Introdução à Crítica da Ideologia
Gramsciana
Nildo Viana*
Gramsci é um dos nomes mais destacados do pensamento social moderno. A
sua obra ganhou ressonância na intelectualidade italiana e também nos meios
políticos, especialmente no Partido Comunista Italiano do Pós-Guerra, embora já
tivesse participação destacada no mesmo desde a década de 1920. Sua obra passou
a ser traduzida e foi ganhando uma forte influência internacional,
especialmente em partidos e alguns setores da academia no mundo ocidental. Ao
contrário de outros clássicos do pensamento supostamente “socialista”, Gramsci,
curiosamente, não recebeu um grande volume de críticas, como foi o caso de
Marx, Lênin, Rosa Luxemburgo, entre diversos outros.
Sem dúvida, isso se deve ao fato de sua proeminência intelectual se
formou tardiamente, iniciando no pós-Segunda Guerra Mundial na Itália e só
ganhando força internacional posteriormente, época que o movimento socialista
já estava dominado pelo eurocomunismo reformista no caso Europeu e só chegaria
aos demais países, incluindo América Latina, algum tempo depois, lá pelos anos 1970
e ganhando força a partir desse período (COUTINHO e NOGUEIRA, 1988). A dita
“esquerda” brasileira sempre foi caudatária intelectual do centro político
“soviético” ou do pensamento acadêmico europeu, refletindo o colonialismo
cultural da intelectualidade brasileira.
Assim, ainda está por se fazer uma crítica da ideologia gramsciana. O
presente texto é apenas um esboço, por isso “introdução” de uma obra mais
vasta, a ser publicada sobre Gramsci[1].
Nesse sentido, alguns pontos problemáticos da obra de Gramsci serão
apresentados e serão retomados, ampliados, aprofundados e desenvolvidos em obra
posterior.
Porém, a inexistência de obras críticas em relação ao pensamento de
Gramsci é algo curioso. Com exceção da pseudocrítica de Perry Anderson (1986),
de um capítulo de uma obra de Rodolfo Mondolfo (1967) e um artigo de Fernando
Coutinho Garcia (1980)[2],
praticamente a obra de Gramsci foi objeto de apologia ou de recusas sem nenhuma
discussão mais ampla. Os pontos problemáticos da obra de Gramsci são inúmeros e
seus limites políticos e teóricos são extremamente graves para simplesmente ser
deixado de lado, principalmente para um momento histórico de esboço de retomada
da luta operária e avanço das lutas sociais, o que marca a necessidade de ruptura
radical com todas as formas de reformismo, ideologias obscurantistas e análises
equivocadas. Essa necessidade, visível para muitas pessoas, tornou necessário
este artigo.
Sendo assim, vamos analisar aqui três aspectos do pensamento de Gramsci,
que são três pontos problemáticos e mais frágeis, que serão objetos de nossa
atenção, a saber: a) o recuo teórico de Gramsci em relação à Marx, de quem se
diz seguidor, e para isso será necessário uma breve comparação entre ambos; b)
derivado disso, o politicismo e o culturalismo gramsciano que compõe o seu superestruturalismo[3],
e suas consequências teóricas e políticas nefastas; c) a concepção de partido e
o maquiavelismo intimamente ligado aos elementos anteriores. Esses três
elementos formam um quadro dos principais problemas do pensamento gramsciano e
que mostra seu caráter ideológico, isto é, como sistema de pensamento ilusório[4].
Claro que a crítica aqui apresentada remete ao pensamento de Gramsci em
sua totalidade, o que não quer dizer que todas as afirmações de Gramsci sejam
equivocadas e que nada que ele produziu tenha qualquer valor. A sua obra de
juventude, por exemplo, tem alguns elementos interessantes e úteis, embora
pouco conhecida, e sua obra de maturidade possibilita algum proveito, desde que
visto em sua totalidade como falsa consciência sistemática, mas que carrega
alguns momentos de verdade. Claro é, também, que tais momentos de verdade são
poucos nesse período, mas nem por isso deixam de existir. Futuramente também
retornaremos esses aspectos visando esclarecê-los, deixando claro que só serão
uteis descartando a maior parte de sua obra, ou seja, colocando-o no leito de
Procusto e assimilando alguns poucos elementos de sua produção e inserindo-os
em outra forma argumentativa e na perspectiva marxista. Por agora, nos
contentaremos em iniciar a crítica da ideologia gramsciana.
Marx
Contra Gramsci
Antonio Gramsci se dizia adepto da “filosofia da práxis”, que é a forma como
ele chamava o marxismo. Além disso, é considerado quase que consensualmente
como um dos grandes nomes do marxismo. Curiosamente, para quem conhece o
pensamento de Marx há uma total discrepância teórica e metodológica entre
ambos. Não apenas isso, mas também com o marxismo desde que não concebido de
forma dogmática e sim no sentido crítico-revolucionário[5].
A obra de Marx aponta para uma análise da totalidade das relações sociais
apresentando a preponderância das lutas de classes no desenvolvimento
histórico. Isso é o oposto do que ocorre nas ciências particulares,
caracterizadas pela fragmentação da realidade em processos sociais isolados e
autonomizados, bem como por produção de construtos e ideologias que funcionam
como modelos que encaixam a realidade ao invés de expressá-la. Sem dúvida,
muitos poderiam pensar que aí não existe nenhuma contradição entre o pensamento
de Marx e Gramsci, porquanto este último apresenta uma concepção abrangente e
totalizante da sociedade. Ledo engano, pois aqui é que reside a principal
discrepância metodológica entre Marx e Gramsci.
A ideia de totalidade em Marx é a que concebe o real como sendo o
concreto, uma totalidade que é síntese de múltiplas determinações e que não
isola nenhum aspecto e que concebe os fenômenos sociais nesse contexto. A obra
de Gramsci, por outro lado, padece do defeito de abordar o todo, mas de forma
ideológica e que acaba sendo uma falsa totalidade ou que Kosik (1986) denominou
“mundo da pseudoconcreticidade”. Obviamente que Gramsci tem a ser favor
aspectos que “abonam” seus equívocos, o que os gramscianos não têm, pois vão
além dele nos equívocos. O fato de ter escrito na prisão, sem ter acesso a
algumas obras de Marx e outros autores, a censura, etc., obviamente limitaram
as suas possibilidades de produção intelectual, o que, no entanto, não serve
para evitar a crítica e as consequências políticas e teóricas de sua obra e que
não justifica todos os problemas encontrados na mesma.
Voltando a Gramsci, a sua concepção é pautada por deixar de lado aspectos
essenciais da sociedade capitalista, que são simplesmente esquecidos e excluídos
da análise. Na obra de Gramsci não existe nenhum desenvolvimento da análise da
acumulação de capital e sua relação com a produção das ideias e da cultura,
nenhuma análise da intelectualidade e seus interesses próprios ligados à sua
condição de classe e sua autonomia relativa, nenhuma relação entre produção de
mais-valor, luta de classes na produção e fenômenos culturais, nenhuma análise
profunda da burocracia e da burocratização das relações sociais, fica ausente
também a percepção do processo de mercantilização, entre diversos outros
problemas. Sem dúvida, referências aqui e ali existem a algum desses aspectos,
mas de forma esparsa, não amarradas teórica ou metodologicamente, sendo mais
desvios do que um processo reflexivo complexo e articulado, orientado pelo
princípio da totalidade. O problema da acumulação de capital, fundamental no
pensamento de Marx e para explicar a evolução das ideias e da intelectualidade,
bem como de todos os demais aspectos da totalidade que é a sociedade
capitalista, não se apresentam na concepção gramsciana.
Assim, o procedimento gramsciano pode ser comparado com os das ideologias
burguesas e das ciências particulares derivadas delas. É o mesmo caso que o de
Durkheim, por exemplo, que buscou constituir uma “ciência da sociedade”, e, no
fundo, substituiu a sociedade por um construto, que é o de “fato social”[6].
A concepção de sociedade em Durkheim acaba subsumindo esta ao seu construto de
fato social e este é tão limitado, por estar envolvido no projeto durkheimiano
de constituição de uma ciência particular, que deve se distinguir de outras
ciências particulares por seu “objeto de estudo” específico, que gera um
recorte da realidade e subsunção do todo a esse recorte, tornando a sociologia
uma ideologia tão limitada como as demais ciências humanas e o conjunto das
ciências particulares. Isto destoa totalmente da concepção marxista, e é por
isso que a obra de Durkheim, como toda obra ideológica de uma ciência
particular, não pode explicar fenômenos como a fome, a crise financeira, etc.
Isso se deve ao fato de que a ideologia durkheimiana é um modelo que busca
encaixar a realidade e por isso não pode dar conta dela em toda a sua
complexidade, ao contrário da obra de Marx, e é por isso que ela não se encaixa
em nenhuma gaveta das ciências particulares produzidas pela sociedade burguesa,
tal como já colocava Korsch (1977). O exemplo de Durkheim é apenas um entre
milhões, pois o mesmo ocorre com Weber, Simmel, Giddens e diversos outros
sociólogos, bem como cientistas de outras áreas, como Saussure, Lévi-Strauss,
Malinowski, Lacan, Klein, e a lista é demasiadamente extensa para
prosseguirmos.
Este exemplo serve apenas para mostrar que, com objetivos diferentes,
Gramsci acaba produzindo um processo semelhante. Pior do que Gramsci é a
posição de muitos gramscianos que tentam, forçando a barra e não reconhecendo
os limites do pensamento gramsciano, explicar a sociedade moderna e até a
acumulação capitalista a partir dos construtos gramscianos. Porém, não se pode
isentar Gramsci de seus limites intelectuais e analíticos. A sua ênfase na
cultura e hegemonia e descarte de outros processos sociais, inclusive
fundamentais para explicar os fenômenos por ele enfatizados, mostra grave
deficiência metodológica e distanciamento do marxismo.
Esse processo é mais visível em sua “concepção ampliada de Estado”, porta
aberta para o reformismo e oportunismo. A sua concepção no fundo inverte a tese
fundamental de Marx, segundo a qual é no modo de produção e nas lutas de
classes que lhe caracteriza que é o fundamento da sociedade. Sua preocupação
excessiva, devido à ascensão do fascismo[7]
e derrota do movimento socialista italiano, da qual fez parte, o fez
supervalorar a cultura e o problema da hegemonia. Visando combater o
economicismo, presente, por exemplo, num Bordiga e que ele via também em Rosa
Luxemburgo e era comum na II Internacional, ele enfatiza a hegemonia, definida
por ele como “direção moral e intelectual”. É nesse contexto que ele reformula
a concepção de Marx sobre a chamada “superestrutura”. O procedimento gramsciano
foi o de realizar uma confusão entre Estado e sociedade civil, ampliando o
significado do primeiro termo que passou a englobar o segundo. Assim, o Estado
passou a significar “sociedade política” (o Estado, no sentido estrito, segundo
a terminologia gramsciana) mais a sociedade civil, formando o “Estado ampliado”[8].
Ou seja, a superestrutura passou a ser equivalente de Estado, pois este passou
a englobar a sociedade civil, isto é, as instituições (igreja, partidos,
sindicatos, família, etc.) e toda a cultura.
Depois desse passo, o procedimento seguinte foi o de discutir o processo
de manutenção da dominação. É aí que Gramsci demonstra sua preocupação com o
processo de transformação e contrarrevolução. Não basta conceber o Estado de
forma restrita, o aparato estatal, de caráter repressivo, é necessário entender
os outros mecanismos de manutenção da ordem, o “cimento” da sociedade, a
ideologia, elemento fundamental para se garantir a hegemonia da classe
dominante. Aqui temos nova contradição entre Gramsci e Marx, embora numa
questão mais particular, que é o conceito de ideologia, que se transformou em
algo neutro, mera “visão de mundo”[9].
Toda a construção gramsciana passa a girar em torno dessa concepção de
Estado ampliado e hegemonia, e, assim, cria, como Durkheim, o seu construto
fundamental, a sua versão do “fato social”, a hegemonia. Mas, assim como
Durkheim não elaborou apenas um construto e sim um sistema construtal, uma
ideologia completa, o mesmo fará Gramsci e no interior do seu sistema construtal,
novos construtos vão sendo acrescentado tais como sociedade civil, sociedade
política, intelectual orgânico, intelectual tradicional, bloco histórico, entre
inúmeros outros. Assim, Gramsci, ao trocar o conceito marxista de Estado pelo
construto de “Estado ampliado” e colocar o papel fundamental da hegemonia,
abandona o marxismo e acaba se tornando um ideólogo politicista e culturalista,
tal como mostraremos a seguir. Esse
sistema construtal gramsciano produz uma ideologia distante da realidade concreta
e também da teoria de Marx e do marxismo autêntico como um todo, e nada prova
mais isso do que o seu abandono da perspectiva do proletariado, o que
mostraremos adiante.
Porém, esta não é a única distinção metodológica entre Marx e Gramsci. A
teoria da consciência de Marx é distinta da de Gramsci. Além de conceber
ideologia em sentido diferente do de Marx, Gramsci concebe a “objetividade” de
forma idealista:
A formulação de Engels, segundo a qual ‘a unidade do
mundo consiste em sua materialidade, demonstrada... pelo longo e trabalhoso
desenvolvimento da filosofia e das ciências naturais’, contém precisamente o
germe da concepção justa, já que se recorre à história e ao homem para
demonstrar a realidade objetiva. Objetivo significa sempre ‘humanamente
objetivo’, o que pode corresponder exatamente a ‘historicamente subjetivo’,
isto é, objetivo significaria ‘universal subjetivo’. O homem conhece
objetivamente na medida em que o conhecimento é real para todo o gênero humano,
historicamente unificado em um sistema cultural unitário; mas este processo de
unificação histórica ocorre com o desaparecimento das contradições internas que
dilaceram a sociedade humana, contradições que são a condição da formação dos
grupos e do nascimento das ideologias não universal-concretas, mas que
envelhecem imediatamente, graças à origem prática de sua substância. Trata-se,
portanto, de uma luta pela objetividade (para libertar-se das ideologias
parciais e falazes) esta luta é a própria luta pela unificação cultural do
gênero humano (GRAMSCI, 1987, p.170).
Aqui Gramsci retira uma dedução de uma frase de Engels. Aliás,
procedimento comum para este pensador e que é um dos motivos de seus equívocos,
ou, como ele mesmo disse certa vez, em carta a sua esposa, Giulia Schultz, suas
apreciações poderiam parecer exageradas ou injustas, pois assim como o “pedaço
osso de Cuvier” pode servir para reconstruir um megatério ou um mastodonte,
também um pedaço de rabo de rato pode proporcionar a reconstrução de um
“monstro fabuloso”[10]
(GRAMSCI, 1988a, p. 247). É exatamente isso que Gramsci faz costumeiramente:
constrói monstros fabulosos a partir de pequenos pedaços de rato, ou seja,
substitui a pesquisa profunda, a análise rigorosa e totalizante pela imaginação
que completa e altera o que ele lê. A frase de Engels aponta para uma concepção
objetivista e Gramsci saca uma conclusão subjetivista, substituindo um erro por
outro.
O que Engels diz, de forma que agradaria a qualquer positivista clássico,
é que o mundo é composto pela unidade da materialidade, que é “demonstrada”
pelo desenvolvimento da filosofia e das ciências naturais. Aqui, objetivismo,
materialismo vulgar, cientificismo, andam em trio. A interpretação gramsciana,
que não só desconsidera o conteúdo da frase citada, como todo o livro de onde
tirou a citação, é apenas uma amostra do “método gramsciano”, o “método
Frankenstein” (VIANA, 2015a).
A partir do método Frankenstein[11],
Gramsci chega a uma conclusão antagônica a de Engels, segundo a qual, remete o
problema da objetividade para a história e o homem. É por isso que ele poderá
dizer que objetivo significa “humanamente objetivo”, que pode corresponder a
“historicamente subjetivo”, logo, objetivo significaria “universal subjetivo”. Afirmação
curiosa que depois é minimizada com a colocação de que o homem conhece
objetivamente quando este saber é real para todo o gênero humano, “unificado
num sistema cultural unitário”. Tal unificação é produto da luta pela
objetividade e somente com a superação das contradições isso será possível, ou,
em outras palavras que a censura não gostaria de ouvir, na sociedade comunista.
Isso parece coerente com as teses de Marx, mas, no entanto, revela uma profunda
contradição. A gênese da realidade no pensamento é um processo histórico
social, no qual determinações atuam, entre elas a emergência de uma classe
revolucionária e a produção dos representantes teóricos desta classe, no qual
há uma diferença de grau, e se generalizará no comunismo. Porém, para Gramsci,
a gênese desse processo reside na unificação cultural que só ocorrerá na
sociedade comunista e antes o que existe são os intelectuais que produzirão uma
concepção de mundo, uma ideologia, que deve guiar as massas no sentido da
criação da sociedade socialista. Assim, a diferença radical se encontra no
acento, que em Marx é no proletariado, classe portadora do futuro e do mais
algo grau de consciência e geradora de teóricos, e em Gramsci é na
intelectualidade, que deverá comandar o proletariado, elevar os “simplórios” ao
nível dos “intelectuais”. Isto também remete à sua concepção de ciência, a qual
voltaremos mais adiante.
Porém, há outra diferença, metodologicamente importante, entre os dois
pensadores. Para Marx, isso expressa a gênese da realidade no pensamento e não a
gênese da realidade em si e, por isso, ele pressupõe uma realidade concreta
antes do pensamento conseguir alcançá-la, o que significa, enfim, que não é o
“universal subjetivo” que cria a “objetividade” e sim que a realidade concreta
existe independente da vontade e consciência dos indivíduos e o acordo entre
estes não mudará isso, nem mesmo havendo unificação cultural. Nas sociedades
indígenas, por exemplo, existe unificação cultural e, no entanto, as representações
ilusórias também existem. Os mitos são tidos como verdade por todos, mas, todos
sabem, hoje, que não vivemos nas costas de uma tartaruga gigante. A razão da
divergência reside no fato de que Gramsci oferece primazia para a cultura e
para a “subjetividade”, e assim, se fosse um personagem do conto de Andersen, A Roupa Nova do Imperador, diria como
todos que a roupa do rei é linda, e quando aparecesse uma criança dizendo que o
“rei está nu”, ele gritaria zangado: “menina, pare com essa loucura, está
rompendo com a objetividade, o universal subjetivo!”, e completaria: “o rei
está vestido e a roupa é linda!!”
Porém, há algo mais no pensamento de Gramsci que mostra sua radical
discordância com o marxismo e com Marx, mais especificamente. Trata-se de sua
concepção de ciência, filosofia da práxis e de método. A concepção de ciência
de Gramsci é positivista, tal como se observa abaixo:
O trabalho científico tem dois aspectos principais: um
que retifica incessantemente o modo de conhecimento, retifica e reforça os
órgãos sensoriais, elabora princípios novos e complexos de indução e dedução,
isto é, aperfeiçoa os próprios instrumentos de experiência e de sua
verificação; outro que aplica este complexo instrumental (de instrumentos
materiais e mentais) para determinar, nas sensações, o que é necessário e o que
é arbitrário, individual, transitório. Determina-se o que é comum a todos os
homens, o que todos os homens podem verificar da mesma maneira,
independentemente uns dos outros, porque foram observadas igualmente as
condições técnicas de verificação. ‘Objetivo’ significa precisamente, e tão
somente, o seguinte: que se afirma ser objetivo, realidade objetiva, aquela
realidade que é verificada por todos os homens, que é independente de todo
ponto de vista que seja puramente particular ou de grupo (GRAMSCI, 1987, p.
69).
Qualquer leitor atento e que tenha acesso aos elementos fundamentais do
método dialético e materialismo histórico, sabe que isso nada tem de marxista.
A linguagem é empiricista e a concepção faz parte da concepção dualista
indutiva-dedutiva de Gramsci. Porém, antes de entrar na questão metodológica,
devemos reter aqui o significa de sua concepção de ciência e realidade
objetiva. A ciência é um trabalho de indução e dedução que aponta para a
neutralidade do saber, pois a realidade objetiva está acima de “todo ponto de
vista puramente particular ou de grupo”. O primeiro momento é indutivo-dedutivo
e o segundo que é a aplicação disso ao saber para discernir o que é acima dos
pontos de vista particulares e o que é comum. Assim, sem utilizar a expressão
“neutralidade”, é isto que aponta a concepção de Gramsci. Se retomarmos a
definição de positivismo como uma concepção que defende a neutralidade, então a
conclusão óbvia é que Gramsci é positivista[12].
Essa concepção de ciência, no entanto, é “uma concepção particular do
mundo, uma ideologia” (GRAMSCI, 1987, p. 69), que, “pode ser aceita pela
filosofia da práxis” (GRAMSCI, 1987, p. 69). E o que é a “filosofia da práxis”?
É “uma concepção nova, independente, original, mesmo sendo um momento do
desenvolvimento histórico mundial”, sendo “afirmação da independência e
originalidade de uma nova cultura em gestação, que se desenvolverá como
desenvolver-se das relações sociais”, e isto se conclui com a formação do
“estado proletário”, que é quando “o problema cultural se impõe em toda a sua
complexidade e tende a uma solução coerente” (GRAMSCI, 1987).
Assim, temos mais algumas contradições entre Marx e Gramsci. A expressão
“filosofia da práxis”, que alguns afirmam ser para ludibriar a censura, o que é
questionável[13] e
mesmo sendo a verdadeira razão, ela revelaria algo equivalente, sendo uma
posição em relação ao que é o marxismo. Tanto é que outro suposto adepto do
marxismo poderia usar “ciência da história”, ou “teoria do proletariado”, entre
diversas outras possibilidades. O primeiro ponto é considerar o marxismo uma
filosofia, sendo que o próprio Marx realizou a crítica da filosofia (VIANA,
2000). Mesmo na concepção de filosofia ampla e pouco sistemática de Gramsci,
não seria possível encaixar o marxismo e o pensamento de Marx.
O outro elemento é que Gramsci, reproduzindo Lênin, coloca o marxismo
como produto dos intelectuais das classes privilegiadas e que seria através do
partido e Estado que ele se manifestaria em sua forma superior. O proletariado
desaparece e o centro do pensamento de Marx, a luta de classes, também. A
concepção gramsciana se revela leninista-hegeliana, cuja síntese máxima e
realização da dialética se daria no aparato estatal, hegelianamente
compreendida como síntese do universal. Para o marxismo, ao contrário, o Estado
não é o ético-político nem o universal, e sim uma associação da classe
dominante para fazer valer seus interesses e o Estado capitalista é a
associação da burguesia mediada por uma burocracia e por isso ele deve ser
destruído (e não conquistado, como em Lênin e Gramsci) e tal destruição passa
pela associação do proletariado que impõe seus interesses no período
revolucionário e, após isso, se concretiza o reino da liberdade. O agente desse
processo aqui é o proletariado e o marxismo se constitui enquanto sua expressão
teórica, como bem colocado por Korsch (1977) e o que é abandonado por Gramsci.
Gramsci, tal como Lênin, realiza um substitucionismo no qual o proletariado
deixa de ser o agente revolucionário e em seu lugar emerge os intelectuais e o
partido e por isso o saber se concretiza no partido e Estado e não no
proletariado e sua associação. Gramsci concebe a relação entre intelectuais e
“povo-nação” como sendo entre dirigentes e dirigidos, governantes e governados,
ou seja, sob forma burocrática. É por isso que Gramsci, tal como Lênin, cai no
cientificismo.
Por último, resta mostrar a divergência em relação ao método. Isso já foi
realizado parcialmente até aqui, quando colocamos a questão da neutralidade e
objetividade, bem como a questão da filosofia e das condições de possibilidade
do saber, que se concretiza, para Marx, na luta operária, e em Gramsci, na
burocracia partidária e estatal. Além disso, o procedimento analítico de
Gramsci se contrapõe totalmente ao de Marx. Este parte do processo de abstração
dialética, partindo das teorias/ideologias e do concreto-aparente para superar
a percepção da aparência e conseguir chegar à essência e existência, ou seja,
descobrir a determinação fundamental e as demais múltiplas determinações de um
fenômeno (MARX, 1983, VIANA, 2015b).
O procedimento gramsciano é bem distinto. É um procedimento
indutivo-dedutivo, que pode ser chamado “método filológico”, pois ele mesmo o
relacionou com a “filologia” (GRAMSCI, 1987), partindo de um fato ou
acontecimento isolado e a partir dele construindo um edifício imaginário. Ele
realiza assim um processo de redução (da realidade) e extrapolação (a partir do
fragmento gera todo um conjunto de afirmações sem maior fundamentação). No
fundo, Gramsci parte de uma concepção fabricada, uma crença, do qual emerge de
determinados fatos, entendidos de forma abstrato-metafísica, e daí deriva
conclusões pouco fundamentadas e convincentes, realizando a extrapolação. Sem
dúvida, isso nada tem a ver com Marx e o método dialético.
Em síntese, há uma grande diferença de pensamento e concepção geral
(método, teoria da revolução, etc.) entre Marx e Gramsci e por isso é preciso
compreender que este último não pode ser considerado marxista no sentido autêntico
do termo e por isso essa contraposição é necessária para perceber a diferença
entre ambos os pensadores.
Politicismo
e Culturalismo
Após delimitar algumas das diferenças teórico-metodológicas entre Marx e
Gramsci, que não esgotam de forma alguma o total das discrepâncias entre estes
dois pensadores, é preciso avançar no sentido de mostrar as consequências da
abordagem gramsciana. Os elementos necessários para a sua construção ideológica
politicista e culturalista residem em sua concepção de “Estado ampliado” e de
hegemonia. A luta de classes perde o terreno concreto das relações de produção
e passa a viver no mundo fantasmagórico da sociedade civil e da sociedade
política, que pairam no céu como as nuvens, como um prédio que fica suspenso no
ar sem estar apoiado numa infraestrutura, para retomar a metáfora do edifício
de Marx (1983).
Gramsci, no entanto, não irá desconsiderar a contribuição de Marx e Lênin
para a teoria da revolução. Porém, a sociedade da época de Marx era outra e
Lênin elaborou sua estratégia nos marcos do oriente, que se distingue do
ocidente. Nessa tentativa de se manter fiel a Marx e Lênin, colocando que sua
inovação é devido diferenças temporais e geográficas, significa uma não-ruptura
com estes autores e sim uma adequação de suas estratégias para as modernas
sociedades ocidentais. Lênin está correto ao pensar no sentido de um “Estado
restrito” e “guerra de movimento”, ou seja, revolução como ataque frontal ao
aparato estatal, pois no oriente a sociedade civil era “gelatinosa” e, devido a
isso, esta era a estratégia correta e que deu certo na Rússia.
Porém, caso diferente é o ocidente. Nesse, a sociedade civil está
estruturada e o moderno sistema representativo e as organizações sociais são
fortes e estáveis. A guerra de movimento não tem efeito e eficácia nessa
situação. Logo, outra estratégia deve ser aplicada nesses casos. E essa
estratégia é a da “guerra de posição”. Ao invés de um ataque frontal ao
aparelho de Estado, o que deve ser feito é a conquista da sociedade civil,
através da guerra de posição, ganhando cada vez mais espaços na sociedade civil
para adquirir a hegemonia e, após isto, tomar o poder estatal. O fundamental
nessa guerra de posição é a busca da hegemonia, isto é, a busca de criar uma
nova cultura, para construir um novo homem. Essa guerra de posição visa avançar
no sentido de uma ampla reforma intelectual e moral, na qual a hegemonia seja
conquistada para a classe operária e assim se organiza o processo de tomada do
poder estatal. Conquistar o poder estatal sem possuir hegemonia na sociedade
civil é algo que não resultará na formação de uma nova sociedade.
Nesse processo todo de análise, a classe operária aparece muito pouco,
bem como as relações de produção e a acumulação capitalista são totalmente
desconsideradas. É uma suposta estratégia revolucionária sem que o proletariado
seja o “sujeito revolucionário” e, além disso, a mudança ocorre na sociedade
civil, através da conquista da hegemonia, caracterizada por uma reforma moral e
intelectual que passa a comandar a sociedade e se concretiza com a conquista do
poder estatal. Isso tudo ocorre sem a transformação das relações de produção,
sem mudança no modo de produção, que é algo a
posteriori. Essa inversão do marxismo, justificada por se tratar do
ocidente, se manifesta como um politicismo e culturalismo. Assim, as
discrepâncias metodológicas e teóricas geram dissonâncias políticas e
estratégicas. Mas não só isso, pois o sujeito revolucionário deixa de ser o que
é e passa a ser tutelado pelos intelectuais gramscianos, tal como veremos adiante.
A inversão do marxismo se revela explicitamente no superestruturalismo de
Gramsci. Se Marx coloca o modo de produção dominante como determinação
fundamental da sociedade e, por conseguinte, a luta de classes entre as classes
fundamentais que o constituem, Gramsci inverte e apresenta a superestrutura
como o elemento determinante. Alguns podem argumentar que não é exatamente esse
o procedimento de Gramsci. É possível dizer que Gramsci reconhecia o papel das
relações de produção materiais, como afirma um intérprete do seu pensamento: “Gramsci
não coloca a subjetividade acima da objetividade (o que ele fará algumas vezes
quando tratar de temas especificamente filosóficos); o que mais nos interessa
aqui, não põe a política acima da economia” (COUTINHO, 1989, p. 55). Assim,
segundo tal intérprete, ele estaria de “pleno acordo com o método
ontológico-social de Marx”. Para comprovar isso, Coutinho afirma que Gramsci
não compreendia a economia como “sinônimo de relações técnicas de produção”.
Segundo Coutinho, “Para Gramsci, a economia aparece não como a simples produção
de objetos materiais, mas sim como o modo pelo qual os homens associados
produzem e reproduzem não só esses objetos materiais, mas suas próprias
relações sociais globais”. Ele continua:
E tampouco Gramsci nega a ‘determinação em última
instância’ (Engels) da totalidade social pela economia. É conhecida sua
explícita colocação do problema: ‘as estruturas e as superestruturas formam um
‘bloco histórico’, ou seja, o conjunto complexo e contraditório das
superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção.
(Aqui, mais uma vez, a infraestrutura material – a economia – é definida como
‘conjunto das relações sociais’: e é esse conjunto que exerce a determinação
‘em última instância’). Esse critério metodológico aparece claramente em suas
análises concretas, como, por exemplo, na brilhante reflexão sobre a
‘correlação de forças’, cujo esclarecimento é visto como pressuposto
imprescindível para orientar a ação política. Ele começa precisamente por
estabelecer o momento objetivo dessa correlação, aquele que se dá no nível das
relações econômicas, o qual é ‘independente da vontade dos homens’, podendo ser
medido através dos sistemas das ciências exatas ou físicas’. Só depois é que se
pode avaliar a correlação de forças especificamente políticas, onde os fatores
subjetivos desempenham – no interior do quadro dado pelos fatores objetivos –
um papel determinante; nesse nível, o que conta é o ‘grau de homogeneidade, de
autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais’, ou
seja, elementos que resultam da ação consciente, do papel dos sujeitos
coletivos organizados, entre os quais se destaca o partido político (COUTINHO, 1989,
p. 56).
Coutinho cita ainda a discussão gramsciana sobre o “momento catártico”, que
seria o momento da liberdade, que ocorreria no interior de determinações
econômicas e objetivas. Desta forma, este intérprete, ao contrário de outros,
busca defender Gramsci das críticas em relação ao seu superestruturalismo. Essa
interpretação parece convincente e remete a textos de Gramsci para sua
comprovação. No entanto, existem diversos problemas em tal interpretação e por
isso é necessário refutá-la. O primeiro ponto é a afirmação de Coutinho segundo
a qual Gramsci não coloca a subjetividade acima da objetividade. O intérprete
nem se atenta para o fato de que em Marx tais termos nem sequer existem. A
teoria da consciência de Marx aponta para a inexistência de um “espírito à
parte” dos indivíduos, ela é um produto social e histórico (MARX e ENGELS, 1992).
É a ideologia burguesa do conhecimento que se utiliza da separação do “sujeito”
e “objeto”, duas abstrações metafísicas, para conceber o processo de produção
científica e não o materialismo histórico-dialético (KORSCH, 1977; VIANA,
2007).
A ideia de “sujeito”, algo abstrato e indefinido, em sua relação com o
“objeto”, outro ser abstrato e indefinido, proporcionaria o “conhecimento”.
Essa concepção se concretiza num mundo abstrato sem seres reais. Desde Locke,
passando por outros ideólogos burgueses, essa concepção se reproduz e
influencia até supostos marxistas. Marx, quando trata das formas de
consciência, nunca se refere a um “sujeito”, e sim a indivíduos, reais, de
carne e osso, e seu processo de desenvolvimento de sua consciência nas suas
relações sociais. As representações, reais (verdadeiras) ou ilusórias (falsas)
são decorrentes dessas relações sociais. Eles não possuem algo irredutível e
separado que poderia ser dar o nome de “alma” ou “subjetividade”. Gramsci usa
tal termo e não explicita o seu significado, o que abriu brechas para supostos
marxistas teorizarem um “espírito à parte” chamado subjetividade. Levado ao
extremo, a concepção da existência de uma subjetividade leva ao solipsismo.
Contudo, nem Gramsci nem outros pseudomarxistas poderiam defender tal tese, em
visível e frontal contradição com a teoria da consciência de Marx e seus
continuadores. Contudo, apesar de usar termos da ideologia burguesa, Gramsci
não chega a tal extremo, mas se afasta de Marx, não só pela terminologia e seus
efeitos, como também por sua ênfase na “subjetividade”.
Marx não utiliza a palavra “subjetividade”[14]
(e nem objetividade) por isso não ser necessário em sua teoria da consciência
e, por conseguinte, não faz parte dela. Assim, a ideia de “subjetividade” em Gramsci,
é, em si mesma, uma discrepância com a concepção de Marx. É uma criação
metafísica e em nenhum caso, nem mesmo em questões filosóficas, ela poderia
existir (muito menos ser determinante), além do que, para Marx, não existem
“temas especificamente filosóficos”, pois todos os temas são históricos e
sociais, o que nesse caso remete apenas ao processo de divisão do trabalho
intelectual e criação de ideologias (no sentido marxista e não gramsciano do
termo). Essa justificativa de Coutinho (1989), ao referir-se a “temas
especificamente filosóficos”, rompe com o método dialético e a categoria da
totalidade, ao criar uma instância da realidade separada, o que não existe no
pensamento de Gramsci e seu desvio não é exceção e sim regra, que apenas
aparece de forma mais explícita.
A compreensão de “economia” em Gramsci não é tão pobre quanto “relações
técnicas de produção” de objetos materiais. Aliás, seria difícil comprovar isso
mesmo em Bukhárin (1970) com sua concepção positivista e simplista de
materialismo histórico. Isso não anula a questão real das relações concretas
entre modo de produção e formas sociais ou “superestrutura”[15].
A concepção mais pobre ou mais rica do modo de produção não anula o problema de
suas relações com as formas sociais (superestrutura). E quanto mais amplo o
conceito de modo de produção, mais elementos se tem para defender que este
determina a superestrutura. Coutinho cita a afirmação de Gramsci, uma retomada
da discussão de Marx no Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política
(1983), para colocar que o pensador italiano reconhecia as “relações de
produção materiais”. Aqui a afirmação textual de um ou outro trecho (que
poderiam ser contraditadas por outros, e assim a exclusão dos “temas
especificamente filosóficos” cumpre essa função de exclusão da contradição) é o
elemento que vem para comprovar a hipótese do reconhecimento de Gramsci a
respeito da “determinação em última instância da economia”. No entanto, uma
análise dialética do discurso não cai nesse erro. Na perspectiva da análise
dialética do discurso, os trechos não podem ser destacados e isolados da
totalidade. Assim, outros trechos, com afirmações distintas e contraditórias
devem ser integradas e explicadas.
Outro elemento da análise dialética do discurso é distinguir entre afirmação
e confirmação. A afirmação é uma declaração afirmada conscientemente no
discurso e confirmação é a efetivação disso no discurso, a prática discursiva.
A afirmação discursiva é o que o discurso diz e a confirmação é o que
efetivamente faz. Pode haver coerência ou contradição entre afirmação e confirmação.
Esse princípio metodológico se encontra em Marx em outro nível, ao afirmar que
não se julga um indivíduo ou época pela consciência que tem de si. O discurso
de Gramsci afirma, em alguns momentos, que existe uma determinação, em última
instância, da “economia” sobre a “superestrutura”. Contudo, isso se manifesta
nas análises concretas de Gramsci? Ou, em outros termos, Gramsci confirma sua
afirmação?
A sua obra inteira entra em contradição com essa afirmação. Gramsci pensa
a correlação de forças apontada por Coutinho como sendo algo que ocorre no
plano cultural e político, e não da produção, bem como toda sua concepção é
fundada no voluntarismo e ação política do partido e dos intelectuais visando à
conquista da hegemonia na sociedade civil e da sociedade política. Em toda a construção
ideológica gramsciana pouco aparece o proletariado, a classe revolucionária
constituída no modo de produção capitalista, bem como a burguesia aparece
geralmente no nível cultural, através dos intelectuais. O processo de
desenvolvimento capitalista não aparece na concepção gramsciana, da mesma que
sua análise do fascismo italiano não ultrapassa uma discussão culturalista e
que não aponta, em nenhum momento, para a importância das contradições do modo
de produção capitalista e da acumulação de capital, nem do poderio financeiro
da burguesia e o papel do grande capital na conquista da supremacia pelo
fascismo.
O elemento “catártico” é apenas o momento explosivo dos processos de
radicalização e revolução, assim como a discussão do momento em que os “fatores
subjetivos desempenham um papel determinante” (COUTINHO, 1989, p. 56). Isso não
refuta o caráter culturalista e politicista, ou superestruturalista, da
concepção gramsciana. E tal afirmação poderia ser realizada sob forma distinta:
“tanto o passado histórico quanto as relações sociais existentes constituem as
condições objetivas, cujo reconhecimento é obra
do sujeito histórico ativo, que Gramsci identifica com a vontade coletiva”
(BOBBIO, 1982, p. 38), pois “só através
do reconhecimento das condições objetivas é que o sujeito ativo se torna livre e se põe em condições de poder
transformar a realidade” (BOBBIO, 1982, p. 38). O processo histórico é
decidido, para ele, através da ação política e cultural, na qual o partido
político conquista a hegemonia, e as lutas de classes na produção e as classes
fundamentais são relegadas a segundo plano e em seu lugar emergem os
intelectuais como os verdadeiros lutadores da arena política e cultural. O
superestruturalismo de Gramsci funde política e cultura, transformando a cultura
em política e a política em cultura. Esse culturalismo e politicismo, base do
seu superestruturalismo, é um hegelianismo que pensa a formação do
“ético-político”[16],
do universal, na formação estatal. O voluntarismo soreliano adquire, em
Gramsci, o caráter racionalista e idealista, mostrando sua outras fontes de
inspiração intelectuais: os filósofos idealistas Croce e Hegel.
Partido,
Maquiavelismo, Hegemonia e Intelectuais
Gramsci era um voluntarista[17]
e a fonte do seu voluntarismo era as obras de Hegel, Sorel e Croce. James Joll
mostra que a crença de Gramsci no poder da vontade não era demonstrada apenas
na sua persistência em continuar produzindo intelectualmente nas condições
adversas da prisão, incluindo suas doenças, mas também na carta endereçada à
sua cunhada, sobre sua esposa, que se encontrava com “mal psicológico
recorrente”, afirmando que uma pessoa de cultura e elemento ativo na sociedade,
como é o caso dela, “é e dever ser seu melhor analista” (JOLL, 1979, p. 69).
O voluntarismo de Gramsci aparece com toda sua força na sua concepção de
partido como moderno príncipe e na da hegemonia. A força da vontade assume
papel fundamental em toda sua elaboração ideológica. A fonte principal desse
voluntarismo é, principalmente, Georges Sorel, e, secundariamente, Hegel e
Croce. Sem dúvida, há um elemento de influência de Sorel e Bergson em sua
concepção voluntarista, mas ela é unida com o idealismo hegeliano e croceano.
Se em Sorel e Bergson temos um voluntarismo vitalista, em Hegel e Croce a razão
assume papel primordial[18].
Essas duas tendências foram as bases intelectuais pelas quais Gramsci tentou
explicar a derrota do Partido Comunista e a vitória do fascismo, bem como a
forma como se poderia evitar isso e pensar a vitória do “socialismo”.
Em Hegel, a sua filosofia do direito (1990), no qual o ético-universal se
materializa no Estado, objeto de crítica de Marx (1979), e em Croce, com suas
digressões sobre moral e paixões, são a base para a resposta gramsciana, aliada
com alguns elementos de Marx, Sorel, Lênin, etc. Este último será uma de suas
principais fontes de inspiração: “a formação cultural de Gramsci teve lugar no
ambiente croceano e idealista da época em que viveu” (LACASTA, 1981, p. 110). O
próprio Gramsci afirma textualmente, o que é confirmado por toda sua produção
ideológica, o alto valor que atribui para Croce, mesmo criticando-o em sua
interpretação do materialismo histórico e seus limites: “Deve-se realizar, com a concepção filosófica
de Croce, a mesma redução que os primeiros teóricos da filosofia da práxis
realizaram com a concepção hegeliana” (GRAMSCI, 1987, p. 229), pois esta seria
“a única maneira fecunda” de retomar o marxismo e elevar sua concepção.
Após a compreensão do superestruturalismo e voluntarismo gramsciano,
podemos retomar a questão estritamente política no seu pensamento. Gramsci
realiza uma análise histórica geral e nesse contexto coloca a questão da
hegemonia para depois apontar para sua concepção de como realizar a
transformação social[19].
O construto fundamental da concepção gramsciana da história e da conquista do
poder estatal é o de hegemonia. Nesse sentido, ele analisa a hegemonia
dominante e depois coloca os elementos necessários para a constituição de uma
nova hegemonia.
A hegemonia, em Gramsci, significa direção moral e intelectual[20].
Em síntese, a sua concepção é a de que o processo de manutenção do poder e de
conquista dele passa pela questão da hegemonia. Isso remete para sua concepção
de Estado ampliado. Gramsci apresenta uma concepção de Estado que se diferencia
de Marx (e, no fundo, de toda tradição do pensamento político europeu desde
Hobbes), que não é mais apenas o aparato estatal. Para Gramsci, o Estado é a
“soma” de sociedade política, o aparelho político-burocrático-militar, mais a
“sociedade civil”, os aparelhos privados de hegemonia. Ou seja, temos, por um
lado, um processo de dominação realizada por um aparato, a sociedade política,
no qual o uso da força é sua prerrogativa e, por outro, um conjunto de
instituições (igrejas, partidos, sindicatos, família, etc.) que formam a
sociedade civil e ambos formam o Estado[21].
A ideologia, termo que em Gramsci (1987) significa “concepção de mundo”, seria
o cimento da dominação, pois a sociedade política busca hegemonia, mas esta se
efetiva com toda sua força na sociedade civil, a outra parte do Estado. Por
isso é importante compreender sua concepção de ideologia[22]:
A ideologia é, para Gramsci, sempre, uma concepção do
mundo, isto é, uma maneira específica e particular da compreensão do mundo
natural e social – mas também sobrenatural – que os homens desenvolvem e
superam historicamente. Assim, a ideologia, longe de ser falsa consciência ou
ilusão, é a realidade gnosiológica dos homens de uma determinada sociedade num
período histórico dado. Daí o terceiro elemento que concorre para completar o
conceito gramsciano de ideologia: ela constitui a referência implícita ou explícita
de todo ‘agir’ humano. Se, e quando, a ideologia torna-se ‘religião’ e ‘fé’,
produz atividades práticas, move as vontades. Portanto, a noção gramsciana de
ideologia é constituída de três qualidades complementares: 1) ela é uma
realidade ontológica, pois constitui uma superestrutura da sociedade humana; 2)
possui uma dimensão cognitiva enquanto nela os homens adquirem a consciência do
seu universo de relações e, numa fase crítica superior, das contradições
sociais; 3) finalmente, torna-se referência axiológica, enquanto orienta as
vontades para ação (STACCONE, 1991, p. 78-79)[23].
Assim, a ideologia é um elemento fundamental para a hegemonia, pois ela é
que permite o elo do “bloco histórico” (unidade entre estrutura e superestrutura),
sendo o seu “cimento” (GRAMSCI, 1987). As classes dominantes exercem uma
coerção via sociedade política, secundariamente criando processos hegemônicos,
e exercem a hegemonia (que garante o consenso e o consentimento) através da
sociedade civil, usando os seus diversos aparelhos (igrejas, partidos,
sindicatos, família, escolas, editoras, revistas, etc.). Não nos deteremos aqui
nos detalhes e exemplos históricos oferecidos por Gramsci para construir sua
análise da sociedade burguesa e do processo de hegemonia no seu interior. Cabe
apenas destacar o papel decisivo que Gramsci confere aos intelectuais nesse
processo. Os intelectuais são os principais arquitetos, segundo ele, da
hegemonia na sociedade civil. É por isso que ele desenvolve diversas discussões
em torno dos intelectuais, os tipos de intelectuais, a sua formação, bem como
os produtos intelectuais (senso comum, bom senso, ideologia, filosofia,
ciência, religião, etc.). Retomaremos alguns destes aspectos ao analisar como
Gramsci passa do momento analítico da hegemonia estabelecida para o momento
propositivo da luta por uma nova hegemonia. Este é o nosso próximo passo.
A questão fundamental e objetivo político apresentado por Gramsci é a
conquista da hegemonia na sociedade civil para depois conquistar o poder
estatal. Toda sua reflexão avança no sentido de entender como isto pode se
concretizar para propor formas de sua realização. A hegemonia burguesa precisa
ser substituída por uma nova hegemonia. Porém, esta última não é produto da
classe proletária, como em Marx, e sim dos intelectuais. Assim como a burguesia
necessitou dos intelectuais para poder conquistar a hegemonia e onde não
produziu uma forte camada de intelectuais orgânicos ficou a reboque das classes
decadentes (caso inglês, italiano e alemão), o proletariado (ou as “classes
subalternas”) só poderá se libertar graças à formação de um conjunto de
intelectuais para gerar a nova hegemonia. Na França, os intelectuais orgânicos
da burguesia produziram as ideias que esta classe necessitava e possibilitaram
sua hegemonia, desde o iluminismo e depois a sua consolidação como classe dominante.
Assim, o foco de Gramsci passa a ser os intelectuais. Segundo Gramsci,
toda classe “principal” cria seus intelectuais orgânicos a partir do mundo da
produção. A burguesia cria os capitães de indústria, etc. Porém, o proletariado
não consegue criar uma camada de intelectuais orgânicos a não ser no sentido
técnico-corporativo, expresso no movimento sindicalista. Ele é muito débil
organizativamente para poder fazê-lo, não conseguindo nem mesmo escrever e
reconhecer a importância de suas próprias lutas (GRAMSCI, 1988b)[24].
A formação de uma camada de intelectuais orgânicos do proletariado com
capacidade organizativa e política ocorre no partido político.
É nesse contexto que emerge a concepção gramsciana de partido político e
seu ponto mais próximo com o leninismo e a chamada III Internacional,
satelizada por Moscou. No entanto, essa aproximação com Lênin é apenas na
análise organizativa e no papel do partido, mas não na estratégia, como
colocaremos adiante. A concepção de partido anterior a Gramsci mostra distintas
posições. Em Marx não existe a ideia de um partido formal, no sentido dos
partidos políticos modernos. O Manifesto
Comunista aponta qual são as características da práxis revolucionária dos
comunistas e a palavra “partido” tem o significado de “posição” (MARX e ENGELS,
1988), tal como também é utilizado no Dezoito
Brumário ao se referir ao “partido de César” (MARX, 1986). No final da vida
de Marx, período de passagem da democracia censitária (por nível de renda) para
democracia representativa-partidária (VIANA, 2003), é que emergem os primeiros
partidos, no sentido moderno da palavra e o socialdemocrata que se diz
“marxista” (através da fusão com os lassalistas). Marx, a princípio, apoiará
tal partido, mas se afasta cada vez mais e elabora diversas críticas ao mesmo,
especialmente em Crítica ao Programa de
Gotha (MARX, 1974). Marx não elaborou nenhuma concepção de partido formal e
sua crítica inicial à socialdemocracia tinha elementos que são os mesmos dos
demais partidos, tal como os de orientação leninista.
A concepção de “partido formal” vai emergir com a socialdemocracia e
ganhar sistematicidade com Lênin. Este, especialmente na obra O Que Fazer? apresenta a sua ideologia
do partido de vanguarda[25],
que seria acusada de “jacobinismo” e “substitucionismo”, por Rosa Luxemburgo e
o jovem Trotsky (GUÉRIN, 1969). Na concepção leninista, o proletariado não
desenvolve por conta própria sua consciência revolucionária, pois são os intelectuais
burgueses e pequeno-burgueses do partido de vanguarda que possuem acesso à
ciência e elaboram tal consciência e depois a introjetam no proletariado
(LÊNIN, 1978). O centralismo democrático, o jacobinismo, os revolucionários
profissionais, são outras características dessa concepção de partido.
Rosa Luxemburgo fará uma forte crítica à concepção burocrática, jacobina
e estreita de Lênin, que teria como objetivo controlar e não desenvolver o
movimento operário (LUXEMBURGO, 1985). Ela conceberá o partido de uma forma sui
generis: como expressão do movimento operário, sendo a tentativa de fusão entre
este e a concepção socialista (já pregada por Ferdinand Lassale). Essa
concepção idealizada do Partido Socialdemocrata se distinguia da realidade
concreta. Apesar dessa confusão de Rosa Luxemburgo entre socialdemocracia
(compreendida como “marxismo”) e movimento operário, ela não deixou de perceber
e criticar o reformismo e burocratismo no mesmo, sem romper, pelo menos
explicitamente, com isso. Apesar de no final de sua vida ter rompido com o
Partido Socialdemocrata e ter participado da fundação do Partido
Socialdemocrata Independente e depois do Partido Comunista (trocando uma ilusão
por outra), não rompeu com a concepção de partido político em geral, o que ocorrerá
com os comunistas conselhistas, posteriores a ela.
Foi somente com a Revolução Alemã e a prática do Partido Comunista
Alemão, que se formou o Partido Comunista Operário da Alemanha, que se afirma
como não-partido, que há um rompimento, no interior do marxismo, com a concepção
de partido político. Otto Rühle (1975) escreverá seu famoso panfleto A Revolução Não é Tarefa de Partido, no
qual este é apresentado como um órgão da sociedade capitalista e que não serve
como elemento de transformação social. Nesse caso, a ideia de autoemancipação
proletária via sua auto-organização, apresentada por Marx, é retomada e
aprofundada a partir do desenvolvimento histórico e da percepção do papel
contrarrevolucionário dos partidos e sindicatos a partir de certo estágio de
desenvolvimento do capitalismo, com sua transformação em organizações
burocráticas.
Na Itália, a discussão era muito menos desenvolvida. O pouco
desenvolvimento do marxismo nesse país, a influência anarquista, os processos
sociais, produziam uma dinâmica diferenciada. A Revolução Italiana dos
conselhos de fábrica não ganhou a profundidade que o caso russo e alemão, bem
como as tendências políticas eram diferentes, sendo que a ala revisionista/reformista
(socialdemocrata) encontrava a oposição de Bordiga, que entrava em contradição
com o leninismo também, mas mantinha a ideia de partido político, e de Gramsci,
em seus escritos de juventude, e em suas obras de maturidade assume maior
moderação política. Gramsci se aproximava da concepção leninista e se afastava,
portanto, da concepção de Marx, Rosa Luxemburgo, que ele conhecia[26].
Da mesma forma, ele conhecia as obras sociológicas de Ostrogorski e Robert
Michels sobre partidos políticos. A sua crítica de Michels é limitada e
problemática, derivada de sua concepção ideológica de partido e, apesar dos
elementos problemáticos na obra deste (MICHELS, 1981), evita problemas
fundamentais que qualquer revolucionário autêntico não relutaria em discutir
aprofundadamente.
A concepção de partido em Gramsci pode ser dividida em sua definição de
partido em geral e sua concepção do partido ideal, o modelo que deveria seguir o
partido comunista. Para Gramsci, o termo partido remete a uma concepção tão
ampla enquadra um conjunto muito amplo de fenômenos. Ele parte da existência de
dirigentes e dirigidos para estabelecer uma certa naturalização da existência
dos primeiros e, assim, coloca que os partidos são “a forma mais adequada para
aperfeiçoar os dirigentes e a capacidade de direção” (GRAMSCI, 1988b, p. 20).
Por isso ele coloca que os partidos podem assumir diversos nomes, inclusive de
antipartido e isso se aplica até os individualistas, que seriam “chefes de
partido”. O “espírito estatal” tem como elemento fundamental o “espírito de
partido”, ao contrário do individualismo, “elemento animalesco”[27].
Assim, o partido político é aquele que traz em si o espírito estatal e a
necessidade de sua criação ocorre quando o seu triunfo
(transformação em estado) está, no mínimo, em vias de formação. As condições
para a criação de um partido remete a necessidade de existência de três
elementos: 1) um elemento difuso de homens comuns cuja participação é realizada
através da disciplina e fidelidade, sem espírito criativo e organizativo. Eles
são uma força quando existirem aqueles que os centralize, discipline, organize;
2) Um elemento principal de coesão que centraliza nacionalmente e torna eficientes
e potentes um conjunto de forças que sozinhas nada valem. É o grupo dirigente,
os “capitães” do “exército”; 3) Um elemento médio, articulador do primeiro com
o segundo, colocando-os em contato não somente físico, mas principalmente moral
e intelectual. Esses três elementos devem estar equilibrados em proporções
definidas. O segundo elemento (os capitães) é necessário e sua inexistência
leva ao desaparecimento do partido (GRAMSCI, 1988b).
Este segundo elemento, que é a direção do mesmo,
precisa dos elementos intermediários (terceiro elemento) e da base (primeiro
elemento) e é graças a ela, que elabora uma concepção de mundo, promove um
processo de coesa e organização, que os demais são dirigidos e se organizam a
partir do partido. Além disso, Gramsci defende o “centralismo democrático” e
uma “parte jacobina” no interior do partido, aspectos derivados do leninismo,
para garantir que o partido – uma espécie de “pequeno estado”, com seu
“espírito próprio” – se torna “O Estado”, com seu “espírito estatal”.
É nesse contexto que emerge a discussão sobre o
partido como “moderno príncipe”. A partir de uma interpretação sui generis de
Maquiavel e sua obra O Príncipe (1990),
entendendo-se como o criador de uma vontade política nacional-popular que
contribuiu com a unificação italiana, ou seja, entendendo que há efetivação do
papel do intelectual como dirigente do povo-nação, ele concebe um papel
semelhante ao partido político (comunista). O príncipe moderno não pode ser um
indivíduo e sim um coletivo, não pode ser encarnado numa pessoa e sim num
organismo, o partido político. A vontade política se encontra em germe no partido[28].
É nesse contexto que Gramsci coloca o objetivo do partido político (comunista):
formar a vontade política
nacional-popular e uma reforma moral e intelectual (Gramsci, 1988b)[29]. O
partido assume um papel semelhante ao de uma entidade moral e intelectual que
subordina a todos:
O moderno príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo
o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que o seu
desenvolvimento significa de fato que cada ato é concebido como útil ou
prejudicial, como virtuoso ou criminoso; mas só na medida em que tem como ponto
de referência o próprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder, ou contrastá-lo.
O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo
categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma laicização completa
de toda a vida e de todas as relações de costume (GRAMSCI, 1988b, p. 09).
O partido, todo-poderoso, criador de uma vontade
nacional-popular, de uma reforma moral e intelectual, assume a posição de uma
religião laica que deve ter fiéis e crentes para se reproduzir e realizar sua
luta pelo poder. O partido é uma igreja de uma religião laica, sem deuses, mas
com mandamentos, ou ele mesmo se torna Deus. Nesse sentido, o partido deve
promover a constituição de uma nova hegemonia. Essa concepção grotesca e
burocrática é a verdadeira posição gramsciana sobre o partido político,
idêntica à concepção leninista. Voltaremos a isso adiante.
O partido é a forma como determinados grupos sociais conseguem produzir
seus intelectuais orgânicos:
O que é que o partido político se torna em relação ao
problema dos intelectuais? É necessário fazer algumas distinções: 1) para
alguns grupos sociais, o partido político é senão o modo próprio de elaborar
sua categoria de intelectuais orgânicos (que se formam assim, e não podem
deixar de se formar, dadas as características gerais e as condições de
formação, de vida e de desenvolvimento do grupo social dado) diretamente no
campo político e filosófico, e já não mais no campo da técnica produtiva; 2) o
partido político, para todos os grupos, é precisamente o mecanismo que
representa na sociedade civil a mesma função desempenhada pelo Estado, de um
modo mais vasto e mais sintético, na sociedade política, ou seja, proporciona a
fusão entre os intelectuais orgânicos de um dado grupo – o grupo dominante – e
os intelectuais tradicionais; e esta função é desempenhada pelo partido
precisamente em dependência de sua função fundamental, que é a de elaborar os
próprios componentes, elementos de um grupo social nascido e desenvolvido como ‘econômico’,
até transformá-los em intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores
de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma
sociedade integral, civil e política. Aliás, pode-se dizer que, no seu âmbito,
o partido político desempenha sua função muito mais completa e organicamente do
que, num âmbito mais vasto, o Estado desempenha a sua: um intelectual que passa
a fazer parte do partido político de um determinado grupo social confunde-se
com os intelectuais orgânicos do próprio grupo, liga-se estreitamente ao grupo,
o que não ocorre através de participação na vida estatal senão mediocremente ou
mesmo nunca (GRAMSCI, 1982, p. 14-15).
O partido tem o papel de conquistar os intelectuais tradicionais e
grandes intelectuais, bem como formas os “intelectuais orgânicos” das classes
subalternas. O papel dos intelectuais é fundamental para conquistar e manter a
hegemonia[30].
Isso é evidente na própria prática de Gramsci, que buscou conquistar para o que
ele chamou “filosofia da práxis” intelectuais influentes e renomados na Itália,
como Croce e Maquiavel. A sua discussão sobre intelectuais tem a ver com sua
ênfase a hegemonia, na direção moral e intelectual, e ao papel que eles teriam
nesse processo.
Aqui Gramsci concorda com a tese leninista do papel do partido
revolucionário como o aglutinador dos intelectuais que devem dirigir a classe
operária. Sem dúvida, alguns podem utilizar algumas passagens de Gramsci de
forma descontextualizada para afirmar que sua concepção é distinta da de Lênin,
tal como, por exemplo, quando afirma que “a filosofia da práxis não busca
manter os ‘simplórios’ na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao
contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior” (GRAMSCI, 1987, p.
20). Depois disso Gramsci afirma que as massas possuem uma consciência
contraditória, na qual há a luta de “hegemonias políticas”, sendo que a unidade
de teoria e prática – superação da consciência contraditória – é conquistada no
devir histórico. E é aí onde ele vai definir o que significa essa
autoconsciência:
A autoconsciência crítica significa, histórica e
politicamente, criação de uma elite de intelectuais: uma massa humana não se
‘distingue’ e não se torna independente ‘por si’, sem organizar-se (em sentido
lato); e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e
dirigentes, sem que o aspecto teórico da ligação teoria-prática se distinga
concretamente em um estrato de pessoas ‘especializadas’ na elaboração
conceitual e filosófica (GRAMSCI, 1987, p. 21).
Essa elite de intelectuais é produzida pelo partido político, pois são os
partidos que elaboram as “novas intelectualidades integrais e totalitárias (totalizadoras)”.
Mas o que interessa aqui é o que significa elevar os simplórios de sua
filosofia primitiva para uma concepção de mundo superior? Não significa, como
em Marx, que o proletariado em sua luta (e com a luta dos não-proletários que
os apoiam, incluindo intelectuais e militantes) realiza sua autoeducação e
assim consegue constituir sua associação, auto-organização, na qual novos
valores e consciência emergem (tal como a solidariedade). Significa a sua
subordinação e absorção da concepção de mundo do partido e dos seus
intelectuais, ou seja, a mesma concepção sobre consciência revolucionária de
Lênin.
É claro que aqui temos uma demonstração da concepção gramsciana e sua
dívida para com a concepção leninista[31].
O partido como moderno príncipe assume o papel dirigente, tal como em Lênin, e os
resultados disso só pode ser uma versão problemática do leninismo e a
reprodução do seu papel histórico. É por isso que Mondolfo afirma a existência
de uma afinidade entre Gramsci, por um lado, e Lênin e Stálin, por outro.
Apesar de Mondolfo considerar a existência de contradições em Gramsci, o seu
lado dominante é leninista e stalinista[32].
O partido como moderno príncipe é o vínculo mais direto de Gramsci com o
bolchevismo. A razão para a defesa da necessidade de tal partido reside na
imaturidade das massas:
O pressuposto em que se baseia a teoria que substitui
pela consciência, a vontade e ação de um núcleo de vanguarda (partido), a
consciência, a vontade e a ação gerais da classe ou do povo, consiste
precisamente na imaturidade espiritual da classe ou do próprio povo;
imaturidade subjetiva, que não pode ser senão sinal e prova de uma imaturidade
objetiva das condições históricas (MONDOLFO, 1967, p. 333-334).
O príncipe deve realizar a educação do povo, de “quem não sabe”, já que o
movimento espontâneo do povo tende a ir em direção oposta a dos seus líderes. O
príncipe deve impor uma férrea ditadura sobre a inconsciência do povo. Assim,
“o povo é a matéria que se há de empregar para conseguir um fim que ele todavia
não sente, porém no qual outros veem encarnadas as exigências históricas às
quais esse povo deve obedecer” (MONDOLFO, 1967, p. 335). Desta forma, os
jacobinos foram a “encarnação categórica do príncipe”. Gramsci, segundo
Matteucci, “como fundador do Partido Comunista Italiano, sentia que cumpria uma
função semelhante e análoga à de Maquiavel e à dos jacobinos com respeito aos
seus grupos sociais” (apud, MONDOLFO, 1967, p. 335). Mondolfo cita Gramsci e
sua concepção de partido-fetiche: o partido como moderno príncipe deve “ocupar
nas consciências o lugar da divindade ou do imperativo categórico... Todo ato
se concebe como útil ou danoso, como virtuoso ou como criminoso, só enquanto
tem como ponto de referência o moderno Príncipe mesmo... e serve para
incrementar seu poder ou para diminuí-lo” (apud. MONDOLFO, 1967, p. 335). A
obrigação de fidelidade e disciplina ao moderno príncipe leva à condenação das dissidências
como heresias. A concepção de partido em Gramsci e Lênin, nesse aspecto, é idêntica
(MONDOLFO, 1967).
Esse breve desvio por Mondolfo teve apenas o objetivo de deixar claro que
não é apenas a nossa leitura que identifica estes elementos na obra gramsciana,
pois os apologistas e outros evitam analisar tal aspecto do seu pensamento,
enquanto poucos realizam tal análise (MONDOLFO, 1967; GARCIA, 1980). Porém,
Mondolfo é demasiadamente sintético e condescendente com Gramsci e por isso
julgamos necessário ir além nesta crítica da concepção política de Gramsci.
A concepção de partido em Gramsci é burocrática e leninista. Ele reproduz
a ideia de que o partido é o dirigente das classes subalternas e aquele que
deve conquistar a hegemonia e o poder estatal. Para isso, a reforma moral e
intelectual é o elemento de adesão das massas ao partido, e para conseguir tal
a conquista dos intelectuais tradicionais e grandes intelectuais, bem como o
uso da propaganda (inclusive da repetição da mesma afirmação sob formas
distintas para convencer os “simplórios”), entre outros procedimentos. Aqui
reside uma diferença entre Gramsci e Lênin. A estratégia é diferente, não é
insurrecionalista como a de Lênin[33]
e sim reformista. Gramsci justifica isso com sua divisão entre Oriente e Ocidente,
no qual se mantém fiel a Lênin e ao mesmo tempo pode propor uma nova e
diferente estratégia. No oriente, tal como a Rússia, na qual a sociedade civil
é “gelatinosa”, incipiente, submetida a um estado ditatorial (czarismo), a
estratégia leninista está correta e deveria ser mesmo uma guerra de movimento,
ou seja, o ataque frontal ao Estado.
No ocidente, ao contrário, a sociedade civil é estruturada e por isso a estratégia
deve ser a de guerra de posições. Esta busca atuar no interior da sociedade
civil, conquistando espaços e realizando reforma intelectual e moral, para,
somente após ter implantado sua hegemonia, tomar o poder estatal. O
insurrecionalismo de Lênin é certo, mas só para o Oriente. A estratégia correta
para o Ocidente é a gramsciana e assim se mantém o vínculo com o leninismo e ao
mesmo tempo se aproxima da socialdemocracia e do reformismo.
Perry Anderson remonta um predecessor de Gramsci: Karl Kautsky, o
ideólogo do Partido Socialdemocrata Alemão. O reformismo de Kautsky precede o
de Gramsci, embora, segundo Anderson, este último retomou ideias semelhantes
“sem saber” (ANDERSON, 1986). Kautsky utilizaria, em seu debate com Rosa
Luxemburgo, a oposição – de origem militar e elaborada por Hans Delbrück –
entre “estratégia de esgotamento” e “estratégia de derrocada”. Para combater a
posição de Rosa Luxemburgo, que defendia as greves gerais como estratégia de
luta, Kautsky distingue essa posição, denominada por ele como “estratégia da
derrocada” e defende uma outra posição, a estratégia do esgotamento, caracterizada
por uma “série de campanhas eleitorais sucessivas” que daria maioria no
parlamento para o Partido Socialdemocrata, pois esta seria mais prudente e
evitaria riscos para o proletariado[34].
A semelhança formal da oposição ‘estratégia de
derrocada’ – estratégia de esgotamento’ e ‘guerra de movimento – guerra de posição’
é, naturalmente, surpreendente. Entretanto, as analogias fundamentais
existentes entre os dois pares de conceitos, nos textos de Kautsky e Gramsci,
são ainda mais desconcertantes. Pois, para sustentar o seu argumento da
superioridade da estratégia de esgotamento sobre a estratégia da derrocada,
Kautsky evocou exatamente as mesmas oposições históricas e geográficas que
Gramsci em sua discussão sobre a guerra de posição e guerra de movimento (ANDERSON,
1986, p. 60)[35].
A conquista da hegemonia pelo partido-príncipe é a grande estratégia
gramsciana. A sua concepção superestruturalista (politicista e culturalista)
gera uma ênfase no partido e nos intelectuais no sentido de alcançar tal
hegemonia, passo para conquistar a sociedade política. A supervaloração dos
intelectuais ocorre nesse contexto, bem como seu maquiavelismo. Gramsci é o
príncipe do partido-príncipe e usa todos os procedimentos maquiavélicos para
manter a hegemonia interna no partido e tentar conquistar a mesma nas massas.
Por fim, é preciso destacar que Gramsci não é claro em sua estratégia
após a conquista da hegemonia. O passo seguinte é a conquista da sociedade
política, mas isto é pouco desenvolvido, bem como o seu significado. No fundo,
a censura na prisão deve ter sido um limitador, mas o pouco que se pode retirar
de seus escritos aponta para a conquista do poder estatal na qual a coerção
convive com o consentimento (a hegemonia conquistada) das massas, num processo
semelhante ao caso russo, só que com menos dissidência no partido, uma
divindade a ser seguida, e mais consenso no interior da população, sendo que a
coerção é prioritariamente dirigida contra a burguesia e setores
contrarrevolucionários. Obvio que esse é o discurso e concretamente quem decide
o que é contrarrevolucionário ou não é sempre a direção do partido (e da
sociedade política). E o problema aqui na está em afirmar e sim no poder de
reprimir, ou seja, não é questão de hegemonia e sim de “coerção”, no sentido
gramsciano do termo.
As afirmações genéricas e imprecisas de Gramsci sobre a “sociedade
regulada” podem ser interpretadas como se referindo ao “comunismo”, mas depois
do período de transição, marcado pelo tempo que o partido-príncipe ocupa o
poder na sociedade política ou como o próprio período de transição. A sua
imprecisão, derivada de suas deficiências metodológicas e conjunturais, não
deixa isso tão claro como querem nos fazer crer alguns de seus comentaristas. De
qualquer forma, a sociedade regulada é o que existe após a conquista do poder
estatal (seja compreendido como “socialismo” ou “comunismo”, segundo linguagem
leninista). Nesse sentido, a concepção é semelhante à de Lênin, com a diferença
que a coerção da sociedade política é realizada simultaneamente com a
hegemonia.
A interpretação do “fim do estado” em Gramsci (BOBBIO, 1982; COUTINHO,
1989), apesar da diferença interpretativa dos comentaristas, é problemática. É
uma formulação que não aparece explicitamente em Gramsci, o que pode – embora
seja uma suposição – ser atribuído à censura e autocensura, e implicitamente é
bastante difícil sustentar tal afirmação. Coutinho pensa em fundamentar sua
interpretação no texto “estadolatria”:
[...] Gramsci parece supor a necessidade de uma luta
no terreno específico da política e das instituições socialistas a fim de
tornar possível o fim da alienação que se expressa na existência de um Estado
separado da sociedade, qualquer que seja seu conteúdo de classe. É o que me
parece resultar de suas notas sobre a ‘estatolatria’ [...], nas quais ele
adverte que ‘a estatolatria não deve ser deixada a seu livre curso’, mas ‘deve
ser criticada’. É como se ele dissesse que o ‘Estado operário com deformações
burocráticas’ (como Lênin o caracterizou, em 1921) teria uma dinâmica própria,
gerando interesses que apontam para sua perpetuação. Daí a necessidade de uma
permanente ‘crítica socialista’, enquanto parte integrante do processo que
Gramsci frequentemente designa como ‘reforma intelectual e moral’ (COUTINHO,
1989, p. 84).
Aqui temos o caso de uma interpretação arbitrária. A insegurança do
intérprete demonstra isso: “parece supor”, “é o que me parece”. A insegurança,
no entanto, transforma-se em segurança após ter sido afirmado e na sequencia da
interpretação. O texto sobre “estadolatria” não faz nenhuma referência ao caso
russo e nem ao socialismo (GRAMSCI, 1974), bem como faz afirmações, algumas
citadas pelo próprio intérprete, que contradizem tal interpretação que
justificaria falar em “fim do estado” para Gramsci[36].
Mas é necessário citar um trecho para ficar mais clara a referida
interpretação:
E, se observarmos que, pouco antes, Gramsci contrapõe
o ‘governo dos funcionários’ ao ‘autogoverno’, a sociedade política à sociedade
civil, vemos que sua crítica à ‘estatolatria’ – além de ser uma clara crítica à
gestão burocrática do Estado – é ao mesmo tempo uma defesa do ‘autogoverno dos
produtores’, expresso através dos organismos da sociedade civil. O que a nota
de Gramsci parece dizer, em síntese, é o seguinte: se a sociedade civil é fraca
antes da tomada do poder, a tarefa do Estado socialista é fortalecê-la depois,
como condição para sua própria extinção enquanto Estado, para sua reabsorção
pelos organismos autogeridos da sociedade civil (COUTINHO, 1989, p. 74).
Novamente, “parece”, mas as aparências enganam. Através de uma mera
especulação, Coutinho consegue transformar Gramsci em um “autogestionário”,
para espanto geral de qualquer conhecedor de sua obra. O texto sobre
“estadolatria” não é claro e suas referências são a grupos sociais determinados,
citando o exemplo da sociedade medieval e absolutismo e por isso pode ser
interpretado como se referindo à burguesia como grupo social que precisa de um
período de “estadolatria” e que isso deve ser superado. Claro está que é a
estadolatria que deve ser superada e não o Estado. Esse é o problema-chave da
concepção de “sociedade regulada” de Gramsci. O “autogoverno dos produtores” de
Marx, nada tem a ver com isso e nem a ideia de autogoverno em Gramsci tem
relação com a autogestão no sentido oferecido pelo movimento revolucionário
pós-68, ou seja, pelo marxismo autogestionário. Basta observar que Gramsci
sempre usa abstrações como “sociedade civil” e “sociedade política” e nunca se
refere a “produtores” ou proletariado, como Marx. A sua própria definição de
“autogoverno” ajuda a entender isso:
O autogoverno é uma instituição ou um costume
político, administrativo, que pressupõe condições bem determinadas: a
existência de um estrato social que vive de renda, que tenha uma tradicional
prática nos assuntos públicos e que goze de certo prestígio entre as massas
populares por sua retidão e seu desinteresse (e também por alguns dotes
psicológicos, como a de saber exercitar a autoridade com firme dignidade, porém
sem altivez nem distanciamento soberbo) (GRAMSCI, 1974, p. 208).
Isso é totalmente distante da “livre associação dos produtores” proposta
por Marx, bem como da autogestão social proposta por outros. A concepção
gramsciana de autogoverno é enganosa e somente caindo no “verbalismo”, tal como
o italiano Antonio Labriola já colocava (1979), tomando as palavras fora do seu
contexto e significado, se poderia extrapolar para pensar que se trata de
“autogestão” no sentido marxista do termo.
Na concepção gramsciana de autogoverno, a separação entre dirigentes e dirigidos
se reproduz e as “massas populares” são dirigidas por outro “estrato”, com
renda (logo, não são produtores), determinado saber e prestígio. A divisão de
classes permanece no “autogoverno gramsciano”. Logo, o “autogoverno”, para
Gramsci, pode ser exercido pelo “partido-príncipe”, pois “o partido dominante
não se confunde organicamente com o governo, mas é instrumento para a passagem
da sociedade civil-política à ‘sociedade regulada’, na medida em que absorve
ambas em si, para superá-las, não para perpetuar a contradição entre elas,
etc.” (apud. COUTINHO, 1989, p. 85). O partido torna-se sociedade política,
provavelmente no que seria equivalente ao “período de transição” ou
“socialismo”, em termos leninistas, e ao absorver o “estado integral” (sociedade
civil e sociedade política), abole a contradição entre ambas e exerce a coerção
com consentimento.
Por isso a concepção gramsciana novamente se encontra com a concepção
leninista, com apenas a diferença estratégia (guerra de posições ao invés de
guerra de movimento). O agente desse processo de passagem para a sociedade
regulada é o partido: “Os partidos podem ser considerados escolas da vida
estatal” (GRAMSCI, 1974, p. 91); “O partido como parte – já Hume tinha dito –
funciona como um todo” (SANTOS, 1979, p. 147). O partido-príncipe busca a
hegemonia através da guerra de posição e após conquistá-la, toma a sociedade
política, absorvendo ambas e como ele é, segundo Gramsci, “a primeira célula
onde se exprimem gérmens de vontade coletiva que tendem a tornar-se universais
e totais” (apud. SANTOS, 1979, p. 147), então o que ocorre, efetivamente, na
concepção gramsciana, é o partido-príncipe se tornar “estado-príncipe”, no qual
uma parte da sociedade civil, o partido, toma conta dela, num primeiro momento,
e da sociedade política, num segundo momento, abolindo sua contradição, gerando
a unidade através dele. É o mesmo que ocorreu na Rússia, mas sob forma
diferente, pois a conquista da sociedade política foi efetivada através de uma
guerra de movimento e Gramsci propõe uma guerra de posições. Uma outra
diferença seria, no caso do “Ocidente”, que a coerção seria menor, graças à
conquista anterior da hegemonia.
Em síntese, a concepção de sociedade regulada em Gramsci nada vem a ver
com autogestão social, sendo apenas uma forma de sociedade na qual a fusão
entre “sociedade civil” e “sociedade política” gera uma nova direção moral e
intelectual, bem como o “fim do estado” não foi defendido por ele. A versão de
Bobbio (1982) também é equivocada, por considerar que o “bloco histórico”
significaria isso, sendo que, no fundo, significa apenas que para Gramsci, o
ético-político universal expresso no partido-príncipe se torna um imperativo
categórico de toda a sociedade, o que nada tem a ver com o fim do Estado no
sentido de Marx, do comunismo de conselhos ou do marxismo autogestionário.
Considerações Finais
Assim, o nosso objetivo de apresentar uma introdução à crítica da
ideologia gramsciana finaliza com a certeza de que a análise da concepção
política de Gramsci, da perspectiva marxista, só pode ocorrer de forma
crítico-revolucionária, o que significa mostrar os seus pontos falhos, os seus
compromissos, as suas limitações. Gramsci dificilmente poderia ser considerado
“marxista”, pois suas discrepâncias teórico-metodológicas com o materialismo
histórico-dialético, seu superestruturalismo, seu vanguardismo-burocrático
(concepção de partido e transformação), sua aproximação com o reformismo, são
bem distantes da proposta de Marx e o coloca como Lênin e Kautsky, como um
ideólogo da burocracia (transmutada como intelectualidade). A sua concepção de
partido político nunca saiu do papel e ficou apenas como objeto de disputa para
deformações e adaptações aos partidos políticos concretos, que retiravam das
ideias gramscianas o que era útil e desconsiderava o resto e a imensa produção
intelectual sobre seu pensamento comprova isso.
Nesse sentido, é possível descartar Gramsci e considerar que ele não traz
nenhuma contribuição para se pensar a sociedade e a realidade histórica, bem
como o processo de transformação social, apesar de sua influência
(especialmente na Itália). Contudo, toda ideologia possui momentos de verdade e
apesar da produção gramsciana ser ideológica, alguns elementos do seu
pensamento podem ser úteis e assimilados pelo marxismo. O momento analítico de
sua obra, quando aponta para a análise da hegemonia na sociedade burguesa, tem
alguns aspectos aproveitáveis, como a discussão sobre hegemonia. Obviamente que
são aspectos, extraídos do todo que é ideológico, resgatando apenas os momentos
de verdade, pois sua análise da hegemonia na sociedade burguesa é problemática
e cheia de equívocos[37].
Para citar apenas um exemplo, o papel atribuído a Croce é uma inversão da
realidade, ou seja, uma concepção ideológica, pois ele considera este
intelectual como um organizador da hegemonia, graças ao seu superestruturalismo
e supervaloração dos intelectuais, ao invés de perceber que ele apenas
sintetiza e expressa sob forma mais coerente o que já estava nas representações
cotidianas e cultura italiana em geral. No reino da ideologia, o produto vira
produtor.
O momento propositivo de Gramsci é muito mais problemático e traz muito
menos elementos aproveitáveis. É algo para ser descartado em quase sua
totalidade. A única questão que talvez se salve em suas proposições é a
importância da cultura e da luta pela hegemonia, mas não com suas ilusões e da
forma como propõe, através e para o partido, mas sim um amplo processo de
autoeducação do proletariado e suas classes aliadas, apontando para uma
hegemonia proletária, não antes de conquistar a sociedade política, mas
simultaneamente com a luta pela abolição do capital e do Estado, elementos
inseparáveis, formando uma totalidade, pois, desde Marx se entende claramente que
a revolução proletária, ao contrário das demais revoluções sociais, é total,
abolindo a divisão social do trabalho, a oposição dirigentes-dirigidos, etc.
Gramsci fica preso ao esquema da revolução burguesa e pensa numa conquista da
hegemonia antes da conquista da sociedade política, o que é produto de seus
valores e vínculos com a burocracia, o que o deixa cego e mais uma vez
compromete o seu momento analítico, pois a burguesia primeiro desenvolveu as
relações de produção capitalistas para depois conquistar a hegemonia e por
último a conquista do aparato estatal, sendo revoluções parciais. O
proletariado não pode reproduzir esse esquema, pois não pode adquirir
propriedade (e se o fizesse deixaria de ser proletariado) e nem conquistar seja
a hegemonia ou o aparato estatal antes ou separadamente, sendo que o seu
projeto só se concretiza abolindo a propriedade (capital) e o Estado.
Sem dúvida, os poucos aspectos do pensamento gramsciano que podem ser
úteis para uma análise da hegemonia na sociedade burguesa e para a proposta de
transformação social, requerem uma pesquisa aprofundada e todo um processo de depuração
que o tornaria irreconhecível. Isso, no entanto, não é o que ocorre. Gramsci é
apropriado por tendências distintas para justificar e legitimar suas práticas,
em outros casos para servir de receita para ação política ou análise da
realidade, e, devido à deformação caricatural no primeiro caso ou a
acriticidade no segundo, ele se torna pior do que já é. O gramscianismo é muito
pior do que Gramsci. Retirando as honrosas exceções, incluindo aqueles que vão
além de Gramsci no sentido de superar o reformismo, o gramscianismo é uma
concepção simplista baseada numa leitura utilitarista do pensador italiano. Mas
não é nosso objetivo refutar o gramscianismo e sim Gramsci. No caso de Gramsci,
ao invés de dizer que “a montanha pariu ratos”, é possível dizer que o
cupinzeiro pariu ácaros.
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* Professor da Faculdade de Ciências
Sociais da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB –
Universidade de Brasília e autor de diversos livros, entre os quais, O Capitalismo na Era da Acumulação Integral,
A Pesquisa em Representações Cotidianas, A Dinâmica da Violência Juvenil.
[1] Trata-se
do livro “Esquecer Gramsci”. Devemos esclarecer que sua obra de
juventude, pouco considerada e influente, será deixada de lado, mesmo porque,
ao contrário de alguns comentaristas de seu pensamento (LACASTA, 1981; MAESTRI
e CANDREVA, 2001), consideramos que ele abandonou esse período radical do sua
produção intelectual devido à derrota e ascensão do fascismo, mudando suas
concepções e não simplesmente “acrescentando” tudo que produziu depois. Isso é perceptível,
inclusive pelo fato dos conselhos de fábrica, fundamentais nos seus escritos de
juventude, desaparecerem na segunda fase do seu pensamento.
[2] Seria necessária uma pesquisa para saber do
caso italiano, onde, obviamente, devido sua maior influência e mais material
disponível, deve ter originado algum tipo de crítica, tal como no caso de
Mondolfo. Pelo que pudemos averiguar numa pesquisa preliminar, alguns
qualificam Gramsci de reformista, e outros de idealista, e os críticos seriam
Tito Perlini, G. Tamburrao, G. Lehner, entre outros.
[3]
Superestruturalismo é a posição que coloca como fundamental a chamada
“superestrutura”, em oposição à “estrutura”, ou seja, as formas sociais
(jurídicas, políticas, ideológicas, etc.) em detrimento do modo de produção.
[4]
Apesar de bem pouco “sistemático”, devido ao fato de ter escrito na prisão e
não ter efetivado maior desenvolvimento de vários pontos de seu pensamento,
além, é claro, de seus próprios limites intelectuais, derivado de sua formação
intelectual. Esse último ponto significa que a afirmação de Lukács (apud.
LACASTA, 1981), segundo qual ele seria o mais preparado para desenvolver o
marxismo entre os três que foram críticos da filosofia da II Internacional,
sendo que Korsch era o terceiro, é equivocada. Gramsci tinha muito menos
recursos intelectuais que Lukács e Korsch, tanto pelo fato de estar na Itália,
onde o marxismo sempre foi precário (a exceção era Antonio Labriola, apesar de
seu pouco vínculo político), sua formação intelectual (jornalismo), ao contrário
dos outros dois, formados em filosofia, no país no qual o marxismo estava mais
desenvolvido (e deformado) e em contato com o mundo inteiro – o que incentivava
o cosmopolitismo e não o italianismo – além de conhecedores mais profundos de
Marx e Hegel.
[5] Não é possível aqui fazer toda uma discussão
sobre o que é o marxismo, o que fizemos em outro lugar (VIANA, 2008), buscando
desenvolver a concepção de Karl Korsch (1977), que, para os nossos objetivos é
suficiente reproduzir sua definição de marxismo, a saber: expressão teórica do
movimento revolucionário do proletariado. Marx foi o primeiro e quem mais
aprofundou sob forma teórica a perspectiva de classe do proletariado, não sendo
o único, e por isso se tornou principal referência e desenvolvedor dos conceitos
básicos da teoria revolucionária do proletariado, o que justifica a comparação
entre Marx e Gramsci. Esta concepção de marxismo é não-dogmática por que sua
base é uma classe social revolucionária e não um indivíduo ou seus textos, ou,
ainda determinadas obras, e aqui se vê mais uma distinção entre marxismo e
gramscianismo, uma concepção crítico-revolucionária e uma concepção dogmática,
cuja a base e a verdade revelada são os escritos de Gramsci.
[6] Por construto queremos dizer “falso conceito”
(VIANA, 2007), entendendo por conceito uma “expressão da realidade”, tal como
definido por Marx (1989). O construto, ao contrário do conceito, é uma
expressão falsa da realidade e se o conceito é parte componente de uma teoria,
o construto é parte componente de uma ideologia (VIANA, 2007; VIANA, 2008), tal
como definimos anteriormente.
[7]
Inclusive ele oferece uma análise superestruturalista e, por conseguinte,
limitada do fenômeno fascista, pois, como observou um comentarista, não levou
em consideração a sua “fundamentação econômica” (LACASTA, 1981), ou, em termos
marxistas, o seu vínculo com a questão da acumulação de capital.
[8]
“Este estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que
comumente é entendido como Sociedade política (ou ditadura, ou aparelho
coercitivo para amoldar a massa popular ao tipo de produção e à economia de
dado momento) e não como um equilíbrio da Sociedade política com a Sociedade
civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a sociedade nacional inteira
através das chamadas organizações privadas, como as Igrejas, os sindicatos, as
escolas, etc.) e justamente na sociedade civil em particular operam os
intelectuais (...)” (GRAMSCI, 1991, p. 224).
[9]
Gramsci chega a dizer que o sentido pejorativo de ideologia se tornou extensivo
e assim modificou e desnaturou a análise teórica deste conceito (GRAMSCI,
1988a), o que só mostra a incompreensão do uso que Marx forneceu ao termo. Isso
é compreensível, até certo ponto, pelo fato de que Gramsci não leu A Ideologia Alemã, publicada apenas em
1926, apesar desta sua afirmação ser de 1932, porém, por falta de acesso. No
entanto, é perceptível a posição de Marx a respeito desse termo em outras
obras, inclusive O Capital e é por
isso que diversos outros já entendiam esse significado do termo ideologia antes
da publicação da obra em que isso fica mais claro.
[10]
Buttigieg (2010) apresenta, na tradução de Luís Sérgio Henriques, essa
expressão, embora Gramsci (1987), na tradução de Noenio Spínola, coloque
“serpente marinha”, tal como se vê também na versão espanhola (GRAMSCI, 1988a).
[11]
Outra diferença entre Marx e Gramsci, pois o primeiro era um leitor rigoroso e
isso pode ser notado em seus diversos cadernos de anotações, alguns publicados
posteriormente como livros. Enfim, o método dialético é bem diferente do método
Frankenstein. Outro elemento que se nota aqui é que Gramsci é um dos
responsáveis pela importação de construtos da ideologia burguesa do
conhecimento (sujeito, objeto, subjetividade, objetividade), não utilizados por
Marx e seus principais continuadores, e criticado por Korsch (1977), ao invés
dos conceitos da teoria da consciência presente no materialismo
histórico-dialético.
[12]
Aqui observamos, também, uma notável ambiguidade de Gramsci. Se antes havia
dito que a objetividade é o universal subjetivo e que a verdade é o consenso,
aqui parece dizer o contrário. No fundo, ele afirma que o que pode ser
considerado “realidade objetiva” é o que é verificado por todos os homens,
independente de ponto de vista puramente particular ou de grupo. Ou seja,
novamente temos a ideia de que é o “universal subjetivo”, já que todos os
homens verificam isso superando o particularismo, mas isso só pode se
concretizar numa sociedade futura, comunista. A diferença é que nesta última a
verificação empírica e “universal” (“científica”) substitui o consenso, pois os
intelectuais do partido são aqueles que buscam impor sua hegemonia e após isso,
se instaura um novo consenso. No fundo, o empiricismo-objetivista existe tanto
antes como depois, a questão é que o consenso muda e com a nova hegemonia, a
disputa em torno da verdade deixa de existir, já que há a reconciliação entre
os fatos e o consenso. A verdade subjetiva-objetiva se torna verdade apenas
objetiva.
[13]
Segundo Gruppi (1991, p. 72), Gramsci “usa frequentemente o termo filosofia da
práxis para indicar o marxismo, não apenas por prudência conspirativa”, afinal,
“em outros textos, com efeito, usa também o termo materialismo histórico, mais
comprometedor”. Logo, há no uso do termo filosofia da práxis não apenas um
subterfúgio para fugir da censura, mas também uma determinada concepção. Ele
poderia ter usado “filosofia radical”; “teoria crítica”, “dialética”, etc. Ou
seja, as escolhas terminológicas substitutas não são gratuitas e sim remetem a
uma determinada concepção. A ideia de práxis não contradiz o pensamento de
Marx, mas a ideia de “filosofia”, sendo que ele submeteu esta a uma crítica
radical, sim, bem como a união das suas coisas, que revela o papel das ideias,
da “filosofia”, em sua concepção.
[14] Sem dúvida, um desenvolvimento da teoria
marxista, leva, necessariamente, ao uso e elaboração de novos conceitos. Isso,
no entanto, desde que coerente com o cerne da teoria já constituída, ou seja,
sem contradição, bem como acrescentando algo a ela em matéria de percepção da
realidade, devendo ser explicitado. Obviamente que Marx não esgotou tudo o que
poderia ser dito numa teoria da consciência, mas, numa concepção marxista, o
que deveria ser realizado é um desenvolvimento da mesma e não importação de
termos contraditórios oriundos de ideologias burguesas sem nenhuma reformulação
crítica. Assim, ao invés do termo abstrato e impreciso, e geralmente indefinido
(Gramsci, por exemplo, não explicita o que entende por isso, como se fosse algo
autoevidente, apesar de não ter uso anterior na obra de Marx e no marxismo, o
que denota que seu significado evidente é o da ideologia burguesa do
conhecimento), para se referir ao indivíduo, é necessário algo mais concreto. O
indivíduo, devido seu processo histórico de vida singular cria uma
singularidade psíquica (VIANA, 2011), o que alguns psicólogos chamam de
personalidade. No entanto, o que subjaz na ideia de “subjetividade” é algo que
seria distinto e não relacionado com a objetividade, coisas separadas. Além do
termo ser impreciso e nada dizer, a separação é outro problema derivado, o que
é contraposto ao conceito de consciência de Marx, segundo o qual, “a
consciência não é nada mais que o ser consciente” (MARX e ENGELS, 1992), ou
seja, o indivíduo consciente, sendo impossível separar a consciência do
indivíduo e pensar este fora da história e da sociedade, que determinam sua
consciência. Inclusive é em sua história de vida que sua maior ou menor
autonomia intelectual é determinada (assim como existem os “espíritos de
rebanho”, como já dizia Nietzsche, que cedem às pressões sociais e reproduzem o
que é comum, ou o “espírito da época”, como diz Hegel, no qual as pessoas não
conseguem ultrapassar o pensamento de seu tempo, o avanço da consciência, da
razão, permite maior autonomia, pois pode pensar criticamente o mundo que lhe
cerca e compreender sua historicidade e relação com a totalidade da sociedade).
Claro que além da razão, determinadas predisposições valorativas e sentimentais
são importantes para tal desenvolvimento e nesse caso o humanismo radical é um
impulsionador desse processo de autonomização.
[15] O
termo superestrutura, como observou Korsch (1983) e na sequencia dele Althusser
(1983) e Canclini (1983), é uma metáfora para ilustrar as relações entre modo
de produção e formas sociais, sendo estas as formas jurídicas, políticas,
ideológicas, segundo expressão de Marx (1983). Marx não chegou a teorizar o que
corresponde a tais formas sob forma estruturada, tal como fez com modo de
produção, o que facilitou as interpretações ideológicas e confusas.
[16]
Mesmo aqueles que enfatizam a noção de “bloco histórico”, de origem soreliana,
acabam em suas descrições do pensamento gramsciano caindo nas questões
realmente fundamentais para ele: hegemonia, partido, reforma intelectual e
moral, Estado e semelhantes (cf. SCHLESENER, 1992; PORTELLI, 1987).
[17]
“Um dos temas que aparece com maior insistência no pensamento de Gramsci é o da
vontade” (BODEI, 1978, p.73).
[18] A
tese do “impulso vital” de Bergson (1979) e a ideia do “mito”, em Sorel (1993),
são concepções vitalistas que geram voluntarismo e ativismo. A concepção
hegeliana é a do desenvolvimento da razão na história (1980; 1990; 1995), mas
como entidade metafísica (assim como a “subjetividade” gramsciana parece ser),
o que ganha um pouco maior de concreticidade em Croce (1942). No entanto,
Gramsci une as duas perspectivas, ele “mitiga” o seu voluntarismo com a crença
na razão, sendo esta a ideia-chave e fonte do seu idealismo. Desta forma,
quando Bodei (1978) tenta afastar Gramsci do voluntarismo acerta ao colocar que
a influência de Sorel é compensada pela de Hegel e Croce, mas não percebe que
isso significa a ultrapassagem de um voluntarismo vitalista para um
racionalista.
[19]
Ou, dito de outra forma: “uma noção central que está presente, implícita ou
explicitamente, em toda a reflexão gramsciana desta fase, tanto no momento de
análise como no de projetação da estratégia revolucionária” (STACCONE, 1991, p.
89).
[20]
Essa definição não esgota toda a questão, mas revela o elemento essencial do
pensamento gramsciano de maturidade. Sem dúvida, Gramsci usou o termo em sentidos
diferentes, especialmente se compararmos a época de juventude com a época de
maturidade. Vários autores discutiram, sob perspectivas diferentes, tal termo
na concepção gramsciana (ANDERSON. 1986; GRUPPI. 1991; MACCIOCCHI, 1980;
PORTELLI, 1987; BUCI-GLUCKSMANN, 1980), o que é aconselhável para quem quiser
conhecer interpretações distintas a respeito da hegemonia em Gramsci e
inclusive como a posição política do intérprete (gramsciano, maoísta,
trotskista, etc.) influência na interpretação.
[21]
Aqui se nota mais uma diferença entre Marx e Gramsci, não somente no conceito
de sociedade civil, que para Marx é o conjunto das relações de produção (ou
seja, o modo de produção dominante e demais modos de produção) e para Gramsci
são elementos da superestrutura com exceção do aparato administrativo e
repressivo, mas também por confundir Estado e superestrutura (VIANA, 2007;
VIANA, 2003). Claro que a definição diferenciada de sociedade civil não gera
nenhum antagonismo em si, mas ao desconsiderar o modo de produção e torná-la
centro da luta pela transformação social, aí temos uma diferença importante,
bem como a confusão entre Estado e superestrutura acaba mostrando deficiência
analítica e promovendo unificação do que é distinto, pois as diferenças reais
entre ambos acabam sendo ofuscadas. Uma análise da diferença de concepção de
sociedade civil em Marx e Gramsci pode ser vista em Bobbio (1982).
[22]
Concepção, como já colocamos, distinta da de Marx. Sem dúvida, existe uma
polêmica sobre o significa desse termo no pensamento de Marx, mas o conteúdo
fundamental e predominante no pensamento deste pensador é o de sistema de
pensamento ilusório, expresso especialmente em A Ideologia Alemã, mas também presente em O Capital e outras obras. Obviamente que, para Marx, a ideologia é
apenas uma forma de consciência, ao lado de outras e que pode ser dividida e se
manifestar sob diversas formas, bem como existe o seu oposto, tanto complexo (a
teoria, termo utilizado uma vez por Marx e que se inspira em Hegel para tal uso
ou a ciência, no sentido hegeliano da palavra, um saber totalizante) quanto
simples (a utopia, as representações).
[23]
Claro que tal definição sistematiza mais do que se encontra sistematizado no
pensamento de Gramsci, mas reúne as considerações do mesmo sobre tal termo,
embora o conjunto não fosse algo tão claro em suas notas esparsas sobre
ideologia.
[24]
As poucas referências críticas de Gramsci à Rosa Luxemburgo (acusada por ele de
espontaneísmo e economicismo) mostram diferenças entre ambos, que, no entanto,
são bem maiores do que alguns julgam, inclusive aqueles que tentam unir as suas
concepções.
[25]
Outros aspectos serão desenvolvidos em outras obras de polêmica partidária,
como Um Passo Adiante e Dois Atrás; Duas
Táticas da Socialdemocracia na Revolução Proletária; O Esquerdismo, Doença
Infantil do Comunismo, Carta a um Camarada, etc. (LÊNIN, 1978b; 1984; 1986;
1975).
[26]
Ao que tudo indica, Gramsci desconhecia as principais obras dos comunistas
conselhistas (Pannekoek, Rühle, Korsch, Mattick, Gorter, etc.). No entanto,
certamente ele conhecia, principalmente via os embates políticos da década de
1920. Mas sua atenção voltada para o
caso italiano e a inexistência de uma tal tendência neste país (que era forte
na Alemanha e Holanda, tendo se espalhado para outros países posteriormente),
junto com sua posição política, o deve ter feito não realizar nenhuma
referência a tal corrente ou seus representantes intelectuais.
[27] É
neste sentido que Gramsci irá pensar que jornais, revistas, pequenos grupos,
etc., são, também, partidos.
[28] “O moderno príncipe, o mito-príncipe, não pode ser
uma pessoa real, um indivíduo concreto; só pode ser um organismo; um elemento
complexo de sociedade no qual já tenha se iniciado a concretização de uma
vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na ação. Este
organismo já é determinado pelo desenvolvimento histórico, é o partido
político: a primeira célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que
tendem a se tornar universais e totais” (GRAMSCI, 1988b, p. 6).
[29]
Gramsci afirma que a reforma econômica acompanha esse processo, como algo
posterior ou secundário.
[30]
Não poderemos discutir aqui a questão dos intelectuais em Gramsci de forma
aprofundada, nem sua “tipologia”, nem a hierarquia entre os mesmos. Isso
demandaria uma longa discussão, principalmente por causa das distintas
interpretações a respeito, principalmente no que se refere à definição de
“intelectuais tradicionais” e “intelectuais orgânicos”. A interpretação mais
comum é que os intelectuais tradicionais seriam ligados aos restos das
sociedades passadas (feudal) e os orgânicos produtos das classes sociais
fundamentais (burguesia e proletariado). No entanto, isso não é tão claro assim
e a própria assistematicidade de Gramsci reforça as diversas interpretações
diferentes. Alguns poucos autores abordaram criticamente a concepção de
intelectuais em Gramsci (SILVA, 2011; ROJO, 1987). Gramsci também fala em
“grandes intelectuais”, tal como Croce, na Itália, mas sem grande desenvolvimento
e apenas para se referir àqueles que elaboram uma concepção de mundo mais
sistemática e possuem maior influência (Marx, Croce, Hegel, etc.), entre outras
considerações.
[31]
E, curiosamente, como seu politicismo domina sua ideologia do conhecimento,
pois fica claro nas passagens citadas quem são aqueles responsáveis pelo
“universal subjetivo”: os intelectuais do partido.
[32] Essas críticas de Mondolfo são de
1955, provocadas por um artigo de Mantteucci que acusava a continuidade do
marxismo italiano de Labriola, Mondolfo e Gramsci, o que o fez demarcar as
diferenças em relação ao último (e também seria necessário fazê-lo em relação
ao primeiro, mais antigo e muito mais profundo e complexo que Gramsci). O
julgamento de Gramsci sobre Mondolfo, tal como este cita, era realmente
positivo. Porém, talvez ele não conhecesse ou quisesse citar a crítica de
Gramsci de 1919, que lhe reprovava a distinção que fazia entre Marx e Lênin e
também as críticas ao regime russo (GRAMSCI, 1988a), que Mondolfo qualificava
como capitalismo de Estado.
[33] A
concepção leninista aponta para a necessidade de conquista do poder estatal via
insurreição armada e é isso que caracteriza toda a proposta leninista de
revolução. Essa foi também a razão pela qual ele criticou a Revolução Russa de
1905 (VIANA, 2010), por ser espontânea e fundada nos sovietes, formas de
auto-organização do proletariado, e sua negação de todo espontaneísmo. É o
partido o sujeito revolucionário e que toma o poder estatal. Sem dúvida, o
leninismo depois de Lênin foi perdendo esta característica, mas manteve-se sob
outras formas e em alguns pequenos partidos.
[34] A
cisão entre Rosa Luxemburgo e Karl Kautsky teria seu ápice com tal debate
(ANDERSON, 1986). Lênin apoiaria Kautsky e somente em 1914 romperia com este.
[35]
Os limites e problemas da abordagem de Anderson remontam sua própria concepção
política, mas apesar disso consegue apontar o vínculo entre Gramsci e o
reformismo. Da mesma forma, Lacasta (1981) consegue perceber isso, mas tenta,
assim como outros, salvar o reformismo de Gramsci apelando para sua união com
os escritos de juventude, o que é um subterfúgio que sobrepõe o jovem Gramsci
radical ao moderado da maturidade, e faz isso conscientemente, considerando
legítimo esse procedimento ilegítimo.
[36]
Gramsci opõe “autogoverno”, como sociedade civil, e “governo dos funcionários”,
sociedade política, e nesse contexto de colocar a necessidade da estadolatria
(que é em relação ao governo dos funcionários, a sociedade política) encerra
dizendo que ela não pode ser “perpétua”: “deve ser criticada, justamente para
que se desenvolva e produza novas formas de vida estatal, nas quais a
iniciativa dos indivíduos seja ‘estatal’, ainda que não seja graças ao ‘governo
dos funcionários’ (converter em espontânea a vida estatal)” (GRAMSCI, 1974, p.
211). Esse texto tem versão portuguesa em Sader (1990). Como o fim do estado
geraria “novas formas de vida estatal”? Isso é, no mínimo, uma contradição
terminológica dos intérpretes de Gramsci que se baseiam nesse texto. A
interpretação mais correta aqui, a nosso ver, é a de que Gramsci coloca a
questão da manutenção do Estado, mas a partir do consentimento, ou seja, da
sociedade civil que é parte dele em sua concepção, sendo sua parte “espontânea”
de direção e disciplina. O governo dos funcionários, ou seja, o aparelho de
Estado é substituído por aparelhos privados, ou, mais especificamente, pelo
partido político, o principal aparelho privado que tem “espírito estatal” e
deve garantir a hegemonia. Em síntese, a coerção do da sociedade política deve
ser absorvido pelo partido, que também detém o consentimento.
[37]
Isso significa assimilação, tal como Marx fez com a economia política inglesa e
a filosofia hegeliana, ou seja, extrai seus momentos de verdade, que variam de
acordo com a ideologia em questão, e os adequa a uma concepção totalizante e
crítica. Isso pressupõe dois processos: a crítica da ideologia, no seu
conjunto, e o resgate dos elementos verdadeiros, inseridos noutra concepção
mais ampla e tendo sido alterados nessa nova relação com a nova totalidade de
pensamento em que foi inserido. Isso é diferente do que os ideólogos de
diversos matizes pseudomarxistas fizeram com Gramsci, interpretando-o a seu
bel-prazer para confirmar suas próprias convicções, sendo atribuição de
significado e não interpretação correta. Assim, o marxismo realiza dois
procedimentos: interpretação correta (análise crítica) e assimilação (resgate
dos momentos de verdade inseridos na concepção marxista) e os ideólogos
realizam uma deformação (atribuição de significado) para adequá-lo à ideologia
do intérprete, o que significa transforma a totalidade do pensamento de autor
interpretado (no caso, Gramsci) em equivalente à ideologia do intérprete (seja
o maoísmo, trotskismo, socialdemocracia, eurocomunismo, etc.).
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Introdução à Crítica da Ideologia Gramsciana. Revista Marxismo e Autogestão. Ano 02, num. 03, jan./jun. de 2015.
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