REFLEXÕES SOBRE O MAOÍSMO
Nildo Viana
Mao Tse-Tung foi o grande líder da Revolução Chinesa,
tirando o país do atraso e com resquícios do modo de produção feudal[1], e,
ao mesmo tempo, realizando o processo de construção do socialismo na China,
além de dar continuidade ao marxismo-leninismo e aprofundando os ensinamentos
de Marx, Engels, Lênin e Stálin. Essa é, possivelmente, a versão que alguns
podem ler em textos de apresentação de Mao por algum maoísta-stalinista. Aqui
se junta apologia, dogmatismo e inverdades. O maoísmo, infelizmente, não morreu
em 1976 com Mao Tse-Tung. O “grande timoneiro” viu seu navio ficar desgovernado
e depois suas próprias ideias receberam as mais fantásticas interpretações
pelos não-leitores ou mau-leitores, o que em parte é responsabilidade dele por
suas posições diante da teoria. Nesse sentido, torna-se importante discutir o
maoísmo, desde Mao até hoje, no sentido de explicitar a razão pela qual ele
ainda sobrevive apesar de seus limites, fraquezas e distanciamento da realidade
concreta.
O que é o Maoísmo?
Para compreender o maoísmo é fundamental conhecer a história
da Revolução Chinesa, além dos escritos de Mao Tse-Tung e sua biografia, bem
como de seus “seguidores”. O maoísmo pode ser considerado uma tendência do
bolchevismo (também conhecido como leninismo, a forma mais consolidada de
pseudomarxismo). No entanto, é necessário reconhecer que, se o maoísmo mantém
as teses básicas que caracterizam o leninismo, ele também possui elementos
distintos em alguns aspectos e promoveu alguns acréscimos à sua ideologia
matriz.
O maoísmo pode ser definido por seu conteúdo ideológico e
por seu caráter de classe, que são complementares. O caráter de classe do
maoísmo pode ser identificado a partir dos problemas e respostas que oferece no
contexto de sua constituição e desenvolvimento. É esse o procedimento que Marx (1986)
aponta para se identificar a relação entre classe social e seus representantes
intelectuais. Mas isto precisa ser complementado com a análise da formação da
ideologia maoísta e suas ações concretas no processo histórico da revolução chinesa,
bem como pela origem e/ou pertencimento de classe dos ideólogos que produziram
tal ideologia.
O primeiro ponto a ser esclarecido é, portanto, qual é a
problemática e a solução apresentada pelo maoísmo. Mao Tse-Tung sempre quis
contribuir com a Revolução Chinesa e sempre buscou pensar a transformação da
China em uma sociedade moderna e “socialista”. A questão fundamental que se
colocava para Mao Tse-Tung é a passagem de uma sociedade semicolonial para o
socialismo. Nesse sentido, Mao seguia totalmente a linha leninista: o partido
deve ser o guia das massas no processo revolucionário. O comunismo é produto da
ação do partido que garante a revolução e a implantação do socialismo. Assim, a
matriz leninista é conservada, embora tenha alguns pontos secundários posteriormente
alterados.
Segundo Mao, “um partido revolucionário é o guia das massas
e nunca uma revolução pode triunfar se o partido revolucionário não a conduz
pelo caminho correto” (MAO, 1971, p. 186). Esta e diversas outras passagens de
Mao repete a ideologia leninista da vanguarda, segundo a qual o partido é a
vanguarda dirigente do proletariado. Ele também reproduz a ideologia do
“centralismo democrático”, para a qual os dirigentes do partido são sua
vanguarda e por isso devem comandar os demais. Ele explicita isso, por exemplo,
numa passagem de polêmica interna dentro do Partido Comunista Chinês (PCC):
Certos
camaradas veem apenas os interesses da parte e não os do todo; indevidamente,
acentuam a importância do setor de trabalho de que estão encarregados e buscam
uma subordinação dos interesses do todo aos interesses da parte. Não
compreendem o sistema de centralismo democrático do Partido; não veem que o
Partido necessita de democracia mas necessita ainda mais de centralismo.
Esquecem que, no centralismo democrático, a minoria deve submeter-se à maioria,
os escalões inferiores aos escalões superiores, a parte ao todo, o conjunto dos
membros do Partido ao Comitê Central (MAO, 1979a, p. 54).
A defesa do uso da violência é muito comum na concepção
maoísta. Isto é coerente, como colocaremos adiante, com a inspiração militar do
maoísmo. Assim, o objetivo é o desenvolvimento das forças produtivas e para
isso o uso da violência e derrota do inimigo é fundamental: “O propósito de
nossa revolução é o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. Para
este fim devemos primeiro derrotar o inimigo. A seguir, devemos reprimir sua
resistência” (MAO, 1982, p. 39). O objetivo, colocado inicialmente por Mao,
seria a revolução democrático-burguesa para posteriormente passar para a
revolução socialista (MAO, 2011a). No decorrer do processo mais avançado da
luta, Mao já passa a pensar em revolução socialista ao invés de
“democrático-burguesa”. A concepção de socialismo de Mao não difere
essencialmente da concepção leninista e stalinista, pois trabalha com os mesmos
elementos ideológicos: industrialização e desenvolvimento das forças
produtivas, estado proletário, transição ao comunismo, etc. Há divergência em
aspectos secundários, tal como colocaremos adiante.
Em síntese, a concepção maoísta aponta para uma burocracia
(partidária) que guia as massas e efetiva uma “revolução” e se aquartela no
aparato estatal e efetiva a “transição” ao comunismo[2].
Ou seja, é uma reprodução, em nível geral, da concepção leninista, ou seja,
burocrática. Os problemas colocados (quem deve dirigir a revolução e como deve
encaminhá-la) e a resposta (a burocracia partidária e estatal) apontam para o
caráter de classe do maoísmo: uma ideologia da classe burocrática. O seu
conteúdo ideológico é bem visível, uma produção ideológica cujo elemento
essencial é o burocratismo.
Essa conclusão é reforçada por diversos outros aspectos do
pensamento maoísta. Porém, o pertencimento de classe de Mao acaba reforçando
essa conclusão. Mao surge de uma família rural de pequenos latifundiários[3],
mas tão logo adentra na juventude já passa a pertencer à burocracia partidária
e militar. A sua classe de pertencimento, quando começa a desenvolver o
maoísmo, é, portanto, a burocracia. Com a vitória da Revolução Chinesa em 1949,
e a fusão entre burocracia partidária e estatal, bem como entre burguesia e
burocracia, ele passa a pertencer à burguesia de Estado ou “burguesia
burocrática”[4].
As ações concretas de Mao durante o processo revolucionário chinês apontam para
a mesma conclusão. Ele sempre foi dirigente (partido, militar, estado,
oposição, etc.) e sempre defendeu e usou práticas burocráticas, até mesmo no
período da chamada Revolução Cultural, como mostraremos adiante, ao contrário
das mistificações a respeito. A sua prática militar e estudo sobre guerra e
estratégia sempre foram fundamentais em suas ações e por isso sua oposição na
China acabou tendo mais efeito do que a de Trotsky na Rússia. Mao era um
estrategista político e militar e usou um conjunto de estratégias para vencer o
exército nacionalista e o Kuomitang (o partido nacionalista chinês que combatia
o imperialismo e se aliou em alguns momentos aos comunistas, embora sempre
entrando em confronto com este), bem como nas disputas políticas internas do
partido e do estado chinês, sempre visando à direção e o controle.
A formação da ideologia maoísta é outro elemento que
confirma o seu caráter de ideologia da burocracia. A principal fonte
inspiradora de Mao era Lênin, o grande ideólogo da burocracia e Stálin, seu
continuador e empobrecedor. Ele constantemente citava, como argumento de
autoridade, os “quatro clássicos” do “marxismo”: Marx, Engels, Lênin e Stálin[5]. A
sua compreensão do pensamento de Marx era diminuta, bem como sua leitura[6]. É
correto afirmar que “Mao Tsé-Tung chega ao marxismo através de Lênin” (KERKHOF,
1979, p. 25) ou, mais ainda, através dos manuais soviéticos e Stálin. Outra
fonte do pensamento maoísta, embora com menos peso, é o confucionismo (MATZKEN,
1979), apesar de algumas críticas endereçadas a ele. Do confucionismo Mao vai
extrair uma valoração do indivíduo e das “relações humanas” (MATZKEN, 1979),
que será a base de sua diferenciação em relação ao leninismo-stalinista[7].
Uma outra fonte de inspiração de Mao é os escritos sobre guerra e processos
históricos concretos de combate militar, especialmente o caso chinês, mas
também o russo. Isso terá um efeito sobre suas ações concretas e o fato de ter
se tornado um estrategista político e militar.
A especificidade da sociedade chinesa também tem um efeito
sobre a concepção maoísta. Para muitos, o maoísmo é uma concepção estritamente
chinesa, o que explicaria sua “chinização” (ou “sinização”) do “marxismo” (na
verdade, do leninismo)[8]. O
elemento camponês é sempre destacado nesse processo, não só pelo fato de que a
China era composta predominantemente por camponeses, mas também pela
importância que Mao atribuía ao campesinato. Segundo o próprio Mao, cerca de
80% da população chinesa, em 1940, era camponesa
(MAO, 2011c). Esse é o motivo principal para a importância atribuída ao
campesinato por Mao e sua divergência com Stálin a este respeito, marcando uma
das especificidades do maoísmo.
A Especificidade do Maoísmo
A partir de 1927 a política do PCC começa a mudar e o grande
artífice dessa mudança é Mao. As organizações urbanas do PCC são dizimadas após
a derrota de 1927 e o afastamento de Chen Tu-Siu leva Mao a ser o dirigente de
fato do partido, o que fez reformular a estratégia do mesmo, já que ele “sempre
manifestou velada oposição ao descaso que a direção partidária tinha para com
os camponeses” (SCHILLING, 1984, p. 33). Isso não significou que as tendências
pró-leninistas e fundadas na luta do proletariado tenham sido abolidas, apenas
começaram a perder espaço (REIS FILHO, 1981). Nesse momento inicia-se o
processo de valoração do campesinato e as estratégias maoístas ganham terreno
paulatinamente. As ideias de guerra de guerrilhas, guerra prolongada, etc. vão
ganhando espaço e Mao se destaca como um grande estrategista político-militar.
As especificidades do maoísmo são derivadas desse aspecto em particular.
A guerra serve como modelo para Mao Tse-Tung pensar a luta
de classes. É a estratégia militar que oferece as bases da estratégia e ação
política maoísta. Em seus diversos textos ele apresenta não só a importância da
guerra e da estratégia, mas também afirma a proximidade entre guerra e luta de
classes e alerta para a especificidade do caso chinês. Segundo Mao:
As leis da guerra constituem um problema que deve ser estudado e resolvido por todos os que dirigem uma guerra.
As leis da guerra revolucionária constituem um problema que deve ser estudado e resolvido por todos os que dirigem uma guerra revolucionária.
As leis da guerra revolucionária na China constituem um problema que deve ser estudado e resolvido por todos os que dirigem a guerra revolucionária na China.
Estamos atualmente empenhados em uma guerra; é uma guerra revolucionária;
e nossa guerra revolucionária está sendo travada no território semifeudal e semicolonial
da China. Devemos, pois, não só estudar as leis da guerra em geral, mas também
as leis de uma guerra revolucionária especial, e, acima de tudo, as leis da guerra
revolucionária na China (MAO, 1961a, p. 168-169).
Aqui se nota o doutrinarismo de Mao Tse-Tung[9].
Além do apelo às “leis” para justificar e legitimar suas práticas, temos também
o normativismo presente nas afirmações (“deve ser estudado”, repetido nas três
primeiras frases, “devemos estudar” na quarta). Além disso, ele coloca a
existência de leis específicas da guerra e da guerra revolucionária, incluindo
a da China. Isso serve para pensar a guerra na China de forma independente da
Rússia, que era o modelo seguindo pelo PCC. Mao buscava com esse discurso,
defender a especificidade do caso chinês, e, desta forma, se livrar do modelo
russo, que apostava todas as suas fichas no proletariado. Mao elaborou um
conjunto de reflexões sobre a guerra e estratégia, se destacando suas análises,
que não poderemos desenvolver por questão de espaço, de guerra prolongada,
guerra de guerrilhas, guerra de posições, guerra de movimento, etc.
A compreensão desse elemento fundamental do pensamento de
Mao é essencial para romper com a concepção equivocada de que o maoísmo é uma
tendência ou ideologia camponesa (ou “pequeno burguesa”)[10],
devido o papel estratégico atribuído ao campesinato. Em especialmente o seu
complemento, que é destacar a necessidade de “comando” com visão do todo e suas
partes, no sentido de elaborar a melhor estratégia e aplicá-la devidamente. O
comando só pode ser, por sua vez, o Partido Comunista, “vanguarda” do
proletariado. Isso é uma lei geral, mas no caso específico da China, a coisa é
um pouco diferente, já que a maioria da população é camponesa. Nesse caso:
Somente
o proletariado e o Partido Comunista podem liderar o campesinato, a pequena burguesia
urbana e a burguesia, superar a estreiteza de visão do campesinato e da pequena
burguesia, a tendência das massas desempregadas à destruição e a vacilação e inconsequência da burguesia
(desde que o Partido Comunista não cometa erros em sua política) e, assim,
levar a revolução e a guerra ao caminho da vitória (MAO, 1961a, p. 182).
Mao defende a vanguarda do partido, como leninista, como o
comando dirigente da revolução e reconhece o proletariado como “sujeito
revolucionário”. No entanto, no caso chinês, devido ao peso do campesinato (e
outros elementos que ele acrescenta, como sua disposição para a guerra, o que
ocorria efetivamente na China), era fundamental sua participação. A estratégia
maoísta apontava para usar como apoio fundamental entre “o povo” (expressão
muito utilizada por Mao e pelos maoístas, o que tem o papel de confundir as
classes e sua concreticidade com um conjunto indiferenciado que de forma
oportunista é composto por aqueles que estão do lado do PCC e suas estratégias,
até a burguesia nacional quando combate o imperialismo)[11],
o campesinato. Não se trata, pois, de uma ideologia camponesa e nem de
substituir o proletariado pelo campesinato e sim reconhecer o papel-chave deste
último na revolução chinesa, como um aliado dirigido pelo partido[12].
É nesse contexto, com uma população composta em sua maioria
por camponeses, que a estratégia maoísta do “campo cercar a cidade” é
apresentada e significando, de acordo com seus princípios, não a conquista
imediata da cidade e sim realizar ataques para enfraquecer o inimigo. Mao
Tse-Tung defende, na guerra chinesa contra o Japão e o imperialismo, a estratégia
de atuar numa frente ampla, realizando avanços e retiradas rápidas, utilizando
a guerra de movimento em grande escala e colocando a guerra de posições em
segundo plano, buscando preservar as defesas e postos conquistados. O “eixo da
estratégia”, no entanto, é a guerra de movimento (MAO, 2011d). Segundo Mao, as
“massas camponesas” possuíam “forças potenciais enormes” e poderiam vencer as
tropas japonesas se estivessem corretamente organizadas e dirigidas.
Até aqui entendemos uma das características específicas do
maoísmo, uma ideologia da burocracia que usa o campesinato como elemento
principal na guerra (nacional e civil, como veremos a seguir). Esse papel
atribuído ao campesinato se deve às condições particulares da sociedade
chinesa. Ela está intimamente ligada à outra especificidade do maoísmo, que é o
voluntarismo. Isso gera um diferencial em relação ao leninismo original (de
Lênin e mais ainda do seu derivado, o stalinismo). Esse diferencial, no
entanto, é de grau e não de conteúdo. O voluntarismo de leninismo original é
moderado diante do maoísta. E de onde Mao retira o seu voluntarismo? Em parte
de Lênin e dos processos da revolução russa e outros acontecimentos históricos,
em parte do confucionismo, como colocamos anteriormente. Mas o elemento fundamental
que gera o seu voluntarismo exagerado é a guerra. A guerra, ao contrário da
“matéria” ou da “natureza”, é o modelo exemplar e máximo de Mao. É por isso que
ele critica o que denomina “teoria da onipotência das armas”. Para Mao, essa é
uma concepção mecânica da guerra, bem como subjetivista e unilateral. Segundo
Mao:
A
nossa maneira de ver é contrária a essa; nós consideramos as armas e também os
homens. As armas são um fator importante na guerra, mas não são o fator
decisivo. É o homem, e não as coisas, quem constitui o fator decisivo. A
correlação de forças não é apenas uma correlação de poder militar e económico,
ela é também uma correlação de recursos humanos e força moral. O poder militar
e econômico está necessariamente dominado pelo homem (MAO, 2011d, p. 224).
Daí Mao ressaltar o papel dinâmico do homem na guerra. A
guerra prolongada e a vitória final só são possíveis através da ação do homem.
A eficácia dessa ação depende de pessoas que, partindo dos fatos objetivos,
formulem as concepções e planos (diretivas, linhas políticas, estratégias,
táticas, etc.) que, junto com a prática, transformam o subjetivo em objetivo,
sendo esse o papel dinâmico dos seres humanos (MAO, 2011d). É esse papel
dinâmico consciente do homem que o distingue dos outros seres (MAO, 2011d). As
condições objetivas (condições militares, políticas, econômicas, geográficas,
apoio internacional, das duas partes em guerra) não decidem sozinha a vitória
ou derrota. Elas apresentam a possibilidade de vitória ou derrota, mas a
decisão efetiva vem dos esforços subjetivos, a direção e realização da guerra,
revelando esse papel dinâmico. Logo, Mao enfatiza a ação humana na decisão da
guerra e para isso coloca a força da consciência, que significa conhecer as
condições objetivas (ou fatos) e ter planos para agir, especialmente estratégia
e tática. Segundo suas próprias palavras, “como leis de condução da guerra, a
estratégia e a tática constituem a arte de nadar no oceano da guerra” (MAO, 2011d).
Esse raciocínio diante da questão da guerra se reproduz
diante da política, embora com algumas diferenças. Mao repete o dito popular
segundo o qual a guerra é continuação da política. A guerra é, ela mesma,
política e ato político. Por isso, “a guerra não deve, nem por um só momento,
ser separada da política” (MAO, 2011d). A citação de Lênin e da famosa frase de
Carl von Clausewitz (“a guerra é uma continuação da política por outros meios”)
vem para justificar a afirmação seguinte de que a guerra tem características
específicas próprias, pois “a política é guerra sem derramamento de sangue e a
guerra, política sangrenta” (MAO, 2011d).
Nesse sentido, a direção assume um papel fundamental, afinal
é ela que analisa as condições objetivas e elabora as estratégias, etc. Mao
defende a tese de que uma direção subjetiva incorreta pode levar ao fracasso,
mesmo havendo superioridade e iniciativa, pois assim podem ser transformadas em
inferioridade e passividade. Uma direção subjetiva correta, ao contrário, pode
produzir o inverso, possibilitando exércitos pequenos e fracos vencerem
exércitos grandes e poderosos.
Esses aspectos revelam a especificidade do maoísmo. Sem
dúvida, alguns outros derivados também aparecem, tal como na polêmica com
Stálin a respeito das relações de produção e forças produtivas (MAO, 1982),
pois o papel do homem é ressaltado, muito mais do que as forças produtivas.
Nesse sentido, os principais elementos específicos do maoísmo, em relação à sua
matriz leninista, são os seguintes: a) voluntarismo exacerbado; b)
estrategismo; c) doutrinarismo e dogmatismo; e) papel do campesinato no
processo revolucionário; f) interpretação específica da dialética como “lei da
contradição”[13].
Ou seja, ao término observamos que o que muitos julgam o fundamental ou mais
original no maoísmo é apenas um derivado e ainda dentro de um determinado
contexto, que é o da sociedade chinesa e os demais sendo mais importantes,
anteriores e determinantes dessa posição diante do campesinato.
Do Maoísmo Original às Tendências Maoístas
O desenvolvimento histórico do maoísmo precisa ser abordado,
mesmo que brevemente. O maoísmo pode ser dividido em sua formação original,
cujo expoente máximo e principal doutrinador é Mao Tse-Tung, e as tendências
maoístas que surgem a partir dessa versão inicial. O maoísmo original, no
entanto, atravessou duas fases, o que é importante para entender as tendências
maoístas. O maoísmo original emerge do leninismo, sem grandes distinções, até
que Mao começa a desenvolver suas próprias concepções de acordo com suas
experiências de luta armada na China. A partir do modelo exemplar da guerra,
Mao cria uma sinonímia entre guerra/política; direção militar/direção
partidária; partido/exército; povo/base, etc. Diante da situação chinesa, Mao
elabora uma concepção na qual o campesinato tem um papel fundamental e coloca
no partido o papel-chave de dirigir a revolução popular, inicialmente
democrático-burguesa para instaurar a “nova democracia”[14].
É possível observar algumas mudanças no maoísmo, que
acompanham a história da China desse período, mas que são “estratégicas”, seguindo
as diretrizes maoístas de “defesa estratégica”, alianças e rompimentos, etc. No
entanto, a doutrina não se altera, apenas é aplicada de forma diferente em contextos
diferentes, como está em seus próprios pressupostos. Essa concepção começa a
ser formada em 1927 e vai se desenvolvendo e consolidando até os anos 1940. Ela
se mantém e se desenvolve a partir da tomada do poder estatal em 1949, quando
começa a implantação do capitalismo estatal na China. No início, o modelo russo
é seguido, mas logo começa a ver divergências e problemas. A denúncia dos
crimes de Stálin, os conflitos internos (campesinato e burguesia burocrática,
por exemplo, bem como as lutas interburocráticas), vão desembocar no conflito
sino-soviético e no “Grande Salto Adiante”, buscando redirecionar a política
chinesa, gerando uma forma específica de capitalismo estatal.
A partir desse momento, Mao começa a escrever alguns textos
de crítica da economia soviética (MAO, 1982), no contexto de tentativa de
redirecionamento da sociedade chinesa abandonando a proximidade com o modelo
russo (e a “acumulação socialista primitiva às expensas do campesinato”) e do
conflito sino-soviético. O foco principal da crítica de Mao é a questão das
relações de produção, pois a ênfase dos russos no desenvolvimento das forças
produtivas era refutada por considerar a primeira o determinante. Da mesma
forma, Mao acusa Stálin (MAO, 1982) de não abordar a superestrutura em seu
livro sobre o socialismo na URSS (STÁLIN, 1985). Alguns atribuem a Mao uma
retomada do pensamento de Marx para realizar tal processo de crítica do
economicismo (NAVES, 2005), o que é um equívoco, pois as poucas referências
dele ao pensador alemão e o pouco que desenvolve em termos analíticos
(demonstrando estar muito distante do materialismo histórico-dialético) revelam
isso. No entanto, é mais uma manifestação do seu voluntarismo, pois, segundo
sua abordagem voluntarista, as relações de produção, são ações humanas, e as
forças produtivas, são condições objetivas, mas que não definem o futuro da
economia, assim como as armas não definem o resultado da guerra. Nesse
contexto, as referências elogiosas a Stálin são substituídas por críticas:
Em
nenhuma parte do livro de Stálin se diz nada acerca da superestrutura. O livro
não se ocupa de gente; considera as coisas, não as pessoas. A classe do sistema
de abastecimento de bens de consumo ajuda ou não a estimular o desenvolvimento
econômico? Stálin devia ter se ocupado disso, pelo menos. É preferível ter ou
não uma produção de bens? Todos devem estudar isso. O ponto de vista expresso
por Stálin em sua última carta está quase que totalmente errado. O erro básico
é a desconfiança em relação aos camponeses (MAO, 1982, p. 129).
Essa nova fase do maoísmo original aponta para uma concepção
crítica da União Soviética e aprofundamento de suas concepções sobre economia e
“transição”. Afinal, Mao estava na direção de um país que estava em “transição
para o socialismo” e suas preocupações se voltaram para o perigo da
“restauração capitalista” e outros relacionados[15],
bem como em relação à política internacional (na qual a China vai se envolver
em conflitos externos, além do rompimento com a URSS). Assim, além do
trotskismo, emerge uma nova dissidência no interior do leninismo, o maoísmo.
Esse processo, no entanto, culmina com a chamada “revolução
cultural”. A revolução cultural (muito mais uma “reforma moral”) foi resultado
de um processo de crescente descontentamento das classes trabalhadoras na China
e das contradições da burguesia burocrática a nível internacional (além do
conflito sino-soviético, as mudanças na política russa e chinesa, bem como a
questão da Hungria, Tchecoslováquia, etc.) e nacional, com o ziguezague dos
capitalistas estatais chineses. Isso também mantinha relação com os problemas
industriais e agrícolas dos anos anteriores (BERGÈRE, 1980). Diante disso,
setores da burguesia burocrática chinesa entram em confronto para decidir os
rumos e resolver os conflitos. Mao, como estrategista político-militar, lança
apelo para as “massas”, para reforçar suas posições, que no interior da classe
dominante não era tão sólida e hegemônica.
A política das “cem flores”[16] e
o “movimento de educação socialista” era expressão desse duplo processo de
descontentamento crescente nas classes trabalhadoras e luta pelo poder mais
aguda no interior da classe dominante. Mao, no entanto, para manter ou
recuperar o poder, sempre lançava mão das classes trabalhadoras, pois esta era
sua estratégia político-militar desde a guerra nacional até a guerra civil e a
Revolução Chinesa. Logo, ao contrário do que historiadores e outros dizem,
acreditando no discurso de Mao, a sua preocupação fundamental não era com a possibilidade
da “recuperação do capitalismo” na China e nem com a “transição ao socialismo”
e sim as lutas interburocráticas e ascensão ou manutenção do poder, dependendo
da época. Tanto é verdade que todas as vezes que Mao lançava apelo aos
trabalhadores e estes, entre outros (juventude, intelectuais, etc.) agiam, começavam
a se agitar e ir além do mero apoio e agir fora dos limites impostos, ele
voltava atrás[17].
Foi assim com a política das “cem flores” e o mesmo com a “reforma moral”
posterior.
A chamada “revolução cultural” seguiu a mesma lógica. O
processo iniciou-se com lutas interburocráticas e logo Mao usa sua velha
estratégia de apelar para as classes trabalhadoras ao propor uma reforma moral[18]. É
nesse contexto que se estabelece uma nova luta interburocrática entre a
burguesia burocrática predominante e seus oponentes, entre os que detinham o
poder central e os que estavam em segundo plano na hierarquia burocrática, ou
seja, entre a burguesia burocrática superior e a inferior. Essa luta foi
traduzida ideologicamente como luta dos maoístas (na época, burocracia inferior)
contra os revisionistas (na época, burocracia superior), o que um autor
denominou, equivocadamente, como disputa entre a “elite funcional” e a “elite militante”
(AUDREY, 1976). A luta dos maoístas acaba gerando a Circular de 16 de Maio e
revela os seus objetivos: combater a burguesia burocrática superior através da reforma
moral realizada pelas “massas” em apoio aos maoístas, taxando-a de
“revisionista” e adepta da “via capitalista”, criar uma base de apoio popular
para a tendência maoísta e, por fim, impor a concepção e direção maoísta para a
população. Ou seja, no fundo, não havia nenhum questionamento real sobre as
relações de produção, sobre a burocracia (e sobre os próprios maoístas como
setor burocrático inferiorizado na hierarquia que passava, novamente, a ser um
setor superior)[19].
Os 16 pontos mostram a aparente contradição do maoísmo:
apelo para a participação popular e liberdade de crítica e exigência de seguir
a doutrina maoísta. No segundo ponto é colocado que as amplas massas (soldados,
intelectuais, operários, camponeses, jovens, quadros revolucionários) são a
força principal da Reforma moral e que, através de “grandes debates”, críticas,
etc., surgem novos caminhos. Da mesma forma, no ponto 06, coloca que “todos os
revolucionários devem saber refletir por sua própria conta e desenvolver o
espírito comunista de pensar com audácia, falar com audácia e atuar com
audácia”. No último ponto, temos a conclusão final de tamanha liberdade
proporcionada pela Reforma moral:
Na
grande revolução cultural proletária é indispensável manter no alto a grande
bandeira vermelha do pensamento de Mao Tse-Tung e por no posto de mando a
política proletária. O movimento para o estudo e aplicação criadores das obras
do presidente Mao deve ser impulsionado para frente, entre as amplas massas de
operários, camponeses, soldados, quadros e intelectuais, e deve-se tomar o
pensamento de Mao Tse-Tung como guia para a ação na revolução cultural. Nesta
grande Revolução cultural tão complexa, os comitês do Partido em todos os
níveis possuem a maior necessidade de estudar e aplicar conscientemente e
criativamente os escritos do presidente Mao. Em particular, devem estudar
repetidamente as obras do presidente Mao referentes à Revolução cultural e aos
métodos de direção do Partido, tais como Sobre
a Nova Democracia, Intervenções nos
Colóquios de Yenan sobre Literatura e Arte; Sobre o Tratamento Correto das Contradições no Seio do Povo; Discurso diante da Conferência Nacional do
Partido Comunista Chinês sobre o Trabalho de Propaganda; Acerca de alguns Problemas de Método de Direção
e Métodos de Trabalho dos Comitês do Partido. Os comitês do Partido em
todos os níveis devem seguir as diretrizes dadas pelo presidente Mao ao longo
dos anos, aplicar cabalmente a linha “das massas às massas” e ser alunos antes
de converter-se em mestres. Devem esforçar-se para evitar a unilateralidade e
estreiteza de visão. Devem promover a dialética materialista e opor-se à
metafísica e ao escolasticismo (Apud. DAUBIER, 1977, p. 413-414)[20].
A aparente contradição se desfaz. Liberdade de crítica,
iniciativa, etc., sim, mas desde que seja maoísta (...). Os 16 pontos se
revelam, no fundo, uma tentativa de reforçar e reafirmar a hegemonia maoísta
contra os “revisionistas”. As classes trabalhadoras são apenas bucha de canhão
e são livres desde que sejam maoístas. Se saírem da linha maoísta e forem para
a “linha capitalista” (revisionista), estarão erradas e fora da reforma moral.
No entanto, isso se torna ainda mais grave se a saída não for pela direita
(revisionistas) e sim pela esquerda (proletariado) e foi isso que aconteceu. As
lutas interburocráticas se tornam mais acirradas, bem como a ação das classes
trabalhadoras ficam mais intensas, até gerar setores mais radicais, que culmina
com a chamada Comuna de Xangai. Essa reproduzia a ideia da Comuna de Paris do
autogoverno dos produtores e tinha expressão política e intelectual em outros
setores da sociedade, bem como a tendência, que se iniciou, de expansão do
movimento grevista e acirramento da luta de classes[21].
A reação de Mao mostra a verdadeira essência do maoísmo, uma
ideologia da burocracia. Certamente, em seu pensamento, de acordo com sua
dialética, ele entendia que havia uma “contradição principal” no interior da
burguesia burocrática e uma “contradição secundária” entre esta e os
trabalhadores. A sua estratégia, como sempre, foi vencer os adversários na luta
interburocrática com o apoio das “massas”. Contudo, essas últimas saíram do seu
controle e, ainda segundo terminologia maoísta, a contradição secundária se
tornou principal e vice-versa, daí a posição burocrática de Mao.
Proclamada em 5 de fevereiro de 1967, a Comuna de Xangai
sobreviveu apenas até o dia 24 de fevereiro, quando foi substituída por um
Comitê Revolucionário. Não foi uma simples mudança de nome e sim um recuo político
e cultural de importância decisiva. Determinada por Mao e pela direção maoísta,
essa mudança revelou os limites da reforma moral e do próprio maoísmo. Na
justificativa que Mao apresentou para a sua atitude, além de razões secundárias
ou pouco relevantes, como alguns comentaristas perceberam, aparece a razão de
fundo: “se o sistema de Comunas se generalizasse”, pergunta Mao, “o que seria
do Partido?; não haveria mais um núcleo dirigente?; isso não acarretaria uma
mudança no sistema político?” (NAVES, 2005, p. 90)[22].
A preocupação de Mao não é realizar o comunismo, a autogestão
generalizada, que é vista por ele como ameaça, e sim lutar contra seus
adversários pelo poder, e se o proletariado ameaça o poder, se torna
adversário. Essa ação de Mao revelou, mais uma vez, o seu caráter. O seu apelo
às forças armadas para retomar a ordem foi o último ato de sua peça teatral
pseudocomunista. Em breve ele seria, novamente, alijado do poder. Esse foi o
triste fim de Mao Tse-Tung. Pouco depois sua vida termina, em 1976, novamente
na situação de membro da burocracia inferior.
Esse foi o fim do maoísmo original. A partir dele emergiram diversas
tendências. A primeira é o maoísmo no interior da China, na qual Mao ganhou
notoriedade, liderança e culto à autoridade. Os adversários de Mao, por
oportunismo, também se diziam “maoístas” e representantes dessa tendência, pois
o culto à autoridade e hegemonia cultural dele era evidente[23]. No
entanto, havia os seguidores verdadeiros de Mao, que revezavam, junto com ele,
como setor superior e inferior da burguesia burocrática chinesa. Porém, fora da
China emergiram outras tendências no interior do maoísmo.
O maoísmo, mesmo fora do mundo asfixiante da sociedade
chinesa, não conseguiu superar o doutrinarismo e dogmatismo. A base social do
maoísmo nos demais países é composta geralmente por burocratas (principalmente
pequenas burocracias partidárias), camponeses e estudantes, bem como alguns
poucos intelectuais. Um grupo de partidos maoístas se aglutina no Movimento
Revolucionário Internacionalista, tais como o Partido Comunista do Peru
(Sendero Luminoso), Partido Comunista do Nepal, Partido Comunista
Revolucionário (EUA), Partido Comunista da Índia, entre alguns outros. Alguns
pequenos grupos também existem em outros países.
O maoísmo não conseguiu inspirar muitos intelectuais e ficou
geralmente restrito a grupos e partidos, com pouco desenvolvimento das
concepções e processo de maior sistematização intelectual. Samir Amin e Charles
Bettelheim são alguns poucos exemplos. No entanto, Samir Amin se dedica mais ao
estudo do imperialismo e apesar de alguns aspectos interessantes, acaba
deixando a desejar e no âmbito da análise política (e concepção de socialismo)
apenas reproduz o maoísmo[24].
Charles Bettelheim, por sua vez, dedicou a maior parte de
suas pesquisas ao chamado “socialismo real” (1977; 1972; 1971; 1969; 1979; 1976),
que em suas primeiras obras ele denominava “países socialistas” e
posteriormente passa a defini-los como capitalismo de Estado. Em sua grande
obra, A Luta de Classes na URSS
(BETTELHEIM, 1983), apresenta de forma mais acabada sua concepção do
capitalismo estatal[25].
Porém, esta obra, apesar de rica em informações e bastante útil para analisar o
caso do capitalismo estatal russo, apresenta diversos defeitos, oriundos de sua
matriz ideológica, o maoísmo, a começar por enfatizar a questão camponesa como
a chave explicativa da “restauração capitalista”[26].
A ascensão do estruturalismo na França permitiu alguns
intelectuais franceses se aproximar do maoísmo e o Maio de 1968 e o ativismo
maoísta gerou alguns ideólogos e estudantes ligados ao mesmo. Porém, o maoísmo
não é exatamente uma “ideologia”, por não ser um sistema de pensamento, sendo
mais uma doutrina. Podemos considerar o maoísmo uma ideologia por sua base no
bolchevismo. Apesar de Lênin também não ser um grande pensador, sendo como Mao
um político burocrata muito mais do que um intelectual (que de forma risível é
“modelo” de “pensador” para muitos “militantes”), ele não só se baseou numa
deformação do pensamento de Marx, simplificando-o, mas realizando relações e
tentando criar um sistema de pensamento, como também conseguiu aglutinar outros
ideólogos que melhoraram e deram mais consistência e quantidade para suas
produções ideológicas. O leninismo, apesar de suas debilidades e falta de maior
sistematicidade, pode ser considerado uma ideologia, agora o maoísmo só pode
assim ser considerado se reunido com sua matriz ideológica.
É por isso que o maoísmo é pouco influente junto aos
intelectuais e no capitalismo mais desenvolvido, com raras exceções como a
acima citada. No capitalismo subordinado, não só por sua simplicidade e
doutrinarismo semirreligioso, ele consegue adeptos entre camponeses e
burocratas de pequenas organizações burocráticas, como parte da juventude com
vontade de ativismo, que o seu voluntarismo justifica, e débil formação
intelectual. É isso também que explica a existência de um maoísmo-stalinista,
que é aquele que desconhece as críticas de Mao a Stálin, pois, seja por falta
de leitura ou por interesses determinados, prefere as citações de Mao de seu
período pró-stalinista. Por outro lado, um maoísmo mais à esquerda também
emerge a partir do Maio de 1968, mas que não conseguiu superar a matriz
bolchevista e, por conseguinte, seu caráter burocrático, por mais que tenha
avançado em certas análises[27].
Considerações Finais
Os setores mais atraídos pelo maoísmo são geralmente os dos
países mais pobres, com uma população camponesa e tradição cultural persistente,
situação na qual se reúne pouco desenvolvimento das formas de pensamento
complexo (ciência, filosofia, marxismo, etc.) aliado com fortes necessidades
sociais, situação na qual o doutrinarismo e dogmatismo podem florescer as
flores de Mao. Outro setor é parte da juventude, atraída principalmente pelo
forte voluntarismo e doutrinarismo, devido ao ativismo que é típico de jovens
apressados querendo uma mudança imediata e pensando que uma vontade de bronze é
suficiente para isso, aliado com pouco estudo e reflexão, ou seja, falta de
formação teórica.
O maoísmo facilita esse processo por suas características
próprias, como o doutrinarismo, dogmatismo e voluntarismo. Ele se torna força
de atração para líderes e jovens que querem ardentemente tomar o poder ou ter
um “papel” na história[28] e
geralmente se recusam a pesquisas profundas. Como todo voluntarismo, ele não
nega apenas o “economicismo”, mas também a teoria[29]. O
voluntarismo e o doutrinarismo são dois elementos atrativos e que conseguem
aglutinar os setores mais débeis da militância política que encarna uma certa
insatisfação com a sociedade capitalista e desejo de ativismo.
Algumas obras de Mao são fundamentais para entender esse
papel do voluntarismo[30] e
pode ser exemplificado em Como Yukong
Removeu as Montanhas (MAO, 1979d, p. 432-433), que narra a fábula que
mostra como a vontade de um velho chinês que queria remover uma montanha que
impedia a sua passagem, usando picaretas com seus dois filhos tenta removê-la,
o que provoca riso de outro velho chinês, mas ele refuta o pessimismo deste e
continua com sua empreitada. A refutação é realizada com o argumento de que a
montanha não iria crescer e ele continuaria seu trabalho e quando morresse seus
filhos o faria e depois seus netos. Isso teria, segundo a fábula contada por
Mao, comovido os céus que mandou dois anjos remover a montanha.
O mesmo ocorre com outras doutrinas voluntaristas, que, tal
como o maoísmo, fundamentam-se na eterna autorreferência de sua doutrina ou
tradição política. Nesse sentido, o maoísmo é uma concepção de mundo totalmente
distinta do marxismo, possuindo um caráter semirreligioso. DUNAYEVSKAYA percebeu
isso:
A
alternativa que Mao oferece é o intento de reconciliar todas as contradições,
tanto na produção como no pensamento, mediante um fetiche, o “Livrinho
vermelho” – o “Pensamento de Mao Tse-Tung”. Mais ainda: este não inclui nenhuma das circunstâncias históricas
que determinaram a expressão de qualquer
um desses “pensamentos”. Em troca, ele é convertido em um princípio regulador,
aprendido como um catecismo, aplicável a todo e a qualquer coisa. O
inconveniente desse método não está só na natureza antidialética dos
catecismos. O problema é a contradição absoluta entre as três “revoluções”
especificadas – “ideologia e cultura”, “ciência” e “promover a produção”. O que
não tocou o “nervo” das massas, o que
motivou sua rebelião, e que suscitará sua permanente oposição, é a ideia de
“promover a produção”, algo que durante muito tempo padeceram na forma de
exploração de classe. Não lhes
importa, absolutamente, que, como antes, esta questão se encontre ao cuidado do
partido ou do exército, ou da “tríplice aliança” – o exército, o Partido
Comunista e os “comitês revolucionários”, sempre encabeçados por Mao, aliados
ou divididos, de acordo com a sorte dos herdeiros designados (DUNAYEVSKAYA,
1989, p.188).
Assim, Mao, transformado em “deidade fetichizada”
(DUNAYEVSKAYA, 1989), é apresentado como a fonte do comunismo e da prática
comunista. De onde surgem as ideias maoístas? O que comprova seu caráter tão
importante e irrefutável? Mao disse, está dito? A gênese das ideias maoístas
remete à sociedade chinesa de sua época e ao indivíduo Mao inserido na mesma. A
sociedade chinesa era predominantemente camponesa e, por isso, Mao percebeu sua
importância política não para uma revolução proletária, que nunca ocorreu na
China, e sim para uma revolução burguesa sem burguesia, tal como ocorreu na
Rússia, outro país predominantemente camponês. O campesinato foi usado para
alavancar a revolução burguesa num país em transição para o capitalismo e que
convivia com os restos do modo de produção despótico. O maoísmo é, portanto,
produto dessa sociedade. E do indivíduo Mao, que expressou isso de uma forma
particular, de acordo com seu voluntarismo e estrategismo, no sentido de
garantir a vitória do Exército Vermelho e do Partido Comunista, os agentes
concretos da instauração do capitalismo estatal na China.
E Mao desenvolveu tais ideias no seu processo de formação e
experiência, no exército e partido, pensando como um burocrata. Um burocrata
num país agrário que precisava de modernização e sonhava com um “socialismo”
que nem sequer compreendia o significado. Mao não leu quase nada de Marx, muito
menos sob forma rigorosa, e, portanto, não tinha grande domínio do materialismo
histórico-dialético, da teoria do capitalismo, da teoria da revolução
proletária. Da mesma forma, sua consciência da história se resumia a história
das guerras, da China e as duas “revoluções” que ele detinha certa informação
foram as contrarrevoluções burocráticas na Rússia e China.
Também pouco conhecia de outros marxistas e até mesmo
pseudomarxistas. As únicas leituras, que se deduz por suas obras e textos nas
quais cita textualmente os autores, são as de Lênin e Stálin, o primeiro um
ideólogo da burocracia muito limitado e o segundo ainda mais. Se o primeiro
deformou e simplificou o pensamento de Marx, o segundo elevou isso ao máximo
possível. Logo, um leitor de Lênin e Stálin, numa sociedade predominantemente
agrária, conseguiu produzir o pensamento guia do futuro da humanidade. Resta
saber como o leitor, certamente não muito profundo, de dois autores limitados
pode produzir algo tão grandioso[31].
Uma comparação entre Marx e Mao é mais do que esclarecedora,
apesar de apenas nesse sentido. Marx era um erudito, leitor de pensadores
diversos, com amplo saber da filosofia (especialmente a alemã), da economia
política (especialmente a inglesa), do pensamento socialista de sua época
(especialmente o francês), de historiografia e antropologia em surgimento, bem
como estudos de ciências naturais. Nesse sentido, Marx compreendia profundamente
diversas concepções que tinha proximidade e que discordava, possibilitando
compreender diversas formas de pensamento, métodos, ideologias, etc. Mao, por
sua vez, só conhecia o pensamento chinês, de forma não muito profunda, e dos
seus inspiradores (Lênin e Stálin) e partidários e adversários (todos
supostamente “maoístas”) e um pouco de cultura geral, cujo alcance e qualidade deveriam
ser restritos. O curioso é que Marx seria a fonte inicial e Lênin e Stálin continuadores,
mas, na China e para os maoístas em geral, Mao, que era intelectualmente
inferior aos demais, se tornou a leitura fundamental e suficiente, acima dos
anteriores.
Mao certamente nunca ouviu falar de Pannekoek, Korsch, Bloch
e outros marxistas. Também pouco conhecia da produção ideológica burguesa de
outros países, que, mesmo com seus limites, ajudam a perceber que existem
formas diferentes de pensamento e permite brotar a dúvida, que mesmo os mais
convictos pensadores sempre possuem, pois somente um saber petrificado e
inquestionável, um dogma, não gera dúvidas. Certamente nunca leu um livro de
sociologia, antropologia, teoria da história, etc. A formação intelectual de
Mao foi extremamente limitada e as condições sociais em que a produziu, sendo
muito mais um burocrata (militar e partidário, depois estatal), com pouco tempo
para as pesquisas e reflexões necessárias para ampliar o seu saber e contribuir
com a revolução teórica que é o marxismo.
E nesse contexto que se percebe o voluntarismo aliado ao
dogmatismo e doutrinarismo, a “vontade de ferro” gerando uma suposta
superioridade intelectual imposta como dogma e doutrinamento, o que recorda o
vínculo com as crenças religiosas. É por isso que um certo maoísmo contemporâneo,
totalmente deslocado da realidade concreta e reprodutor acrítico e descontextualizado
de Mao, “o profeta do novo e puro comunismo chinês” (MACGREGOR-HASTIE, 1968), é
uma concepção semirreligiosa e fundamenta mais na fé, o que se pode ver no
fanatismo de alguns militantes. A “deidade fetichizada” (DUNAYEVSKAYA, 1989)
não é gratuita, bem como a relação que alguns estabeleceram com o confucionismo
(GARAUDY, 1968; MATZKEN, 1979), a religião e a teologia da libertação (MATZKEN,
1979) ou quando lhe atribui um “idealismo mágico” em contraposição ao
materialismo histórico (GARAUDY, 1968). No fundo, o maoísmo é uma doutrina
não-religiosa que possui uma semelhança estrutural com o pensamento religioso,
especialmente sua manifestação messiânica e que, em algumas de suas
manifestações, acaba se tornando semirreligioso. Mao aparece como o messias e o
salvador dos camponeses e oprimidos, mas, ao mesmo tempo, carrega o que de pior
acontece com a religião, gera dogmatismo e burocratização, nascendo no partido,
depois no exército e no Estado. Logo, a pobreza gera uma vontade enorme de
transformação social e necessidade de esperança e também os messias, religiosos
ou seculares, tal como aconteceu na China e fez emergir o maoísmo e
especialmente algumas de suas manifestações.
Curiosamente, apesar de estarmos em pleno século 21, ainda
existem focos de maoísmo. Nos países de capitalismo subordinado mais atrasados
e ainda com grande população rural e pobreza, é algo compreensível, tal como
Peru, Nepal, etc. No entanto, no capitalismo imperialista e nos países de
capitalismo subordinado mais modernizados, onde ocorreu a modernização de sua
pobreza e miséria, é algo de difícil compreensão. As contradições da sociedade
capitalista e as novas formas de miséria (política, cultural, psíquica, sexual,
etc.) são fontes para o reaparecimento do maoísmo, especialmente nos meios
juvenis e estudantis, tanto por causa dessa miséria aliada quanto graças ao
voluntarismo e desejo de transformação social. A miséria gera mais miséria e,
assim, a nova forma de miséria gerada pelo capitalismo contemporâneo que atinge
a juventude gera sua miséria política chamada maoísmo.
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[1] Na
verdade, tratava-se do modo de produção despótico (também chamado “asiático” ou
“tributário”), mas de acordo com a vulgata stalinista também reproduzida por
Mao Tsé-Tung, as relações de produção anteriores e em processo de extinção
seriam “feudais”.
[2] “A
tarefa central e a forma suprema da revolução é a conquista do poder político
pelas armas, é a solução desse problema pela guerra. Esse princípio
revolucionário do Marxismo-Leninismo é válido universalmente, tanto na China
como em todos os outros países” (MAO, 2011b, p. 357).
[3] O
conceito de latifundiário, aqui, é, obviamente, distinto da leninista e
maoísta, por um lado, e da terminologia geralmente usada no Brasil, na maioria
das vezes pelas representações cotidianas. Na terminologia leninista-maoísta, a
família de Mao seria de “camponeses médios” e na terminologia em voga no
Brasil, “minifundiário” ou “camponês”. Contudo, seguindo a concepção marxista
das classes sociais, camponês é o pequeno proprietário familiar/parcelar, o que
não era o caso da família de Mao, já que possuía diversos trabalhadores rurais
empregados (a ponto de Mao falar em “luta de classes” em sua família e contando
com a participação destes...). A concepção leninista de camponês pobre, médio e
rico é derivada de sua concepção ideológica e economicista das classes sociais,
pois os distingue por nível de renda. A classe latifundiária, em nossa
definição, é aquela que é proprietária de terra, grande ou pequena, que vive da
exploração de trabalhadores rurais ou de arrendamento.
[4]
Mao sempre ocupou cargos burocráticos na China e, na maioria das vezes como
Presidente. Ele inclusive, em certos momentos, acumulava cargos na alta
hierarquia burocrática no partido, exército e governo: “O Conselho Consultivo e
seu Comitê permanente exerciam o poder legislativo, sendo o executivo atribuído
ao Conselho Central do governo popular, cujo presidente é Mao Tsé-Tung,
igualmente presidente do Conselho Militar Revolucionário. É o Partido
Comunista, no entanto, o órgão que exerce o poder real, sendo o seu núcleo, a
Comissão permanente do Bureau Político, composta, entre outros, de Mao (também
presidente do Partido), Liu Shaoqi e Zhou Enlai” (NAVES, 2005, p. 48-50).
[5] Um
exemplo entre milhares: “Marx, Engels, Lênin e Stálin ensinam-nos que há que
partir da realidade objetiva e extrair daí as leis que nos guiarão na ação”
(MAO, 1979b, p. 7). Ele nem desconfiava que isso nada tinha a ver com a teoria
de Marx (...). Essas citações, no entanto, podem ter sido acrescentadas pelos
“editores” chineses de suas obras, intelectuais responsáveis por isso (SPENCE,
2003).
[6]
Como diz um detrator bolchevista russo, nesse caso com razão: “É pouco provável
que ele tenha alguma vez estudado seriamente as obras de K. Marx” (BURLATSKI,
1974, p. 9). Na verdade, ele leu algumas seções do Manifesto Comunista (NAVES,
2005; SPENCE, 2003) que estava sendo traduzido para chinês em sua juventude, e
não a obra inteira, como afirma Deutscher (1968). Mao posteriormente, quando
efetiva a crítica a Stálin e ao stalinismo, parece que leu algumas obras de
Marx e Engels, caso não tenha sido os editores chineses ou mera reprodução das
citações das obras analisadas, embora não cite título de nenhuma obra e quando
vai exemplificar afirma que não se pode limitar a obra destes e cita alguns títulos
de Lênin e Stálin (MAO, 1982).
[7]
Matzken coloca uma terceira tendência que teria influência no pensamento de
Mao: o evolucionismo. Isso, no entanto, não parece ter bases sólidas para sua
defesa e por isso descartamos tal tese.
[8] “Os adeptos mais fieis de Mao Tsé-Tung, Chen Po Ta,
por exemplo, atribuem-lhe o mérito de ter ‘sinizado’ o marxismo. Deve dizer-se
a este propósito que a noção de ‘sinização’ corresponde inteiramente ao
espírito das tradições históricas de um país que sempre quis manejar para seu
entendimento as teorias vindas exterior” (BURLATSKI, 1974, p. 10). Tanto
partidários quanto adversários de Mao apontava para a percepção de que o
maoísmo era uma manifestação específica do leninismo devido à própria
especificidade da sociedade chinesa: “a supremacia do elemento pequeno-burguês
na sociedade chinesa oferecia um favorável meio social capaz de desenvolver
amplamente no PCC o egoísmo e a estreiteza nacional” (KÓRSBASH, 1975, p. 5).
Claro que tanto Burlatski quanto Kórsbash apenas realizam uma luta cultural
interburocrática representando o capitalismo estatal russo contra o capitalismo
de Estado chinês, mas isso os fez perceber aspectos importantes da diferenciação
entre o leninismo e o maoísmo, retirado a linguagem equivocada de ambos. O historiador
trotskista Isaac Deutscher, como não poderia deixar de ser, também reconhece o
seu distanciamento do marxismo, devido sua “relativa estreiteza de horizontes”
e “falta de qualquer contato direto com as evoluções críticas do marxismo
contemporâneo” (DEUTSCHER, 1968, p. 110).
[9]
Para uma análise do dogmatismo e doutrinarismo de Mao, no que se refere à
dialética, confira: Viana, 2007. Nesse texto são demonstradas as estratégias
discursivas de Mao, incluindo o normativismo de suas afirmações, entre as quais
o uso da palavra “devemos”. Um elemento que facilita esse doutrinarismo é a
ideia de “lei”, tal como se observa na citação acima.
[10]
Obviamente que tal acusação vem de outros setores da burocracia, tal como os
stalinistas-hoxhaistas, pró-albaneses, e russos durante o conflito
sino-soviético (e depois por alguns outros). Não se trata de nenhuma análise
profunda do maoísmo e apenas reproduz o velho jogo da burocracia de se esconder
em seu embate com seus semelhantes, escondendo também o outro.
[11] Mao recorda uma carta do Comitê da Frente à direção
partidária para explicar sua tática, ressaltando que ela difere que qualquer
outra, tanto em relação às adotadas nos tempos antigos quanto as dos tempos
modernos, seja na China ou no exterior. Ele coloca que essa tática (na tradução
citada está no plural, mas consideramos o mais correto no singular) é a de
guerrilhas e consistem essencialmente em: a) dispersar as tropas entre as
massas para despertá-las, concentrar as tropas para combater o inimigo; b)
Recuar quando o inimigo avança, avançar quando o inimigo recua, atacar quando o
inimigo cansa, perseguir quando ele foge; c) para estabelecer bases de apoio,
adota a tática de avançar numa série de ondas e quando for perseguido por um
inimigo forte, fazer um movimento circular sem se afastar da base; d) despertar
as massas em maior quantidade possível e utilizando os melhores métodos. Essa
tática seria semelhante à de um pescador, que lança a rede para ganhar o apoio
das massas e a puxa para lidar com os inimigos (MAO, 1961b, p. 117).
[12] “A
tarefa principal do partido do proletariado chinês, tarefa a que foi obrigado a
fazer face quase desde o começo da sua existência, tem sido a de unir-se ao
maior número possível de aliados e, de acordo com as circunstâncias, organizar lutas
armadas para a libertação nacional e social, dirigidas contra a contrarrevolução
armada do interior ou exterior. Sem luta armada não haveria lugar na China para
o proletariado e para o Partido Comunista e seria impossível cumprir-se
qualquer tarefa revolucionária” (MAO, 2011b, p. 362).
[13] O
estrategismo de Mao desemboca num oportunismo e esse se reproduz em sua
concepção de dialética. A “lei da contradição”, segundo ele (MAO, 1979c) está
em tudo, mas existem contradições antagônicas e não-antagônicas, principais e
secundárias, aspectos principais da mesma, etc., e podem se alterar (...). No
fundo, a dialética de Mao é uma adequação de sua estratégia militar e uma
justificativa e legitimação da mesma, pois faz parte das leis da história e da
natureza (VIANA, 2007). Os diversos problemas dessa concepção de dialética já
foram abordados em outro lugar (VIANA, 2007) e por questão de espaço não
entraremos nessa discussão no presente texto.
[14]
Tal “democracia” é tão “nova” quanto o título de um certo jornal maoísta atual
no Brasil...
[15]
Obviamente que esse é o discurso maoísta e não a realidade concreta. A
preocupação de Mao era a luta interburocrática no interior da China, por um
lado, e a acumulação capitalista e disputa interimperialista com a URSS. O
discurso da “restauração capitalista” é apenas uma estratégia para criar um
inimigo impopular e contrário aos interesses da maioria (burocracia chinesa
contrária a Mao e burocracia russa), para ganhar adeptos (burocratas aliados) e
apoio das “massas”.
[16]
“Mas os efeitos da desestalinização também chegou à China, fazendo com que Mao
Tse-Tung anunciasse a políticas das cem flores. Promete aos intelectuais
melhores condições de trabalho e deplora o sectarismo da maioria dos quadros e
militantes contra eles. A Campanha deveria representar uma experiência de
liberdade, na expressão e na crítica, até então desconhecida” (SCHILLING, 1984,
p. 68); “A política de ‘Que cem flores desabrochem’ e ‘Que cem escolas
rivalizem’ é a política para estimular o progresso da arte e da ciência e o
florescimento da cultura socialista em nosso país” (MAO, 2012, p. 487). Esse
documento mostra a dicotomia proposital de Mao, que ao mesmo tempo em que fazia
esse discurso, colocava a necessidade do leninismo como escola de pensamento e
combate aos “contrarrevolucionários”, ou seja, a ideia é todos podem discordar
e discutir, desde que no interior da concepção maoísta.
[17]
Após lançar a política das “Cem Flores”, Mao voltou atrás quando a reação
ameaçava sair do controle: “Os resultados foram surpreendentes. Uma onda de
protestos varreu o país. Ressentimentos de toda ordem afloraram numa
intensidade inesperada e Mao Tse-Tung, que espera apenas críticas construtivas,
teve que deparar-se não apenas com reclamos contra os quadros do partido
comunista chinês, como também contra o seu princípio do monopólio político”
(SCHILLING, 1984, p. 69); “No mesmo mês, Mao Tse-Tung anuncia o fim da política
de tolerância e passa a conclamar todos os Partidos Comunistas a lutarem contra
o revisionismo” (SCHILLING, 1984, p. 69).
[18] O
termo “revolução cultural” é totalmente equivocado, pois a hegemonia cultural
permaneceu a mesma com suas ideologias, doutrinas, etc. O que ocorreu foi um
uso de ideias dominantes, algumas não praticadas concretamente (ligadas ao
socialismo, de acordo com a ideologia dominante supostamente existia na China),
para moralizar a burocracia, marcada pelo combate à corrupção, privilégios,
etc. Ou seja, não houve nenhuma “revolução”, já que apenas se enfatizou e
desenvolveu alguns elementos já existentes, bem como não teve a amplitude que o
termo cultura traz (como conjunto das produções intelectuais), sendo apenas uma
mudança no âmbito da moral.
[19]
Sobre isso, cf. “Circular de 16 de Maio ou as lutas interburocráticas por
detrás da Reforma Moral Chinesa”, disponível em: http://informecritica.blogspot.com.br/2015/02/circular-de-16-de-maio-ou-as-lutas.html
[20]
Não deixa de ser curioso como alguns autores omitem essa passagem, que é a
última e conclusiva, bem como a que revela a real posição do documento, seja
quem resume (NAVES, 2005) ou quem cita parte do documento (SCHILLING, 1984).
[21]
Sobre a Comuna de Xangai dedicaremos um artigo exclusivo em outra oportunidade
e uma exposição mais detalhada pode ser vista em: Robinson, 1969.
[22]
Diversos pseudomarxistas enxergaram nessa atitude de Mao, como sempre nesses
casos, como sendo produto de “equívocos”, falta de compreensão, etc. Nessa
ficção pseudomarxista, que jamais pode admitir o caráter de classe do
bolchevismo em todas as suas variantes, o problema é apenas de consciência dos
líderes, equivocada ou desvio dela (revisionismo) e não a perspectiva de classe
burocrática que eles são portadores e revelam cotidianamente. Para uma efetiva
revolução proletária na China, seria necessária a abolição do Estado e do
capital, da burguesia burocrática que lhe sustentava, o que significa a
superação tanto do revisionismo quanto do maoísmo.
[23]
“É uma característica primordial da vida política chinesa que os adversários de
Mao Tse-Tung se precaverem frequentemente de afirmar a si mesmos dessa forma e,
pelo contrário, se declaram seus adeptos e adotam geralmente suas bandeiras,
ainda que o façam para modificar os objetivos e desnaturalizar seu conteúdo”
(DAUBIER, 1977, p. 98-99).
[24]
Sua concepção maoísta, e, por conseguinte, burocrática, é visível em sua
crítica à autogestão: “a autogestão é um projeto social complexo, que não
conseguiríamos reduzir a uma de suas características. O projeto tem, com
certeza, um aspecto democrático essencial; e foi, aliás, o movimento operário
na sua espontaneidade revolucionária quem o produziu, através dos Conselhos
operários ou dos sovietes. Mas ele fez com que a classe operária se
arrebentasse em coletivos concorrentes, e, devido a isso, o seu funcionamento
não tarda a ocultar a lucidez política das escolhas, desde que a fase
revolucionária terminou, durante a qual ele expressou a tomada da posse dos
meios de trabalho pelos trabalhadores. A autogestão não pode, portanto, ser
total e não deve excluir o Plano. Caso contrário, ela irá gerar uma forma nova
de alienação economista que reproduz a divisão da classe operária, como o
ilustra a experiência iugoslava” (AMIN, 1986, p. 147-148). Além de Amin
reproduzir o mesmo tipo de discurso que Mao para combater a Comuna de Xangai e
fazer apologia da centralização, ele também demonstra desconhecimento das
teorias da autogestão (inclusive a começar por Marx) e mostra que não
ultrapassa o leninismo, a ideologia da burocracia e seu discurso da necessidade
do plano e da centralização, além de não compreender a diferença entre
capitalismo e comunismo.
[25]
Não deixa de ser curioso a escotomização das teorias do capitalismo de Estado
que surgiram nos anos 1920 na Rússia (Grupo Verdade Operária de Bogdanov e
Grupo Operário de Miasnikov), Alemanha e Holanda (Comunistas de Conselhos),
Itália (Rodolfo Mondolfo e depois Amadeo Bordiga), bem como outras posteriores,
como a dos trotskistas de esquerda.
[26] O
problema das supostas “teorias” do capitalismo de estado russo, de origem
leninista, é o seu oportunismo ideológico. Para os trotskistas, o capitalismo
estatal emergiu a partir de Stálin (e derrota de Trotsky); para os
maoístas-stalinistas, com a morte de Stálin (e denúncia de seus crimes por
Kruschev) e assim por diante. Ao invés de luta de classes e do caráter de
classe da burocracia antes da revolução e da burguesia burocrática após a
mesma, o que ocorre são lutas interburocráticas, mas isso não pode ser
perceptível a partir das ideologias burocráticas, pois, desde a sua origem, a
classe burocrática deve disfarçar e fazer de conta que a luta expressa outras
classes (burguesia e proletariado), pois, segundo o leninismo, ela não é uma
classe. Assim, quando a burocracia que corresponde à matriz ideológica do
ideólogo é derrotada, aí temos oportunisticamente a emergência do discurso de
“restauração capitalista” e “capitalismo estatal”.
[27]
Esse é o caso de Magaline (1977), que, devido ao voluntarismo maoísta, crítica
o economicismo e a ideia do primado das forças produtivas, retomando a questão
da luta de classes na produção. No entanto, essa contribuição se mostra parcial
não só por manter a base leninista, mas também por ter problemas intrínsecos
relacionados. O mesmo ocorre no caso de Bettelheim (1979).
[28] E
os bem-intencionados, que querem realmente efetivar uma luta revolucionária por
vínculo sentimental com o proletariado ou as classes exploradas. Estes, no
entanto, logo que possuem acesso a teorias e informações, tendem a abandonar o
maoísmo.
[29]
Um exemplo do próprio Mao aponta para isso: “tudo que vem nos livros é correto,
ainda é hoje a concepção dos camponeses da China que estão culturalmente
atrasados. O surpreendente, porém, é que nas discussões no seio do Partido
Comunista se encontram igualmente pessoas que, a propósito de tudo, dizem:
mostra-me isso no teu livro” (MAO, 1979e, p. 77). Sem dúvida, o próprio Mao
disse o contrário, sobre a necessidade da investigação, etc. No entanto, a
“investigação” que ele fala é a do leninismo-stalinista ou do próprio maoísmo.
E, como ele coloca no texto citado, essa “teoria” se revela correta “na
prática”, o que no fundo ele quer dizer que ela serve para legitimar a prática
e só quando é útil a ela (MAO, 1979e). Esse culto da prática, também
reproduzido por situacionistas e anarquistas, sob forma dogmática, apenas
mostra a primazia sentimental e irracional de certos militantes e grupos, que,
como o maoísmo, reproduzem o messianismo religioso em linguagem
pseudocientífica ou pseudomarxista. O seu desprezo pelos intelectuais e
formação intelectual inferior a de seus próprios secretários, que revisavam
seus textos, pode ser acompanhado através de sua biografia (SPENCE, 2003).
[30]
“Mao Tse-Tung que, na sua juventude, escrevera um ensaio significativamente
intitulado “O Poder do Espírito”, sempre professou um extremo voluntarismo que
se exprime na dupla afirmação de que se pode transformar sem limite a natureza
e se pode transformar sem limite os homens” (GARAUDY, 1968, p. 114).
[31] A
doutrinação com o pensamento de Mao era constante e se tornou ainda mais rígida
com a reforma moral (SPENCE, 2003). É nesse contexto que o “Livro Vermelho” (MAO,
1972) se torna cada vez mais lido por pressão da burguesia burocrática chinesa
e sendo também leitura exportada para o exterior, chegando a ser, segundo
alguns dizem, o livro mais lido no mundo depois da Bíblia, tendo sido impressos
820 milhões de exemplares.
________________________________________
VIANA, Nildo. Reflexões sobre o Maoísmo. Revista Enfrentamento. Ano 09, num. 16, jan./jun. 2015.
Veja também: Mao Tsé-Tung: Dialética ou Estratégia do PCC? clicando aqui.
Leia Revista Enfrentamento, 16, no qual esse texto foi publicado e contém outros artigos de crítica à outras concepções semelhantes. http://enfrentamento.net
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Leia Revista Enfrentamento, 16, no qual esse texto foi publicado e contém outros artigos de crítica à outras concepções semelhantes. http://enfrentamento.net
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