A BANALIZAÇÃO DA
VIOLÊNCIA E A MANIFESTAÇÃO ESTUDANTIL
Nildo
Viana
Uma onda de protestos referentes ao
aumento do preço das passagens de ônibus vem ocorrendo no Brasil. Em Goiânia,
houveram cinco manifestações e em outras cidades já aconteceram vários. Destes
vários protestos e movimentos, dois se destacaram, o do dia 28 de maio em
Goiânia e o do dia 13 de junho em São Paulo, principalmente pela força do
protesto e pela violência policial. Os manifestantes, principalmente estudantes
secundaristas e universitários, foram acusados de vandalismo, terrorismo. As
imagens na imprensa e na internet mostram a violência e truculência da polícia
militar. Isso não gerou nenhuma reação por parte dos governos, da imprensa, de
diversos setores da população. Esse fenômeno precisa ser explicado.
A explicação que podemos fornecer a isso é
a de que ocorre uma banalização da violência em nossa sociedade. A violência é
uma relação social de imposição, na qual indivíduos ou grupos impõem, sobre
outros indivíduos ou grupos, algo contra sua vontade e natureza (Viana, 2004;
Viana, 2002). Esse conceito de violência permite perceber que a violência é um
fenômeno mais amplo e universal, se manifestando sob múltiplas formas. Ao
contrário das ideologias que definem a violência apenas como agressão física ou
criminalidade, o que significa que ela se torna um atributo principalmente dos
mais empobrecidos da sociedade, aqui se torna possível compreender que a
violência se manifesta através da cultura, das instituições, etc. Na concepção
restrita e ideológica de violência ela é um ato comum realizado principalmente
pelas classes inferiores e na concepção aqui apresentada ela é um ato
cotidiano realizado principalmente pelos indivíduos das classes superiores e
a primeira forma, quando ocorre, é muitas vezes uma resposta à uma violência
anterior. Assim, dependendo da perspectiva de quem analisa o fenômeno da
violência, ela pode ser entendida como principalmente produzidas pelas inferiores ou pelas classes superiores. A primeira forma é a mais
perceptível para as representações cotidianas e para algumas ideologias
científicas e a segunda é menos perceptível e, por conseguinte, estará menos
presente nas representações cotidianas e aparecerá nas produções teóricas.
A violência está no nosso cotidiano, mas
ela está mais constantemente, em quantidade e intensidade, presente na vida das
classes inferiores. A violência no transporte coletivo é constante: o
ônibus lotado é a expressão simbólica máxima desse processo. Algumas pessoas
jamais imaginam o que é todos os dias acordar às 05 horas da manhã, esperar um
ônibus e pegar mais um ou dois, muitas vezes dependurado na porta pelo número
de pessoas dentro do mesmo, bem como do esforço e luta para entrar e depois
para sair. Essa violência é banalizada e gera mau humor, conflitos, entre
outros efeitos. Mas, se não bastasse a violência exercida cotidianamente pelo
mau serviço prestado, com inúmeros outros problemas que não iremos citar aqui,
ainda tem uma tarifa com valor que pesa no bolso dos setores mais pobres da
sociedade, e o seu aumento é um novo ato de violência.
Apesar dessa violência cotidiana e de
aparentemente não haver fortes reações, o volume de insatisfação uma hora gera
resistência e protesto. O que ocorreu em Goiânia no dia 28 de maio foi uma
reação natural e extremamente legítima por parte daqueles que protestavam, bem
como no caso de São Paulo no dia 13 de junho. O que para os proprietários das
empresas de transporte, os governantes, entre outros, são migalhas, para os
setores mais empobrecidos da sociedade, para os estudantes, e mesmo para os
setores com melhores condições de vida, o conjunto do gasto mensal pesa no
bolso e sem aumentos salariais, significa abrir mão de coisas necessárias ou
importantes para pagar um valor mais elevado da tarifa.
Portanto, há uma violência cotidiana em
nossa sociedade e no transporte coletivo e a reação é de se esperar e ela
ocorreu sob a forma de manifestação legítima. No entanto, a resposta dos
governantes foi a violência brutal e truculenta da polícia que agrediu e prendeu
aleatoriamente qualquer indivíduo que estivesse no protesto. As cenas não
deixam dúvidas e a truculência não provocou nenhuma reação por parte do resto
da sociedade. A violência policial é algo que não espanta, nem quando ela é
desproporcional e despropositada e nem quando assume a forma virulenta que
assumiu.
A violência cotidiana no transporte, que
atinge um ápice com o aumento da passagem, gera protesto que, por sua vez, gera
a violência estatal sob forma brutal. A violência cotidiana é banalizada, ninguém
se espanta com ela. A violência policial também é banalizada, até quando comete
excessos e age com virulência. Agora, um ato de violência isolado é razão para
acusações de vandalismo e terrorismo. Um ato de violência esporádico e isolado
chama a atenção quando a violência de todos os dias e a agressão física e moral
do sistema policial é algo tido como normal. Como já dizia o psicanalista Erich
Fromm (1976), numa sociedade doente é preciso desconfiar do que é normal e,
hoje, mais do que nunca, é fundamental superarmos a banalização da violência.
Referências
FROMM,
Erich. Psicanálise da Sociedade
Contemporânea. 2ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
VIANA,
Nildo. A Dinâmica da Violência Juvenil.
Rio de Janeiro: Booklink, 2004.
VIANA,
Nildo. Violência Urbana: A Cidade como
Espaço gerador de Violência. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
Nildo Viana é Professor da Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Goiás e Doutor em Sociologia pela
Universidade de Brasília; autor de várias obras sobre violência.
* A primeira versão desse texto foi publicada no Blog Informe e Crítica e a segunda versão foi publicada no site "Debates Culturais", , por solicitação dos responsáveis, que deixou de existir.
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