Nildo Viana
Resumo: o
presente artigo apresenta quatro das principais concepções ideológicas do mito
e realiza sua crítica, visando mostrar a necessidade de uma nova conceituação e
abordagem do mito. As concepções de Mircea Eliade, Claude Lévi-Strauss, Ernst
Cassirer e Maurice Godelier são apresentadas e posteriormente são analisadas
criticamente. Um problema comum nestas abordagens reside no formalismo e na
criação de modelos que se afastam da realidade histórica e social, que é onde
se pode perceber as determinações e características do mito.
Palavras-Chave:
Mito, Ideologia, Estruturalismo, kantismo, História das Religiões, Antropologia.
Abstract: This paper presents four
major ideological conceptions of myth and performs
its critical in order to show the need for an approach
to the conceptualization and myth. The views of Mircea Eliade, Claude
Lévi-Strauss, Ernst Cassirer and Maurice Godelier is presented and subsequently
are analyzed critically. A common problem in these
approaches lies in the formalism and the creation
of models that deviate from the historical and social reality, which
is where we can see the determination and characteristics of
myth.
Keywords: Myth, Ideology, Structuralism, Kantianism, History of Religions, Anthropology.
Keywords: Myth, Ideology, Structuralism, Kantianism, History of Religions, Anthropology.
O mito tem sido definido e interpretado
pelas mais variadas correntes e abordagens: naturalismo (Max Müller), animismo
(Edward P. Tylor), Escola Mito e Ritual (Robertson Smith), Funcionalismo (Bronislaw
Malinowski), antropologia filosófica (Ernst Cassirer, Leslew Kolakowski),
Estruturalismo (Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes), “Marxismo” estruturalista
(Maurice Godelier), Psicanálise (Sigmund Freud, Carl Gustav Jung, Erich Fromm)
e muitas outras. Seria improfícuo analisar todas as correntes que buscam
apresentar uma explicação do mito. Por isso, trataremos apenas das quatro
abordagens que consideramos mais importantes: a história das religiões de Mircea
Eliade, a antropologia filosófica de Ernst Cassirer, o estruturalismo de Lévi-Strauss
e o “marxismo” estruturalista de Maurice Godelier. As demais abordagens poderão
aparecer no decorrer da exposição, seja devido sua influência em relação às
abordagens aqui analisadas ou às suas descobertas que julgamos válidas para a
explicação do mito.
O que pretendemos aqui é analisar as
concepções de mito objetivando demonstrar suas limitações e apontar para a
necessidade de elaboração de uma nova concepção de mito, fundamentada numa
perspectiva dialética. Assim, consideramos necessário a crítica das concepções
ideológicas do mito para a posterior constituição de uma abordagem alternativa
e não-ideológica e, no presente artigo, nos limitaremos a realizar a crítica e mostrar
a necessidade de avanço na teoria do mito, para, no futuro, avançar no sentido
de elaborar uma concepção alternativa.
Comecemos, então, pela história das
religiões de Mircea Eliade (1989a; 1989b; 1989c; 1988; 1980). Para tal autor, o
estudo do mito deve começar pelas sociedades tradicionais, pois, nestas, ele
está vivo e reflete uma condição primordial. Para ele:
Pessoalmente, a
definição que me parece menos imperfeita, por ser a mais lata, é a seguinte: o
mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no
tempo primordial, o tempo fabuloso dos ‘começos’. Noutros termos, o mito conta
como, graças aos feitos dos seres sobrenaturais, uma realidade passou a
existir, quer seja realidade total, o cosmos, quer seja apenas um fragmento:
uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É
sempre, portanto, a narração de uma ‘criação’. Descreve-se como uma coisa foi
produzida, como começou a existir. O mito só fala daquilo que se manifestou
plenamente. As suas personagens são seres sobrenaturais, conhecidos sobretudo
por aquilo que fizeram no tempo prestigioso dos ‘primórdios’. Os mitos revelam,
pois, a sua atividade criadora e mostram a sacralidade (ou, simplesmente, a
‘sobrenaturalidade’) das suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas e frequentemente
dramáticas eclosões do sagrado (ou, do ‘sobrenatural’) no mundo. É esta
irrupção do sagrado que funda realmente o mundo e que o faz tal como é hoje.
Mais ainda: é graças a intervenções dos seres sobrenaturais que o homem é o que
é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural’ (Eliade, 1989a, p. 13).
Neste sentido, podemos dizer que o mito
relata uma história sagrada e verdadeira. O caráter verdadeiro do mito
cosmogônico, por exemplo, é comprovado pela própria existência do mundo. Sua
relação com a sobrenaturalidade torna-o o modelo exemplar de todas as
atividades humanas significativas, tais como a alimentação, o casamento, o
trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria. Portanto, a função principal do
mito é revelar estes modelos para todos os ritos e atividades humanas
significativas.
O mito narra uma “história” que
constitui um “conhecimento” de “ordem exotérica”. Tal ocorre não somente devido
seu caráter secreto e iniciático, mas também porque vem acompanhado por um
poder mágico-religioso. O conhecimento das origens oferece sobre o objeto
conhecido um certo poder que proporciona a capacidade de dominá-lo ou
reproduzi-lo.
O mito cosmogônico serve de modelo para
todos os outros “mitos de origem” e por isso ele não é uma simples variante de
tal espécie de mito. Isto se baseia na ideia de que a primeira manifestação de
uma coisa é significativa e válida enquanto que as outras são meras repetições
sucessivas do ato fundador.
Claude Lévi-Strauss (1978), partindo de
sua antropologia estruturalista, apresenta uma concepção diferente do mito. Ele
começa sua análise dos mitos com a pergunta: como, em todas as partes do mundo,
os mitos se parecem tanto se o seu conteúdo é contingente? Lévi-Strauss busca
responder a esta pergunta comparando mito e linguagem:
Se queremos
perceber os caracteres específicos do pensamento mítico, devemos pois
demonstrar que o mito está, simplesmente, na linguagem e além dela. Esta nova
dificuldade não é, também, ela estranha ao linguista: a própria linguagem não
engloba níveis diferentes? Distinguindo entre a língua e a palavra, Saussure
mostrou que a linguagem oferecia dois aspectos complementares: um estrutural, o
outro estatístico; a língua pertence ao domínio de um tempo reversível, e a
palavra, ao domínio de um tempo irreversível (Lévi-Strauss, 1970, p. 228).
Lévi-Strauss conclui que o mito pode
pertencer tanto ao domínio da língua quanto da palavra (fala), ou seja, ao
domínio do tempo reversível (sincronia) ou do tempo irreversível (diacronia).
Portanto, ele possui uma dupla estrutura: uma histórica e outra não-histórica.
Ele pode ainda oferecer um terceiro nível, apresentando-se com o caráter de um
objeto absoluto, ou seja, o mito engloba os elementos constitutivos da
linguagem (a língua e a fala), mas vai além dela, devido a sua natureza mais
complexa do que qualquer outra expressão linguística. O sentido do mito
encontra-se na maneira em que os seus elementos constitutivos se acham
combinados, eles também são partes integrantes da linguagem e, ao mesmo tempo,
apresentam propriedades específicas.
Essas propriedades específicas são mais
complexas do que as expressões linguísticas de qualquer tipo. A partir disto
Lévi-Strauss chega a duas hipóteses: a) o mito, como todo ser linguístico, é
formado de unidades constitutivas; b) estas pressupõem a existência daquelas
outras unidades que intervém na estrutura da língua: os fonemas, os morfemas e
os semantemas. Lévi-Strauss diz que os elementos que provém do mito serão
chamados grandes unidades constitutivas — os mitemas — e estes não são
assimiláveis aos fonemas, morfemas ou semantemas, pois se assim o fosse, seriam
indistintos a qualquer outra forma de discurso.
Para ele, esta definição é insuficiente
por duas razões: a) todo linguista estrutural sabe que todas as unidades
constitutivas, em qualquer nível que sejam isoladas, consistem em relações,
mas, nesse caso, qual é a diferença entre as grandes unidades e as outras? b) o
método utilizado sempre analisa seu objeto como num tempo não-reversível, mas o
caráter específico do tempo mítico — sincrônico e diacrônico — continua
inexplicado. Segundo Lévi-Strauss:
Estas
observações conduzem a uma nova hipótese, que nos situa no centro do problema.
Supomos, com efeito, que as verdadeiras unidades constitutivas do mito não são
as relações isoladas, mas um feixe de relações, que é somente sob a forma de
combinações de tais feixes que as unidades constitutivas adquirem uma função
significante. Relações que provêm do mesmo feixe podem aparecer em intervalos
afastados, quando nos situamos num ponto de vista diacrônico, mas se chegamos a
restabelecê-la sem seu agrupamento ‘natural’, conseguimos ao mesmo tempo
organizar o mito em função de um sistema de referencia temporal de um novo
tipo, e que satisfaz às exigências da hipótese inicial. Realmente, este sistema
é de duas dimensões: ao mesmo tempo diacrônico e sincrônico, e reunindo assim
as propriedades características da ‘língua’ e da ‘palavra’(Lévi-Strauss, 1978,
p. 231-232).
Lévi-Strauss diz que os sociólogos
opuseram o pensamento mítico ao científico como uma diferença qualitativa no
modo como o pensamento trabalha, mas não observaram que se tratava de objetos
diferentes. Para ele, a lógica do pensamento mítico parece tão exigente quanto
a do pensamento científico e a diferença entre eles se referem apenas aos
objetos de que tratam.
Ernst Cassirer (1985) e sua antropologia
filosófica busca definir o mito através da análise de sua relação com a
linguagem. Para ele, retomando Kant, o conteúdo, o sentido e a verdade das
formas intelectuais não pode ser medida por algo alheio, pois são nestas
próprias formas que se encontram a medida e o critério de sua verdade e também
de sua significação intrínseca. O que interessa, nesse caso, não é o “existente
em si” e sim as formas de ver produzidas pela linguagem, mito, arte, ciência,
etc. É deste ponto de vista, afirma Cassirer, que poderemos compreender as
criações míticas.
O pensamento mítico não se limita à pura
contemplação nem parte de uma reflexão consciente realizando associações até
criar um sistema fechado, tal como no pensamento teórico. Ele parte de uma
“impressão momentânea”, sendo possuído por ela e com isso cria uma maior tensão
entre sujeito e objeto. A realidade externa não é apenas contemplada, mas
também é fornecedora de medo, esperança, etc. Segundo Cassirer, nesses casos
“salta a faísca”: “a tensão diminui a partir do momento em que a excitação
subjetiva se objetiva, ao se apresentar perante o homem como um Deus ou um
Demônio” (Cassirer, 1985, p. 53).
Segundo Cassirer, o mito e a linguagem
estão submetidos às mesmas leis de desenvolvimento espiritual. Para entendermos
isto, teremos que descobrir suas raízes comuns. Trata-se, para Cassirer, do
pensamento metafórico. Por pensamento metafórico compreende-se a “metáfora
radical” do pensar mítico e linguístico. Ela é condição para a verbalização e
conceituação míticas. Ela se caracteriza por não partir da ideia de dois
elementos (ou categorias) já existentes que passam a ser comparados e sim da “transferência
para outra categoria” que é, ao mesmo tempo, a criação desta mesma categoria,
cria-se, assim, uma identidade essencial entre a palavra e a coisa que ela
busca nomear. A discussão sobre qual metáfora (se a da linguagem ou do mito)
gerou a outra é supérflua, pois existe entre ambas uma condicionalidade
recíproca. A linguagem e o mito se acham originalmente em correlação
indissolúvel. Mas Cassirer acrescenta:
Não obstante, no
progresso do espírito, mesmo esta vinculação tão estreita e aparentemente
necessária começa a afrouxar-se e a desfazer-se, é que a linguagem não pertence
exclusivamente ao reino do mito; nela opera, desde as origens, o poder do logos. (...). A realidade é que, no
curso desta evolução, as palavras se reduzem cada vez mais a meros signos conceituais
(Cassirer, 1985, p. 114).
Estas são, portanto, as características
que, segundo a antropologia filosófica de Cassirer, definem o mito.
Maurice Godelier (1982), antropólogo estruturalista-marxista,
segue o pensamento de Lévi-Strauss em muitos aspectos, mas em outros apresenta
uma concepção diferente. Seu objetivo é analisar as relações entre pensamento
mítico, sociedade primitiva e história. Godelier coloca a mesma questão que
Lévi-Strauss nos apresentou: como as “formas abstratas” dos mitos em sociedades
que apresentam diferenças econômicas, ecológicas e sociais podem ser
semelhantes?
O mito, segundo Godelier, transpõe para
si aspectos das relações do homem com a natureza e das relações sociais. Estas
relações sociais são fundamentalmente relações de parentesco. Existe uma
relação de unidade entre as formas do pensamento mítico e as formas da
sociedade primitiva. O motivo disso, para Godelier, se encontra no fato de que
as relações de parentesco são, na realidade, o aspecto dominante da estrutura social
nas sociedades primitivas e o seu papel dominante no centro do discurso mítico
é sua transposição do seu papel real para o plano imaginário. Entretanto, acrescenta
Godelier, isto não explica porque os mitos são “representações ilusórias do
homem e do mundo”.
A explicação para isto, segundo
Godelier, é que a ilusão é filha da analogia. O pensamento mítico pensa a
realidade por analogia. O que é necessário explicar é o mecanismo de
transposição feita por esta analogia (que apresenta a natureza análoga à cultura).
Para explicar isto, Godelier parte de um “fato objetivo universal”: a atividade
humana se divide em dois domínios que são a parte da natureza e da sociedade
que é controlado diretamente pelo homem e a parte que não é. O que é controlado
e o que não é depende das formas de sociedade e do seu desenvolvimento
histórico. Segundo Godelier:
Nestas
condições, o domínio do que o homem não controla não pode deixar de aparecer,
de se apresentar espontaneamente – a consciência como um domínio de potências
superiores ao homem, que este tem necessidade simultaneamente de se
representar, portanto explicar, e de conciliar consigo, controlar indiretamente
(Godelier, 1982).
Mas isto ainda não produz uma
representação ilusória da realidade, é um dado objetivo que se apresenta
espontaneamente à consciência. Para Godelier, os dados objetivos se tornam,
através da analogia, uma representação ilusória do mundo. A analogia entre as
forças invisíveis e os homens oferece a estas forças os atributos do homem,
tornando-as seres dotados de consciência, vontade, etc., e as diferem do homem
por saberem o que o homem não sabe, fazerem o que ele não pode fazer,
controlarem o que ele não controla. Tornam-se, assim, seres superiores, o
efeito de tal analogia é tratar como sujeitos as potências superiores e
invisíveis da natureza, “personificar” estas potências em seres sobre-humanos.
O pensamento mítico pode, segundo
Godelier, utilizar quatro tipos diferentes de trajetos analógicos: a) ir da
cultura à natureza, o que resulta no antropomorfismo; b) ir da natureza à
cultura, o que leva a naturalizar as relações sociais; c) ir da cultura à
cultura, o que torna equivalentes dois tipos diferentes de relações sociais; e
d) ir da natureza à natureza, o que torna dois tipos de fenômenos naturais
equivalentes.
Os mitos só são
compreensíveis na história e na sociedade. Isto ocorre pelo seguinte motivo: as
relações de parentesco são objetivamente as relações sociais dominantes nas
sociedades primitivas e tais relações dominantes desaparecem e é através de sua
análise que poderemos descobrir suas causas. Assim, o desaparecimento marca o
aspecto histórico e o caráter dominante destas relações apresenta o aspecto
social que permitem compreender o mito. Entretanto, isto por si só não cria os
mitos, as representações ilusórias, por isso, para que se criem as
representações míticas, é preciso uma condição suplementar e esta se encontra
no próprio homem.
Para Godelier, esta
condição suplementar é o efeito do pensamento analógico sobre o seu conteúdo. O
pensamento selvagem é imediata e simultaneamente analítico e sintético e possui
a capacidade de, ao mesmo tempo, totalizar todos os aspectos do real e passar
de um nível para outro por intermédio de transformações recíprocas de suas
analogias.
O pensamento selvagem
baseia-se no raciocínio analógico e se utiliza de regras de transformação. Mas
como ele passa a pensar por analogia? Segundo Godelier:
Para o
pensamento, o fundamento da possibilidade de se representar relações de
equivalência situa-se para além do próprio pensamento, nas propriedades das
formas complexas de organização da matéria viva, no sistema nervoso e no
cérebro (Godelier, 1985, p. 366).
As operações do pensamento selvagem são
espontâneas e remete à história natural, da matéria. O pensamento, diz
Godelier, na sua estrutura formal não tem história, tal como foi, segundo ele,
demonstrado por Lévi-Strauss e Karl Marx[1].
O fato do pensamento na sua estrutura formal não ter história e a
realidade da mudança das ideias na história leva Godelier a afirmar que “o
pensamento mítico é simultaneamente pensamento em estado selvagem e
pensamento dos selvagens” (Godelier, 1985, p. 368).
Consideramos, entretanto, todas essas
concepções de mito como insatisfatórias. Embora contenham elementos úteis para
a análise do mito, em sua totalidade elas apresentam problemas não resolvidos e
algumas insuficiências que apresentaremos a seguir. Ou seja, nosso objetivo
aqui é realizar a crítica dessas abordagens para abrir caminho para uma nova
abordagem, que não poderemos desenvolver aqui por questão de espaço, mas que o
faremos em um texto posterior. Essa nova abordagem resgata os momentos de
verdade que aparecem nestas concepções ideológicas, inserindo-os numa outra
concepção que rompe com os seus elementos problemáticos[2].
A
definição do mito de Mircea Eliade, se for tomada ao pé da letra, aponta para a
existência de poucas mitologias no mundo moderno, tal, por exemplo, como o
cristianismo. Entretanto, este autor qualifica como “mito” o marxismo e o
super-homem, o super-herói das revistas em quadrinhos (Eliade, 1989b). Seria
difícil comprovar no marxismo a existência de uma “cosmogonia”, que, segundo Mircea
Eliade, serve de modelo exemplar para todos os outros “mitos de origem”. Sendo
o mito uma narração que conta como uma realidade passou a existir graças aos
feitos de seres sobrenaturais, cabe a pergunta: quem são os “seres
sobrenaturais” do marxismo? O proletariado? O que existe de “sobrenatural”
nele, já que é uma classe social definida por sua posição nas relações de
produção e que é devido a esta posição que se torna uma classe revolucionária?[3]
Quanto ao super-homem, além da ausência
da cosmogonia, está ausente nele quase tudo que Mircea Eliade define como mito.
O mito relata uma história sagrada e verdadeira. A história do super-homem é
sagrada? Quem acredita no super-homem? Alguém, em sã consciência, diz que o
mundo é o que é graças ao super-homem? Sabemos que todo mundo reconhece o
super-homem como uma ficção das histórias em quadrinhos e ninguém afirma que se
trata de uma história sagrada e verdadeira.
A contradição de Mircea Eliade na
definição do conceito de mito e na sua aplicação revela o seguinte: ou o
conceito foi mal definido ou foi mal aplicado, ou, ainda, ambas as coisas.
Consideramos que o conceito foi mal aplicado, mas que, independente disso,
também foi mal definido. Já que as deficiências da aplicação foram expostas
acima, passemos para a análise da definição de mito oferecida por Eliade. A
descrição das origens não é um privilégio dos mitos, pois as ciências naturais
e sociais também buscam compreender o surgimento dos seres, das instituições,
etc., tal como Charles Darwin, que tratou da Origem das Espécies e da Origem
do Homem ou Regime Pernoud, que tratou das Origens da Burguesia.
Segundo Mircea Eliade, o que caracteriza o mito seria o fato da origem estar
ligada à ação de seres sobrenaturais. Ao se tomar o mito como narração de uma
história sagrada e verdadeira que expressa um “conhecimento” inverte-se a ordem
das coisas: torna o acessório essencial e o essencial acessório, ou seja, uma
determinada forma de manifestação da consciência é supervalorizada em
detrimento da própria consciência. Além disso, esta inversão leva a se realizar
uma descrição do mito ao invés de efetuar sua explicação.
Lévi-Strauss, por sua vez, ao comparar
mito e linguagem, passa a estudar sua “estrutura formal” e suas unidades
constitutivas. Por isto, ele também se limita à descrição do mito e não realiza
sua explicação. Os feixes de relações — os mitemas — são descritos, mas não são
explicados[4].
Isto coloca em evidência o fato de que Lévi-Strauss trata da “recepção” do mito
e não do seu processo de produção. Lucien Goldmann (1989) tratando de
literatura, fala da existência de duas “sociologias da literatura” e expõe a
diferença entre ambas, que é a mesma que apresentamos no caso da descrição que
Lévi-Strauss faz do mito: uma é a sociologia da difusão e a outra é a
sociologia da criação, uma trata da recepção e a outra da produção literária.
Lévi-Strauss faz a leitura do mito, mas
não compreende sua mensagem, isto porque o mito não foi produzido para ser
“lido” por Lévi-Strauss e seu método estrutural. Se o mito fosse, digamos,
hipoteticamente, um “texto”, ele teria sido “escrito” para um público
determinado e é este que poderia compreender e, consequentemente, explicar sua
mensagem. Para o “outro público” — composto pelos cientistas e teóricos que
buscam compreendê-lo — só se pode explicá-lo conhecendo o seu processo de
produção.
O mito, neste caso, passa a ser
considerado uma estrutura autônoma que possui um desenvolvimento imanente. Este
é o mesmo procedimento utilizado por Barthes (1989) na análise da literatura. O
mito e a literatura são estruturas autônomas que se desenvolvem por si sós,
independentemente da sociedade e da história? Existem, na sociologia moderna,
duas posições a respeito: uma que afirma a existência destas “estruturas
autônomas” e outra que parte do ponto de vista da totalidade e que, por isto,
defende uma interdependência e ação recíproca entre as partes que compõem o
todo. Segundo Lucien Goldmann, esta é a grande discussão da sociologia moderna:
Digamos a
discussão entre Lévi-Strauss e Lukács, para citar dois nomes representativos de
duas escolas. Essa discussão já existia nas ciências físico-químicas. Certos
sábios não procurando senão a regularidade, a lei, outros defendendo a
necessidade de procurar sempre a causa, ir além da lei, não se prendendo à
regularidade e pondo o problema do ‘porquê’ (Goldmann, 1989, p. 53).
Ao se tomar o mito ou a literatura como
“estruturas autônomas” basta estudar (ou melhor, descrever) sua regularidade e
suas leis, ou seja, estudá-las em si mesmas. Para Goldmann:
Em sociologia, a
grande diferença entre as duas escolas está no fato de a primeira afirmar a
existência de estruturas mentais, autônomas e permanentes das quais a sociedade
atualiza apenas tais ou tais elementos ou modalidades, enquanto para a outra,
pelo contrário, essas estruturas se transformarão elas próprias com a realidade
histórica de que são elemento constitutivo (Goldmann, 1989, p. 53-54).
A antropologia filosófica de Ernest
Cassirer coloca quatro pontos essenciais para explicar o mito: a) o que importa
no pensamento mítico não é o “existente em si” e sim sua “forma de ver”; b) a
forma de ver do pensamento mítico não se baseia numa “reflexão consciente” e
sim numa “impressão momentânea” que acaba dominando-o; c) mito e linguagem
possuem uma origem comum: o pensamento metafórico (considerando-se este como
expressão da “metáfora radical”, tal como foi definida anteriormente); e d)
mito e linguagem se separam porque na linguagem atua outra força — o logos
— e esta transforma as palavras em signos conceituais e assim rompe-se a
identidade entre a palavra e a coisa que, entretanto, permanece no mito.
Portanto, o mito pode ser considerado uma metáfora radical específica.
Esta concepção apresenta alguns
problemas que são os seguintes: a) cria uma separação mecânica entre a “forma
de ver” e o “existente em si” em detrimento de sua relação recíproca; b) cria
uma separação mecânica também entre “reflexão consciente” e a “impressão
momentânea”, sendo que a primeira seria inexistente nesta “forma de ver” que é
o mito; c) Cassirer trata da criação da “metáfora radical” e afirma que sua
superação na linguagem ocorre através da ação do logos, mas não
demonstra que a formação de signos conceituais tem sua origem aí, ou seja, que
ela é fruto da “razão” ou “lógica”[5].
Portanto, consideramos a definição de
Cassirer bastante problemática. Mas o principal problema de sua definição é a
seguinte: se a “metáfora radical” é a “transposição para outra categoria” e, ao
mesmo tempo, criação desta, ela, uma vez produzida, deixa imediatamente de
existir, pois esta categoria criada se autonomiza e sua identidade com a coisa
já não é sustentável. No caso específico do mito, a nova categoria produzida e
aqueles que a reproduzem reconhecem sua existência social anterior e, sendo
assim, deixa de ser expressão de uma “impressão momentânea” e torna-se “signo
conceitual”. Concluindo, podemos dizer que a identidade essencial entre a palavra
e a coisa só ocorre num primeiro momento e, num segundo momento, é criada uma
separação provocada pela história e pelas relações sociais e não pelo
“desenvolvimento da razão” e por isso aplica-se tanto à linguagem quanto ao
mito.
Maurice Godelier, por sua vez, busca
colocar o mito na história e na sociedade, mas faz isto apenas aparentemente.
Ao colocar que o mito é expressão das relações sociais dominantes nas
sociedades primitivas, ele acrescenta que o caráter ilusório dessa
representação só pode ser compreendido através de uma condição suplementar: o
efeito do pensamento analógico sobre a consciência. E de onde surge o
“pensamento analógico”? Segundo Godelier, “nas propriedades das formas complexas
de organização da matéria viva, no sistema nervoso e no cérebro”[6].
Portanto, somos remetidos “à história natural, da matéria”. Assim, o mito passa
a ser explicado não pela história e pelas relações sociais e sim por sua
“estrutura formal”, ou seja, voltamos ao formalismo estruturalista. A
“estrutura formal” utilizaria este ou aquele elemento da realidade para se
manifestar.
Segundo a concepção de Godelier, o
pensamento analógico não é uma característica exclusiva das sociedades simples.
Aliás, o próprio pensamento “científico” utiliza, na maioria das suas
abordagens, o procedimento analógico: o funcionalismo faz a analogia entre
organismo e sociedade, o estruturalismo entre estrutura linguística e
sociedade, etc. A analogia com base no normativismo é uma característica do
positivismo naturalista clássico e alguns de seus derivados contemporâneos.
Resta saber de onde Godelier retira o
caráter ilusório e a explicação da analogia. Ele a retira da teoria marxista do
fetichismo da mercadoria (Marx, 1988). Para Marx, a mercadoria torna-se um
fetiche na sociedade capitalista. Ela deixa de aparecer como produto do
trabalho humano e social e se apresenta como uma coisa objetiva e independente
dos seus produtores. Neste sentido, há uma coisificação das relações sociais.
As relações entre os seres humanos se apresentam como uma relação entre coisas.
Esta é a analogia encontrada no fetichismo da mercadoria (Godelier, 1985).
Entretanto, Marx trata da relação do ser
humano com o seu produto numa sociedade capitalista, ou seja, uma relação
social específica. O pensamento analógico aqui é, na verdade, percepção
imediata das relações sociais engendradas pela produção capitalista. Contudo,
isto não é exatamente uma analogia e sim uma visão que toma a realidade em sua
aparência. Maurice Godelier, com seu pensamento “em estado selvagem”, faz a analogia
entre a teoria de Marx sobre a relação do produtor com o seu produto em uma
sociedade capitalista e a relação do ser humano com a natureza nas sociedades
primitivas. Se o ser humano produz a mercadoria, ela não produz a natureza. Por
isso, as representações que os seres humanos elaboram sobre a mercadoria são
específicas e totalmente diferentes das que eles elaboram, em outras
sociedades, sobre a natureza.
A analogia que o pensamento mítico
realiza entre o ser humano e a natureza é simplesmente natural, pois como
poderia haver uma compreensão “objetiva” da natureza com informações,
experiências e saberes acumulados pelas sociedades simples? As categorias
utilizadas para analisar a natureza, inclusive as criadas pelas ciências
naturais contemporâneas, são produzidas pelos seres humanos e a sua
“fidelidade” ao “objeto” pode ter se tornado maior, mas não foi produto da
manifestação de uma “objetividade” metafísica na consciência dos seres humanos[7],
mas sim produto social e histórico.
A conclusão a que chegamos é a de que
todas estas concepções do mito são insatisfatórias. O formalismo é um dos
principais problemas presentes, bem como uma insuficiente análise social e
histórica. Essas debilidades, por sua vez, possuem origem nos procedimentos
metodológicos, que apontam os limites do estruturalismo (Lévi-Strauss,
Godelier), do kantismo (Cassirer) e do naturalismo (Mircea Eliade) que tornam a
realidade concreta de difícil acesso e assim os modelos e pré-concepções acabam
determinando a realidade ao invés de expressá-la. A partir desta constatação
nos resta a percepção de que falta produzir uma concepção de mito que consiga
superar as limitações presentes nestas e em outras abordagens ideológicas deste
fenômeno.
Obviamente que, diante dos limites de um
artigo, não foi possível uma análise mais ampla e pormenorizada dos autores, o
que provocaria uma abordagem de diversos outros aspectos que não pudemos
desenvolver e que estão presentes nas quatro abordagens do mito aqui analisadas.
Da mesma forma, a análise crítica, justamente devido ao seu caráter crítico,
focaliza os elementos de discordância e não os de concordância (há elementos existentes
no pensamento dos autores tratados que consideramos importantes para uma
análise do mito, o que desenvolveremos em outro artigo), tal como a concepção
de que o mito expressa algo verdadeiro para os seus criadores (Mircea Eliade), a
questão do antropomorfismo (Maurice Godelier), para citar apenas dois elementos.
Resta, portanto, apresentar uma
concepção dialética do mito. Essa concepção deve romper com os formalismos, a
autonomização das ideias e representações diante da realidade, reconhecer a
historicidade e especificidade do mito. A concepção dialética, ao tomar a
realidade como algo concreto e, portanto, não abstrato, revela seu potencial
esclarecedor da produção cultural e contribuição para a elaboração de um
conceito e explicação do mito, sob forma muito mais concreta e adequada das
existentes. O que significa que a dialética é um recurso heurístico e não um
modelo no qual a realidade é encaixada (Viana, 2007a; Viana, 2007b) e por isso
sua contribuição rompe com os formalistas e modelos, retomando o caráter social
e histórico dos fenômenos humanos. Assim, este é um projeto que deve ser
desenvolvido e ao se concretizar vai além das abordagens ideológicas aqui
expostas e oferecer um processo de avanço da consciência humana.
Referências
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de
Estado. 4a edição, Rio de Janeiro: Graal, 1989.
BARTHES, Roland. Mitologias. 8a
edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito. 2a
edição, São Paulo: Perspectiva, 1985.
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____, Mircea. Mitos, Sonhos e Mistérios.
Lisboa: Edições 70, 1989b.
____, Mircea. O Mito do Eterno Retorno.
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GOLDMANN, Lucien & outros. Literatura e
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VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios sobre o
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____, Nildo. Cérebro e Ideologia. Crítica ao Determinismo Cerebral. Jundiaí:
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____, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. 3ª
edição, Goiânia: Alternativa, 2007b.
[1] Tal afirmação é um equívoco e é
uma recuperação da afirmação de Althusser, segundo a qual, para Marx, a
“Ideologia não tem história” (Althusser, 1989). Porém, Althusser interpreta mal
a afirmação de Marx, pois ele quis dizer com isso que a ideologia não tem uma
história independente e autônoma e sim uma história determinada pelas relações
sociais (Marx e Engels, 1990; Viana, 2010).
[2] Aqui utilizamos o conceito marxista
de ideologia, entendido como sistema de pensamento ilusório, ou falsa
consciência sistematizada (Marx e Engels, 1990). A ideologia, como pensamento
sistemático falso, é um pensamento complexo que, apesar de sua falsidade – não
correspondência com a realidade – possui momentos de verdade (Viana, 2010), e
trata-se, nesse caso, depois da crítica dos momentos de falsidade, recuperar os
momentos de verdade.
[3] Muitos afirmam que o marxismo é
ele mesmo um mito e a partir desta afirmação se apresenta as teses do mito da
revolução, mito do proletariado, etc. O maniqueísmo estaria presente no
marxismo. Sartre apresentou uma crítica esclarecedora a esta concepção:
“comparemos por um instante a ideia revolucionária da luta de classes com o
maniqueísmo antissemita. Aos olhos do marxista, a luta de classes não constitui
de modo algum um combate entre o bem e o mal: trata-se de um conflito de
interesses entre grupos humanos. O revolucionário é levado a adotar o ponto de
vista do proletariado primeiramente porque esta classe é a sua, depois porque
ela é oprimida e porque, sendo de longe a mais numerosa, sua sorte tende a
confundir-se com a da humanidade, enfim porque as consequências de seu triunfo
devem necessariamente comportar a supressão das classes. A meta do
revolucionário é mudar a organização da sociedade. E para tanto cumpre, sem
dúvida, destruir o regime antigo, mas só isto não basta: antes de tudo é
preciso construir uma nova ordem. Se por um acaso impossível a classe
privilegiada quisesse cooperar na construção socialista e se houvesse provas
manifestas de sua boa-fé, não existiria nenhuma razão válida para rechaçá-la. E
se permanece altamente improvável que ofereça de bom grado tal auxílio, é
porque sua situação mesma de classe privilegiada a impede de fazê-lo e não por
causa de algum demônio interior que a impelisse, a despeito de si mesma, a
praticar o mal. Em todo caso, frações desta classe, separando-se dela, podem
constantemente agregar-se à classe oprimida e tais frações serão julgadas por
seus atos, não por sua essência” (Sartre, 1960, p. 28).
[4] Paul Ricoer diz que
Lévi-Strauss, na sua análise do mito de Rei Édipo, explicou-o, mas não o
interpretou. Para a análise estrutural, “o conceito de explicação já não vai se
buscar às ciências naturais e se transfere para um campo diferente, o dos
documentos escritos. Parte da esfera comum da linguagem, graças a transferência
analógica de pequenas unidades da linguagem (fonemas e lexemas) para unidades
vastas além da frase incluindo a narrativa, o folclore e o mito” (Ricoer, 1987,
p. 97). Ricoer acrescenta que explicação implica compreensão e a unidade de
ambos proporciona a interpretação. Entretanto, não utilizamos o conceito de
explicação no sentido da análise estrutural e sim no sentido equivalente ao de
interpretação apresentado por Ricoer, ou seja, pressupondo a compreensão. A
explicação como conceito estruturalista não ultrapassa o nível da mera
descrição.
[5] O logos geralmente é
compreendido como “razão” ou “estudo” — o que é equivalente à reflexão
consciente — e numa outra tradução da obra de Cassirer a palavra logos é
traduzida por lógica (Cassirer, 1980), mas consideramos que a noção mais exata
e precisa é a de razão. Aliás, em determinados casos, lógica e razão se
confundem e assumem um significado idêntico.
[6] Aqui temos a aproximação com o
determinismo cerebral (Viana, 2010), embora através de um dualismo
estruturalista que concede existência ao mundo social e histórico, de forma
mais consequente que em outras manifestações do estruturalismo.
[7] Cabe lembrar aqui que o
antropomorfismo se encontra presente nas ciências naturais e isto demonstra a
dificuldade em superá-lo. Para citar um exemplo disso basta recordarmos o
famoso livro de Dawkins, que já demonstra o antropomorfismo no próprio título, O
Gene Egoísta.
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Artigo publicado originalmente em:
https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/2122/pdf
VIANA, Nildo. Mito e Ideologia. Cronos: R. Pós-Grad. Ci. Soc. UFRN, Natal, v. 12, n.1, p. 79-89, jan./jun. 2011, ISSN 1518-0689.
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