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segunda-feira, 16 de março de 2020

Maurício Tragtenberg: Um Sociólogo Libertário



Maurício Tragtenberg: Um Sociólogo Libertário

Nildo Viana*

Maurício Tragtenberg foi um dos mais importantes sociólogos brasileiros e, apesar de ter seguido uma orientação diferenciada da maioria dos demais colegas de profissão, acabou exercendo grande influência e admiração por parte de muitas pessoas, inclusive alunos e colegas. O sentido da vida e obra de Tragtenberg foi, a nosso ver, a luta pela autogestão.
Tragtenberg nasceu em Erexim, Rio Grande do Sul, no dia 4 de novembro de 1929. Filho de família judaica e camponesa, morava com os avôs e a mãe, pois o pai morreu jovem. A família se transfere para Porto Alegre. Sua experiência escolar foi apenas durante o que era denominado primário. Tragtenberg foi reprovado no primeiro ano em aula de canto. Ele matava aula para jogar futebol ou ir ao cinema (Tragtenberg, 1999). Fora da escola, Tragtenberg gostava de ler e escrever e tinha muitos livros em casa, deixado pelo pai.
Posteriormente, a família muda para São Paulo. Lá existia o Centro de Cultura Democrático e movimentos de jovens judeus, de várias orientações políticas. Neste período voltou à escola, onde o método do castigo era amplamente utilizado. Lá aprendia português, hebraico e iídiche, já que era uma escola judaica. O domínio do iídiche (um alemão medieval que os judeus assimilaram para viver na Alemanha) o possibilitou a ler obras de Rosa Luxemburgo, de Trotsky, dos mencheviques. Foi desta forma que teve acesso a um pensamento socialista não leninista, hegemônico a partir da tomada do poder na Rússia em 1917 e, principalmente, depois da chamada “bolchevização dos partidos comunistas”. Este acervo bibliográfico era oriundo da imigração de judeus poloneses e de outras regiões. Nesta época, Tragtenberg tinha 10 anos e já lia estes e outros autores, em iídiche.
O irmão e a irmã compravam livros, tal como o Manifesto Comunista, de Marx e Engels, e obra de Stefan Zweig, que ele era proibido de ler e assim lia escondido no telhado da casa. Assim, ele era a “ovelha negra” da família, pois, além disso, não gostava de comércio, elemento fundamental para a sua família judaica e para o qual os irmãos se dirigiam. Com a redemocratização e a legalização do Partido Comunista Brasileiro, passou a existir uma movimentação política e Tragtenberg foi se aproximando do partido. Participou de uma “célula” do partido, juntamente com um sapateiro e um pedreiro. Pouco depois passou a freqüentar a Biblioteca Municipal de São Paulo e a família Abramo. Esta família teve influência em sua formação, já que as pessoas eram cultas e eruditas, possuindo a capacidade de repassar muita informação. Pouco depois se aproxima do Partido Socialista Brasileiro, na época, composto por intelectuais e sem grande influência junto aos trabalhadores. Nesta época, lia o jornal Vanguarda Socialista, editado por Mário Pedrosa, e freqüentava os cursos do Partido Socialista, ministrado por intelectuais como Antônio Cândido, Azis Simão e teve contato com Florestan Fernandes, quando ainda era garçom, Paul Singer, quando era eletricista, entre vários outros futuros grandes intelectuais.
Outra grande influência na formação de Tragtenberg foi o Centro de Cultura Social, de orientação anarquista. Foi neste contexto que ele foi convidado para fazer um quadro explicativo da Guerra Civil Espanhola a pedido dos organizadores de um evento sobre este acontecimento histórico e que uniria anarquistas, comunistas (bolchevistas) e socialistas (social-democratas). Tragtenberg narra que quanto mais lia, mas descobria o papel do Partido Comunista Russo na contra-revolução na Espanha, beneficiando o ditador Franco. Porém, ele não sabia do acordo estabelecido entre os grupos políticos envolvidos para acentuar as concordâncias, e quando fez sua exposição gerou uma forte polêmica.
Tragtenberg acaba rompendo com o PCB, devido, entre outras coisas, a divergência com a linha política (apoio à burguesia progressista contra o imperialismo) e outros elementos, tal como o caso no qual o partido lhe chamou a atenção por ler obras de Marx e Lênin, pois deveria ler apenas os jornais do partido. Continuou sua formação intelectual através dos centros de cultura, Biblioteca Municipal, amizades. Participou de debates e organizações políticas, desde social-democratas passando pelo trotskismo e anarquismo. Certo dia, Antônio Cândido lhe diz que existe uma lei que garante a quem fizer uma monografia, sendo aprovada pela Congregação da universidade, pode ser aceito sem ter formação escolar. Ele apresentou sua monografia (publicada como livro com o título Planificação: Desafio do Século 20) que foi aprovada e passou a fazer parte da esfera acadêmica.
Na esfera acadêmica, do ponto de vista intelectual, produziu várias obras, tal como sua tese Burocracia e Ideologia, no início da década de 1970, e depois produziu inúmeras obras, desde livros, passando por prefácios de outras obras, organização de livros e artigos para revistas e jornais. Inclusive, foi colunista do jornal Notícias Populares, por considerar mais próximo da população trabalhadora. Ele teve vários problemas em diversas universidades, desde o contratempo que teve devido ao regime militar e seu enquadramento no Ato Institucional I (sem grandes motivos, já que ele, nessa época, não militava em nenhum partido ou organização). Como disse em algumas oportunidades, era campeão em ganhar concursos e perder contrato. Passou pelo ensino secundário, pela Fundação Getúlio Vargas, USP, Unicamp, entre outras universidades.
Dentre seus interesses intelectuais, algumas temáticas foram basilares de seu pensamento. A questão da burocracia, desde sua monografia de aspiração à entrada na USP, passando por sua tese doutoral, e diversas obras, sempre foi constante. O estudo da burocracia tinha como grande influência o sociólogo Max Weber, mas também Marx, Bakunin e vários outros estavam envolvidos em suas reflexões sobre o fenômeno burocrático. A questão da autogestão também foi uma das mais permanentes em sua produção e reflexão, ou seja, a negação da burocracia também foi foco de seus estudos. Porém, neste caso também ia além da simples “objeto de estudo”, tratava-se, também de opção política, expressa magistralmente em sua obra Reflexões sobre o Socialismo. As lutas dos trabalhadores, a autonomia e auto-organização do proletariado e campesinato foram uma preocupação constante, tal como se pode perceber em sua produção intelectual. Desde a juventude era um leitor de Rosa Luxemburgo, mas também outros autores marginais ou “malditos”, atraíram o seu interesse (Makhaïsky, Korsch, Bordiga, Pannekoek, Gorter, etc.).
A Burocracia
A preocupação de Maurício Tragtenberg com o fenômeno burocrático tem sua origem na sua inserção na luta política e no PCB. Sem dúvida, a estrutura hierárquica e burocrática do partido chamou sua atenção e a estrutura do culto ao chefe, tal como faziam com Luis Carlos Prestes, o que não lhe passava despercebido (Tragtenberg, 1999). É sugestivo que seu primeiro livro publicado comece como um capítulo cujo título é “O Homem”. Nesta obra, retoma Marx e o tema do trabalho alienado, abordando a natureza humana e sua alienação na sociedade de classes. O homem se desencontrou de sua própria essência ao instaurar a relação de exploração, ao fundar, com a divisão social do trabalho, o domínio de uma classe sobre outra. Assim, Dostoievsky, Kafka, Nietzsche, Kierkegard, Kant, etc., são autores que aparecem para mostrar a situação humana. A questão que Tragtenberg coloca é: em que condições o socialismo pode contribuir para esta superação da alienação? Pergunta fundamental, que encerrará com uma análise do bolchevismo, da burocratização, da Rússia e do capitalismo de Estado. Na sua conclusão apresenta a tese básica que será desenvolvida em suas obras posteriores: a alienação é provocada pela divisão social do trabalho e separação do indivíduo com o cidadão, através do processo de exploração e somente a reintegração do homem na humanidade e em sua essência, através do socialismo, será possível a emancipação humana.
Esta obra já mostrava as preocupações fundamentais de Tragtenberg e algumas respostas preliminares que, devido ao conjunto de influências que ainda carregava – e já se desvencilhava delas – não conseguiu avançar mais, embora já rompesse com o bolchevismo e o capitalismo estatal e via o socialismo como produto da luta operária.
Tragtenberg, em seu segundo livro, Burocracia e Ideologia, irá analisar a formação e características das teorias gerais da administração. Ele faz um histórico que se inicia com a discussão referente ao modo de produção asiático e passa pelas concepções das “harmonias administrativas” de Saint-Simon a Elton Mayo, até chegar ao sociólogo Max Weber e sua sociologia da burocracia. Ele analisa as teorias gerais da administração como ideologias, formas de falsa consciência, representando os interesses das classes dominantes, que são operacionais no nível técnico e que mudam de acordo com a mudança nos processos econômicos e sociais. A sua interpretação de Max Weber e sua relação com a crise da consciência liberal é um dos momentos mais interessantes de sua análise.
No livro seguinte, Administração, Poder e Ideologia, ele continua desenvolvendo esta preocupação fundamental e dedica a analisar a ideologia administrativa das grandes corporações e adentra por questões como a co-gestão, o participacionismo e outras formas que as grandes empresas utilizam para enquadrar e integrar os trabalhadores.
Em sua obra Sobre Educação, Política e Sindicalismo, o autor faz uma severa crítica ao burocratismo reinante nas escolas e universidades, utilizando-se das contribuições de Weber, Lobrot, Selznick, entre outros. Na verdade, o conjunto de artigos (já publicados em outras publicações), revela uma das grandes preocupações intelectuais de Tragtenberg, o processo educacional, mas envolvido com as duas outras preocupações básicas: a burocracia e a autogestão. O sistema de ensino tem como objetivo adequar os indivíduos ao processo de trabalho, mas de tal forma que ele saiba se adequar às mutações sociais. Para isso, é formado todo uma burocracia escolar e pedagógica cujo objetivo é garantir a burocratização de todo o processo de ensino: sistema de exames, conformidade ao programa e docilidade estudantil, através da organização, planejamento e estímulo.
“A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o tipo de formação através das transformações introduzidas na escola, que coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames – esse ‘batismo burocrático do saber’. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de ‘exclusão’ que possui a empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela ‘exclui’ o candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível – esse de posse da chamada ‘informação’ que possui espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já constituem um sistema ideológico” (Tragtenberg, 1990, p. 13).
A Educação Libertária e Autogestão das Lutas Operárias
A educação não tem apenas o papel de reprodução, não expressa apenas a burocracia e a dominação. Inclusive, Tragtenberg foi um dos primeiros a perceber o reprodutivismo da sociologia da educação de Bourdieu. Para Tragtenberg, há espaço para o questionamento e a busca de alternativas no sistema escolar. É por isso que ele irá se dedicar ao que se costuma chamar “pedagogia libertária” ou “autogestão pedagógica”. Assim, ele coloca a opção social (capitalismo ou autogestão social) também no plano educacional: educação burocrática ou educação libertária. A universidade não produz apenas o intelectual orgânico da burguesia, cujo papel é organizar a hegemonia burguesa, inculcando “as formas de sentir, pensar e agir da classe dominante como sendo naturais”, mas, também, o intelectual crítico, que em períodos de ascensão das lutas sociais, pode legitimamente representar as classes desprivilegiadas (Tragtenberg, 1979, p. 9).
Assim, ele analisava os educadores libertários, tal como Francisco Ferrer, e as experiências históricas, tal como a experiência de autogestão pedagógica na Espanha (Tragtenberg, 1980). Uma das preocupações mais importantes de Tragtenberg é com uma educação no qual o aluno possa desenvolver suas potencialidades sem as restrições burocráticas, o autoritarismo professoral e o controle estatal. Assim, ele valorizava a autonomia do indivíduo, autogestão pedagógica, solidariedade e luta pela educação gratuita. Ele pensava não só a crítica da educação burocrática, mas a auto-educação individual e coletiva da classe trabalhadora, levando em consideração que o conhecimento da classe operária no processo de trabalho era expropriado pela classe capitalista e, em determinados momentos históricos, reapropriado.
Esse processo de constituição de uma nova sociedade seria, tal como em Marx, obra da classe operária, de sua auto-educação e auto-organização. Para Tragtenberg, as lutas sociais podem tender para a burocratização, mas a classe trabalhadora reage a este processo criando organizações horizontais, igualitárias, novas relações sociais. A corrosão do capitalismo está no desenvolvimento destas formas de auto-organização do proletariado. Ele retoma Marx para colocar que os trabalhadores lutam por suas reivindicações através da associação e depois passam a lutar pela própria associação. Esta associação (comissões de fábrica, comitês de greve, conselhos operários) é originada na luta de classes e forma o embrião da futura sociedade autogerida.
“O que corrói o capitalismo é a criação dessas organizações, pois elas negam o verticalismo dos organismos existentes, seja o Estado, o partido ou o sindicato. Estes são despojados de sua finalidade de controle da mão-de-obra através da ação direta dos trabalhadores. Por mediação das instituições criadas no processo político-social, a classe operária possui a autogestão das suas lutas, ficando, portanto, a decisão e a execução em mãos dos trabalhadores. Assim, socialismo é entendido aqui como o regime onde a autogestão operária extingue o Estado como órgão separado e acima da sociedade, elimina o administrador dirigente da empresa em nome do capital e, ao mesmo tempo, elimina o intermediário político, isto é, o político profissional” (Tragtenberg, 1986, p. 10).
Assim, esta breve citação deixa espaço para se pensar os pontos fundamentais do pensamento de Tragtenberg sobre o Estado, os intermediários (partidos, sindicatos, políticos profissionais), e sua posição diante do regime chamado “socialismo real”. Em relação ao Estado, Tragtenberg mantém a postura de Marx, isto é, o Estado é um instrumento de dominação de classe. Os partidos, mesmo os que se dizem de esquerda, são dirigidos por castas e não representam os trabalhadores. Os sindicatos, por sua vez, possuem o mesmo papel que os partidos: reproduzir o capitalismo e beneficiar seus dirigentes. O “socialismo real”, na verdade, é um capitalismo de Estado, explorador e reprodutor da burocratização da sociedade (Tragtenberg, 1986). Em outra obra aprofunda esta análise da URSS (Tragtenberg, 1988). Enfim, socialismo é autogestão social e já teve várias experiências históricas:
“Essa é uma tendência que aparece nos momentos decisivos da luta dos trabalhadores: na Comuna de Paris (1871), na Revolução Russa de 1917, nas revoluções alemã e húngara de 1918, na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), no Movimento de Maio de 1968 na Europa e na criação do sindicato Solidariedade na Polônia (1978); toma a forma de comissões de fábrica (sovietes, conselhos), visando dirigir a vida econômica, política e social” (Tragtenberg, 1986, p. 5).
Enfim, podemos dizer que Tragtenberg foi um dos grandes nomes da sociologia brasileira e um dos mais profundos e originais pesquisadores da burocracia e da autogestão, incluindo também o processo educacional e as experiências históricas dos trabalhadores. Mas, mais do que um sociólogo, foi um libertário, ou seja, não separou o indivíduo, ser político vivendo numa sociedade repressiva, marcada por conflitos, dominação e exploração, do acadêmico ou do sociólogo, um mero e frio estudioso das relações sociais. Ele foi além, deixando de lado a ficção da neutralidade científica e se posicionou diante da sociedade, fazendo preponderar o indivíduo libertário, e daí criou o seu diferencial em relação a milhares de outros sociólogos, preocupados tão-somente com a academia e seu destino profissional individual.

Referências Bibliográficas
Silva, D. e Marrach, S. Maurício Tragtenberg – Uma Vida para as Ciências Humanas. São Paulo, Unesp, 2001.
Tragtenberg, M. (org.). Marxismo Heterodoxo. São Paulo, Brasiliense, 1981.
Tragtenberg, M. A Delinqüência Acadêmica. São Paulo, Muro, 1979.
Tragtenberg, M. A Revolução Russa. São Paulo, Àtica, 1988.
Tragtenberg, M. Administração, Poder e Ideologia. 2ª Edição, São Paulo, Cortez, 1989.
Tragtenberg, M. Burocracia e Ideologia. São Paulo, Àtica, 1985.
Tragtenberg, M. “Marx/Bakunin”. Escrita Ensaio. Ano V, n. 11/12. 1983.
Tragtenberg, M. Memórias de um Autodidata no Brasil. São Paulo, Escuta, 1999.
Tragtenberg, M. “O Conhecimento Expropriado e Reapropriado pela Classe Operária: Espanha 80”. Educação e Sociedade. São Paulo, Cortez, Setembro de 1980.
Tragtenberg, M. Planificação – Desafio do Século 20. São Paulo, Senzala, 1967.
Tragtenberg, M. Reflexões sobre o Socialismo. 3ª Edição, São Paulo, Moderna, 1986.
Tragtenberg, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. 2ª Edição, São Paulo, Cortez, 1990.
VIANA, Nildo. Maurício Tragtenberg - Um Sociólogo Libertário. São Paulo, Escala, Revista Sociologia, Ciência e Vida, v. 2, p. 64-71, 2008.



* Professor da Universidade Federal de Goiás; Autor dos livros “O Capitalismo na Era da Acumulação Integral”; “A Esfera Artística”; “A Concepção Materialista da História do Cinema”; “A Consciência da História”; “Escritos Metodológicos de Marx”, entre outros.

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