O Exercício do Poder Através da Linguagem:
Uma Breve Apresentação
A leitura da presente obra nos remete ao problema das relações de poder e
sua manifestação no âmbito da linguagem e do discurso. Trata-se de uma questão
bastante relevante e atual e que buscamos apresentar um tratamento crítico
visando ultrapassar as visões ingênuas da relação entre linguagem e sociedade.
Aparentemente, linguagem e discurso são fenômenos bem distantes das
relações de poder. Esta obra busca justamente desfazer essa aparência. No
fundo, o que colocamos é que no nosso cotidiano o poder se manifesta, tal como
na relação pais e filhos, nos textos jornalísticos, no discurso científico,
etc. A linguagem e o poder perpassam o cotidiano e pouco nos percebemos disso.
Assim, o caráter social da linguagem é evidente. Nas sociedades divididas
em classes sociais, isto é, no qual as relações de poder estão instituídas, ela
é perpassada pelo poder. O que é poder? O poder é uma forma de relação social.
É uma relação social específica, no qual se defrontam o dominante e o dominado.
O dominante exerce o controle sobre o dominado, utilizando os mais variados
recursos, tal como a força física, o dinheiro, etc. (Viana, 2003). Uma das
formas de se exercer o poder é através da cultura e da linguagem. As formas de exercício do poder da linguagem
são as mais variadas, desde o uso do adjetivo pejorativo até chegar ao reino do
formalismo e do domínio do discurso técnico, temos o uso de recursos
lingüísticos para reproduzir a dominação. Assim, linguagem, discurso e poder
estão interligados organicamente na sociedade moderna.
O conjunto de ensaios aqui reunidos tematizam a questão da linguagem e do
discurso em sua relação com o poder, em diversas instâncias, principalmente na
esfera educacional e das relações internacionais. O desenvolvimento da
lingüística, da análise do discurso, da sociologia da linguagem, entre outras
formas de abordagem da linguagem e do discurso, permite pensarmos uma visão
sintética e global do fenômeno lingüístico e textual.
A consciência que temos do mundo é mediada pela linguagem, que facilita
ou cria obstáculos para o seu desenvolvimento. A linguagem não é apenas um
produto técnico, neutro, acima das relações sociais. A linguagem é social.
Sendo um fenômeno social, não se pode desvincular linguagem e sociedade. Neste
sentido, os presentes ensaios reunidos aqui discutem justamente a relação
linguagem e sociedade, percebendo que esta última é permeada e caracterizada
por relações de poder. Isto se reproduz em todas as esferas da vida social, nas
escolas, no processo educacional em geral, nas relações internacionais, na
política institucional, nas instituições sociais, na produção de bens
materiais, inclusive na linguagem.
A relação entre consciência e linguagem serve para justificar e
fundamentar os ensaios aqui contidos e sua importância social e teórica.
Compreendemos a linguagem de forma semelhante a Sapir, tal como colocamos no
primeiro ensaio deste livro. Ela é um meio de comunicação especificamente
humano visando o processo de comunicar idéias, sentimentos, etc., através de
símbolos produzidos por eles. Sendo assim, a linguagem é um meio de comunicação
entre os seres humanos, mas um meio específico, que se realiza por meios de
símbolos utilizados pela escrita e pela fala, sendo uma relação social, uma
forma de comunicação entre os seres humanos[1].
A consciência, por sua vez, é nada mais do que o ser consciente (Marx e
Engels, 2002). Não existe consciência separada dos seres humanos. A consciência
não pode ser destacada dos indivíduos que a constituem. Estes indivíduos são
seres conscientes. Mas mais do que isso, são seres sociais, históricos,
concretos, de carne e osso. Desta forma, a consciência dos indivíduos não pode
ser destacada deles e eles não podem ser destacados de seu processo histórico
de vida, de suas relações sociais, de sua época. A consciência não é um
capítulo a parte da vida dos indivíduos, pelo contrário, é parte de sua
totalidade, e, portanto, não é algo meramente racional, mas também valorativa,
sentimental, e embora tenha certa especificidade e autonomia, é uma forma
superior de sensibilidade, que coordena todos os processos psíquicos do
indivíduo. O indivíduo é um ser social e, por conseguinte, sua consciência é
social, embora sua consciência pessoal seja a manifestação singular da
consciência social, no qual se mescla aspectos singulares oriundo da vida
individual (ou seja, o tipo de relação social específica do indivíduo em sua
história de vida) e social.
O indivíduo quando nasce encontra um mundo de relações sociais constituído
e no qual ele intervém muito pouco. O idioma que terá que usar já está
predeterminado. Ele se defrontará com a hegemonia de determinados valores,
idéias, sentimentos. Desta forma, o indivíduo nasce num mundo pronto e do qual
ele não ajudou a construir. Ele deve viver neste mundo e o faz a partir da
consciência que vai desenvolvendo. Esta consciência individual, que também é
social, está ligada ao modo de vida, as experiências do indivíduo, e a cultura
estabelecida e que lhe é imposta.
A linguagem é constituída com o objetivo de nomear o existente. Ela acaba
tendo, naturalmente, uma formação semelhante ao da sociedade existente, em
determinada época e com determinadas relações sociais. Desta forma, a linguagem
interfere na consciência e na constituição da mentalidade dos indivíduos. A
linguagem é o meio pelo qual os indivíduos se comunicam e manifestam sua
consciência e, por isso, acaba sendo uma das múltiplas determinações da
consciência. Este processo, porém, não significa nenhum determinismo
lingüístico. Em primeiro lugar, a base da linguagem é a sociedade, tal como é a
da consciência. A consciência, por sua vez, também é social. Ambas estão
intimamente ligadas à sociedade que as engendraram. Por isso, elas tendem a
reproduzir a sociedade existente. Isto também é um interesse daqueles que detém
o poder. A linguagem tende a se tornar coisificada e o mesmo ocorre com a
consciência. Assim, a percepção do novo e da possibilidade de mudança é
dificultada.
Uma consciência antecipadora seria uma forma de romper com a consciência
coisificada, mas existe não só o obstáculo das idéias dominantes e das relações
sociais que reforçam as concepções de imutabilidade do mundo, como também a
linguagem coisificada. A superação da linguagem coisificada caminha junto com a
superação da consciência coisificada, são duas faces de um mesmo processo.
Isto é perceptível nas mais variadas formas de manifestação da
consciência. Isto ocorre de forma especialmente acentuada no pensamento
complexo. A linguagem científica e filosófica assume um caráter fetichista e
isto dificulta a percepção das relações sociais e sua mutabilidade, realizando
um processo de naturalização e universalização de produtos sociais e históricos
provisórios. O pensamento que rompe com este fetichismo é, posteriormente,
enclausurado na linguagem e consciência fetichista. O pensamento de Marx é o
maior exemplo deste processo. Os conceitos que ele elaborou, bem como sua
própria visão da linguagem conceitual, são históricos, transitórios, tal como a
realidade que eles expressam. Porém, seus conceitos foram deformados,
reificados, de acordo com os interesses de determinados grupos e classes
sociais que realizara a deformação de seu pensamento. Os intitulados
“marxistas” ressignificaram os conceitos de Marx, tornando-os reificados. Marx
é apenas um exemplo mais visível de todo este processo de lutas sociais pelo
significado das palavras e conceitos, tal como já colocava Bakhtin (1990).
Assim, a ressignificação dos conceitos e palavras, a recuperação de
significados perdidos ou deformados, o processo de desenvolvimento de novos
conceitos, são necessários e fazem parte das lutas sociais contemporâneas por
um mundo radicalmente diferente. Neste sentido, é preciso reconhecer a
importância da linguagem neste processo social mais amplo que é a luta pela
transformação social.
É por isso que apresentamos uma modesta contribuição para este debate que
precisa ser desenvolvido e ampliado na sociedade moderna. Os ensaios aqui
reunidos são voltados para discutir aspectos da relação entre poder e discurso/linguagem
na sociedade moderna.
O ensaio Discurso e Poder visa
trabalhar uma dimensão mais restrita da linguagem que é o discurso e sua
relação com o poder. É uma discussão que contribui com a percepção do processo
de produção do discurso, inclusive do científico, e observar que sua pretensa
inocência não existe. O texto apresenta, além de uma definição do termo
discurso, sugestões teórico-metodológicas para se trabalhar com o discurso que
podem ser úteis na realização de análises do discurso.
O ensaio Educação, Linguagem e
Preconceito Lingüístico visa discutir a imposição de uma língua-padrão,
superior, dominante como norma absoluta e como equivalente ao “certo”. A língua
portuguesa e a gramática correspondente é um dos idiomas considerado entre os
mais difíceis. Sua rigidez e detalhismo é algo bastante problemático, bem como
a busca da regularização estatal e escolar e as formas de repressão das
manifestações diferenciadas e pensar a “língua culta” como modelo único, serve
para reproduzir as relações sociais fundadas na dominação e desigualdade.
O ensaio Linguagem, Poder e
Relações Internacionais objetiva analisar a questão de um ponto de vista
mais amplo, que é o da questão dos idiomas na dinâmica internacional. As
relações internacionais geram idiomas dominantes e estes acabam sendo impostos
à população, principalmente dos países colonizados, subordinados. Este processo
cria dificuldades e reproduz relações internacionais fundadas em exploração e
dominação, e, no interior de cada país, as relações internas de exploração e
dominação. Neste contexto, pensar uma língua universal, internacional e
secundária, tal como o esperanto, seria uma solução que, sem dúvida, encontrará
a oposição dos países dominantes.
Em síntese, são três ensaios que visam contribuir com a reflexão sobre a
linguagem e a sociedade, demonstrando as relações de poder que estão ocultas e
não são facilmente visíveis. Estes textos abrem espaço para novos estudos,
desenvolvendo um processo de trabalhar o discurso e a linguagem numa
perspectiva que permita abordar criticamente seu processo histórico social de
constituição, bem como seu papel para a conservação ou transformação social.
[1]
Isto significa que discordamos da extrapolação do uso da linguagem, a não ser
metaforicamente, para outras atividades e fenômenos, pois aí se trata não de
linguagem outras formas de comunicação.
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