destinadas a um público restrito, os mais sérios deles dedicam-se
essencialmente à “pesquisa da verdade”.
Pierre Nora é um exemplo disso. Ao intervir no presente,
sempre ambíguo e enganador, o intelectual corre o risco de se perder e enganar
os cidadãos, diz ele. Deve, portanto, ter sobre a sociedade em que vive o mesmo
“olhar distante” que tem o etnólogo sobre os nambiquaras: “O que pensávamos de
De Gaulle em 1958? Toda a esquerda gritava que era um aprendiz de ditador e
denunciava um golpe de Estado fascista?. Faríamos esse mesmo julgamento nos
dias de hoje?” Em primeiro lugar, prudência: “É preciso separar a atividade
intelectual da atividade militante… É horrível dizer, mas quando me
perguntaram, vinte anos atrás, que slogan eu queria para Le Débat, respondi
rindo: ?Os intelectuais falando aos intelectuais? como ?Os franceses falando
aos franceses?. É preciso aceitar que não se é o porta-voz das multidões.” Mas
quem lhes oferecerá uma linguagem de verdade, se o intelectual se esconder e se
calar? “Azar delas, se não houver intermediário!”
Pierre Nora vai até mais longe, no que se assemelha muito a
um desprezo de aristocrata: não hesitaria, eventualmente, em “dissociar o que
pensa do que escreve”. Convencido, por exemplo, de que a saída para o conflito
entre israelenses e palestinos só pode ser trágica, não falaria sobre isso e
deixaria alguma esperança ao leitor. Aliás, “é inútil escrever artigos
puramente opinativos. Acrescentar opinião à opinião. Que um Théo Klein denuncie
a política de Sharon, tudo bem. Mas de que serviria minha opinião?[1] Se
o cidadão Pierre Nora é de esquerda (“É claro que votei em Jospin!”), o
intelectual assume outra posição.
Intelectuais de televisão
A perda das ilusões e das esperanças levou muitos deles a se refugiarem
num silêncio constrangido e a renegarem os compromissos da juventude
Outros, também partidários da maior discrição, não parecem,
à primeira vista, sofrer de esquizofrenia. Sem a menor hesitação, afirmam que o
papel do intelectual é “pensar o mundo para transformá-lo”: “Intelectual”,
declara, por exemplo, Pierre Rosanvallon, historiador e professor do Collège de
France, “é quem vincula um trabalho de análise a uma preocupação cidadã. De
contrário, é um especialista.” Mas, como esses intelectuais não pretendem de
forma alguma vulgarizar seu saber – e rejeitam as “caricaturas” que são, em sua
opinião, os “ensaístas superficiais” e “assinantes de jornais” – condenam-se ao
individualismo e ao conservadorismo dos professores mais clássicos.
Pierre Rosanvallon discorda: “Há intermediários e há
mediações: professores do secundário, intelectuais da sociedade, jornalistas…
Nossos trabalhos são percebidos de uma maneira ou de outra pela sociedade.”
Ilusão: cinquenta anos depois do final da guerra da Argélia, muitos
professores, inclusive de esquerda, passam rápido demais pelas páginas sombrias
desse período. Quando não as ignoram[2].
Considerar-se “mediado”, quando não se atinge senão uma fração ínfima do
público, é delírio. E declarar que os livros de intervenção de Pierre Bourdieu,
por exemplo, representam “uma queda na exigência de verdade” (Pierre
Rosanvallon), é adotar uma concepção elitista do intelectual que faz o jogo do
poder.
Diante desses intelectuais que recusam qualquer publicidade
– e, aliás, não interessam aos meios de comunicação por serem muito
complicados, sejam eles claramente de esquerda (Daniel Bensaïd, Miguel
Benasayag) ou simples democratas (Clément Rosset, Marcel Gauchet) – surgem
figuras bastante hábeis, que ocupam toda a cena e se confundem, para o grande
público, com os intelectuais. É à própria habilidade, bem como à onipotência,
politicamente orientada, da televisão, que devem seu sucesso.
Big Brother, um programa “educativo”
Alguns não hesitam em assumir, sobre uma questão qualquer, posições que
eles mesmos teriam qualificado, alguns anos atrás, de extremamente reacionárias
Marxistas ou simpatizantes até há pouco tempo, no começo de
suas “carreiras”, apressaram-se – foi um dos “efeitos Soljenitsin” – em negar
seus primeiros amores e jogar fora o bebê com a água do banho: em sua
fantasmagoria, os mestres pensadores tornavam-se “comedores de criancinhas” –
do cérebro de Hegel, Marx, Fichte ou Nietzsche teriam saído diretamente, diziam
eles, o antissemitismo e o Estado totalitário. Era hora de promulgar uma “nova
filosofia”, que daria ao capitalismo um aspecto humano: André Glücksmann,
Bernard-Henri Lévy, Jean-Paul Dollé e alguns outros entregaram-se a essa
tarefa. Com toda a sinceridade, sem dúvida. Mas sem excesso de lucidez.
É provável que essa agitação tivesse durado o tempo de vida
das rosas, se esses jovens, que tinham em sua bagagem mais relações mundanas do
que livros, não tivessem suscitado a curiosidade, e depois o entusiasmo, dos
meios de comunicação – entre outros, da televisão. Não estavam eles dando seu
aval (de “esquerda”) à ordem existente, e um pouco de vida a um mundo cínico?
Não hesitando em combater as violações dos direitos humanos em Bangladesh ou na
América Latina, não estavam eles contribuindo para manter a lenda de uma França
na vanguarda do combate em prol da liberdade?
Logo levados para o primeiro plano do palco midiático, por
ali foram ficando. Não em consequência de sua “obra” – uma série de ensaios
apressados não constitui uma obra, assim como algumas ideias de impacto não
formam um pensamento -, mas porque estão em simbiose com uma época que, em
todos os campos, gosta da bazófia e apresenta, tal como a alquimia do século
XVI, cobre em vez de ouro e lata em vez de prata. São esses intelectuais os primeiros
beneficiários dessa perversão dos valores, que transforma um caso policial, por
mais trágico que seja, em acontecimento de primeira importância, faz de Big
Brother uma espécie de curso de educação amorosa (Luc Ferry[3])
ou, de um mediador de debates na televisão, um professor de filosofia.
Um troca de favores incestuosa
O próprio termo intelectual engajado é por eles repudiado. Refugiados
em universidades, os mais sérios deles dedicam-se à “pesquisa da verdade”
A época, de fato, não é mais aquela em que um intelectual se
definia, em primeiro lugar, por seu trabalho de intelectual. Por uma obra que o
tornava conhecido e, quando intervinha nos assuntos do século, fundamentava sua
legitimidade. Voltaire, Hugo, Zola, Sartre, Gide, Foucault, Bourdieu… todos
foram, antes de tudo, criadores, que só deviam a fama a si mesmos, a seu
talento e à força de seus escritos. Hoje, pouco importa a qualidade, ou a
nulidade, de uma produção: são os meios de comunicação, e a televisão em
primeiro lugar, que consagram os intelectuais. Que os fazem existir como
intelectuais. Decidem quem é e quem não é intelectual. E, por isso mesmo,
modificam radicalmente seu status: não se trata de escrever os livros mais
substanciais, mais profundos, para ser reconhecido como intelectual, mas ter a
maior visibilidade, estar o maior número de vezes no vídeo, no rádio e na
manchete dos jornais. Do Libération ou do Le Monde, se possível, e nas
revistas.
Melhor ainda: se ocupar um cargo de editorialista de um
grande jornal de Paris – ou nas revistas Le Point, Le Nouvel Observateur ou
L’Express, sem esquecer a diretoria de uma coleção numa editora – pode estar
certo de conservar seu lugar ao sol, graças à rede de relações parisienses que
assim se forma.
É uma troca de favores: aos meios de comunicação, os
intelectuais devolvem o brilho que deles receberam, e os meios de comunicação,
que os solicitam por qualquer motivo, mantêm a sua reputação. Semelhante
dependência servil em relação aos que os fazem reis e podem, de um dia a outro,
deixá-los de lado, tem repercussões na própria natureza da produção
intelectual: esta deve ser mantida – um livro por ano, a cada dois anos, pelo
menos, mesmo que seja um comentário incoerente da atualidade mais disparatada,
batizado “diário” – e, entre um livro e outro, artigos, conferências,
participação no programa de um colega ou de um diretor de redação qualquer,
cujo novo livro será, é claro, aclamado (embora nem sempre lido…). Tudo isso em
detrimento da qualidade, da seriedade, do rigor, do trabalho em profundidade, e
no maior desprezo pelos fatos.
Quando um gato não é um gato…
Pierre Nora é um exemplo. Ao intervir no presente, sempre ambíguo e
enganador, o intelectual corre o risco de se perder e enganar as pessoas, diz
ele
Desempenhando alegremente o papel de jornalistas, esses
“intelectuais de paródia”[4] 4
raramente se deslocam in loco (e quando o fazem, dirigem-se às autoridades que
controlam o território, são guiados por elas, protegidos por seguranças, quando
não pela polícia militar do país que visitam…) e pouco se dedicam ao trabalho
minucioso de entrevistas do repórter, que corre riscos, coleta pacientemente
informações e dá tanta atenção aos simples cidadãos quanto aos chefes de Estado
ou de guerra. “Eles não estão a serviço de uma causa”, diz Pierre Nora.
“Servem-se dela, põem a infelicidade do mundo a serviço de seu ego.” E de um
narcisismo exorbitante.
Repórteres por um dia ou escritores prolixos, todos cultivam
sua especificidade. E, na falta de inovação – de criação – se repetem para
acentuá-la: ruidosa defesa dos direitos humanos, de preferência na Croácia, na
Bósnia ou em Ruanda, países mais “exóticos” do que a França; elogio
sensacionalista do neoliberalismo e da globalização econômica (forçosamente bem
sucedida); apologia incessante dos Estados Unidos; crítica constante do
“terceiro-mundismo”; denúncia permanente do “progressismo” e de qualquer tipo
de modernismo; apoio incansável e incondicional ao governo de Israel… Cada qual
com seu estandarte, que o torna imediatamente identificável. Cada qual com sua
reserva de mercado. Por menos sólido que seja, seu detentor pode se permitir
qualquer fantasia.
Por exemplo: afirmar que um gato não é um gato, ou que um
racista é um humanista, ou, fazer como Alain Finkielkraut, que não se deixa
comover com o anti-semitismo de um Renaud Camus. Afirmar que “um judeu é
incapaz de assimilar, de fato, a cultura francesa” não lhe parece escandaloso:
desde que não se recuse o desconhecimento da “parte da herança na identidade”,
nem de reconhecer que existem “graus de pertença nacional”, essas declarações,
diz ele, “adquirem outro sentido[5]“.
A tática do mas…
Assim como nada tem de racista, ainda segundo Finkielkraut,
o recente panfleto antimuçulmano de Oriana Fallaci, La Rage et l’Orgueil[6].
Ao injuriar os filhos de Alá, que se reproduzem como ratos, ela nos obriga a
“olhar de frente a realidade” e ver, finalmente, na paz da boa consciência, o
que são de fato os árabes. Rompendo tabus, “ela tem o mérito insigne de não se
deixar intimidar”, e solta o verbo[7]7b.
Preocupado, naturalmente, com as reações que essas opiniões
provocaram, o “humanista” volta atrás e decreta que, no fundo, o livro de
Oriana Fallaci é “indefensável”. Depois de a ter defendido. Mas, na entrevista
que nos concede, não deixa de encontrar qualidades nele e, mais uma vez,
defendê-lo: “Fiquei impressionado por uma certa força. Oriana Fallaci disse à
Europa, sem rodeios, tudo o que pensa. Seu livro é um livro anti-europeu.” Em
suma, anti-tudo.
“Intelectual é quem vincula um trabalho de análise a uma
preocupação cidadã. De contrário, é um especialista”, diz Pierre Rosanvallon,
professor
Tática de Finkielkraut: atacado num ponto preciso, muda de
assunto, se esconde, escorrega como uma enguia entre as objeções. Daí decorre o
emprego constante do mas, que tem como função negar – e não, matizar – o que
ele acaba de admitir, por aparente submissão ao politicamente correto. Não é
saudosista, mas cuidado com o progresso (com a clonagem, com os casamentos
entre homossexuais, com o divórcio por consentimento mútuo, com a paridade…);
não é moralista, mas julga; diz-se de esquerda, mas “não gosta nem um pouco
dessa propensão da esquerda a ser binária”; não está do lado da classe
dominante, mas “nem todos os poderosos estão errados”; é preciso “sair do
discurso liberal”, mas não se deve cair, em hipótese alguma!, no discurso
progressista.
Os traços do intelectual medíocre
Quando é mencionado o racismo anti-árabe, Finkielkraut logo
desvia para o anti-semitismo. Será que é mais difícil ser judeu do que árabe na
França, e, sendo judeu, encontrar uma moradia, um emprego, ocupar altas
funções…? Incomodado, ele se esquiva: “Não é fácil ser judeu num bairro árabe.”
Não responda que talvez seja mais difícil ser árabe em Israel, pois ele se irrita:
“Os árabes israelenses gozam dos mesmos direitos civis e sociais comuns a todos
os israelenses” e, sobretudo, que não se diga que Israel trava uma guerra
colonial, na Palestina, com os métodos que se conhecem: ele pode ter um
enfarto.
Parcialidade, medo rancoroso dos árabes, apoio cego a
Israel, ênfase narcisista: Alain Finkielkraut tem pelo menos um mérito. Por
seus excessos, permite perceber, tal como numa caricatura, traços comuns a
muitos intelectuais franceses atuais, por mais diferentes que sejam entre si:
A arrogância aristocrática e o desprezo pelo povo: Luc
Ferry, que certamente nunca falou das massas francesas, não hesita, por outro
lado, em falar das “massas árabes”. É verdade que não tem grande estima pelas
primeiras: “Às vezes, tenho a impressão de que quase há programas interessantes
em demasia na televisão8“;
O descrédito injurioso de quem pensa de forma diferente: o
jornalista Didier Eribon não passa de um “pitbull”, os pedagogos do gênero de
Philippe Mérieux são “guardas vermelhos da cultura” (Alain Finkielkraut9),
Pierre Bourdieu era “louco de orgulho, narcisista, manipulador, hipócrita,
perverso, grandiloqüente, ridículo, insuportável” (Alain Minc10), “o
antiamericanismo é o progressismo dos idiotas” (Pascal Bruckner11);
A incoerência: Philippe Sollers denuncia o racismo de Renaud
Camus, mas publica, em sua revista L’Infini, um artigo de Marc-Edouard Nabe,
que se exalta contra “a volta do anti-semitismo. Esse nojento do Sinclair já
está lambendo os beiços…” 12;
Uma sensibilidade muito maior ao anti-semitismo do que à
islamofobia: se as reflexões de Renaud Camus sobre os judeus provocaram uma
torrente de protestos que durou mais de três meses, as 175 páginas de insultos
de Oriana Fallaci contra os muçulmanos pouco comoveram o microcosmo
intelectual: com exceção de Bernard-Henri Lévy, que imediatamente reagiu no
mesmo número de Le Point que publicava a vociferação da jornalista italiana, e
Laurent Joffrin, que a condenou num artigo do Nouvel Observateur, quase todos
os outros se calaram. A começar por alguns dos (Claude Lanzmann) que
protestaram veementemente contra as afirmações de Renaud Camus. Dois pesos e
duas medidas?
Uma certa indiferença em relação às vítimas de guerras,
boicotes, fome e doenças que devastam o Terceiro Mundo: mais de 3 mil mortos no
11 de setembro de 2001 em Nova York, é horrível, e “somos todos
norte-americanos”, mas centenas de milhares de mortos em Ruanda e três milhões
em três anos no Congo-Kinshasa, também é horrível, mas não comove ninguém:
Norte-americanos sim, africanos não! André Glucksmann, tão rápido em denunciar
os crimes dos russos, dos chineses ou dos norte-coreanos, não tem “uma palavra de
compaixão, observa Gilbert Achcar, para com as vítimas dos países da Otan e
assimilados, como os curdos e os palestinos13“.
Dedicar-se a “contemplar a natureza”
Diante dos intelectuais que recusam publicidade, surgem figuras
bastante hábeis, que roubam a cena e se confundem, para o público, com os
intelectuais
Humanismo sob medida? Mas não é tudo.
“Um intelectual”, dizia Herbert Marcuse, “é alguém que
recusa compromissos com os poderosos.” E cuja principal tarefa, diz Pierre
Rosanvallon, é tornar o mundo um pouco mais inteligível e produzir “uma
legibilidade sem concessões”. A maioria dos intelectuais franceses de hoje não
cumpre essa tarefa: em vez de incitar à reflexão, embaralham as cartas, assim
como a mídia. Mesmo quando não desconhecem a realidade.
Como Pascal Bruckner, que cita, nas primeiras páginas de seu
recente ensaio, Misère de la prospérité (Miséria da prosperidade) 14, alguns
números assustadores sobre as desigualdades do mundo contemporâneo: “20% dos 6
bilhões de habitantes da terra subsistem com menos de um dólar por dia e uma
criança entre quatro sofre de desnutrição no hemisfério Sul… 10% da população
do globo produz e consome 70% dos bens e serviços…” Logicamente, uma única
conclusão se impõe: um modo de produção que torna famintos 2/3 do planeta e
fabrica excluídos às centenas de milhões é um escândalo e deve ser combatido.
É o que aparentemente escapa ao entendimento de Pascal
Bruckner. Sem transição, ele se enfurece contra os antiglobalização – invejosos
que denunciam os donos do mundo porque dele não fazem parte. Lamenta que os
Estados Unidos intervenham tão pouco nos assuntos dos outros: “Não é a
liderança norte-americana que é preocupante, mas, sobretudo, sua discrição.”
Atacado de amnésia, diz “sim ao capitalismo”, cujos delitos acaba de
estigmatizar, e sugere àqueles que são “obcecados” pelo assunto que “não mais
pensem nisso”: “Ser anticapitalista (…) é pensar em outra coisa. Mais do que
ser contra, por que não ficar de lado, se esquivar?” E, esquecendo “a ordem das
utilidades”, dedicar-se “à poesia, ao amor, ao erotismo, à contemplação da
natureza”?
“Reformar” o capitalismo
Ocupam a mídia porque estão em simbiose com uma época que apresenta,
como a alquimia do século XVI, cobre em vez de ouro e lata em vez de prata
Entre os contemporâneos, Pascal Bruckner é seguramente um
caso à parte. Mas é representativo de uma atitude muito difundida entre
numerosos intelectuais – pouco amor e florzinhas do campo.
Com variações, é claro. Se a globalização liberal deixa
eufórico Alain Minc, próximo das posições de Anthony Blair – “lutar contra a
globalização é (com perdão pela expressão) mijar contra o vento” – outros são
mais sutis. Porém, mesmo se denunciam o intervencionismo norte-americano ou
defendem uma globalização mais “humana” – que respeite “os valores não
mercantis: a felicidade, a amizade, a solidariedade” (Jacques Julliard) – a
maioria considera que o capitalismo é o menos ruim dos sistemas e que deve ser,
simplesmente, “reformado”. Todos mencionam a necessidade de contra-poderes, uns
contando com a sociedade civil e acordos entre “parceiros”, e outros, com as
lutas sociais.
“Liberal de esquerda”, Alain Minc admite que “o mercado cria
desigualdades”, mas está convencido de que isso pode ser “regulamentado” e
“controlado”. Quanto a Laurent Joffrin, reformista moderado, partidário de uma
social-democracia “renovada”, considera necessário “reabilitar o político”:
“Tudo passa pela esquerda clássica. Os partidos de esquerda devem reinventar
novos métodos de ação e se pôr de acordo em escala européia, com vistas a
intervenções comuns.”
O canto da sereia
Pouco importa a qualidade, ou a nulidade, de uma produção: são os meios
de comunicação, e a televisão em primeiro lugar, que consagram os intelectuais
São quimeras, avalia Jean-François Kahn: no momento em que
cada vez mais homens e mulheres, nos países ricos, são condenados a uma vida
cada vez mais dura, em que os países do Terceiro Mundo sofrem mais do que nunca
com a fome e uma mortalidade cada vez mais elevada, no momento, portanto, em
que o capitalismo mata, direta ou indiretamente, milhões de seres humanos,
imaginar que se pode humanizá-lo, quando, em sua própria essência, ele é
desumano, é se iludir – por completo.
Na ausência dessa alternativa, não resta outra solução senão
uma frente comum dos democratas para lançar as bases de outro tipo de
sociedade: “Em maio de 68”, prossegue o diretor de Marianne, “eu achava a
agitação ?revolucionária? perfeitamente ridícula – o contexto não era
favorável. Mas, hoje, penso que é preciso fazer a revolução. Em relação à
lógica neoliberal – que é uma dinâmica louca, que provoca estragos terríveis,
que dilacera, esmaga, quebra, que destrói o homem e representa um autêntico
recuo da civilização – é preciso uma ação de tipo revolucionário que a detenha.
Se não fizermos isso, quem o fará? Os que já o estão fazendo – os fanáticos
religiosos, os fundamentalistas islâmicos, os populistas, os neofascistas, os
nacionalistas étnicos… A opção é clara: ou se estrutura um projeto
revolucionário para o melhor, ou se aceita que outros o façam para o pior. E a
maioria dos intelectuais não compreende isso.”
Porque se aburguesaram? Com certeza. “Muitos ex-militantes
de 68 entraram na economia de mercado para modificar seu curso e foram
plenamente integrados”, constata, com conhecimento de causa, Laurent Joffrin.
“O regime liberal paga bem aos intelectuais que são cooptados”, denuncia Michel
Onfray. “Ele sabe tornar desejável a submissão. Conferências a 70 mil francos,
integração do filósofo na assessoria da empresa, participação em comissões de
direção, coordenação de noites de debates ricamente dotadas, lugares
privilegiados na mídia em que seus livros são comentados… Positivamente, são
poucos os que resistem a esse canto da sereia.”
Bajulação, subserviência e maniqueísmo
Luc Ferry, que certamente nunca falou das massas francesas, não hesita
em falar das “massas árabes”. É verdade que não tem grande estima pelas
primeiras
Philippe Sollers, André Glucksmann, Alain Minc, Pascal Bruckner,
André Comte-Sponville e Luc Ferry, entre outros, não resistem e se promovem
tranqüilamente nas empresas. Bernard-Henri Lévy resiste, mas, em seus artigos
no Le Point, não deixa de louvar seus superiores, como Jean-Luc Lagardère –
“Gosto desse seu lado de condottiere, ou de Cyrano levando sua própria vida” –
e Jean-Marie Messier, que “se abre ao vento do largo, força o destino, inverte
a ordem estabelecida das coisas… 15”
Outros, ou os mesmos, não hesitam em cortejar ou servir o
Príncipe. Há três anos, Luc Ferry se gabava de ter partilhado um café com o
secretário-geral do Palácio do Eliseu que se tornara ministro das Relações
Exteriores: “Estava tomando café da manhã com Dominique de Villepin, que queria
me encontrar a sós… e adivinhem quem apareceu? Chirac! 16” Se um ministro ou um
presidente lhes confia uma missão ou uma pasta, exultam, entram em transe…
No entanto, só o modo de vida deles não justifica sua
incapacidade de ter uma medida justa do mundo. Talvez fosse preciso que
tivessem operado uma verdadeira revolução interna. Não é o que acontece:
contrariamente ao que acham, eles não mudaram, não se desfizeram do velho
homem. Suas estruturas mentais permaneceram idênticas: “Com a mesma paixão com
que antes denunciavam o ?socialismo?, porque subordinava o homem ao Estado,
louvam o neoliberalismo e não compreendem, ou não querem compreender, que ele
subordina o homem ao dinheiro”, constata Jean-François Kahn. “Da mesma maneira
que eram stalinistas ou maoístas, tornaram-se pró-americanos. E da mesma maneira
que se diziam internacionalistas, declaram-se pró-globalização. Continuam
maniqueístas, como antes. E não percebem que mudaram de lado.”
O papel do intelectual
“Um intelectual”, dizia Marcuse, “é alguém que recusa compromissos com
os poderosos.” A maioria dos intelectuais franceses de hoje não cumpre essa
tarefa
Dizem-se defensores ardorosos dos direitos humanos, mas
apóiam um Estado que não os respeita, nem em seu próprio país, nem nos países
que domina, assim como fazia a ex-União Soviética. Dando ajuda incondicional às
ditaduras mais violentas – como às políticas mais cegas e mais assassinas,
golpes de Estado, atentados, condenação à morte lenta (fome, doenças) de
centenas de milhares de seres humanos (Iraque, Sudão) – os Estados Unidos são
“um Estado terrorista de primeira linha” (Noam Chomsky17), e é a esse Estado,
que dizem ser “democrático” (Jacques Julliard), que a maioria apóia, quando não
lhe dedica uma admiração sem limites.
Politicamente submissos, ideologicamente servis, aduladores
dos grandes, cortesãos bajuladores, cobertos de títulos que exibem como
medalhas (professor da Escola Politécnica, professor concursado da
universidade, “filósofos”), freqüentemente bons oradores e às vezes estilistas
brilhantes, têm, como se diz, tudo para agradar. Não é surpreendente que tenham
seduzido os meios de comunicação, nem que, em troca, deles se sirvam.
Esquecendo, por isso mesmo, a principal função de um intelectual – “marginal,
inútil e essencial”, como diz Pierre Nora: a função crítica, a recusa total de
compromissos com os poderosos.
Contrariamente a esses espíritos pessimistas que, tomando
seus desejos pela realidade, anunciam sistematicamente o “fim dos
intelectuais”, os intelectuais – os verdadeiros – são mais do que nunca
necessários: numa sociedade em que a escola está sendo degradada, em que a
televisão lança em altas doses suas idiotices sobre milhões de cidadãos, em que
os jornais se aviltam e, muito freqüentemente, dão mais importância ao caso
policial do que ao fato em si, só os intelectuais podem incitar à reflexão. A
ter um certo distanciamento em relação ao evento bruto. A ver, ler e
compreender de outra maneira.
“O papel de um intelectual é hoje o mesmo que sempre foi”,
lembra Michel Onfray: “Baseado no princípio de Diógenes (ou de Bourdieu), ser a
má consciência de seu tempo, de sua época. A mosca, o inoportuno, o rebelde com
o qual não se reproduz o sistema social. O intelectual pode pensar e dar idéias
aos políticos, pouco dotados para o raciocínio e a reflexão. Deve denunciar as
injustiças, as taras do sistema, os mecanismos alienantes…” Sem fazer
concessões.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
Recusaram-se a dar entrevista para este artigo Pascal
Bruckner, Jean-Claude Casanova, André Glucksmann, Serge July e Jorge Semprun.
Luc Ferry reservou-se o direito de responder posteriormente.
[1]
Ler, de Théo Klein, Le Manifeste d’un Juif libre, ed. Liana Lévi, Paris, 2002.
[2]
Ler, “La mémoire expurgée de la guerre d’Algérie”, Le Monde diplomatique,
fevereiro de 2001.
In Le Monde televisión, 12 de agosto de 2002.
[3]
Ler, de Louis Pinto, “Des prophètes pour intellectuels”, Le Monde diplomatique,
setembro de 1997.
[4]
Ler, de Alain Finkielkraut, L’Imparfait du present, ed. Gallimard, Paris, 2002.
[5]
Ler, de Oriana Fallaci, La Rage et l’Orgueil, ed. Plon, Paris, 2002.
[6]
Alain Finkielkraut, in Le Point, 24 de maio de 2002.
[7]
Luc Ferry, in Le Monde televisión, 12 de agosto de 2002.
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