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terça-feira, 30 de janeiro de 2018

SISTEMA CAPITALISTA E SUBJETIVIDADE: O MARXISMO ASSIMILADO PELOS PARADIGMAS HEGEMÔNICOS


SISTEMA CAPITALISTA E SUBJETIVIDADE:
O MARXISMO ASSIMILADO PELOS PARADIGMAS HEGEMÔNICOS

Nildo Viana

O marxismo constitui um saber complexo, sendo uma expressão teórica de uma mentalidade revolucionária, constituindo uma totalidade de pensamento que é antagônica ao pensamento burguês. O marxismo constitui um modo de pensar (episteme) antagônico ao modo de pensar burguês. Nesse processo, ele constitui, consequentemente, um campo linguístico antagônico ao campo linguístico burguês. É por isso que o marxismo é deformado e assimilado cotidianamente e sistematicamente pelo modo de pensar burguês, submetendo-o à sua linguagem.

Assim, quando muitos que se dizem marxistas ou analistas do pensamento marxista e usam termos fora do seu campo linguístico para interpretá-lo ou expressar suas concepções, estão deformando o marxismo. Isso traz a necessidade de resgatar o campo linguístico marxista e, ao mesmo tempo, realizar a crítica do campo linguístico burguês e de sua exportação para o marxismo. O objetivo do presente texto não é realizar tal discussão e sim focalizar a concretização desse processo através da análise do uso de dois termos mais especificamente: “sistema capitalista” e “subjetividade”, bem como termos complementares a estes[1].

EXISTE UM “SISTEMA CAPITALISTA”?

É muito comum a referência de diversos pesquisadores e autores (marxistas, pseudomarxistas, não-marxistas) ao “sistema capitalista”. O fato de que Marx nunca tenha utilizado tal expressão em seu significado atual ou de acordo com as ideologias reprodutivistas parece não ter a menor importância[2], apesar dele ser a referência teórica e autor citado como a fonte dessa concepção. Por isso, a questão da existência de um “sistema capitalista” remete ao problema da relação entre marxismo e linguagem, ou, mais precisamente, a assimilação da teoria marxista do capitalismo pela linguagem dominante, ligada a paradigmas e ideologias hegemônicas em determinado momento histórico.

O que muitos querem dizer com “sistema capitalista” (ou, às vezes, de forma ainda mais abstratificada, apenas “sistema”)? Em termos marxistas, seria mais ou menos o que Marx denominou sociedade capitalista (embora alguns confundam com modo de produção capitalista, que é uma parte dessa sociedade e não sua totalidade)[3] e alguns sociólogos denominaram “sociedade moderna”, “sociedade industrial”, etc. Como aqueles que fazem tal referência se dizem marxistas (tanto alguns marxistas autênticos quanto alguns pseudomarxistas) ou que estão expressando a concepção marxista (não-marxistas que comentam o pensamento de Marx ou o marxismo), então teria o sentido de “sociedade capitalista”. E não seria mera questão de palavras?

O problema é considerar as questões conceituais e teóricas como “mera questão de palavras”. As palavras carregam significados, produzem mal entendidos, promovem deformação do pensamento, etc. e isso tem um significado político e social, e em muitos casos acaba servindo para propósitos e ações que contradizem a concepção marxista e a luta pela emancipação humana. Logo, é parte da luta cultural na qual se confrontam a perspectiva burguesa e a perspectiva do proletariado[4]. Isso é ainda mais grave no que se refere ao caso de um saber complexo determinado, pois o campo linguístico deste constitui uma totalidade significativa, cuja importação de termos antagônicos gera a deformação. A inserção de um construto de alguma ideologia burguesa no universo conceitual marxista, se não for ressignificado ou esclarecido seu significado e uso no interior do mesmo, é uma das formas de deformação do marxismo. Por isso, quando alguém que supostamente defende ou expressa um determinado saber complexo e importa termos contraditórios em relação a ele, demonstra ou uma incompreensão do mesmo, ou então sua deformação[5].

A palavra sistema emerge como construto a partir da constituição do regime de acumulação conjugado e da emergência do paradigma reprodutivista que o acompanha[6]. Nesse período, as tarefas da burguesia para realizar a reprodução do capitalismo apontavam para um estado integracionista (“estado de bem estar social”) e gerando uma política de integração do proletariado e outras classes via políticas de assistência social, expansão do consumo (foi a época da emergência da ideologia da “sociedade de consumo”), ampliação e intensificação da burocratização das relações sociais, etc. Nesse contexto, o paradigma hegemônico foi o reprodutivista, de caráter holista e que pode ser exemplificado no funcionalismo, estruturalismo, “teoria” dos sistemas, entre diversas outras. Até mesmo as concepções contestadoras e críticas não escaparam desse paradigma hegemônico, como se pode ver na produção da Escola de Frankfurt, no pseudomarxismo em geral, entre outros. É nesse momento que surgiram as ideologias que afirmaram ter havido uma integração da classe operária no capitalismo.

No entanto, como não poderia deixar de ser, esse mundo ruiu. A mudança que no mundo ideológico se afirmava que não ocorreria, ocorreu. A crise do regime de acumulação conjugado promove a emergência do regime de acumulação integral e o novo paradigma que o acompanha. Isso será abordado adiante. O importante aqui é destacar que a palavra “sistema” emerge como construto e é reproduzido por diversas ideologias (funcionalismo sistêmico exemplificado por Parsons e outros sociólogos e cientistas políticos norte-americano, a “teoria” dos sistemas, o pseudomarxismo, etc.). É nesse contexto que o uso do termo “sistema” se torna generalizado e invade o pseudomarxismo e outros “críticos da sociedade”[7]. O termo “sistema” fetichizado aparece com tendo vida própria, como algo indestrutível, etc. Isso, por sua vez, é reproduzido pelas representações cotidianas e por indivíduos com formação teórica deficiente, que tratam “o sistema” como algo autônomo e independente dos seres humanos reais[8]. Essa importação terminológica do termo sistema para o marxismo significa transformá-lo numa concepção fetichista, ou seja, sua deformação.

Parsons é um dos ideólogos que desenvolveram essa concepção fetichista de sistema. Segundo ele, os sistemas sociais se caracterizar por possuir um objetivo e por isso constitui padrões que servem para a integração e a reprodução. Assim, “o sistema” passa a ser visto sob forma fetichista, tendo um “objetivo”, que deixa de ser atributo dos seres humanos e passam a ser atributo desse termo reificado.

O conceito de sociedade é muito mais concreto e bem mais difícil de ser transformado em fetiche. No caso do marxismo, é o termo utilizado por Marx e não existe nenhum motivo para trocá-lo por “sistema”, um construto de outras ideologias. A importação terminológica, sem ressignificação ou inserção isolada, quando é realizada sem nenhuma necessidade, como é o caso do construto “sistema”, não tem nenhum sentido e é um empobrecimento de uma teoria muito mais ampla e que expressa a realidade ao invés de deformá-la com construtos fetichistas.

Por isso não deixa de ser curioso que supostos “marxistas” usarem tais termos, gerando advindos de inspiração funcionalista. Assim, é necessário resgatar o marxismo das deformações dos pseudomarxistas e não-marxistas, e esse resgate pressupõe a utilização do campo linguístico próprio do marxismo e crítica do campo linguístico burguês.

EXISTE SUBJETIVIDADE?

A derrocada do regime de acumulação conjugado significou também a derrocada do paradigma reprodutivista. O holismo, o objetivismo, bem como os construtos de “estrutura”, “sistema”, entre outros, entraram em desuso ou foram subordinados aos novos construtos do novo paradigma hegemônico: o subjetivismo. O pós-estruturalismo trouxe vários elementos que são típicos do novo paradigma. O novo paradigma, por sua vez, traz novos construtos, entre os quais se destacam “sujeito”, “subjetividade”, “subjetivação”.

No que se refere ao pensamento de Marx e ao marxismo, emerge o mesmo problema que o existente em relação ao termo “sistema”. O termo básico que muitos marxistas passaram a utilizar foi o de “subjetividade”. Marx poucas vezes usou os termos “sujeito” e, menos ainda, seus derivados. O termo “subjetividade”, no sentido atual, por sua vez, nunca foi usado por Marx. Alguns pseudomarxistas usaram tal termo, mostrando a influência de determinadas ideologias e incompreensão da teoria da consciência de Marx. Este foi bem claro ao explicitar que a consciência só pode ser consciente, ou seja, o individuo real, que é histórico e social. Sair disso, segundo ele próprio, é imaginar “um espírito à parte” (MARX e ENGELS, 1982). Ora, a ideia de subjetividade é justamente um “espírito à parte”, algo metafísico, fora das relações sociais e da história.

No Brasil, o filósofo Paulo Silveira (1978) publicou um livro interessante que realiza uma crítica a Althusser, um reprodutor do paradigma reprodutivista. Alguns anos depois, ele organizou uma coletânea intitulada “Elementos para uma Teoria Marxista da Subjetividade” (1989). Isso é sintomático de como a mudança de paradigma atinge os ditos “marxistas” e assim como o modismo estruturalista atingiu Althusser, o modismo subjetivista atingiu Silveira. Em outras palavras, fugiu do paradigma reprodutivista e caiu no paradigma subjetivista.

O subjetivismo joga para o sujeito a responsabilidade da produção de ideias, de ação política, etc. O sujeito pode ser tanto o indivíduo do liberalismo e neoliberalismo, quando os grupos sociais que se tornam “múltiplos sujeitos”, que segundo muitos poderiam ser “revolucionários”, mas segundo a maioria, devem falar por si mesmos, como já diziam Foucault (1989) e Guattari (1981) e depois se espalhou por várias outras ideologias e doutrinas, até atingir os movimentos sociais (CARVALHO, 2015). Assim, as ideologias filiadas ao paradigma subjetivista, como o neoliberalismo, pós-estruturalismo, multiculturalismo, bem como as diversas formas de manifestação do culturalismo, apontam para a ideia de que são os sujeitos, seus desejos, suas necessidades, sua ação, sua razão, seus sentimentos, sua identidade, que constituem o elemento fundamental e que explicam os movimentos sociais, os indivíduos, etc.

A origem desse paradigma e da primazia do subjetivismo ocorre com a contrarrevolução cultural preventiva após as lutas sociais do final dos anos 1960, especialmente o maio de 1968 em Paris (VIANA, 2009)[9]. O paradigma reprodutivista entra em crise e a possibilidade do marxismo, que ressurge no bojo dessas lutas, faz com que os ideólogos comecem a produzir alternativas, recuperando temas das lutas sociais, mas deformando-os (a crítica da razão instrumental se torna crítica da razão em geral, a crítica do cotidiano capitalista se transforma em crítica da cotidianidade, etc.). Nesse contexto, as instituições e organizações são questionadas e o sujeito – ora o indivíduo, como nas formas do neoliberalismo e outras ideologias – ora o(s) grupo(s) social(is).

Isso vem acompanhado com a ideologia pós-estruturalista e o discurso da fragmentação, da identidade, etc. A grande questão se tornam os sujeitos e sua subjetividade, geralmente abstratificados, ou seja, fora das relações sociais e história (não sem contradições e ambiguidades)[10]. Assim, surgem diversas ideologias que invertem a realidade e a transformam em “construção cultural”, derivando daí o discurso ideológico da “desconstrução”, que é apenas uma variante do paradigma subjetivista. E isso fica mais fácil com o discurso irracionalista, anti-intelectualista, entre outros, que apontam para a recusa da razão e da teoria, o que fortalece a ignorância, a presunção, o sentimentalismo, e que são os indivíduos que sabem por si próprios, abstraindo que sua formação mental é um produto social. Os indivíduos têm dificuldade em entender que o discurso que eles acataram segundo o qual eles mesmos produzem suas ideias, foi produzido em outro lugar, por outras pessoas, ou seja, pelo aparato estatal, fundações internacionais, etc. (VIANA, 2015).

O curioso é que supostos “marxistas” reproduzam tais teses ideológicas. O indivíduo, ao invés de ser um ser social e histórico, aparece com um ente metafísico, bem como a consciência. Ou então o grupo social. O termo “subjetividade” é metafísico e a dificuldade em sua definição já mostra isso, a começar por diversos artigos em que tratam desse suposto “fenômeno”, sem nunca defini-lo. Outros trocam, sem nenhum motivo ou justificativa, os conceitos usados por Marx, como consciência e pensamento, por “subjetividade”.

Essa importação de um construto para a concepção marxista não realiza nenhum acréscimo e ainda traz confusão e aproximação do marxismo com ideologias hegemônicas, gerando interpretações equivocadas e mais uma deformação do pensamento de Marx. A ênfase na subjetividade, o que gera a sua força como ideia-chave, é a nova moda ideológica que emerge a partir dos anos 1970 e se consolida na década seguinte e se torna hegemônica a partir dos anos 1990. O nome “subjetividade” nem sempre aparece, mas passa a ser universalmente presente no seu significado. A proliferação do uso do termo é cada vez mais intensa.

Assim, o uso do termo subjetividade e sua atribuição à Marx é uma deformação do pensamento deste. Se ele não usou tal termo, então não se deve interpretar o pensamento dele utilizando linguagem que não é a dele. Quando se analisa um autor, se utiliza a sua linguagem, ou seja, os signos e significados que ele utiliza. Usar outros signos e significados, quando se trata de ideias do autor, é deformá-lo e criar elementos para não compreendê-lo.

Sem dúvida, alguns marxistas buscam ressignificar o termo subjetividade para adequá-lo ao marxismo. Isso é realizado sob várias formas, mas todas elas repetem o que foi feito na época que o “marxismo” foi subsumido ao estruturalismo, tal como fez Althusser, ou seja, através de uma mescla do pseudomarxismo (geralmente o leninismo) e o novo paradigma hegemônico. Assim, o “sujeito”, essa coisa metafísica e “a subjetividade” aparecem, mesmo que mesclada com a intepretação pobre do pensamento de Marx e sua deformação leninista.

Uma questão que deve ser respondida é por qual motivo emerge tal termo no discurso dos supostos “marxistas”. Em muitos casos, isso ocorre por reprodução espontânea e acrítica do paradigma hegemônico. Em outros casos, por interesses acadêmicos que leva alguns intelectuais a querer se adequar linguisticamente aos modismos ou concepções hegemônicas. Há também os casos que as ambiguidades individuais ou pouco aprofundamento no marxismo permitem esse tipo de processo de importação terminológica. Por fim, há os casos de ideólogos que pretendem, intencionalmente, mesclar o marxismo com ideologias hegemônicas, como, por exemplo, a fenomenologia, o pós-estruturalismo, a psicanálise[11], etc.

A importação linguística para o interior do marxismo do construto “subjetividade” tem o mesmo significado que o do construto “sistema”: a transformação do “marxismo” em ideologia e a perda do seu significado revolucionário. A assimilação do marxismo pelas ideologias burguesas, seja as holistas ou individualistas, objetivistas ou subjetivistas, significam a sua destruição como expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado e a sua domesticação e abandono de sua radicalidade e criticidade. E por isso essa importação linguística deve ser criticada e superada, pois essa superação é parte da luta pela transformação radical e total das relações sociais.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. 3ª edição, Rio de Janeiro: Graal, 1991.

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 5ª edição, São Paulo: Hucitec, 1990.

CARVALHO, Daniel. Subjetivismo e Movimentos Sociais ou Quando o feitiço vira contra o feiticeiro. Revista Posição. Vol. 02, num. 05, 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/2carvalho5/194

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo, Brasiliense, 1981.

MARCUSE, H. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

MARX, Karl e ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª edição, São Paulo: Global, 1989.

PARSONS, Talcott. O Sistema das Sociedades Modernas. São Paulo: Pioneira, 1974.
SILVEIRA, Paulo e DORAY, Bernard (orgs.). Elementos para uma teoria marxista da subjetividade. São Paulo: Vértice, 1989.

SANTOS, Theotônio dos. Forças Produtivas e Relações de Produção. Petrópolis: Vozes, 1988.

SILVEIRA, Paulo. Do Lado da História. Uma Leitura Crítica da Obra de Althusser. Petrópolis: Polis, 1978.

VIANA, Nildo. Hegemonia e Luta Cultural. Sociologia em Rede. Vol. 05, num. 05, 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rsr/article/view/4viana5b/261

VIANA, Nildo. Naturalização e desnaturalização: o dilema da negação prático-crítica. Revista Espaço Livre. v. 8, n. 15, jan. jun./2013. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/51/46

VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.

YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente. Exclusão Social, Criminalidade e Diferença na Modernidade Recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.





[1] Uma análise mais aprofundada sobre esses aspectos, tanto no plano teórico quanto histórico, pode ser vista no livro O Modo de Pensar Burguês e na obra que desenvolve historicamente esse processo, A Dinâmica das Renovações Hegemônicas, ambos em preparação.
[2] Marx utilizou a expressão “sistema” em dois contextos. O primeiro contexto é quando ele se refere ao “sistema colonial” em O Capital (1988); o segundo é quando se refere ao mundo da ideologia, aos sistemas de pensamento dos neo-hegelianos (MARX e ENGELS, 1982). No primeiro caso, ele usa um termo já utilizado por outros e sem ter o caráter de um conceito, é apenas uma expressão descritiva. No segundo caso, ele não aprofunda o significado, mas concebe “sistema” como uma “totalidade de pensamento” abstratificado e falso. A sua concepção de ideologia é justamente a de um “sistema de pensamento ilusório”. Ele usou também, em O Capital, o termo “sistema” para se referir a alguns aspectos do capitalismo, como o sistema de crédito. O termo “sistema capitalista” aparece em algumas poucas passagens dos volumes que foram organizados e publicados por Engels e o significado da palavra “sistema”, nesse contexto, é obviamente muito diferente do que se usa atualmente e nas ideologias do paradigma reprodutivista (teoria dos sistemas, funcionalismo, etc.), tendo um significado equivalente ao de sociedade.
[3] O conceito de sociedade em Marx remete ao que ele denominou “conjunto das relações sociais” (1989), que seria composta pelo modo de produção dominante, formas sociais e modos de produção subordinados. Assim, o conceito de capitalismo pode se referir ao modo de produção capitalista ou à sociedade capitalista.
[4] Bakhtin (1990) foi um dos autores que enfatizou a “lutas de classes em torno do signo” e é disso, precisamente, do que se trata.
[5] A exceção é quando o termo é assimilado, ou seja, recebe uma ressignificação ou adaptação que abole a contradição ou deformação da concepção assimiladora.
[6] Uma análise dos paradigmas numa concepção marxista, e do paradigma reprodutivista, pode ser visto nas duas obras já citadas.
[7] Até Marcuse (1967) que denunciou os usos da linguagem para a reprodução do poder não escapou da reprodução do campo linguístico hegemônico, tal como se vê no seu uso do termo sistema e o uso abundantemente do termo “sociedade industrial”, um produto da sociologia conservadora norte-americana que carrega determinado significado ideológico e é, também, um eufemismo para sociedade capitalista.
[8] No plano da ideologia, é o que se vê nas concepções de alguns sociólogos, economistas, etc., e por pseudomarxistas, tal como Santos (1988).
[10] Inúmeras contradições são visíveis em diversas ideologias e concepções. Esse é o caso, por exemplo, da ideologia da identidade. Esse combate o essencialismo biológico, mas acaba gerando um essencialismo cultural, transformando a identidade em essência (cf. YOUNG, 2002; VIANA, 2013).
[11] O termo subjetividade emerge na psicanálise através de Lacan. No entanto, trata-se de uma versão estruturalista e objetivista da subjetividade (que remete para a linguagem e o simbólico no sentido metafísico da psicanálise estruturalista) e retorna de acordo com o novo paradigma hegemônico, inclusive promovendo leituras sobre “subjetividade” em Freud, sendo que este, tal como Marx, nunca usou tal termo e não necessitasse dele para criar sua concepção de “aparelho psíquico”. É o processo de assimilação de pensadores passados por ideologias hegemônicas contemporâneas. O mesmo Lacan fez com Freud, visando adaptá-lo ao estruturalismo (ALTHUSSER, 1991).

ESTADO E ACUMULAÇÃO DE CAPITAL


ESTADO E ACUMULAÇÃO DE CAPITAL

Nildo Viana

No mudo das aparências os fenômenos sociais são vistos de forma invertida, tal como se tivessem de cabeça para baixo. É por isso que para alguns o Estado é “um órgão público”, “expressão da soberania popular”, ou, ainda, o “reino do antivalor”. O mundo real é diferente do mundo ilusório do imaginário ou do mundo ideológico, no qual os intelectuais sistematizam tais representações cotidianas ilusórias transformando-as em ciência ou filosofia.
O que é o Estado? Não é possível compreender o Estado isoladamente e sem entender sua formação e essência. É por isso que a compreensão do Estado pressupõe compreensão do capital. Em termos gerais, o Estado é um aparato do capital que, por sua vez, gera diversos outros aparatos (jurídico, repressivo, educacional, comunicacional, cultural, etc.). Quando Marx colocou que o Estado é uma “associação da classe dominante” para fazer valer seus interesses (MARX e ENGELS, 1982) estava revelando a essência de toda organização estatal, bem como seu vínculo inseparável com as sociedades de classes e com a classe que domina em determinada sociedade. Quando Marx afirmou que “o governo” (no caso o termo mais adequado seria Estado, embora o governo seja uma manifestação do aparato estatal), no capitalismo, “é um comitê para gerir os interesses da classe capitalista” (MARX e ENGELS, 1988) apenas mostrava que o aparato estatal no capitalismo é a associação desta classe para manter sua dominação.
O Estado capitalista pode ser definido então com uma relação de dominação na qual a classe capitalista domina o proletariado e outras classes sociais através da burocracia (VIANA, 2015). Assim, há um vínculo inquebrantável entre Estado e capital, sendo que o primeiro é representado, geralmente, pela burocracia estatal, e o segundo pela classe capitalista. A sua função é exercer o controle social sobre o conjunto da sociedade e garantir a reprodução das relações de produção capitalistas. Para garantir essa reprodução do capitalismo precisa realizar a repressão do movimento operário e todos que ameacem a sua permanência ou cria problemas para a classe capitalista e a acumulação de capital.
É nesse contexto que surge uma nova percepção equivocada do Estado ao ficar no nível da aparência. Aparentemente, o Estado possui uma relação indissolúvel com o capital, pois está ao seu serviço. Mas ele aparece como sendo “externo” ao movimento do capital e assim alguns ideólogos podem colocá-lo como representante de uma outra instância, a do político. Essa concepção politicista do Estado gera até mesmo a ideologia que ele seria espaço de manifestação do “antivalor”:
Em termos marxistas [sic], a função do fundo público tende a desfazer os conceitos e realidades do capital e da força de trabalho, esta última enquanto mercadoria, ou nos termos de Sraffa a mercadoria-padrão, que determina o valor e o preço de qualquer outra (relevados os problemas da conversão de valor em preços, que aliás com o fundo público tornam-se praticamente intraduzíveis). A equação original de Marx é a de D-M-D' no que se refere ao circuito do capital-dinheiro. O fundo público funcionando como pressuposto geral de cada capital em particular transforma essa equação em Anti-D-D-M-D’(-D), sendo que o último termo volta a repor-se no início da equação como Anti-D, isto é, uma quantidade de moeda que não se põe como valor. O último termo é uma quantidade de moeda que tem como oposição interna a fração do fundo público presente nos resultados da produção social, que se expressa em moeda mas não é dinheiro. Do ponto de vista do circuito da mercadoria, a equação original de Marx era a de M-D-M’, e o fundo público como estrutura imbricante transforma a equação para Anti-M-M-D-M’(-Anti-M), na qual os dois primeiros termos significam as antimercadorias e as mercadorias propriamente ditas, e os dois últimos significam a produção de mercadorias e a produção de antimercadorias. No fundo, a segunda equação fica subsumida na primeira. As consequências teóricas dessa transformação vão se expressar na composição do capital e na taxa de exploração. A composição do produto, na equação C+V+M, sofre a seguinte transformação: -C + C+V(-V) + M, na qual a taxa de mais-valia se reduz pela presença, na equação, das antimercadorias sociais que funcionam como um ersatz do capital variável. Isto quer dizer que na equação geral do produto a taxa de mais-valia cai, enquanto na equação de cada capital particular ela pode, e geralmente deve, se elevar (OLIVEIRA, 1988, p. 17-18).
Curiosa conclusão e mais ainda por se dizer “marxista” (apesar das referências serem outras, não-marxistas). O Estado não é “externo” ao capital, nem uma instância separada e autônoma, a do “político”, muito menos espaço de “antivalor” ou o “público”. Na concepção marxista, o Estado é externo ao capital apenas em sua origem, pois ele surge antes do modo de produção capitalista se tornar dominante e é envolvido, posteriormente, pelo movimento do capital. Marx explicitou isso claramente: “a velha nobreza feudal fora devorada pelas grandes guerras feudais; a nova era uma filha de seu tempo, para a qual o dinheiro era o poder dos poderes” (MARX, 1988a, p. 343). O absolutismo financiou o capital manufatureiro e promoveu a acumulação primitiva de capital.
As revoluções burguesas modernizaram o Estado e o colocaram a serviço do capital sob forma burocrática e racional. A partir desse momento, o Estado se torna um derivado do capital (MATHIAS e SALAMA, 1983). O modo de produção capitalista e o Estado assumem a forma moderna, que permanece até hoje, de relação entra aparato estatal e relações de produção capitalistas. O movimento do capital engloba e determina o aparato estatal (o que difere da ação direta da classe capitalista, ou de setores dela, sobre os governos). O que interessa saber é como o capital envolve o aparato estatal. Isso remete a uma discussão sobre o processo de mercantilização e a acumulação de capital.
O modo de produção capitalista se fundamenta nas relações de produção capitalistas, caracterizadas pelo processo de produção de mais-valor, a forma especificamente capitalista de produção de mercadorias (MARX, 1988b). A produção de mais-valor significa uma relação de classes sociais, na qual o proletariado produz mais-valor e a burguesia se apropria desse mais-valor produzido. Isso, aparentemente, é realizado através de uma troca justa entre força de trabalho por determinado período de tempo (jornada de trabalho) cedido pelos proletários e salários cedidos pelos capitalistas. No entanto, os trabalhadores recebem apenas uma parte do que produzirem, sendo que a outra parte é apropriada pelo capital e é justamente o mais-valor. O mais-valor expressa que o valor do salário é um “valor inequivalente” ao real valor que o proletariado produziu (VIANA, 2016), sendo, pois, exploração.
Esse processo de exploração, no entanto, não esgota o processo analítico do modo de produção capitalista e, muito menos, da sociedade capitalista[1]. A produção do mais-valor é o momento da exploração, mas é necessário o momento seguinte, que é o da realização. A realização do mais-valor ocorre nas relações de distribuição (“mercado”) e significa um processo de repartição do mais-valor. A maior parte do mais-valor fica com o capitalista (ou o conjunto de capitalistas, pois a propriedade pode ser individual ou coletiva, tal como no caso da sociedade por ações) e ele converte parte dela em renda (consumo pessoal/familiar) e outra parte em capital (reinvestimento). O capital reinvestido é que move o processo da acumulação de capital. O capitalista é constrangido a reinvestir por causa das necessidades da reprodução da produção (ele precisa comprar matérias-primas, pagar salários, etc., para manter a empresa funcionando e produzindo) e por causa da competição com os demais capitais, gerando a reprodução ampliada do capital. Sem dúvida, a mentalidade do capitalista é uma mentalidade burguesa[2] e, assim, independente do constrangimento das relações sociais, ele tenderia a sempre reinvestir para ganhar a competição com os demais capitalistas.
O capitalista deve, no entanto, pagar impostos e outros gastos, que significa transferência de parte do mais-valor para outros setores da sociedade. Os impostos significam transferência de mais-valor para o aparato estatal; as despesas bancárias para o capital bancário; as despesas de distribuição para o capital comercial; os falsos custos de produção com os trabalhadores assalariados improdutivos (burocratas, intelectuais, subalternos). É assim que ocorre a repartição do mais-valor na sociedade. O conjunto de tudo que foi produzido pela totalidade da classe proletária em determinada sociedade é o mais-valor global, que após ser reproduzido, é repartido na sociedade[3].
O desenvolvimento capitalista promove um processo de mercantilização das relações sociais e de todos os bens produzidos. Os bens materiais são paulatinamente transformados em mercadorias e os bens culturais e coletivos são transformados em mercancias (VIANA, 2016). Esse processo coloca todos os indivíduos, empresas, instituições, dependentes do dinheiro. O dinheiro é o meio de troca universal e é a forma de se adquirir mercadorias e mercancias. Como tudo se torna mercadoria/mercancia, então não há como o indivíduo sobreviver sem dinheiro, nem as instituições, etc. O indivíduo precisa de alimento, habitação, vestimenta e tudo o mais e só possuindo dinheiro poderá adquiri-los (a não ser que outra pessoa lhe sustente, o que significa que ela tem que ter dinheiro para si e para quem sustenta).
Isso que é válido para o indivíduo também se aplica ao aparato estatal. Se o Estado quer construir uma ponte, fundar uma escola, pagar seus funcionários, financiar uma ONG, etc., ele precisa de dinheiro. Isso ocorre através da arrecadação. O forte da arrecadação é através de impostos (e eles são complementados por taxas, lucro – de empresas estatais – multas, etc.). Os impostos (e as demais formas de arrecadação) são oriundos do mais-valor global drenados pelo aparato estatal. O conjunto do que é arrecadado é a renda estatal.
O Estado é, portanto, dependente da renda estatal. Ele se subordina ao cálculo mercantil[4], pois precisa manter o equilíbrio orçamentário, ou seja, não gastar mais do que arrecada. Se ele gastar mais do que arrecada, estará se endividando, emergindo a famosa “dívida pública” (interna ou externa). Assim, o aparato estatal deve garantir sua arrecadação e também que os gastos não superem o que foi arrecadado. Quando ocorre o desequilíbrio orçamentário, a solução é aumentar a arrecadação (impostos, principalmente) ou diminuir os gastos estatais.
Aqui temos a chave explicativa da relação entre Estado e acumulação de capital. Uma das funções do Estado é garantir a reprodução ampliada do capital, ou seja, o processo de acumulação cada vez mais amplo. Para fazer isso, ele precisa combater a tendência declinante da taxa de lucro, criar infraestrutura para o desenvolvimento capitalista, etc. (MATHIAS e SALAMA, 1983; VIANA, 2015). A questão é que isso pressupõe gastos e significa uma parte da renda estatal. Ou seja, parte da renda estatal é reinvestida no circuito de reprodução da acumulação capitalista. Porém, a renda estatal não advém apenas da parte do mais-valor global drenada do processo de produção capitalista, pois grande parte dela é valor estacionário[5], ou seja, não é mais-valor, novo valor criado, mas apenas circulação (e desgaste) de valor já existente.
Assim, quando o aparato estatal funda uma nova escola, ele paga uma empreiteira para construir o prédio e a construção desse prédio é um valor novo que a renda estatal financia e permite, com isso, a extração de mais-valor de seus operários da construção civil, mas a obra pronta torna-se, depois de paga, valor estacionário[6]. O prédio não produzirá nenhuma nova riqueza e vai se desgastar com o tempo, gerando os gastos de manutenção. O mesmo vale para as carteiras adquiridas, etc. Essa é a parte do consumo produtivo direto do aparato estatal, que quanto maior, mais beneficia a reprodução ampliada do capital, e, quanto menor, mais gira em torno do valor estacionário, do trabalho morto, o que pode gerar desequilíbrios dependendo da situação.
O aparato estatal também interfere no processo de acumulação de capital através da regularização que é efetivada através de suas políticas pecuniárias (“econômicas”), tais como a política monetária, política fiscal e a política salarial. Assim, um conjunto complexo de leis, incentivos, ações, que atuam sobre a taxa de juros, a moeda, etc., interferem no processo de acumulação de capital, gerando resultados positivos ou negativos, dependendo das decisões tomadas, que, por sua vez, possuem múltiplas determinações[7], tal como as demais ações estatais.
Um outro aspecto nessa relação entre Estado e acumulação de capital é a de que há uma dependência entre ambos. O aparato estatal depende da acumulação de capital. No entanto, há uma interdependência, a acumulação de capital depende do aparato estatal, pois este pode efetivar políticas pecuniárias que incentivam e promovem uma maior acumulação de capital. Uma desaceleração da acumulação de capital significa um crescimento mais lento na produção de mais-valor (abstraindo as contratendências, que, concretamente, muitas vezes não se efetivam ou são pouco eficazes) e, portanto, o seu decréscimo proporcional em relação ao valor estacionário. Nesse caso, há uma diminuição da geração de riqueza e mesmo que o processo de redistribuição produza a ilusão do crescimento através do aumento do consumo, que pode ser gerado via uso de poupança, venda de mercadorias anteriormente produzidas e estocadas, etc., isso não corresponde à realidade. Devemos ultrapassar da ilusão sobre a realidade para entender a realidade da ilusão. A desaceleração da acumulação de capital acaba atingindo o conjunto da sociedade. O aparato estatal perde parte de sua arrecadação, tanto a direta quanto tendencialmente a indireta. Essa desaceleração, caso se prolongue por muito tempo, acaba, inevitavelmente, atingindo o processo de reprodução e promove uma diminuição geral da arrecadação estatal.
Assim, as políticas estatais em geral e as políticas pecuniárias, em particular, assumem uma determinada modalidade em cada fase do capitalismo, ou seja, em cada regime de acumulação. Podemos citar dois exemplos de políticas pecuniárias, a keynesiana, marcada pelo intervencionismo pecuniário, determinadas políticas salariais, fiscais e monetárias, típicas do regime de acumulação conjugado, e a política neoliberal, caracterizada pelo não-intervencionismo direto e determinadas políticas fiscais, monetárias, etc. Essas duas formas de políticas pecuniárias são derivadas do regime de acumulação e expressam a resposta do capital para determinada situação da luta de classes e das necessidades do processo de acumulação de capital.
No entanto, é preciso alertar que tais políticas pecuniárias não se instalam imediatamente em todos os países e nem da mesma forma, pois existem diferenças nacionais, lutas de classes internas, etc., que formam uma especificidade nacional. Além da diferença enorme entre o capitalismo imperialista e o capitalismo subordinado, há também outras determinações que atuam sobre as políticas pecuniárias. Entre elas, cabe destaque ao bloco dominante, com sua força maior ou menor em determinado momento, suas contradições internas, suas divisões, etc.[8] No caso brasileiro, havia uma determinada um governo neopopulista, possível por correlação de forças que permitiu o desenvolvimento de determinadas políticas pecuniárias. Enquanto estas conviviam com a manutenção do ritmo de acumulação de capital, e, por conseguinte, estabilidade financeira e política, poucos se opunham a tal governo. Quando tais políticas pecuniárias, devido sua indefinição, junto com incompetência e limites impostos pelo neopopulismo, começam a entravar a acumulação de capital por não promover mudanças necessárias, então altera-se a correlação de forças, o que somado à insatisfação de parte da população (e alguns setores começaram a sentir na carne as consequências da desaceleração da acumulação de capital), o governo se torna um obstáculo a ser removido.
As políticas pecuniárias são o resultado de múltiplas determinações e, nesse sentido, é preciso entender que sua dinâmica está diretamente envolvida nas lutas de classes e outros processos sociais. Um dos elementos mais importantes nas políticas pecuniárias é a repartição da renda estatal. A renda estatal é dividida em suas despesas autógenas (os salários, desde os mais altos aos mais baixos, do conjunto de empregados estatais, os recursos utilizadas em suas autarquias, fundações, etc., as despesas de manutenção, entre diversas outras, visando sustentar a imensa máquina estatal), as políticas de assistência social, a prevaricação, etc. Uma parte da renda estatal deve ser investida para subsidiar o capital produtivo, pois se não o fizer, estará criando um ponto de estrangulamento. Isso é ainda mais importante em determinados contextos, que podem exigir, inclusive, um crescimento nos gastos estatais voltados para esse setor[9]. Porém, se a máquina estatal gera despesas endógenas altas, isso limita a capacidade estatal de repartir parte da renda estatal com o capital produtivo e por isso surgem propostas de limitar os gastos estatais. Quanto maior a máquina estatal, maior suas despesas e maior é o quantum da renda estatal gasta endogenamente.
O mesmo vale para as políticas de assistência social (educação, saúde, etc.). No entanto, os gastos com tais políticas já são bem limitados, apesar do crescimento populacional gerar mais demandas e gastos, só que é a parte da renda estatal que há a menor pressão para sua manutenção. A prevaricação, as despesas autógenas, as despesas com o capital, tem forte pressão e interesses[10], enquanto que as políticas de assistência social não possuem a mesma força, pois ela depende das classes desprivilegiadas e do bloco revolucionário (e setores do bloco progressista menos aliados ao governo), que são relativamente fracos em seu poder de pressão. O combate à corrupção (parte da prevaricação) e a diminuição dos gastos com as políticas de assistência social são as duas formas mais adequadas para redirecionar os gastos estatais, ou seja, a repartição da renda estatal.
Assim, o aparato estatal depende da acumulação de capital e é peça importante para a continuidade do seu ritmo e, caso não faça isso, ameaça a governabilidade e pode decretar seu próprio fim. Desta forma, para compreender a dinâmica das políticas estatais, lutas internas, etc., é fundamental entender a dinâmica da acumulação capitalista, os regime de acumulação e suas mutações. Os ciclos dos regimes de acumulação ajudam a compreender esse processo, inclusive como as ideologias parecem verdadeiras e exatas nos momentos de estabilidade, mas mostram suas falhas nos momentos de crise, embora o aparato estatal e o capital tendem, geralmente, a tentar resolvê-la se movendo ainda no interior da ideologia hegemônica. É por isso que a desestabilização do regime de acumulação integral vem sendo enfrentada por vários governos com mais neoliberalismo (gerando um neoliberalismo discricionário marcado pelas políticas de austeridade), que não resolvem o problema, apenas possuem um impacto temporário benéfico para certos setores, mas que não se sustenta a longo prazo e cria novos problemas para o capital (a diminuição do consumo, por exemplo, o que gera novo impacto negativo no processo de produção de mais-valor, ou seja, de riqueza real)[11].
Toda essa análise teve o objetivo de analisar a relação entre Estado e acumulação de capital. Ao contrário das ideologias, desde as fetichistas que acham que o Estado tem vida própria e autônoma, passando pelas voluntaristas e outras, até chegar às pseudomarxistas, aqui o Estado é compreendido como um aparato, uma enorme máquina burocrática constituída por seres humanos reais, perpassado por um conjunto de interesses[12], que vive em função da renda estatal. A compreensão da relação entre aparato estatal e acumulação de capital remete, necessariamente, para a questão da renda estatal. Sem renda estatal, não há a imensa máquina burocrática que dá vida ao Estado, não há políticas de assistência social, não há corrupção, não há repressão estatal, não há ação estatal pecuniária para reprodução do capital.
A renda estatal é, por conseguinte, um conceito fundamental para compreender a relação entre Estado e acumulação de capital. Isso mostra um elemento que geralmente fica ausente nas análises politicistas do Estado e das políticas estatais. Essas análises, reducionistas, não compreendem que as lutas políticas são inseparáveis das lutas pecuniárias e das demais lutas e que o aparato estatal, mesmo em sua autonomia relativa, não está separado da sociedade, sob inúmeros aspectos (acumulação, ideologias, etc.). É fundamental, portanto, a análise da renda estatal para compreensão do Estado e de sua relação com a acumulação de capital. Da mesma forma, a análise da acumulação de capital é fundamental para compreender a renda estatal. Sem entender os regimes de acumulação, os seus ciclos, a sua manifestação concreta em cada país, momento, etc., fica difícil uma compreensão mais profunda do que ocorre em casos concretos, nas conjunturas, etc.
Por fim, uma última observação a se fazer é que há uma unidade entre acumulação de capital e interesses gerais da população. A desaceleração do ritmo de acumulação de capital atinge a renda estatal, o que significa diminuição da alocação de uma parte dessa para as políticas de assistência social. Também significa aumento de desemprego (e maior incapacidade do Estado minimizar o seu impacto), diminuição do consumo (que por sua vez reforça a pressão negativa sobre a acumulação), aumento da pobreza, etc. Logo, a desaceleração do ritmo de acumulação de capital prejudica a todos, não apenas ao capital produtivo. Quais as soluções? Aumentar a taxa de exploração, diminuir os gastos estatais com políticas de assistência social, diminuir a corrupção, etc.
Isso significa que cabe aos trabalhadores aceitarem o aumento da exploração, a diminuição de sua renda e nível de vida, o empobrecimento. Só assim ele pode ajudar ao capital e ao aparato estatal no processo de recuperação da acumulação. Isso pressupõe, também, o aumento do consumo, da destruição ambiental, etc. Essa comunidade de interesses, no entanto, significa uma vida cada mais degradante para os trabalhadores e uma riqueza cada vez maior para a classe capitalista. Depois do proletariado (alguns juntos com ele, como o lumpemproletariado) vem outros trabalhadores e depois setores da intelectualidade e burocracia, até chegar aos extratos superiores. Assim, os trabalhadores devem lutar para aumentar a sua exploração, pois somente assim se sustenta a acumulação de capital e é possível a reprodução da sociedade capitalista.
Isso pode parecer um mal necessário para alguns progressistas e uma “heresia” para os demais tipos de progressistas. Os trabalhadores possuem os mesmos interesses que os capitalistas? Eles devem aceitar a intensificação da exploração? Eles devem se unir ao capital? Essas são as questões que certos progressistas formulariam. E a resposta é sim, é exatamente isso. Ou é isso, ou é aumento de pobreza, desemprego, etc. e de exploração, mas agora contra a vontade dos próprios trabalhadores, pois excederia o limite do suportável. A solução, assim, parece uma não-solução.
Essa é a solução capitalista, pensada no interior da sociedade capitalista com suas contradições e processo crescente de deterioração e barbarização crescente. O que pode variar aí é o grau e a forma, um pouco mais ou um pouco menos, da forma democrática ou autocrática, etc. Dentro do capitalismo, só é possível pensar falsas soluções. Para encontrar uma real solução é preciso pensar para além da sociedade capitalista. Nesse caso, os trabalhadores possuem alternativa: a superação do capitalismo, o que significa não uma diminuição da exploração e sim sua abolição. E para isso é preciso um projeto de uma nova sociedade, que já foi esboçado em várias experiências revolucionárias e obteve várias contribuições teóricas sobre suas tendências, possibilidades e características. Isso significa que a única alternativa real para o proletariado e o conjunto das classes desprivilegiadas é a superação do capitalismo e instauração da autogestão social. O resto é apenas paliativo que apenas expressam uma maior degradação da humanidade.
Na primeira alternativa, a falsa solução, proletariado e burguesia devem ficar unidos. Na segunda e real alternativa, o proletariado se une contra a burguesia. A escolha é entre aumentar a própria exploração ou abolir a mesma. Os demais trabalhadores e classes sociais podem escolher entre uma vida medíocre, fútil e cada vez mais pobre, ou então lutar junto com o proletariado pela transformação radical e total das relações sociais. Daí termos que escolher entre duas opções antagônicas: autogestão ou barbárie.

Referências

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

MARX, Karl. O Capital. 3ª edição, Vol. 01, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 02. 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988a.

MATHIAS, Gilbert e SALAMA, Pierre. O Estado Superdesenvolvido. São Paulo: Brasiliense, 1983.

OLIVEIRA, Francisco. O Surgimento do Antivalor. Capital, Força de Trabalho e Fundo Público. Novos Estudos/Ceprap. Outubro de 1988.

VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas. Rio de Janeiro: Ar Editora, 2016.

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. 2ª edição, Rio de Janeiro: Rizoma, 2015b.

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Estado e Acumulação de Capital. Revista Enfrentamento. Ano 12, Num. 21, jan/jun. 2017.



[1] É sempre útil recordar algumas obviedades da teoria do capitalismo, tal como a distinção entre modo de produção capitalista, uma parte da sociedade, e a sociedade capitalista, a totalidade. A sociedade capitalista é composta pelo modo de produção capitalista, modos de produção subordinados e formas sociais burguesas. Logo, o conceito de modo de produção capitalista remete a uma parte da sociedade capitalista e este último conceito expressa a totalidade das relações sociais na modernidade.
[2] A mentalidade burguesa reproduz os elementos fundamentais da sociabilidade capitalista: competição, mercantilização e burocratização (VIANA, 2008).
[3] Esse processo é bem mais complexo e tem diversos desdobramentos que não poderemos abordar aqui, mas podem ser vistos em outra obra (VIANA, 2016).
[4] O cálculo mercantil é o processo de calcular o montante de dinheiro que possui ou recebe e o total de gastos que pode ter. Isto está presente no orçamento doméstico ou até mesmo quando um indivíduo vai numa feira fazer compra com 100 reais, pois ele sabe que não poderá gastar mais do que possui (a não se que se endivide). Obviamente que o cálculo mercantil do aparato estatal difere do realizado pelos indivíduos e famílias, pois ele é muito mais complexo do que alguns economistas pensam e por isso não é possível uma transposição mecânica da análise de um para outro (VIANA, 2016).
[5] Sobre isso, cf. Viana (2016). Esse é um dos problemas das estatísticas governamentais e outras, bem como de seus medidores, como o PIB (Produto Interno Bruto), pois não se verifica e não se diferencia entre o valor novo criado (geração de riqueza efetiva) e valor estacionário (distribuição e redistribuição do valor já criado). Além de problemas meramente estatísticos, isso gera o problema do crescimento ilusório do PIB, pois tal crescimento pode ser mera circulação do que já foi produzido e consumido. Diminuir a taxa de juros, por exemplo, tende a aumentar a circulação geral, mas não necessariamente a produção, e não ocorrendo isto, pode haver aumento do PIB que não se reverte em aumento real da produção de mais-valor e o valor estacionário vai apenas se desgastar e se esgotar, gerando mais problemas no processo de acumulação em médio prazo, que é quando a ilusão estatística cai por terra.
[6] Se há corrupção no processo, isso significa prevaricação, ou seja, “apropriação privada da renda estatal” (VIANA, 2016). A prevaricação, nesse caso, ocorre sob a forma da corrupção.
[7] Não poderemos desenvolver isso aqui, mas entre as determinações das políticas pecuniárias há a correlação de forças entre os setores do capital, bem como, em menor grau, da pressão popular. Outra determinação, ligada à primeira, está na ideologia dos economistas e demais responsáveis pela explicação e elaboração de políticas estatais. As ideologias podem provocar políticas equivocadas e gerar dificuldades crescentes, por ter uma percepção falsa da realidade e buscar falsas soluções. As disputas ideológicas (por exemplo, monetaristas versus estruturalistas) expressam distintos interesses, percepções, forças políticas, mas sempre com o predomínio de uma, que remete a determinado paradigma hegemônico.
[8] É o caso, por exemplo, do impeachment de Dilma Roussef, pois suas políticas pecuniárias neoliberais neopopulistas (que limitavam determinadas ações) eram inapropriadas para um aceleramento da acumulação de capital. Esse foi o motivo pelo qual o capital produtivo, que é o primeiro e diretamente atingido pela desaceleração da acumulação de capital, foi também o primeiro setor do capital a apoiar ativamente o impeachment (a FIESP foi a sua face mais visível). A consciência da burguesia (em suas várias frações e outras divisões) é precária, seja pela influência das ideologias (sistemas de pensamento ilusório, que traz momentos de verdade a partir das necessidades da burguesia, mas que tem limites intransponíveis), seja por sua representações cotidianas, e por isso muitas vezes demora para compreender as relações e tendências em determinado momento.
[9] Os gastos estatais para o capital produtivo podem ser repassados sob as formas mais variadas, inclusive através de subsídios, isenção de impostos, etc. Nesse último caso, o aparato estatal não arrecada e não reparte posteriormente. O problema desses processos é que eles são geralmente seletivos, ou seja, atendem apenas alguns setores do capital.
[10] Os diversos setores do capital pressionam a seu favor, a burocracia estatal (que inclui setores importantes para a reprodução do capitalismo, como o aparato repressivo – forças militares – e o aparato jurídico) pressiona para a manutenção das despesas endógenas (embora algumas delas sejam desconsideradas), e setores do capital e do aparato estatal pressionam a partir de seus interesses pela prevaricação. Quando a situação se torna insustentável, esses setores podem entrar em conflito, cada um querendo representar seus interesses, criando um movimento autofágico.
[11] Claro que os governos tentam contrabalançar isso com outras políticas, tais como redução de juros, etc., mas que não resolvem o problema e gera novas contradições.
[12] Esse não foi o foco de nossa análise, embora tenhamos colocado, em certo momento, a questão da burocracia estatal e seus interesses e do bloco dominante. Uma análise mais ampla desse processo pode ser visto em outra obra (VIANA, 2015). Aqui o foco foi a relação do aparato estatal e da acumulação de capital.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Música e Crítica Social: as melhores músicas da banda Plebe Rude


A banda Plebe Rude é uma das mais importantes bandas de rock brasileiro e se destaca por sua crítica social. Em suas músicas, pode-se ver crítica ao processo eleitoral (Vote em Branco), à sociabilidade capitalista (Pressão Social), ao consumismo (Consumo), ao processo de divisão de classes e suas desigualdades (Até Quando Esperar) e até mesmo ao capital fonográfico (Minha renda).

Uma seleção com as melhores músicas gravadas pela banda Plebe Rude. Desde o seu grande sucesso nas emissoras de Rádio nos anos 1980, "Até Quando Esperar" até suas músicas menos conhecidas e marcadas por forte crítica social. Essas e outras músicas você ouve na Rádio Germinal, onde a música não é mercadoria; é crítica, qualidade e utopia. http://radiogerminal.com











sábado, 27 de janeiro de 2018

Rádio Germinal e as 101 melhores músicas da MPB


A Rádio Germinal criou uma playlist com as 100 melhores músicas da MPB.

As 101 melhores músicas da MPB é uma seleção relativa, pois algumas músicas mereciam estar presentes, mas não foi possível. O critério para definir as 101 músicas da playlist foram a letra (criticidade, criatividade, etc.), a interpretação (voz, etc.), a melodia e o arranjo, etc. Outros critérios secundários foram utilizados, tais como não colocar muitas músicas de um mesmo cantor, banda ou cantora, sendo preferencialmente 01, mas podendo chegar até 03. Essa lista poderá ser revista no futuro.

Essas e outras músicas você ouve na Rádio Germinal, onde a música não é mercadoria; é crítica, qualidade e utopia. Acesse http://radiogerminal.com ou use o aplicativo em seu celular.


quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Booktrailer de Karl Marx, A Crítica Desapiedada do Existente, de Nildo Viana




Booktrailer do livro "Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente". Autor: Nildo Viana Dados: VIANA, Nildo. Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente. Curitiba: Prismas, 2017.

Mais informações: http://informecritica.blogspot.com.br... Breve apresentação:
Karl Marx foi o autor mais deformado da história do pensamento ocidental. Até mesmo seus seguidores, autointitulados “marxistas” deformaram o seu pensamento. A presente obra vem para resgatar o verdadeiro caráter da teoria de Karl Marx, mostrando como esse autor é distinto das interpretações dominantes. O autor revela a preocupação fundamental que é o ponto de partida de Marx, o seu humanismo, fundado numa teoria da natureza humana e da alienação, promovendo a necessidade de libertação humana. Marx constitui uma dialética materialista e uma teoria da história – materialismo histórico – como sua base teórico-metodológica que lhe permite desenvolver uma consciência antecipadora, ao perceber que a libertação humana ocorre via revolução proletária, instaurando o comunismo, o “autogoverno dos produtores”. O autor mostra, ainda, como Marx foi o primeiro crítico do pseudomarxismo, ou seja, as deformações do seu pensamento a partir dos seus supostos “seguidores”.
Texto da contracapa do livro: Contracapa::
Assim, o livro apresenta as ideias básicas de Marx, partindo de sua concepção de natureza humana e alienação, modo de produção e luta de classes (materialismo histórico), método dialético e ideologia, teoria do capitalismo e teoria da revolução e do comunismo. Num último capítulo, um balanço da contribuição e da herança de Marx, mostrando o que há de atual em sua concepção, como sua teoria foi simplificada e deformada, como ela contribui para compreender a realidade contemporânea.
O livro "Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente" é, simultaneamente, uma obra introdutória e profunda. O seu objetivo é apresentar as ideias de Marx e promover uma leitura rigorosa, que dê contra de explicitar os pontos essenciais do pensamento do autor da forma mais clara e objetiva possível. Nesse sentido, a forma de exposição não é a mais utilizada para analisar o seu pensamento (o que também ocorre no caso de outros autores), que é expor seu pensamento de forma cronológica. A forma cronológica é interessante para mostrar as mudanças e alterações, porém, perde no sentido lógico e na coerência e ordem do pensamento do autor. Por isso, nossa exposição é por temas e através de um desenvolvimento lógico e não cronológico, mostrando as bases do pensamento do autor e seus desdobramentos. Porém, para não se perder a historicidade de seu pensamento do autor e mudanças, cada capítulo aponta as primeiras formulações e sua mutação até as últimas, para explicitar tal processo. Curta a página no facebook e veja as novidades e textos relacionados:

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