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segunda-feira, 14 de março de 2016

As Lições das Ruas



As Lições das Ruas

Nildo Viana


A rua é um lugar público e de mobilidade dos indivíduos. É também o lugar onde, geralmente, ocorrem manifestações. Ontem, domingo, elas estavam lotadas. O protesto era contra o governo de Dilma Roussef e a corrupção. Algumas pessoas aprendem com as experiências, outras não. As que aprendem com as experiências possuem uma tendência de não repetir os erros do passado. As que não aprendem, ao contrário, possuem a tendência contrária, ou seja, repetir os erros do passado. É por isso que poderíamos aprender com as manifestações de ontem, que deram algumas lições que deveríamos analisar e aprender com elas. No entanto, vamos analisar as lições das ruas apenas no que se refere ao público intelectualizado, especialmente o setor alinhado à ala governista do bloco dominante (petistas e aliados) e ao bloco progressista (expresso pelos partidos políticos de “esquerda” não aliados do governo, mas envolvidos ou iludidos com ele).

A primeira lição é não subestimar o descontentamento da população. Alguns só conseguem ver o descontentamento nas eleições. A crise financeira atinge toda a população e, sem dúvida, gera um alto grau de descontentamento, que se amplifica ainda mais com as denúncias de corrupção e com a percepção de um governo inoperante que não consegue esboçar nenhuma reação diante da mesma. O descontentamento pode ficar latente e pode não ser facilmente perceptível, mas tende a emergir quando ocorrem determinadas situações que permitem sua manifestação. O pensamento burguês – em sua variante conservadora ou progressista – tende a não perceber esse processo e ver no fato apenas o fato, se iludindo com o “empírico”, tornando-se incapaz de perceber as potencialidades e tendências.
A segunda lição é não reproduzir os esquemas de pensamento simplistas, tal como a oposição entre governistas e oposicionistas conservadores como a única coisa existente. Sem dúvida, a ala governista do bloco dominante (Governo Dilma, PT e aliados) tem interesse nessa polarização e dicotomização tanto quanto a ala oposicionista (partidos da oposição parlamentar, como PSDB, DEM e outros), pois assim podem inibir atos e falas de pessoas que não querem ser confundidos com um ou outro. Em termos populares (e popularizados pelos defensores de ambos os lados), a oposição simplista entre “petralhas” e “coxinhas” beneficia aos dois, gerando não só estereótipos negativos do lado adversário, mas inibindo um terceiro lado. A polarização entre os dois lados existe, mas não é absoluta e só serve para reproduzir a falta de opção, que pode gerar extremismos no interior da dicotomização ou explosões de violência por falta de opção.

A terceira lição, intimamente ligada com a segunda, é que os setores intelectualizados da população alinhados à ala governista (ou ao bloco progressista, que parece imobilizado pela polarização e por isso não se apresenta como oposição e assim deixa a população sem opção institucional, já que a dicotomização é entre duas alas do bloco dominante, pois o bloco revolucionário é anticapitalista e antiparlamentar), deveriam ao invés de menosprezar a população, desde o que chamam de “classe média” aos trabalhadores, que alguns chamaram de “inocentes úteis”.

A classe intelectual, devido sua profissão e ofício, deveria ser mais profunda em suas análises da realidade política nacional. Mais ainda os das ciências humanas, pois isto faria parte do seu “objeto de estudo” (claro que não para certas tendências, submetidas ao “fetichismo do corpo” ou “fetichismo da identidade”, entre outras aberrações intelectuais). Infelizmente, os meios intelectualizados acabam reproduzindo a superficialidade dos partidários da ala governista ou da ala oposicionista do bloco dominante. No primeiro caso, o que é mais comum nos meios acadêmicos na área de humanas, onde a análise deveria ser mais profunda, é desqualificar os indivíduos que participaram das manifestações e, mais ainda, os trabalhadores, que seriam “inocentes úteis”. O mesmo poderia ser dito desses meios intelectualizados (mais ainda os das universidades federais), pois ao reproduzirem o discurso governista, funcionam como “inocentes úteis”. Eles acabam reproduzindo, acriticamente, as correntes de opinião dos partidos mais influentes. Obviamente que valores e interesses são poderosos nesses casos, mas lembrando de que as greves nas universidades (em 2012 e 2015) tiveram como alvo o Governo Federal e sua política de precarização dessas instituições, isto é, no mínimo, incoerente. A única explicação para a reprodução do discurso governista e simplista, no caso dos meios acadêmicos, é a ilusão da polarização que impede a capacidade de reflexão crítica. O mais curioso é que justamente os meios intelectualizados, aqueles que deveriam ser mais ativos e apresentar projetos alternativos, ou se aliam ao discurso governista que está totalmente perdido e inoperante, ou ficam na defensiva com medo de ser rotulado como estando do lado oposto, o que reforça esse mesmo lado ao não se produzir uma alternativa. A maioria das pessoas que estavam nas manifestações não era favorável à ala oposicionista do bloco dominante, mas estavam perdidos por não ter alternativa (não querem nem a ala governista, nem a oposicionista). O bloco progressista (expresso pelo PSOL, PSTU, etc.) acaba se mostrando tão inoperante na ação política e sem iniciativa quanto do governo Dilma e junto com ele uma grande camada da classe intelectual que não é exatamente pró-governista, mas que teme ser confundida com a ala oposicionista do bloco dominante.

A quarta lição é entender que não é apenas a suposta “esquerda” (nome problemático e que pode se incluir coisas distintas e até antagônicas) que consegue mobilizar a população. Ela se mobiliza espontaneamente e pode ser mobilizada por outros setores da sociedade (o capital comunicacional é poderoso nesse aspecto). A grande questão é quando a suposta “esquerda” fica ausente da mobilização, deixando campo livre para as forças conservadoras, pois eles reforçam o que combatem, contraditoriamente. Um grande contingente de pessoas com baixa politização, com alta desilusão, buscando uma alternativa que não se apresenta, vai para as ruas e o bloco progressista fica alheio (“esperando a banda passar”). O elogio de certos setores e indivíduos durante as manifestações mostra justamente isso. A miséria do bloco progressista e a fraqueza do bloco revolucionário tornam possível um juiz federal ser a figura de maior destaque nas manifestações de 13 de março.

A quinta lição é que a insatisfação da população é mais ampla do que se imaginava. A política institucional (democracia representativa, governo, etc.) enfrentou sua primeira grande crise nas manifestações de 2013 e ela foi varrida para debaixo do tapete com o circo armado no ano seguinte da Copa do Mundo de futebol e eleições presidenciais (com o reforço da repressão policial pelo governo federal). Em 2015, ela esboçou um reaparecimento, mas a polarização entre ala governista e ala oposicionista do bloco dominante acabou enfraquecendo a sua tendência de ressurgimento. A luta pelo poder e a crise financeira, criando uma situação institucional insustentável, juntando com a incompetência generalizada dos partidos, escândalos de corrupção e falta de alternativas, já mostra um novo esboço de seu ressurgimento. A crise da política institucional aumentou com a visibilidade da corrupção (e a percepção de que ninguém escapa dela) e vem reforçar o alto grau de descontentamento que já existia. Assim, a direita e a esquerda capitalista estão imobilizadas e sem capacidade de forjar uma alternativa. A solução em curto prazo seria a deposição (via impeachment ou cassação) de Dilma Roussef e novas eleições, nas quais a classe dominante esperaria, desesperada, o surgimento de alguém que pudesse relegitimar a política institucional, um salvador da pátria, que assumisse a imagem de honesto e anticorrupção (trajeto que vem sendo trilhado por Ciro Gomes), tal como aconteceu com Fernando Collor de Melo, o que é suficiente para demonstrar o seu caráter ilusório.

Resta, então, o bloco revolucionário apresentar a única alternativa possível e viável e que realmente resolve o problema: a auto-organização e autoformação da população, especialmente as classes desprivilegiadas, as mais prejudicadas por este estado de coisas, visando constituir uma nova sociedade ao invés de remendar a atual. Para isso, precisa se fortalecer, aglutinar os descontentes sem rumo, se aproximar mais da população, não temer a confusão com a ala oposicionista do bloco dominante e romper definitivamente com qualquer ilusão com a ala governista e petista. É preciso deixar claro que tanto faz se são “petralhas” ou “coxinhas”, são farinha do mesmo saco, só a cor é diferente. A crise financeira e a crise político-institucional estão se arrastando e arrastando também as classes desprivilegiadas para uma situação de precariedade cada vez mais intensa. A insatisfação tende a crescer cada vez mais e as ruas tendem a ganhar novas cores e pessoas, o que vai marcar a retirada de outras. Por isso, mais do que nunca, a formação intelectual e política da população e sua auto-organização se torna a única forma de se ver uma luz no final do túnel.

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Versão em Áudio:
https://www.youtube.com/watch?v=SVUQ2Fm1Hgw
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