Democracia
Burguesa: Essência e Metamorfose
Nildo Viana
[Esse texto é um capítulo do livro: "Estado, Democracia e Cidadania" (Rio de Janeiro, Achiamé, 2003), que pode ser acessado completo clicando aqui].
O estado capitalista irá, historicamente, utilizar duas
formas de regime político: a ditadura burguesa aberta e a ditadura burguesa
oculta, a democracia. A dinâmica do desenvolvimento capitalista irá promover
mudanças na democracia burguesa e isto está intimamente ligado ao processo de
transformação do estado capitalista, resultado da luta de classes. Para
compreender este processo, o ponto de partida é analisar a democracia
representativa e suas mutações.
O primeiro passo é saber o significado da palavra
democracia. Eis uma tarefa difícil, tendo-se em vista as diversas definições
deste termo. A polêmica em torno deste termo se deve ao fato de que vivemos em
uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas que buscam interpretar o
mundo de acordo com os seus interesses e sua mentalidade.
A perspectiva da qual partimos é a do proletariado, ou
seja, daqueles que estão submetidos à dominação e buscam superá-la. A partir
deste pressuposto, é preciso compreender a diferença existente entre a idéia de
democracia e a democracia realmente existente. Já observamos que existem
diversas concepções de democracia que correspondem a interesses diversos,
portanto, a primeira questão a ser resolvida é qual é a relação entre idéia e
realidade. Isso só pode ser resolvido tendo por base uma teoria do conceito. Partindo
da concepção marxista, podemos dizer que o conceito é uma expressão da
realidade (conceito expressivo) ou um projeto para o futuro (conceito
antecipador) (Viana, 1997).
Pois bem, a partir disto temos que definir se trataremos
da democracia como realidade existente ou
como projeto político. Se tomarmos a
democracia como conceito antecipador, como um projeto político, temos que
admitir que a democracia não existe, e talvez nunca existiu, em nenhum lugar do
mundo, dependendo da forma que a definirmos. Se tomarmos a democracia como
conceito expressivo, como realidade existente, então teremos que analisar suas
manifestações concretas no interior de determinadas relações sociais e daí
retirarmos sua definição.
Preferimos a segunda opção, pois é somente através dela
que poderemos manter uma certa coerência. Se considerássemos a democracia um
conceito antecipador, teríamos que lhe conceder um estatuto de algo ainda não
existente. Isto, por sua vez, nos faria ter que procurar uma definição de algo
que ainda não existe concretamente. Tal dilema poderia se resolvido com a
retomada da raiz etimológica da palavra: democracia = governo do povo, o que é
equivalente a autogoverno ou autogestão.
Nesse caso, não se pode falar em “democracia grega” ou
“democracia representativa” e o uso comum da palavra democracia, incluindo aí
os usos científicos (sociologia, historiografia, ciência política, etc),
seriam, doravante, considerados errados. Entretanto, se nós não vivemos em um
regime democrático, então em que forma de governo vivemos? Neste caso teríamos
que encontrar uma palavra que substitua a democracia no sentido usual.
Por conseguinte, tomar a democracia como um conceito
antecipador traz muito mais problemas do que soluções. Além disso, isto seria
desnecessário pois já possuímos um conceito antecipador que materializa este
projeto político: a autogestão[1].
Sendo assim, tomamos por democracia um conceito
expressivo. O que é a democracia? Para Décio Saes, a democracia é,
simultaneamente, uma forma de estado e um regime político. Para ele, forma de
estado é o “padrão de organização interna do corpo de funcionários” e regime
político é “a relação entre o corpo de funcionários e os membros da classe
exploradora no âmbito específico do processo de definição/execução da política
de estado” (Saes, 1987).
Sem dúvida, Décio Saes fornece elementos para o
desenvolvimento da teoria marxista democracia, mas consideramos esta definição
como problemática, principalmente quando ele acrescenta que “recorremos à
multimilenar e controversa expressão democracia,
para designar, ao mesmo tempo, uma forma de estado e um regime político” (Saes,
1987, p. 22).
Discordamos desta definição pelos seguintes motivos: a)
Se forma de estado e regime político são idênticos[2],
então porque utilizar duas expressões ao invés de uma? b) A definição de regime
político nos parece muito restrita se considerarmos que se exclui as demais
classes sociais do processo de definição/execução das políticas estatais. No
entanto, preferimos distinguir regime político e forma de estado. A forma de
estado, do nosso ponto de vista, não é o padrão de organização interno do corpo
de funcionários e sim uma determinada configuração da ação estatal em
determinado momento histórico (é por isso que podemos falar em estado liberal,
estado liberal-democrático, estado integracionista, estado neoliberal). Sendo
assim, a democracia não é uma forma de estado.
Preferimos considerar que a democracia é um regime
político. O que é um regime político? Existem várias definições de regimes
políticos, que no entanto, discordamos[3].
Para nós, um regime político é uma forma de relação do estado com as classes
sociais existentes. Portanto, o regime político é a forma como o estado se
relaciona com as classes sociais e não apenas com a classe exploradora.
Desta forma, podemos compreender como um regime político
pode ser democrático ou ditatorial. O regime político democrático é aquele no
qual o estado se relaciona de uma determinada forma com as classes sociais. Mas
dizer que a democracia é um regime político (uma de suas formas possíveis) e
dizer o que é um regime político não esclarece o que significa a palavra
democracia.
A democracia é um regime político onde se permite uma
participação restrita das classes sociais e frações de classes na constituição
das políticas estatais, sob formas que variam historicamente. O que fica
subentendido nesta definição é que a democracia sendo um regime político e,
portanto, uma forma de relação do estado (que é o poder coletivo da classe
dominante) com as classes sociais, é uma forma de dominação de classe[4].
Uma posição próxima a nossa é a apresentada por Costa,
pois, para ela, “(...) O que se entende por democracia – uma reunião onde
grupos e classes sociais se contrapõem com diferentes objetivos, para
viabilizar seus projetos antagônicos de ação política, contraposição da qual
sairá vencedor o grupo ou classe que puder transformar seus trunfos e suas
posições em regras do jogo, abrindo caminho para a legitimação dos seus
objetivos”, não revela o significado da democracia, pois, “ocorre que, quando
diferentes participantes do jogo dizem estar pondo em prática os ideais
democráticos, não afirmam explicitamente que o que legitimam, sob o nome de
democracia, é apenas uma das possíveis formas de regulamentação do jogo e que essa
forma é a que melhor lhes permite defender seus interesses e legitimar seus
objetivos. Ao afirmarem que a reunião ou partida é democrática, estão dando um
caráter geral, universal, ao que é particular, especifico de sua posição e
interesses” (Costa, 1986, p. 13-14).
Esta autora aqui se aproxima da concepção marxista
segundo a qual a classe dominante (ou uma classe que aspira tomar-se dominante)
apresenta seus interesses particulares em interesse universal. E por isso que
certos ideólogos afirmam que a democracia, tal como está instituída
concretamente em nossa sociedade, é um “valor universal” (Coutinho, 1980; para
uma critica desta concepção: Viana, 1991) Porém, existe uma diferença
fundamental: a referida autora assume uma posição relativista ao deixar de lado
o problema da dominação (e do estado) e assim assume uma postura ideológica,
pois confunde a democracia real com a idéia de democracia, sendo que a primeira
é marcada pela dominação de classe e pelo poder estatal, enquanto que a segunda
é uma idéia que pode se contrapor ao que existe de fato, seja através do
ocultamento da realidade, seja através da busca de uma nova realidade.
A forma como o estado se relaciona com as classes sociais
pode ser através da repressão pura e simples (a ditadura) ou da participação
restrita delas (a democracia). A partir desta concepção de democracia devemos
colocar novas questões: o que é uma “participação restrita”? Quais são suas
formas históricas?
A participação ocorre quando um indivíduo ou grupo entra
em determinadas atividades pré-estabelecidas por outros (Guilllerm &
Bourdet, 1976). A participação restrita é uma participação limitada, ou seja,
que encontra em seu caminho diversos limites que não pode ultrapassar. No caso
concreto aqui colocado, a democracia é um regime político no qual existe uma
participação das classes sociais na constituição das políticas estatais (e na
elaboração das leis) que possui diversos limites que elas não podem/conseguem
ultrapassar.
As formas históricas de democracia são variadas, mas as
duas mais famosas são a democracia escravista e a democracia burguesa, sendo
que elas também possuem formas ao se desenvolverem historicamente. Muitos
estudos foram dedicados à comparação destas duas formas de democracia. Para
alguns, a democracia escravista (ou “democracia grega” ou “antiga”, tal como a
maioria as denomina para ofuscar seu caráter de classe) é “mais democrática” e,
para outros, a democracia burguesa é que possui tal privilégio.
A distinção entre estas duas formas de democracia varia
de autor para autor (Finley, 1988; Moore, 1972). Para Stanley Moore, “quando se
diz que o povo governa nas democracias das sociedades escravista e capitalista,
tanto ‘povo’ como ‘governa’ estão utilizados em forma ambígua. Nas democracias
das sociedades escravistas, ‘governa’ significa todo o governo, porém ‘povo’ só
uma parte do povo. Nas democracias das sociedades capitalistas, ‘povo’
significa todo o povo, porém ‘governa’ só uma parte do governo” (Moore,
1972, p. 91).
O que este autor quis dizer é que na democracia
escravista somente uma parcela da população (do “povo”) pode exercer uma
participação restrita na constituição da política estatal enquanto que na
democracia burguesa a população inteira participa em tal constituição, só que
de forma mais restrita. Em outras palavras, a democracia escravista permitia
uma participação menos restrita, mas
tal participação atingia apenas parte da
população[5]
enquanto que a democracia burguesa existe uma participação mais restrita, que, no entanto, atinge toda a população.
É por isso que alguns podem considerar a democracia
escravista como mais democrática, pois ela é menos restrita (alguns dizem que
se tratava de uma “democracia direta” entre os que podiam participar dela,
embora outros contestem tal afirmação, outros podem considerar que a democracia
burguesa é mais democrática, pois permite a participação de toda a população,
ou melhor, quase toda).
Após a nossa definição proposta do conceito de
democracia, podemos tratar agora da democracia burguesa em particular. A democracia
burguesa é uma das formas como o estado capitalista se relaciona com as classes
sociais isto é, é um regime político burguês – caracterizado por uma
participação restrita das classes sociais.
Como ocorre concretamente esta participação restrita? Ela
se altera com o desenvolvimento histórico e com as lutas de classes, mas possui
algumas características fundamentais que persistem sempre que o regime político
é democrático, ou seja, enquanto ele não é substituído pelo regime político
ditatorial. Esta participação restrita proporcionada pela democracia burguesa
se caracteriza pela mediação burocrática entre
as classes sociais e o estado que se dissimula como “representação”. Daí ela
também ser chamada, devido a esta ideologia da representação, de “democracia
representativa”.
A forma como esta participação restrita ou mediação
burocrática se realiza varia historicamente. Podemos dizer, em grandes linhas e
deixando de lado as diferenças nacionais, que a democracia burguesa se
metamorfoseou em três formas principais, a saber: a) A forma democrática
censitária (também chamada de “democracia parlamentar” e “estado
constitucional”) e “liberal” que vai até meados do século 19; b) A democracia
partidária liberal que predominou do final do século 19 até a Segunda Guerra
Mundial; c) A democracia partidária burocrática, que se instaurou após a
Segunda Guerra Mundial.
Sem dúvida, juntamente com estas formas concretas de
democracia burguesa surgiram ideologias visando justificá-las. A democracia
burguesa em seu primeiro período pode ser chamada de democracia burguesa censitária. Segundo Duverger, “(...) os
juristas, após os filósofos do Século 18, desenvolveram uma teoria da
representação, o eleitor dando ao eleito mandato para lidar e agir em seu nome;
dessa maneira, o parlamento mandatário da nação exprime a soberania nacional”
(Duverger, 1980, p. 387).
Portanto, nasce, junto com a democracia burguesa, a
ideologia da representação. Ela não é uma democracia direta onde as pessoas ou
grupos se representam mas uma democracia representativa, onde existem os
representantes e os representados. Mas nesta época de democracia burguesa
censitária os representantes não representam os indivíduos ou grupos que os
elegem, mas sim a nação. O parlamento (o conjunto dos eleitos) representa a
nação. É por isso que alguns denominam tal forma de democracia como democracia
parlamentar. Entretanto, esta idéia de que o parlamento representa a nação é
ideológica, pois ele representa, na verdade, os interesses da classe dominante.
Isto é comprovado pela própria forma como se desenvolvia o processo eleitoral.
Tal como colocou Poggi, “no século 19 e começos do atual, o principal meio
usado para excluir da arena política grupos cujos interesses poderiam ser
incompatíveis com a manutenção e prosperidade do sistema capitalista era a
restrição do sufrágio, sem o direito a voto, tais grupos estavam limitados no
exercício de direitos civis que não possuíam significação política direta, ou
as formas não constitucionais de dissensão política suscetíveis de serem
contidas através da polícia e de outras ações repressivas uma vez escoimados do
processo político, por esses métodos, os interesses incompatíveis, as
instituições públicas dos interesses contrastantes que eram gerados dentro do
quadro das instituições e dos valores burguês-capitalistas, os direitos de
votar e de ocupar cargos restringiam-se, pois, a homens que possuíssem bens de
(ou) qualificações educacionais” (Poggi, 1981, p. 131).
A transição da democracia burguesa censitária para a
democracia burguesa partidária foi lenta e foi produto das lutas sociais: “Por
muito tempo, a democracia era tão somente parcial: os governantes eram eleitos
por apenas uma parte dos governados, geralmente os mais ricos (sufrágio
censitário). Progressivamente, o corpo eleitoral ampliou-se, sob a pressão dos
próprios princípios democráticos. Já em 1948, a França suprimia toda condição
de fortuna ou de capacidade para a atribuição do direito de voto, muito embora
tenha permanecido válida a condição de sexo. Foi no século 19 que o
estabelecimento do voto feminino na maioria dos países tornou o sufrágio
realmente universal” (Duverger, 1966, p. 18). Alguns destes dados entram em
contradição com os de Bottomore: “poderíamos assinalar, em primeiro lugar, a
lentidão do avanço da democracia e os numerosos obstáculos e reveses o que
encontrou. Nos países que em geral foram considerados como democracias
estabelecidas o voto masculino só foi obtido na maioria dos casos entre o final
do século 19 e a primeira guerra mundial, enquanto o sufrágio universal (1919,
na Alemanha, 1920, na Suécia, 1945, na
França e 1948 na Grã-Bretanha), e igual veio ainda mais tarde e na maior parte
do resto do mundo o sufrágio universal (onde fui introduzido), só vigorou após
o final da segunda guerra mundial” (Bottomore, 1981, p. 21).
A democracia censitária foi gradualmente substituída pela
democracia partidária a partir do século 19. O mesmo ocorreu com a ideologia
que a justificava: Segundo Macpherson, Jeremy Bentham foi paulatinamente
alterando sua concepção de quem deveria participar do processo eleitoral: “numa
obra escrita entre 1791 e 1802 ele era a favor de uma franquia limitada,
excluindo os trabalhadores, os não instruídos, os dependentes e as mulheres. Em
1809 que defendia uma franquia para chefes de família que tivessem casa
própria, limitada aos que pagassem imposto direto sobre propriedade. Em 1817
ele falava de uma franquia ‘virtualmente universal’ excluindo apenas os de
menor idade e os analfabetos e possivelmente as mulheres (para dar uma decisiva
opinião sobre o que ‘seria inteiramente prematuro neste lugar’); Mas naquela
mesma obra ele declarava que embora se tivesse convencido ‘das razões e
consistência com as quais, para o bem da união e da concórdia, muitas exclusões
deviam ser feitas, pelo menos por certo tempo e para fins de uma experiência
tranqüila e paulatina’. Em 1820 ele era a favor da franquia para adultos do
sexo masculino; mas mesmo nessa ocasião declarava que com prazer apoiaria a
franquia limitada para o chefe da família exceto que não podia ver como isso
satisfaria os excluídos, que ‘talvez constituam uma maioria de adultos do sexo
masculino’. Assim é que Bentham não se mostrava entusiasmado quanto a uma
franquia democrática: foi levado a ela, em parte por sua avaliação do que o
povo na época exigiria, e em parte pelas agudas exigências da lógica tão logo
dedicou seu espírito às questões constitucionais” (Macpherson, 1978, p. 40).
A democracia partidária foi surgindo gradualmente com a
extensão do direito de voto. A luta pela extensão do direito de voto e a
ampliação gradual deste direto ocorreu simultaneamente com a formação dos
partidos políticos. Na verdade, a classe dominante não permitiria uma extensão
do direito de voto sem uma garantia de que esse direito adquirido não pudesse
subverter a ordem. Desta forma, o sistema eleitoral expandiu o direito de voto
mas, ao mesmo tempo, criou novas instituições “representativas” para realizar
uma mediação burocrática entre eleitores e estado. Este papel de mediação
burocrática foi atribuído ao sistema partidário. Segundo Duverger, “o fato da
eleição, como a doutrina da representação, foram profundamente transformados
pelo desenvolvimento dos partidos. Não se trata doravante de um diálogo entre
eleitor e eleito, nação e parlamento: um terceiro se introduziu entre eles, que
modifica, radicalmente, a natureza de sua relações. Antes de ser escolhido
pelos eleitores, o deputado é escolhido pelo partido: os eleitores só fazem
participar dessa escolha” (Duverger, 1980, p. 387).
Segundo C. B. Macpherson, o ideólogo liberal John Stuart
Mill temia que o sufrágio para todos os adultos masculinos produzisse a
predominância da classe trabalhadora nos países mais industrializados, mas
Macpherson afirma que isto foi impedido através da atuação do sistema
partidário em todas as democracias ocidentais, embora isto tenha ocorrido de
forma diferente em diferentes países. Mas em todo lugar o sistema partidário
desempenha a mesma função básica: “acho que não é exagero dizer que a principal
função do sistema partidário concretamente desempenhada nas democracias
ocidentais desde o advento da franquia democrática tem sido a de amenizar o
conflito de classes ou, se preferirmos, moderar e conciliar um conflito de
interesses de classes de modo a salvar as instituições da propriedade
existentes e o sistema de mercado de um ataque eficaz” (Macpherson,
1978, p. 69).
A democracia partidária de meados do século 19 e início
do século 20 é, porém, qualitativamente diferente da democracia partidária
pós-segunda guerra mundial. A democracia partidária, em sua primeira fase, pode
ser chamada de democracia partidária liberal. Sem dúvida, o sistema partidário
já existia e era o principal elemento de mediação entre estado e classes
sociais (outras instituições, tais como igrejas, associações, sindicatos, etc.,
também mantém relações com o estado, mas não da mesma natureza que os partidos
políticos, cuja ação se volta diretamente para o exercício do poder).
Ocorre que a democracia partidária em sua primeira fase
inicia-se quando os partidos políticos foram efetivamente integrados na disputa
eleitoral. Eles já cumpriam o papel de amortecer as lutas de classes, inclusive
os partidos de “esquerda”, mas eles tinham uma maior margem de liberdade do que
atualmente.
Os partidos políticos cumprem o papel de amortecer os
conflitos de classes devido ao seu desenvolvimento interno e/ou ao
desenvolvimento externo. É claro que um tipo de desenvolvimento está
relacionado com o outro e exercem uma influência recíproca. O desenvolvimento
interno de um partido político é como evolui sua organização, as ideologias,
etc. O desenvolvimento externo é a mudança social no que se refere às lutas
sociais, à legislação eleitoral, ao processo de expansão ou crise da acumulação
de capital, às alterações da opinião pública, etc.
Os partidos políticos de “esquerda” serviam para
amortecer as lutas de classes devido ao caráter crescentemente burocrático de
sua organização, do crescimento da burocracia partidária e sindical, e, por
conseguinte, do crescimento quantitativo de frações de classe da burocracia, o
que provoca uma metamorfose ideológica no partido[6].
Os partidos de direita faziam isto porque era de interesse da classe
capitalista, tanto os partidos de direita quanto os partidos de esquerda
reproduziam a ideologia da representação, onde uns diziam representar “o povo”,
“a nação”, ou seja, um “falso universal” que ofusca a luta de classes; e outros
“os trabalhadores”, isto é, a maioria da população e sua “base eleitoral”,
invertendo a realidade, pois representa na verdade os seus interesses próprios
de burocracia partidária.
Este era o principal fator que provocava a corrupção e,
por conseguinte, a ineficácia (do ponto de vista revolucionário) política dos
partidos social-democratas e comunistas. Mas o desenvolvimento externo também
reforçava esta situação com a burocratização dos sindicatos, o predomínio da
ideologia burguesa, a estabilidade da acumulação de capital até o início do
século 20, etc.
Apesar disso, a democracia partidária liberal apresentava
determinadas brechas que em momentos de acirramento das lutas de classes
possibilitavam o desencadeamento da luta operária contra o estado capitalista.
Na Alemanha, por exemplo, ao lado dos partidos reformistas (e surgindo como
dissidências deles) surgiam grupos (que também se denominavam partidos)
revolucionários, tal como a Liga Espartaquista de Rosa Luxemburgo (Almeida,
1982) e o KAPD — Partido Comunista Operário da Alemanha, dos comunistas
conselhistas (Rühle, Korsch, Pannekoek, etc.) (Authier, 1975), que condenava os
partidos reformistas e se declarava um não-partido ou que não era um “partido
propriamente dito”. A tentativa de revolução alemã surgiu com a intensa
colaboração destes grupos. A partir deste momento, tais coletivos
revolucionários compreenderam o caráter contra-revolucionário dos partidos
políticos em geral (incluindo o social-democracia e o “comunista”, isto é,
bolchevique) e passaram a combatê-los.
O caso espanhol é outro exemplo da fragilidade relativa
da democracia partidária liberal. A derrota da Frente Nacional (união de
partidos de direita) para a Frente Popular (que contava com a União
Republicana, a Esquerda Republicana, o Partido Socialista Operário Espanhol, o
Partido Comunista Espanhol, o Partido Operário de Unificação Marxista e um
pequeno Partido Sindicalista de origem anarquista), provocou uma verdadeira
ação de massas que acabou gerando a guerra civil espanhola[7].
Por conseguinte, era necessário, para a classe dominante,
não permitir que a democracia burguesa possibilitasse o desenvolvimento de
ações anti-capitalistas. Após a segunda guerra mundial a burguesia estava
fortalecida o suficiente para transformar a democracia partidária liberal em
democracia partidária burocrática.
Esta nova fase da democracia burguesa fez dela uma
muralha intransponível para qualquer tentativa revolucionária. Isso foi
possível graças a três motivos principais, a saber: a) A expansão da acumulação
de capital após a Segunda Guerra Mundial e a constituição de um novo regime de
acumulação; b) O intervencionismo estatal e a reorganização legal da democracia
burguesa; e) O processo de crescente burocratização e mercantilização das
relações sociais.
A relação entre expansão da acumulação de capital (ou,
segundo a ideologia dominante, o “desenvolvimento econômico”) e estabilidade da
democracia burguesa é amplamente reconhecida[8].
Segundo A. Wolfe, “na longa onda posterior à segunda guerra mundial ocorreu um
número de transformações estruturais no modo de produção capitalista que teriam
conseqüências nocivas para a democracia. No entanto, durante um período
considerável de tempo, estas características se mantiveram ocultas atrás da
prosperidade substancial gerada pela onda” (Wolfe, 1980, p. 19).
Após a segunda guerra mundial ocorreram mudanças no modo
de produção capitalista que, sem dúvida, tornaram a democracia burguesa ainda
mais conservadora do que antes, diminuindo ainda a participação já extremamente
restrita das classes exploradas. Ocorre, porém, que consideramos, ao contrário
de Wolfe, que estas mudanças tem como elemento fundamental a própria expansão
da acumulação capitalista com suas características e conseqüências, produzidas
pela mudança no regime de acumulação.
Esta expansão da acumulação capitalista ocorreu graças à
destruição em massa das forças produtivas durante a segunda guerra mundial e
pela transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os
países capitalistas superdesenvolvidos. Tal expansão também permitiu uma rápida
invasão da produção capitalista em setores dominados pela produção
não-capitalista e provocou outros efeitos que afetaram indiretamente a
democracia burguesa, tal como colocaremos mais adiante.
Desta forma, torna-se possível a melhoria do nível de
renda da população, a diminuição do desemprego, etc., e, conseqüentemente, a
legitimação do estado capitalista. A expansão da acumulação capitalista nos
países superdesenvolvidos provoca, então, o chamado “estado de bem estar
social” e os problemas políticos tomam-se, de acordo com a ideologia dominante,
problemas técnicos (Habermas, 1988).
O intervencionismo estatal (também chamado de
keynesianismo) e a reorganização legal da democracia burguesa também serviram
para impedir o surgimento de qualquer brecha revolucionária no seu interior.
Mas o intervencionismo estatal a que nos referimos não se limita apenas à
intervenção na esfera da produção mas também nas instituições sociais, na
esfera jurídica, etc. O estado capitalista, após a segunda guerra mundial,
passou a intervir de forma muito mais ampla não só através da expansão das instituições
estatais (escolas, hospitais, meios de comunicação, universidades, etc.) como
também através de sua interferência nas instituições privadas (através de
relações jurídicas, convênios, dotação de recursos, etc.) e com isto exerceria
um maior controle sobre a sociedade e incentivaria o seu processo de
burocratização. Este estado onipresente reforça a hegemonia burguesa e
dificulta o aparecimento de qualquer movimento revolucionário em grandes
proporções, o que contribui com a estabilidade da democracia burguesa.
A reorganização legal da democracia burguesa é outro
elemento que restringe mais ainda a participação das classes exploradas nos
processos políticos institucionais. Esta reorganização constitui na elaboração
de um conjunto de leis, que varia de país para país, que buscam regularizar o
processo eleitoral e o sistema partidário de tal forma que fica cada vez mais
difícil a participação das classes exploradas e de grupos revolucionários na
democracia burguesa.
Segundo Geoffrey Barraclough, “com efeito, só na última
geração — na maioria dos casos, depois de terminar a segunda guerra mundial — é
que os partidos políticos escaparam do limbo de órgão extra-constitucionais ou
convencionais, sem lugar legalmente definido no sistema de governo, e foram
explicitamente admitidos no mecanismo constitucional, na Inglaterra, a mudança
foi registrada pelos ministers of the
crown act de 1937, os quais, ao estabelecer a posição oficial do líder da
oposição, implicitamente reconheceram e sancionaram o sistema de partidos. Na
Alemanha, a carta fundamental da República Federal — ao invés da constituição
de Weimar, que adotava ainda uma atitude ambivalente em relação ao sistema de
partidos — tratou estes como elementos integrais da estrutura constitucional
(art. 21), ao passo que a constituição de Berlim menciona, especificamente, as
tarefas que competem aos partidos, segundo a lei constitucional (art. 27).
Cláusulas semelhantes foram incorporadas nas constituições de certos alemães —
por exemplo, Baden (Art. 120) — na constituição italiana do pós-guerra (Art.
49) e na constituição brasileira de 1946 (Art. 141)” (Barraclough, 1983, p.
125-126).
Assim, novas leis passaram a regularizar a participação
na democracia burguesa, dificultando até mesmo a participação das classes
auxiliares da burguesia, o que gerou o protesto dos partidos reformistas
(“socialistas” e “comunistas”)[9].
No caso do Brasil, um país continental e dividido em diversos e distantes
Estados, a legislação eleitoral exige que os partidos estejam organizados em um
número mínimo de Estados, que tenham um número mínimo de filiados, que só os
partidos que possuem um certo número de deputados eleitos que pode ter acesso à
propaganda eleitoral gratuita e o número de deputados delimita o tempo de cada
partido, que os candidatos precisam ter uma idade mínima para concorrer aos
cargos mais importantes, tal como os candidatos a prefeito, governador e
presidente. Sendo que no caso deste último é preciso ter no mínimo 36 anos (o
que é totalmente contrário ao princípio de que “todos são iguais perante a lei,
sem distinção de credo religioso, ideologia política, sexo, raça e idade...”).
Um outro aspecto contribui para a formação da democracia
partidária burocrática: o processo crescente de burocratização e
mercantilização das relações sociais. Este processo nasce com o surgimento do
próprio modo de produção capitalista, mas ele assume uma nova fase de
desenvolvimento extensivo e intensivo após a segunda guerra mundial. Este
processo de burocratização foi acompanhado por um amplo processo de
mercantilização das relações sociais, com a invasão capitalista do cotidiano,
transformando tudo em forma-mercadoria, tal como os serviços, o lazer, etc. e
ampliando a produção de bens de consumo, sendo que estes dois processos (burocratização
e mercantilização) são simultâneos e complementares (Viana, 2002a). Como
colocamos anteriormente, a expansão da acumulação capitalista e o
intervencionismo estatal contribuíram com este processo. Tal processo provoca o
fortalecimento da burocracia enquanto classe social e enfraquece o movimento
operário nas instituições da sociedade civil. Tal processo também reforça a
hegemonia burguesa ao fortalecer a sociabilidade capitalista e criar uma
verdadeira mentalidade burguesa que atinge até mesmo as classes exploradas.
Portanto, temos a partir do pós-guerra a transformação da
democracia burguesa de democracia partidária liberal para democracia partidária
burocrática. A democracia censitária já era “liberal”, mas a democracia
partidária em sua primeira fase deixa de ser censitária e produz os partidos
políticos como mediadores da participação restrita das classes sociais, mas
mantendo alguns elementos da época em que predominava na prática a ideologia
liberal. A nova transformação significa a superação do liberalismo político e o
surgimento de novas formas de participação, marcadas por um amplo processo de
burocratização. Ou seja, aqui temos a permanência da democracia partidária, mas
sob nova forma, agora burocrática. Esta transformação da realidade ocorreu
juntamente com uma transformação na esfera ideológica. Segundo Macpherson o
grande ideólogo desta forma de democracia foi o economista Joseph Schumpeter,
que subsumiu a democracia numa visão mercantil e elitista (diríamos que esta
ideologia também é um produto do processo de burocratização e mercantilização
das relações sociais). Segundo Macpherson: “A democracia é tão-somente um
mecanismo de mercado; os votantes são os consumidores: os políticos são os
empresários. Não surpreende que o homem que primeiramente propôs esse modelo
fosse um economista que passou toda a sua vida profissional elaborando modelos
de mercado. Não surpreende que os teóricos (e depois os publicistas e o
público) tomassem esse modelo como realista, porque também eles viveram e trabalharam
numa sociedade impregnada de conduta mercantil. Não apenas o modelo do mercado
parece corresponder, e portanto explicar, ao verdadeiro comportamento político
das principais partes componentes do sistema político — os votantes e os
partidos; ele parece também justificar aquela conduta, e daí todo o sistema”
(Macpherson, 1978, p. 82-83).
Isto gera, segundo Macpherson, o oligopólio dos partidos,
onde as elites apresentarão programas políticos que cabe ao eleitor-consumidor
escolher dentre eles e cada partido político irá utilizar os recursos da
propaganda política, inspirada na propaganda comercial, para apresentar seu
programa, ou seja “mercadoria”, ao eleitor-consumidor. Outras características
da democracia burguesa nesta sua terceira fase são colocadas pela ideologia
schumpeteriana e são discutidas por Macpherson, mas deixaremos de lado a
ideologia da democracia partidária burocrática para tratar da sua realidade
concreta.
Lembrando que a democracia burguesa é uma forma pela qual
o estado capitalista se relaciona com as classes sociais, devemos então
entender o que significa a expressão ditadura. A ditadura também é uma forma de
relação do estado capitalista com as classes sociais. O que diferencia ditadura
e democracia é a forma como o estado capitalista se relaciona com as classes
sociais. A democracia se caracteriza pela participação restrita das classes
sociais na constituição do poder estatal enquanto que a ditadura se caracteriza
pela participação restrita apenas do bloco dominante.
Na democracia burguesa, a participação restrita se dá
principalmente das regras jurídicas que regularizam tal participação
(legislação eleitoral, civil, etc.). O estado capitalista busca garantir sua
legitimidade através principalmente da ideologia. E permite certas concessões
visando impedir um descontentamento popular de grande envergadura.
Na ditadura burguesa, a participação restrita do bloco
dominante é feita de acordos que buscam satisfazer, na medida do possível, os
interesses da classe e frações de classes para evitar um conflito interno. Ao
restringir a participação apenas ao bloco dominante, o estado capitalista acaba
tendo que manter um novo tipo de relação com as classes e frações de classes
excluídas dela. A principal forma encontrada para se efetivar isto é a repressão.
Esta repressão atinge os meios de comunicação de massa (censura), o controle
policial da sociedade impedindo a organização e/ou ação de grupos e partidos
contrários ao poder instituído, etc.
Daí se deriva diversas diferenças, mas destacaremos apenas
duas: para haver participação restrita das classes sociais e sustentar a
ideologia que busca legitimar o estado capitalista, o regime
democrático-burguês deve permitir uma ampla “liberdade civil” e também uma
autonomia relativa dos “três poderes” (executivo, legislativo e judiciário).
Entretanto, o regime democrático-burguês não se sustenta apenas com base na
participação restrita, na legalidade burguesa e na ideologia dominante, mas
também através de outros recursos secundários, tais como a cooptação dos
dissidentes, a corrupção dos movimentos sociais, a repressão, nesse caso, é
usada principalmente (mas não unicamente) contra aqueles que rompem com a
legalidade burguesa.
A ditadura burguesa, por sua vez, para manter sua
dominação arbitrária e a exclusão de grande parte da população de participação
na política institucional, deve garantir o seu domínio sobre a elaboração da
legislação e chamar para si parte (ou totalidade) do direito de julgar,
entrando assim nos domínios do poder legislativo e judiciário, abolindo a
autonomia relativa dos três poderes[10].
Também a ditadura burguesa utiliza recursos secundários, pois o uso exclusivo
da força tende a aumentar o descontentamento e diminuir a legitimidade do
estado capitalista. Tais recursos são, entre outros, a ideologia (seja a da
segurança nacional ou qualquer outra) e a cooptação.
A forma como a democracia burguesa
realiza a cooptação é diferente da forma que a ditadura burguesa faz. A
cooptação realizada pela ditadura burguesa é feita através da troca entre
benefícios (um cargo público, por exemplo) e lealdade ao regime ditatorial,
enquanto que a cooptação feita pela democracia burguesa é efetuada através da
integração nas instituições estatais ou nas instituições privadas ligadas ao
regime democrático (partidos, por exemplo), o que provoca a lealdade para com o
regime.
Para a classe dominante, a alternativa
entre democracia e ditadura envolve uma diversidade de questões. Em primeiro
lugar, existem frações da classe dominante e das classes auxiliares que são
permanentemente a favor da democracia ou da ditadura. Podemos citar, no
primeiro caso, os setores ligados à indústria eleitoral, à burocracia
partidária dos partidos social-democratas, comunistas, etc. No segundo caso,
podemos citar o caso de latifundiários, a burocracia militar, etc.
Em segundo lugar, existem forças
políticas que são permanentemente favoráveis à ditadura (fascismo, por exemplo)
e outras à democracia (social-democracia, por exemplo). Em terceiro lugar, tal
alternativa varia em cada país, de acordo com sua posição na hierarquia do
capitalismo mundial e se suas características próprias (cultural,
desenvolvimento das lutas de classes, etc.).
Geralmente, a classe dominante não tem
nenhuma preferência pela democracia ou pela ditadura, embora a predominância
histórica tem sido da primeira, pelo menos em alguns países (EUA, Europa
Ocidental). Para alguns, a democracia burguesa é a forma política mais
apropriada ao capitalismo[11].
No entanto, o que interessa para a classe dominante (e, por extensão, “ao
capitalismo”) é a manutenção de sua dominação sob qualquer forma.
O que faz a burguesia alterar o regime
político (de democrático para ditatorial, ou vice-versa), é a dinâmica das
lutas de classes. A crise da hegemonia burguesa no regime democrático sempre
leva a classe capitalista a se refugiar na ditadura. Quando a luta das classes
exploradas contra o regime ditatorial ameaça ultrapassar o próprio estado
capitalista, ela não hesita em realizar a redemocratização burguesa.
A crise da hegemonia burguesa ocorre em
períodos marcados por uma série de acontecimentos, onde se destaca a
instabilidade da acumulação capitalista, que gera a busca de aumento de
exploração, desemprego, etc., a crise de legitimidade do estado capitalista,
devido a corrupção, arbitrariedade, etc., a ascensão do movimento operário e
dos demais movimentos sociais, etc. É de se notar que nos países capitalistas
imperialistas a democracia burguesa é mais estável justamente pelo motivo de
que estes países, devido a exploração imperialista e tudo que decorre dela,
conseguem manter uma maior estabilidade social, o que não ocorre nos países
capitalistas subordinados, que revezam constantemente democracia e ditadura.
A democracia e a ditadura burguesas emergiram
historicamente com o desenvolvimento das lutas de classes. O surgimento do
regime democrático-burguês ocorreu através de avanços e recuos, onde a
burguesia buscava instaurar sua dominação de classe. A burguesia buscava
implantar sua dominação e para isso precisava do apoio de outras classes e
frações de classes, especialmente as classes exploradas, objetivando combater a
nobreza. Ao conquistar o poder político, a burguesia passa a temer cada vez
mais as classes exploradas e começa a restringir a participação das classes
sociais na política institucional recém criada. A aliança com a nobreza
torna-se uma tentativa de fortalecimento contra as classes exploradas. Tal foi
o que aconteceu na revolução francesa, o melhor exemplo de revolução burguesa.
A partir da revolução francesa instaura-se democracia
burguesa sob a forma de democracia censitária[12].
A luta de classes na França demonstra claramente que a burguesia queria
instaurar uma dominação irrestrita sobre as demais classes sociais e foi
somente a emergência de outras classes sociais que fez com que ela fizesse
concessões para manter sua dominação. A democracia burguesa nasceu e se
desenvolveu como resultado da luta de classes mas tal desenvolvimento marcou a
continuação da dominação burguesa, independentemente das formas que assumiu
historicamente.
Desta forma, não tem o menor sentido dizer que a
democracia burguesa foi uma conquista da classe operária. Dizer que “o sufrágio
universal, uma medida essencial para tornar viável a efetivação daquele
princípio igualitário no plano formal, só foi conquistado na maioria dos países
desenvolvidos — e graças às lutas da
classe operária — em final do século 19 ou início do 20” (Coutinho, 1980,
p. 26), significa dizer nada, pois a sociedade burguesa como um todo é produto
da luta de classes (e, por conseguinte, da luta operária), só que com o
predomínio da burguesia. A ditadura burguesa também surgiu graças à luta
operária (se ela ficasse passiva não haveria motivo para a burguesia substituir
a democracia pela ditadura) e, sendo assim, ela também seria um “valor
universal”?
Na verdade, a democracia burguesa é um “valor universal”
apenas para os setores da sociedade ligados intimamente a ela (a burocracia
partidária dos partidos social-democratas, por exemplo), pois a burguesia não
pensa duas vezes para ultrapassá-la e substituí-la pela ditadura e o
proletariado, sempre que realizou uma ofensiva de classe, a desprezou por ela
ser incompatível com o seu modo de produção e por este se caracterizar pela
abolição do estado e das classes sociais (e, por conseguinte, na forma de
relação entre ambos) e da dicotomia entre “economia” e “política”, instaurando
a autogestão social.
Os ideólogos da democracia burguesa como valor universal
se “esquecem” que existe uma diferença radical entre os modos de produção e,
por conseguinte, em suas formas de regularização. O modo de produção feudal é
radicalmente distinto do modo de produção capitalista, e, por conseguinte,
também é radicalmente distinto sua forma de estado, sua mentalidade, sua
sociabilidade. E estas diferenças radicais se encontram entre dois modos de
produção classistas, e isto significa
que existem aspectos comuns (existe a luta de classes, a dominação de classe, o
estado, a ideologia, etc., só que sob formas radicalmente diferentes). Tais
diferenças se tornam ainda maiores quando se compara um modo de produção
classista com um modo de produção não classista (onde não existe classes e
lutas de classes, estado, ideologia, democracia, etc.). Por conseguinte, a
democracia burguesa é um regime político do estado capitalista e derivada do
modo de produção capitalista e não pode ser vista de forma isolada do conjunto
das relações sociais que lhe dão origem e consistência, pois isto seria uma
abstração metafísica.
É preciso reconhecer a historicidade da democracia burguesa
(e o seu caráter dependente da historicidade da sociedade em geral) e,
portanto, ela não é um valor universal e sim um valor burguês defendido por
setores da sociedade que tem interesse em sua permanência.
A idéia de que a democracia burguesa é um valor
estratégico e permanente para a realização do socialismo é outra ideologia
reformista e burguesa. A luta operária pela autogestão social ocorre tanto num
regime político ditatorial quanto num regime político democrático. Sem dúvida,
isto ocorre sob formas diferentes. No regime democrático-burguês existe uma
maior liberdade para divulgação de idéias, de reunião, etc. Mas sempre com
inúmeras limitações (para as classes exploradas, tais liberdades são
restringidas por suas condições financeiras e para os grupos revolucionários
isto também vale, em menor grau, mas para eles existem outras limitações: as
legais, que não permitem determinados excessos). Esta maior “liberdade” no
regime democrático-burguês é acompanhada pela corrupção de grupos políticos e
indivíduos das classes exploradas, através tanto da participação na própria
democracia burguesa quando na sua integração em instituições burguesas.
No regime ditatorial-burguês não se pode contar com as
liberdades civis e políticas e nem com garantias jurídico-legais. Porém, a
cooptação e corrupção dos grupos políticos e dos movimentos sociais é menor.
Isto, por sua vez, permite uma maior autonomia das classes exploradas.
Desta forma, observamos que tanto o regime democrático
quanto o regime ditatorial oferecem vantagens e desvantagens para o movimento
revolucionário. Qual dos dois regimes é mais estratégico para a luta operária?
Do ponto de vista histórico, as principais tentativas de revolução proletária
ocorreram sob ambos os regimes. Tomando a tentativa de revolução proletária na
Rússia, na Polônia na década de 80, entre outras, veremos que elas se
desencadearam sob o regime ditatorial. Se observarmos o caso da guerra civil
espanhola em 36, a tentativa de revolução alemã no inicio do século, veremos
que elas se concretizam sob regime democrático. Isto significa que a revolução
proletária pode ocorrer sob qualquer um destes dois regimes. Em ambos há também
a possibilidade de contra-revolução.
Isto quer dizer que do ponto de vista do movimento
revolucionário é indiferente qual dos dois regimes políticos burgueses é
predominante? A resposta é negativa, pois é preferível o regime
democrático-burguês. A revolução proletária sob regimes ditatoriais possui uma
grande desvantagem que é a reprodução do autoritarismo do regime em setores do
movimento oposicionista (e não somente o revolucionário), tal como se vê no
partido Bolchevique na Rússia, que era uma cópia da autocracia czarista. Além
disso, sob o regime democrático-burguês é possível iniciar um processo de
revolução cultural em alguns espaços no interior da sociedade burguesa (graças
à ausência “relativa” de censura, à círculos e grupos que se formam visando uma
ação anti-capitalista, à espaços nos movimentos sociais e entidades de base,
etc.). Além disso, o regime ditatorial é marcado por uma forte repressão
marcada por arbitrariedade e excesso de perseguição.
Estes motivos deixam entrever que é mais vantajoso para o
movimento revolucionário lutar sob o regime democrático-burguês. Entretanto,
isto não deve nos iludir e fazer com que pensemos que a democracia burguesa é
“um valor estratégico e permanente”. A democracia burguesa é apenas um pouco
mais favorável e por isso mais desejável para a efetivação da luta
revolucionária.
Isto significa que a outra idéia que acompanha a
ideologia da democracia burguesa como valor universal – a de que a democracia
burguesa (“representativa”) deve continuar existindo no socialismo juntamente
com a “democracia direta” dos conselhos operários — também é falsa. Este é o
caso de Coutinho, que, retomando Max Adler e outros reformistas, sustenta a
tese de que é possível uma “dualidade de poderes” num regime socialista, onde
haveria, de um lado, a democracia representativa, de outro, a democracia
direta. Ele, utilizando a estratégia gramsciana de “conquistar os intelectuais
tradicionais”, busca apoio em diversos autores (Adler, Kaustky, Togliatti,
Poulantzas, Gramsci, etc.) e às vezes até colocando na boca deles afirmações
categóricas que, na verdade, não passam de dúvidas. Veja o exemplo de Agnes
Heller: “igualmente no quadro de uma concepção processual” da revolução, Agnes
Heller defende explicitamente a atualidade do ‘duplo poder’: “segundo penso, o
‘duplo poder’ é um ótimo ponto de partida para a transformação socialista.
Pensemos, por exemplo, como seria positivo, na Europa de hoje, um sistema de
duplo poder, no qual – ao lado da direção parlamentar – atuasse concretamente
um sistema de conselhos populares” (Coutinho, 1985, p. 73). Lendo tal trecho
podemos supor que Heller concebia o “duplo poder” como a forma de governo em um
regime socialista. Mas vejamos o que ela diz: “segundo penso, o ‘duplo poder’ é
um ótimo ponto de partida para a
transformação socialista, pensemos, por exemplo, como seria positivo, na
Europa de hoje o sistema de duplo poder, no qual — ao lado da direção
parlamentar — atuasse concretamente um sistema de conselhos populares. Não sei que conseqüências essa revolução
teria se não fosse a irrupção de outubro, não é possível saber” (Heller,
1982, p. 72). Assim observamos que Heller diz que o “duplo poder” é um ótimo
“ponto de partida”, para a “transformação socialista”, tal como a revolução de
fevereiro na Rússia, cujas conseqüências, caso não houvesse a contra-revolução
bolchevique, seriam imprevisíveis. Por conseguinte, não há nenhuma defesa do
duplo poder como algo que fizesse parte de uma sociedade socialista.
A sociedade socialista é uma sociedade autogerida e, por
conseguinte, não há nenhum sentido em falar em democracia, seja direta,
representativa ou ambas, pois nesta sociedade há a abolição do estado e das
classes sociais, e, por conseguinte, dos regimes políticos, incluindo o
democrático em suas diversas formas. Autogestão não é sinônimo de “democracia
direta” e ela é antagônica a toda forma de democracia – tal como foi definida
aqui – e é uma relação social que se generaliza em toda sociedade, abolindo
toda e qualquer necessidade de processo eleitoral tal como praticado na
democracia burguesa.
A democracia burguesa contemporânea se fundamenta em
alguns elementos básicos que são: A) o domínio do direito; B) a separação dos
“três poderes”; C) o sistema eleitoral; D) o sistema partidário. Todos estes
elementos tendem a reforçar o caráter burguês e/ou burocrático da democracia
moderna.
O domínio do direito, como já foi colocado, significa o
predomínio da lei e, portanto, da igualdade formal dos cidadãos frente ao
estado. A ideologia dominante chama isso de “estado de direito”. Porém, não
devemos nos iludir com este “predomínio de lei”, pois existem muitas formas de
burlá-la e os poderosos sempre o fizeram. De qualquer forma, o direito é uma
das formas de regularização das relações sociais sob o capitalismo, tanto pela
legislação que cria e que é indiscutivelmente burguesa quanto pela legitimação
que ela fornece ao estado e ao conjunto das relações sociais (incluindo as
relações de produção), já que a lei é uma regra geral que se aplica a todos os
indivíduos.
Este direito, ou melhor, o conjunto das leis existentes,
é produzido pelo estado, sendo que no regime democrático-burguês isto é feito
via, principalmente, o parlamento (poder legislativo). Além disso, uma parte
destas leis visa regularizar a própria democracia burguesa (legislação
eleitoral, partidária, etc). As leis produzidas pelo parlamento refletem os
interesses da classe dominante e, em alguns casos, das suas classes auxiliares.
As leis que regularizam a democracia burguesa não fogem a esta regra, tal como
veremos mais adiante quando formos tratar do sistema eleitoral e do sistema
partidário.
A separação dos três poderes, por sua vez, cumpre o papel
de dificultar qualquer colaboração com a transformação social através do
processo eleitoral. Através do processo eleitoral se elege aqueles que vão
assumir o poder executivo e o poder legislativo. Isto quer dizer que o poder
judiciário, que cumpre o papel de fiscalizar e julgar as infrações à lei, não é
acessível a qualquer cidadão que tenha o direito (e as condições, como veremos
a seguir) de se candidatar a qualquer “cargo público”. A forma de recrutamento
dos integrantes do poder judiciário, na maioria dos casos, é através de
concurso público (o sistema de exame, qualificado por Marx como “batismo
burocrático do saber”), o que impede que aqueles que discordam da ideologia do
poder judiciário sejam aprovados. Além disso, o concorrente precisa ter um
currículo que lhe permita participar do concurso, tal como possuir o diploma do
curso de direito, o que lhe garante quatro ou cinco anos de doutrinação, além
de todo o processo requerido para o acesso, permanência, conclusão, etc.
O poder legislativo, por sua vez, possui uma autonomia
bastante restrita. Esta restrição vem, em primeiro lugar, do próprio regimento
interno do parlamento. Além disso, a existência de uma Constituição Federal que
só pode ser alterada através de uma maioria esmagadora (isto varia de acordo
com o país e a época, mas geralmente gira em tomo de dois terços, ou seja, 66%
dos votos), cria inúmeras limitações a qualquer tentativa de alterar
radicalmente o sistema de leis. O poder executivo também interfere no poder
legislativo, seja enviando projetos de lei, seja recusando aprovar certas leis
(pois, geralmente, todas as leis aprovadas no parlamento devem receber a
anuência do presidente). Por fim, os indivíduos que compõem o parlamento são
escolhidos através da via eleitoral e por isso (como colocaremos a seguir) são
provenientes maciçamente da classe dominante e de suas classes auxiliares, o
que reforça o seu caráter conservador.
O poder executivo que é eleito pelo voto da população não
é todo o estado capitalista, mas apenas parte dele. Na verdade o governo é uma
pequena parte do estado capitalista, que é composto ainda pelas forças armadas,
pela burocracia do aparato do estado e pelas instituições estatais, etc. Por
conseguinte, o governo também sofre diversas limitações para desenvolver suas
atividades (a legislação em vigor, a burocracia permanente no estado, etc).
Além disso, não é de seu interesse criar confrontos, pois o governo eleito
geralmente representa a classe dominante, ou, em alguns casos, as suas classes
auxiliares, e para se manter no poder precisa não só do apoio das classes
privilegiadas como também necessita da estabilidade financeira e social.
O sistema eleitoral, tal como instituído pela lei, cria
inúmeros obstáculos para a participação das classes exploradas e subalternas.
Em primeiro lugar, ele impõe aos indivíduos que pretendem se candidatar
determinadas exigências (isto também varia de acordo com o país e a época, tais
como referentes à nível de renda escolarização, idade, filiação partidária,
etc) que beneficiam os membros da classe dominante e de suas classes
auxiliares. Em segundo lugar, determinadas formas de voto e de contagem deles
beneficiam uns partidos e prejudicam outros. Além destes, poderíamos
acrescentar diversos outros obstáculos que o sistema eleitoral cria para a
participação das classes exploradas e das classes subalternas na democracia
burguesa.
Mas o sistema eleitoral consolida este papel conservador
quando institui o sistema partidário. Tal sistema impõe limites legais à formação
de partidos, exigindo uma certa forma de organização, número mínimo de filiados
e candidatos às eleições, etc. Todas essas exigências servem para reforçar o
processo de burocratização dos partidos e, conseqüentemente, o processo de
corrupção dos partidos que possuem no seu interior uma quantidade grande de
membros provenientes das classes exploradas e das classes subalternas.
Por fim, observamos os limites legais que a democracia
burguesa cria para a participação das classes sociais (que atinge principalmente
as classes exploradas e subalternas). Mas além destes limites legais existem
outros obstáculos que são produzidos pela própria essência da sociedade
capitalista. O conjunto das chamadas “liberdades democráticas” são menos
acessíveis às classes exploradas e subalternas. A sociabilidade capitalista e a
mentalidade burguesa, juntamente com o sistema partidário, corrompem indivíduos
e até mesmo grupos inteiros[13].
Desta forma, observamos que a democracia moderna é uma
forma de dominação burguesa e, assim como o estado capitalista, deve ser
destruída e substituída pela autogestão.
[1] Alguns autores buscam definir a democracia
tratando-a, simultaneamente, como realidade existente e como projeto político
(cf. Saes, 1987). Tal abordagem utiliza o recurso de acrescentar um adjetivo a
palavra democracia e com isso temos ao lado da indesejável democracia burguesa,
a desejada democracia proletária ou socialista. Entretanto, isto entra em
visível contradição com a definição de democracia anteriormente fornecida e,
além disso, falar em uma “democracia burguesa” tem sentido por ela se
diferenciar da ditadura burguesa (que é uma oposição entre ditadura burguesa
oculta — democracia — e ditadura burguesa aberta) e da democracia escravista,
mas no caso de uma “democracia operária” isto não tem o menor sentido.
[2] “Ali onde varia a forma de Estado, varia
simultaneamente o regime político. Assim, a cada forma de Estado corresponde um
regime político. Isto nos permite designar uma certa forma de Estado e o regime
político que lhe é correlato por uma única expressão” (Saes, 1987, p. 22).
Claro que o autor diz que estes termos não são sinônimos mas complementares.
Entretanto, se há correspondência entre eles, então é desnecessário usar duas
expressões e, a título de exemplo, poderíamos dizer que existe uma forma de
Estado democrático quando o padrão de organização interna e a relação entre o
corpo de funcionários e os membros das classes exploradoras na
definição/execução das políticas estatais são (ambos) democráticos.
[3] Além da definição de Saes podemos citar
esta: “no sentido amplo, chama-se regime político a forma que, num dado grupo
social assume a distinção geral entre governantes e governados. Numa concepção
mais restrita, o termo ‘regime político’ aplica-se tão somente à estrutura
governamental de tipo particular de sociedade humana: a nação” (Duverger, 1966,
p. 09).
[4] A partir desta concepção parece se tomar
vazios os termos derivados de democracia, tais como democratas, democratização,
democratizar, etc. Porém, estes termos continuam se aplicando a determinada
realidade. Assim, por exemplo, democrata é um partidário da democracia e
democratizar significa ampliar a participação restrita (que continua restrita,
ou seja, não ultrapassa os limites intransponíveis do regime
democrático-burguês) das classes sociais, principalmente das classes sociais
subalternas e exploradas.
[5] “Do povo estavam excluídos pelo crivo da
cidadania, as mulheres, os escravos, os servos, os pastores e os estrangeiros.
Os cidadãos, após a reforma legislativa, constituíam 100% da população. Estavam
longe de propor uma forma de poder que reunisse toda população, mesmo aquela restrita
população reunida entre os muros da polis”
(Costa, 1986, p. 20).
[6] Tais
aspectos foram descritos, no caso do Partido Social-Democrata Alemão, por
Michels (1981).
[7] “O ato eleitoral e seus resultados
desencadearam uma imediata reação nas massas. Sem esperar o decreto de anistia,
elas se jogaram às prisões para libertar os insurretos de 1934. Isto aconteceu
em Valencia, em Oviedo (nas Astúrias) e um pouco por toda a Espanha. A essa
libertação seguiram-se greves políticas generalizadas pedindo a reintegração
imediata dos operários demitidos e o pagamento dos salários atrasados. A elas
se juntaram greves de caráter mais reivindicativo, algumas longas. Os patrões
respondiam fechando as fábricas. No campo a situação tornou-se ainda mais
explosiva. Os camponeses ocupavam imediatamente as terras dos grandes
proprietários e começaram a cultivá-las. Isso aconteceu em Badajoz, Cáceres, na
Extremadura, na Andaluzia, em Las Tellas e em Navarra. Incidente sangrentos
verificaram-se entre trabalhadores rurais e guardas-civis. Os patrões
responderam não contratando homens para as colheitas, mesmo ao preço de
substanciais perdas econômicas — ao mesmo tempo a igreja tomou-se o alvo da ira
popular: a qualquer boato sobre uma ‘conspiração de padres’, conventos e
igrejas eram incendiados” (Almeida, 1981, p. 27-28).
[8] Esta verdade é admitida tanto por
conservadores assumidos como por pessoas influenciadas pelo marxismo. Peguemos
o exemplo de Lipset: “talvez a generalização mais comum, associando os sistemas
políticos a outros aspectos da sociedade, seja a de que a democracia está
relacionada com a situação de desenvolvimento econômico. Quanto mais próspera
for uma nação, tanto maiores são as probabilidades de que ela sustenha a
democracia” (Lipset, 1967, p. 49). Esta posição é análoga à de Alan Wolfe: “a
expansão da democracia tem sido uma característica em cada Ascenso da onda de
Kondratiev, da mesma maneira que a desesperança e o pessimismo sobre a
democracia caracterizaram as classes dominantes a cada descenso da curva” (Wolfe,
1980, p. 19).
[9] Podemos citar este protesto em 1951 de
Palmiro Togliatti, do Partido Comunista Italiano, sobre o regime eleitoral
inglês: “disserto, tem lugar na Inglaterra eleições regulares, com a
conseqüente rotatividade de partidos no poder; mas, nas recentes eleições, por
exemplo, o partido trabalhista obteve 300 mil votos a mais que o partido
conservador e, apesar disso ficou em minoria no parlamento. Atuou em detrimento
dos trabalhistas uma organização eleitoral criada e mantida com a finalidade de
fazer com que, na balança eleitoral, pesem mais as forças conservadoras e
reacionárias, e, portanto, de tomar particularmente difícil a afirmação dos
operários como força de governo. E se trata, vejam bem, de um partido operário
como o trabalhista, que não é nem revolucionário nem proletário, mas burguês e
timidamente reformista” (Togliatti, 1980, p. 98); “Na França, a consulta
eleitoral foi sempre organizada de modo a atribuir ao voto do operário de Paris
ou de St. Etienne um valor duas ou três vezes inferior ao voto de um
proprietário de terras ou de um pastor da zona montanhosa” (Togliatti, 1980, p.
99)
[10] “A
ditadura é o poder não submetido à lei. Funciona, sem embargo, não só para
suspender e abolir leis mas também para defendê-las e criá-las. Não está
submetido aos ditames da lei porque é ela mesma a fonte destes ditames” (Moore,
1972, p. 34).
[11] “A onipotência da ‘riqueza’ também é mais
segura nas repúblicas democráticas porque não depende de uns ou outros defeitos
do mecanismo político nem da má forma política do capitalismo; e, portanto, o
capital, ao dominar (...) Esta forma, que é a melhor de todas, alicerça seu
poder de um modo tão seguro, tão firme, que não perturba nenhuma troca de
pessoa, nem de instituições, nem de partidos dentro da república democrática
burguesa” (Lênin, 1987, p. 6l). S. Moore, baseando-se em Engels e Lênin,
defende a mesma posição (cf. Moore, 1972).
[12] Segundo Albert Soboul, a declaração dos
direitos de 1789 reconhece o direito de liberdade econômica, cultural, etc, ou
mais do que isso, incluindo também “as liberdades públicas e políticas”. “Ela é
um direito natural impresctível, de acordo com o Art. 02 da declaração dos
direitos, somente limitada pela liberdade de outrem (Art. 04). Ela é,
primeiramente, a da pessoa, liberdade individual garantida contra as acusações
e as prisões arbitrarias (Art. 07) e pela presunção de inocência (Art. 09).
Senhores de si mesmos, os homens podem falar e escrever, imprimir e publicar
livremente, à condição de que a manifestação das opiniões não perturbe a ordem
estabelecida pela lei e salvo para responder pelo abuso desta liberdade (Arts.
10 e 11). (...) No plano político, o liberalismo burguês encamou-se na
constituição dita de 1791 mas cujas principais disposições foram votadas desde
o fim de 1789: com base na soberania nacional e na separação dos poderes (Arts.
03 e 06 da declaração), ela organizou um sistema representativo caracterizado
de fato pela predominância da Assembléia Legislativa. A descentralização
administrativa, a reforma judiciária, a nova organização fiscal e até a
reorganização da igreja pela constituição civil do Clero (12 do Julho de 1790),
respondiam à mesma preocupação de liberalismo: no quadro de urna organização
corrente nacional, todos os administradores eram eleitos, e mesmo os bispos,
por sufrágio censitário” (Soboul, 1985, p.
49-50). A ditadura Jacobina aproximou se em alguns aspectos da liberdade
burguesa, embora não tenha colocado todos eles em prática, sob a justificativa
de que era um governo de guerra. Tal como colocou A. Z. Manfred., a partir do 9
do termidor de 1794 (quando jacobinos foram derrotados), “as maiores
realizações sociais e democráticas da ditadura jacobina foram anuladas. Em 1795
foi elaborada uma constituição que abolia o sufrágio universal e restaurava as
classificações eleitorais baseadas na propriedade” (Manfred, 1982, p. 43-44).
[13] Sobre isso, cf. Viana, 1991. Esta tese
também é defendida pelo sociólogo T. Bottomore, que expressa algumas das
dificuldades dos indivíduos das classes exploradas em participar da democracia
burguesa: “grandes desigualdades de riquezas e rendimentos influenciam
nitidamente o grau de participação dos indivíduos na direção da comunidade. Um
rico pode ter dificuldades em penetrar no reino dos céus, mas encontrará
relativa facilidade para penetrar nos altos conselhos dum partido político ou
em algum ramo do governo. Pode também exercer influência sobre a vida política
de outras formas: controlando os meios de comunicação, travando relações nos
círculos políticos mais altos, assumindo um papel proeminente nas atividades de
grupos de pressão e órgãos consultivos de diversos tipos. Um pobre não tem
nenhuma destas vantagens: não possui relações influentes, pouco tempo ou
energia lhe restam para dedicar à atividade política e tem pouca oportunidade
de adquirir um conhecimento profundo de idéias ou fatos políticos. As
diferenças que têm sua origem em desigualdades econômicas são acrescidas de
diferenças educacionais. Na maioria das democracias ocidentais o tipo de
educação ministrado às classes que fornecem, fundamentalmente, os dirigentes da
comunidade diferencia-se nitidamente do ministrado às classes mais numerosas
dos dirigidos” (Bottomore, l974, p. 111- 112).
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