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domingo, 27 de março de 2011

Marxismo e Anarquismo Segundo Ernestan


ANARQUISMO E MARXISMO SEGUNDO G. ERNESTAN

Nildo Viana

G. Ernestan apresenta o anarquismo e o marxismo como duas correntes políticas irreconciliáveis. A sua fun­damentação desta afirmativa, entretanto, apenas marca mais um capítulo da série sobre os mal entendidos entre anarquismo e marxismo. Buscaremos destacar, no presente texto, onde se encontra o motivo de tal  “comunicação defeituosa”.
Para Ernestan, marxismo e anarquismo se distinguem por haver uma divergência fundamental: “o anarquismo e o marxismo divergem fundamental, irremediavelmente, de maneira absoluta, no critério de considerar o ho­mem. Em conseqüência disso, a partir das primeiras polemicas do tempo da Associação Internacional dos Tra­balhadores até os embates de hoje, esse contraste profundo coloca em campos contrários os militantes sociais que, doutrinariamente, não falam a mesma linguagem”[1].
Esta afirmação apresenta alguns problemas. Sem dúvida, não falar a mesma linguagem é uma das raízes da comunicação defeituosa entre marxismo e anarquismo, tal como se vê no debate de Marx com Bakunin. É possível falar que existe uma concepção de natureza humana no anarquismo e no marxismo? A resposta é sim, desde que não se fale “o” anarquismo e “o” marxismo. Um exemplo pode esclarecer esta questão. Como os anarquistas concebem a natureza humana? Existe apenas uma concepção acerca desta questão? Seria meio difícil dizer que Max Stirner e seu anarco-individualismo possui a mesma concepção que Errico Malatesta, para citar apenas dois representantes do anarquismo. Max Stirner toma o indivíduo como um ser egoísta, que busca satisfazer seus desejos e interesses, independentemente dos outros indivíduos, e isto beneficiaria a todos. Esta concepção é idêntica a ideologia liberal burguesa defendida por Bentham, Stuart Mill, entre outros. Para Mala­testa[2], ao contrário, existe, no ser humano, um instinto de sobrevivência individual e um instinto de sobrevi­vência da espécie e isto significa que ele não é egoísta por natureza. Desta forma, vemos que não é possível falar de uma única concepção anarquista da natureza humana.
O mesmo ocorre com o marxismo, se se considerar, como parece fazer Ernestan, por marxismo tudo o que se intitula assim. A concepção de natureza humana difere dependendo de qual “marxista” a elabora. A concepção retratada por Ernestan é inaplicável ao marxismo autêntico. Segundo ele, “para os marxistas, os elementos sociais atuantes encontram-se fora do homem, que não passa, para eles, de um autômato a mercê das forças abstratas e místicas a que denominam economia, determinismo histórico, etc., elementos estes que o marxismo afirma ter revelado”[3]. Tal concepção é verdadeira se, ao invés de ser dirigida ao marxismo, for direcionada ao stalinismo e outras correntes pseudomarxistas.
Qual é, então, a concepção marxista da natureza humana? Poderíamos dizer que é a mesma que Ernestan diz ser a do anarquismo: “para os anarquistas, ao contrário, qualquer que possa ser o seu ponto de vista sobre o desenvolvimento histórico, o homem existe e age no universo como o único elemento pensante, agente e criador - ponto de partida e ponto de chegada de tudo quanto se relaciona com a vida social”[4].
Tomemos Marx para justificar esta concepção. Para Marx, o ser humano para sobreviver precisa manter um intercâmbio com o meio ambiente (natureza) e faz isto por intermédio do trabalho, ou seja, de suas atividades. O que difere o trabalho humano do trabalho animal? É o fato do ser humano colocar uma finalidade no seu trabalho antes de executá-lo na prática. Uma abelha faz sua colmeia sem planejá-la na cabeça enquanto que o ser humano planeja sua casa antes de faze-la. O ser humano pode fazer isto porque é um ser consciente. Esta é uma das principais características da natureza humana, que possui outras, tais com as necessidades primárias (comer, beber, amar, etc.) e a de associação (é um ser social). Vê-se, aí, que o ser humano, para Marx, é um ser “pensante, agente, criador”, tal como Ernestan o concebe.
Ocorre, porém, que, em uma sociedade de classes, os seres humanos não conseguem realizar totalmente sua natureza, pois o trabalho alienado e a repressão criada para sustentá-la impede a manifestação plena da criativi­dade humana. E é por isso que existe a resistência das classes exploradas, a luta de classes, a possibilidade de revolução e de autogestão social, ou seja, uma sociedade onde a natureza humana possa se manifestar livremen­te.
Mas de onde surgiu esta interpretação de Ernestan? Ele não cita as fontes nas quais se baseou para fazer as suas afirmações. Não diz se leu Marx ou os seus deformadores; não diz se concluiu isto de leituras ou de conta­to direto com os auto-intitulados marxistas. Por isso, podermos imaginar que ele se baseou no discurso dos deformadores da obra de Marx e não na do próprio.
Outra afirmação equivocada de Ernestan é a seguinte: “enquanto o professor Karl Marx preparava pesada­mente o seu novo evangelho, Bakunin, o rebelde errante, contribuía para destruir em seus mais profundos ali­cerces, a idéia de Deus, chegando, com uma lucidez genial, a identificar Deus com o Estado - esse Estado que Marx e seus adeptos viriam a tornar instrumento do seu sistema social” e que “um sistema tão absoluto e autori­tário em sua essência tinha forçosamente que acabar, como aconteceu na Rússia, numa ditadura onipotente”[5].
O primeiro equívoco está em chamar Marx de professor, coisa que ele não era. Isto não teria importância se não fosse o motivo pelo qual ele não seguiu tão carreira: “suas posições intelectuais são tão radicais que não pretende empreender uma carreira de professor universitário”[6]. O equívoco fundamental, no entanto, reside na idéia de que Marx foi um defensor do estado e que a formação do capitalismo de estado russo tenha sido a materialização de suas idéias. Sem dúvida, Marx afirmou no Manifesto Comunista: “o proletariado utilizará sua supremacia para arrancar, pouco a pouco, todo capital à burguesia, centralizando os instrumentos de produção nas mãos do Esta­do, ou seja, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar o mais rápido possível o total das forças produtivas”[7].
Portanto, aqui se propõe a estatização dos meios de produção e é neste texto que muitos irão justificar sua prática política autoritária e burocrática visando conquistar o poder do estado (o pseudo-marxismo) e outros irão criticar o estatismo e o autoritarismo de Marx. Contudo, após a Comuna de Paris, em 1871, Marx mudou de concepção e expressou isto da seguinte forma: “uma vez estabelecido em Paris e nos centros secundários o régime comunal, o antigo governo centralizado teria que ceder lugar também nas províncias ao autogoverno dos produtores”; “não se tratava de destruir a unidade da nação, mas, ao contrário, de organizá-la mediante um regime comunal, convertendo-a numa realidade ao destruir o poder estatal, que pretendia ser a encarnação daquela unidade, independente e acima da própria nação, em cujo corpo não era mais que uma excrescência parasitária”[8]. Isto não combina nenhum pouco com o que foi colocado em prática na Rússia. Se os bolcheviques, auto-intitu­lados marxistas, criaram a ideologia estatista e usurparam o poder dos conselhos operários (sovietes), houveram outros, inspirados também no marxismo, tal como o grupo Verdade Operária, que se opuseram aos bolcheviques e lutaram contra o que eles denominaram implantação do capitalismo de esta­do na rússia[9].
Outras acusações são feitas ao marxismo, tal como a de cientificismo. Isto é verdadeiro no que se refere ao reformismo e ao bolchevismo mas não ao marxismo autêntico. Karl Korsch[10], por exemplo, refutou a idéia de que o marxismo é uma ciência e outros também o fizeram.
Portanto, o equivoco de Ernestan se encontra no fato de não separar “marxismo” e marxismo, entre o autênti­co e sua deformação. Na perspectiva de Ernestan não é possível um diálogo e uma unificação entre anarquismo e marxismo? Ao que tudo indica, sim. Mas encontramos uma brecha em seu próprio texto: “o marxismo, embo­ra tenha concorrido com algumas contribuições apreciáveis para o estudo do pro­blema social, tornou-se, em sua contextura e em sua ação, um desvirtuamento e uma corrupção do socia­lismo. À medida que consegue vencer politicamente, vai esvaziando o socialismo de seu conteúdo idealístico e de sua renovação social[11]”.
Se reconhecermos que a afirmação acima é verdadeira se a aplicarmos ao pseudomarxismo (social-democra­cia, bolchevismo) e que existe um marxismo marginal (que é o marxismo autêntico) que não pretende conquis­tar o poder do estado e sim destruí-lo, então veremos que o diálogo e a ação conjunta é possível, necessária e desejável.



[1]ERNESTAN, G. Anarquismo e Marxismo. In: LEUERONTH, Edgar. Anarquismo - Roteiro de Libertacao Social. Rio de Janeiro, Mundo Livre, 1963, p. 66-67.
[2]MALATESTA, Errico. A Anarquia e Outros Escritos.
[3]ERNESTAN, G. ob. cit. p. 67.
[4]ERNESTAN, G. ob. cit. p. 67.
[5]ERNESTAN, G. ob. cit. p. 67.
[6]FOUGEYROLLAS, Pierre. Marx. São Paulo, Ática, 1989, p. 12.
[7]MARX, K. E ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis, Vozes, 1988.
[8]MARX, K. A Guerra Civil na França. São Paulo, Global, 1986, p. 73-74.
[9]Sobre isso: BERNARDO, Joao. Para Uma Teoria do Modo de Produção Comunista. Porto, Afrontamento, 1975.
[10]KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1975.
[11]ERNESTAN, G. ob. cit. p. 70.
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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo . Marxismo e Anarquismo segundo Ernestan. Revista Espaço Livre, Goiânia-GO, v. 02, p. 01 - 03, 01 ago. 2005.

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