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domingo, 27 de fevereiro de 2011

O ANARQUISMO SEGUNDO DANIEL GUÉRIN


O ANARQUISMO SEGUNDO DANIEL GUÉRIN

Nildo Viana

O livro de Daniel Guérin, O Anarquismo – Da Doutrina à Ação, é uma das obras mais interessantes de introdução ao anarquismo. Além dos clássicos do anarquismo, as obras de introdução ao anarquismo, tais como a de Arvon, Woodcock, Horowitz, Furth, Vega, Pilla Vares, Joll, entre outras, são importantes, mas o livro de Guérin tem algumas diferenças. Em primeiro lugar, não é apenas um exercício acadêmico de expor as diversas teses e práticas anarquistas e sim um livro engajado, fora da pretensão ilusória e prestidigitadora da ideologia burguesa da neutralidade. Em segundo lugar, Guérin consegue sair do mundo das idéias e revela a prática libertária ocorrida em algumas das mais importantes experiências históricas do anarquismo. Em terceiro lugar, coloca as idéias anarquistas no contexto histórico e assim não realiza a descontextualização e desenraizamento social, bastante comum quando se trata de história das idéias. Isto não poderia ser diferente, já que se trata de um autor como Daniel Guérin. Neste pensador, as trajetórias políticas e intelectuais se fundem no sentido de abraçar a causa libertária.

Guérin nasceu em 19 de maio de 1904 em Paris. De família burguesa e formação católica, Guérin escreveu, durante parte de sua juventude, romances e adaptações de obras literárias para o teatro e somente se tornou um militante político com o passar do tempo. Em 1925 defende sua tese de conclusão de curso em Ciência Política, A Evolução Política de Lamartine, do Legitimismo à Revolução de 1848. É a partir de 1930 que ele passa a atuar politicamente. Inicia sua militância ao lado de Pierre Monatte no sindicalismo revolucionário, através da revista Revolution Proletarianne (Revolução Proletária). Posteriormente, sob influência trotskista, inclusive do próprio Leon Trotsky, atua na SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária), fundada em 1905 através da fusão dos seguidores de Jules Guedes e Jean Jaurés, organização na qual haviam entrado militantes trotskistas a partir de 1930 e mais tarde adotará o nome de Partido Socialista Francês. Ele publicou suas primeiras obras importantes neste período, tal como La Peste Brune (A Peste Marrom), escrito em 1932 a partir do relato de sua viagem para a Alemanha ocorrida neste mesmo ano e Fascisme et Grand Capital (Fascismo e Grande Capital), publicado em 1936. As duas obras analisam o fenômeno nazi-fascista, sendo a segunda uma pormenorizada e essencial análise da relação do grande capital e do fascismo.

Ainda na SFIO se alia à Esquerda Revolucionária, grupo animado por Marceau Pivert. Acompanha este último após a exclusão da SFIO na fundação do Partido Socialista Operário e Camponês, que critica a SFIO por ser reformista e o Partido Comunista Francês por ser stalinista. Participa das ocupações de fábrica durante as ações da Frente Popular em combate ao nazi-fascismo, apóia a Revolução Espanhola, se transfere para a Noruega, sendo encarregado em Oslo de criar um secretariado internacional da Frente Operária Contra a Guerra em oposição à guerra imperialista. Além disso, ainda colabora clandestinamente com o trotskismo de 1943 a 1945.

Em 1947 muda para os Estados Unidos, onde fica até 1948, quando é expulso devido à política marchartista, e passa a atuar em estrita ligação com o movimento operário norte-americano e com o movimento negro. Nesta época, escreverá sobre ambos os movimentos, destacando seus livros Descolonização do Negro Americano, publicado em 1951, e os dois volumes (1950-1951) de Aonde vai o Povo Americano? Nesta mesma época escreve vários artigos.

No entanto, logo ele romperia com esta posição e passaria a se aproximar do anarquismo, sem abandonar o marxismo, mas se opondo radicalmente ao que ele chamava “jacobinismo”, isto é, o bolchevismo, e outras tendências que ele denominava, tal como é comum na tradição anarquista, “socialismo autoritário”. Após sua volta para a França, passa a ler as obras completas de Bakunin e sofre o impacto da emergência dos conselhos operários húngaros contra o capitalismo estatal em 1956. Uma nova fase de seu pensamento se inicia neste período, que poderia ser chamada “socialista libertária”. Passa a publicar diversas obras sobre sexualidade, colonialismo, questão racial, entre outros temas. Também passa a ser um militante do anticolonialismo. Cabe destaque ao livro Jeunesse du Socialisme Libertaire (Juventude do Socialismo Libertário), de 1959, texto no qual defende a síntese entre marxismo e anarquismo, o socialismo libertário. Em sua reedição alterada, intitulada Pour un Marxisme Libertaire (Por um Marxismo Libertário), afirma que “socialista libertário”, termo com o qual se definiu por dez anos, havia se tornado inapropriado, pois havia socialismos de todos os tipos, tal como o reformismo social-democrata, o comunismo revisionista e o humanismo adulterado. Guérin diz que precisava de uma “etiqueta própria” para ser identificado e por isso passaria a se autodenominar marxista libertário, inspirado por estudantes italianos com os quais debateu e assim se definiam.

A partir dos anos 60, Daniel Guérin irá produzir um conjunto de obras significativas, além de reeditar algumas obras já publicadas. Claro que não poderíamos deixar de citar suas obras sobre o colonialismo, a questão sexual, a Revolução Francesa, bem como as coletâneas sobre anarquismo e anarquistas que ele organizou. É justamente a partir dos anos 60 que ele produz mais intensamente sobre anarquismo e marxismo libertário, tanto organizando coletâneas (de Proudhon e Bakunin, por exemplo, até Nem Deus Nem Amo, Antologia Histórica do Anarquismo), reavaliando seu próprio pensamento e produzindo obras de destaque, tais como Estados Unidos: 1880-1950 – Movimento Operário e Camponês; O Anarquismo – Da Doutrina à Ação e Rosa Luxemburgo e a Espontaneidade Revolucionária.

Também se aliou ou atuou em diversas organizações políticas neste período, tal como o PSU – Partido Socialista Unificado, oriundo da fusão de diversos grupos e dissidências de partidos e contando com grupos minoritários luxemburguistas e trotskistas, do qual se afasta em 1962 por seu reformismo. Aproximou-se da Revista Rouge e Noir (Vermelho e Negro), periódico anarquista, e do Movimento 22 de Março, e foi um dos fundadores do MCL – Movimento Comunista Libertário, que mais tarde se fundiu com o ORA – Organização Revolucionária Anarquista, até ingressar, juntamente com George Fontenis, no UTCL – União dos Trabalhadores Comunistas Libertários, onde permanece até sua morte, em 1984. Neste ano, lança a última revisão e ampliação de sua obra Jeunesse du Socialisme Libertaire (que já havia se transformado em Pour un Marxisme Libertaire) que passa a ter o título Para uma Investigação do Comunismo Libertário.

É justamente a partir dos anos 80 e sua adesão ao UTCL que ele passa a utilizar preferencialmente a expressão “comunista libertário”, adotando posições consideradas por alguns como sendo “conselhistas”. Porém, Guérin faz questão de afastar a confusão entre o sentido em que ele usa a expressão “comunista libertário” de outros sentidos, especialmente os de Kropotkin e Isaac Puente. Segundo Guérin, Kropotkin e seus discípulos forneciam um sentido utópico a esta palavra ao sonhar com “um paraíso terrestre sem dinheiro” e com “abundância de recursos” que permitiria o livre consumo. Erro semelhante se encontrava na concepção que ele denominou “idílica” de Isaac Puente que antes de 1936 imaginou, no interior da CNT (Confederação Nacional do Trabalho) espanhola, o aparecimento de “comunas livres” numa “bela manhã”.

O livro O Anarquismo – Da Doutrina à Ação é uma obra de 1965 que continua sendo atual e uma das mais importantes sínteses do pensamento e prática anarquistas. A obra que teve inúmeras reedições em vários países, tornou-se, segundo afirma o próprio Guérin, um best-seller após o maio de 1968, movimento no qual exerceu influência. Esta obra não só continua atual como tende a preservar sua atualidade, pois é leitura fundamental que trata de questões essenciais tanto para os militantes anarquistas quanto para os marxistas libertários.

Assim, resta entender o motivo por qual esta obra tenha sido resgatada e sua persistente atualidade. Ora, na França, na década de 60, o contexto era marcado por uma social-democracia vinculada ao Partido Socialista Francês que nada tinha a ver com o projeto revolucionário. O mesmo ocorria com o Partido Comunista Francês, que foi encantado pela sereia reformista-stalinista do eurocomunismo. As seitas trotskistas, que desde a morte do seu fundador e ídolo-fetiche, Leon Trotsky, não tinham nada a oferecer e se limitavam – e não mudou nada de lá para cá – a repetir as eternas ladainhas sobre a crise da direção revolucionária e, no caso de algumas seitas, ainda repetiam dogmaticamente a tese trotskista, elaborada por Trotsky em 1940, segundo a qual o desenvolvimento das forças produtivas havia estagnado, e isto contra todas as evidências advindas do intenso desenvolvimento tecnológico proporcionado pela retomada da acumulação capitalista do pós-Segunda Guerra Mundial. Assim, a esquerda oficial nada tinha a oferecer e se acomodava tranquilamente ao poder.

Também existiram alguns grupos dissidentes, tal como o Socialismo ou Barbárie, de Castoriadis e Lefort, que realizava uma defesa da autogestão numa perspectiva administrativa e que, além disso, não apresentava grande criatividade. Este grupo contribuiu, no entanto, com a discussão sobre autogestão, embora limitada, e a crítica ao bolchevismo e capitalismo de Estado (ou “burocrático”, segundo Castoriadis) e ao retomar idéias e textos ocultados pela esquerda oficial, tal como os de Alexandra Kollontai sobre a Oposição Operária na Rússia de 1921. A Internacional Situacionista, animada por Debord, Vaneigem, Jorn e outros, era uma exceção, mas além de teses muito abstratas, vontade de escandalizar e sectarismo das constantes expulsões de Debord, não conseguiram grande ressonância, a não ser nas vésperas do Maio de 68. Isto, obviamente, não retira os méritos dos situacionistas, principalmente a contribuição para a compreensão da sociedade capitalista no período, denominada por Debord de “sociedade do espetáculo”, bem como a sua crítica ao bolchevismo e social-democracia.

Nos meios intelectuais, havia Sartre e o existencialismo, defendendo, neste período, sua união com o marxismo, em competição com o modismo estruturalista e apresentando algumas teses interessantes. No campo intelectual, o leninismo e suas diversas variantes não saíam de sua estagnação intelectual e dogmatismo, tal como no caso de Lucien Sève, crítico da psicanálise, ou então na tentativa de inovação com a união com o estruturalismo, criando o Frankenstein do “marxismo-estruturalista” de Althusser e seguidores.

O livro de Guérin, assim, representava a expressão de uma alternativa. O anarquismo poderia representar uma nova esperança. Era uma alternativa, que tinha a concorrência do situacionismo, mas que ao contrário deste, tinha um caráter mais concreto e acessível. Assim, Guérin exerce, mesmo sem grandes estardalhaços, certa influência, principalmente sobre setores da juventude. Aliado com outras obras suas, especialmente através de Jeunesse du Socialisme Libertaire ou os artigos que serão publicados em revistas (e acrescentados a esta obra na ocasião da publicação de Por um Marxismo Libertário), consegue estar presente nas lutas sociais que culminam com o Maio de 68 em Paris. A atualidade do movimento que é tema da obra O Anarquismo, e que se manifestou historicamente em 1968 e em vários acontecimentos históricos anteriores e posteriores, reforça a percepção da necessidade de sua leitura nos dias de hoje.

Neste momento, O Anarquismo passa a ser uma leitura que tem a ver diretamente com as lutas cotidianas, de busca de novos caminhos, de se pensar a prática de forma não dogmática, de agir e pensar num sentido libertário. A palavra “libertário” se presta a muita confusão. Como o próprio Guérin explica na presente obra, a expressão utilizada por Joseph Déjacque e retomada por Sébastien Faure, fez com que libertário e anarquismo se tornassem praticamente sinônimos. Porém, historicamente a palavra acabou ganhando outros sentidos e o próprio Guérin se auto-intitulava socialista libertário, mas não querendo com isso se dizer um “anarquista puro” e sim um anarquista marxista.

Posteriormente, ele escolhe “marxismo libertário”. Por fim, termina preferindo “comunismo libertário”. O que significa, então, libertário? Etimologicamente, libertário é quem luta, deseja ou defende a liberdade, no sentido autêntico do termo (não simplesmente as liberdades formais, tal como da democracia burguesa). Assim, em sentido amplo, anarquista e libertário são sinônimos, mas em sentido estrito, são coisas que podem ser distintas, pois o anarquismo não pode querer, a não ser a custa de uma forte contradição, monopolizar o caráter libertário. Por isso, é possível falar em marxismo libertário, ou comunismo libertário, tal como o faz Guérin. Sem dúvida, Guérin era libertário e o foi sendo de certa forma, passando por concepções políticas diferentes, às vezes mais anarquista, às vezes mais marxista, mas sempre libertário, embora não sem contradições e equívocos.

Talvez este seja um dos principais elementos que permitiu a Daniel Guérin exercer forte influência tanto nas lutas sociais na França no final da década de 60 quanto em milhares de militantes políticos, desde marxistas dissidentes, antibolcheviques e anti-reformistas à anarquistas. Cabe destaque, no conjunto da obra de Guérin e neste processo de influência e retomada pós-68, a obra O Anarquismo.

O Anarquismo faz um balanço necessário das idéias e práticas anarquistas, uma das melhores já produzidas. Guérin divide a obra em três partes. A primeira parte aborda as idéias-força do anarquismo; a segunda trata da sociedade futura e, na terceira, a prática anarquista durante as revoluções operárias. A primeira parte abre destaque para o pensamento anarquista, no qual o pensamento de Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Stirner e Malatesta, aparece na discussão de grandes temas da história das idéias anarquistas, tal como o problema do indivíduo, das massas, do Estado, da democracia burguesa, da organização, do termo anarquismo, entre outras. Embora se possa discordar amplamente da forma como ele expõe o pensamento destes pensadores, é visível o esforço de Guérin em mostrar a diversidade de posicionamentos no interior do pensamento anarquista e sua produção num determinado contexto histórico, bem como nas mutações que ocorreram no decorrer da história de vida destes indivíduos que fizeram eles aderirem ou se afastarem do anarquismo, aprofundarem ou recuarem no caráter libertário de seu pensamento.

A discussão sobre o termo anarquia é fundamental. Em primeiro lugar, anarquia não significa, como alguns insistem em pensar, desorganização e caos. Sem dúvida, como coloca Guérin, às vezes até mesmo Proudhon e Bakunin usam a palavra neste sentido. As práticas de anarquistas inexperientes e principalmente uma suposta adesão ao anarquismo sem conhecer os princípios básicos desta tendência, faz com que muitos supostos anarquistas reforcem, com sua prática, este preconceito. Porém, anarquia significa uma sociedade sem governo, ou seja, uma sociedade no qual não existe uma classe social – ou qualquer nome que se lhe dê – de dirigentes ou dominantes, em contraposição a uma maioria dirigida e dominada. Trata-se, nesse caso, de uma sociedade autogerida, autogovernada e, portanto, organizada, mas não burocraticamente. A crítica da burocracia não significa recusa da organização. Significa tão-somente recusa da organização burocrática em favor da auto-organização. Neste sentido, o texto de Guérin é esclarecedor e deveria ser lido por todos os que pretendem criticar o anarquismo, o que muitos fazem por preconceito e sem nenhuma leitura ou pesquisa sobre ele. Assim, poderiam evitar críticas não-fundamentadas, preconceituosas, equivocadas e inaplicáveis ao anarquismo.

A sua discussão sobre o indivíduo e as massas, também é importante, assim como a questão fundamental da recusa do Estado e da crítica da democracia burguesa. Cabe destaque para um dos tópicos do primeiro capítulo, a crítica ao socialismo autoritário. Guérin não comete injustiças, por reconhecer que Marx não se encaixava tão bem na crítica que lhe foi endereçada por Bakunin, mas mostra a validade da crítica para aqueles que em nome dele realizaram uma contra-revolução e implantaram um capitalismo de Estado, isto é, o bolchevismo. Hoje, com a bancarrota do capitalismo estatal, permanece atual a crítica ao bolchevismo que ainda insiste em sobreviver, pois suas bases sociais e psíquicas ainda existem: a burocracia e/ou a personalidade autoritária de alguns indivíduos.
Na segunda parte, dedicada à sociedade do futuro, Guérin coloca as diversas posições entre as várias tendências anarquistas existentes. Ele apresenta a concepção mutualista e federalista de Proudhon, a concepção coletivista de Bakunin e a concepção comunista libertária de Kropotkin, além de outras. É claro que esta parte da obra é uma das mais polêmicas, mesmo porque Guérin não se limita a expor as posições dos demais pensadores, mas assume suas próprias posições. Claro que ao se partir de uma determinada posição, se entra em conflito com outra, a não ser que se crie uma síntese, o que não garante consenso, pois é possível que muitos mantenham a posição inicial.

Neste sentido, Guérin contribui expondo algumas concepções e apresentando a dele, embora se possa discordar dela. O ponto mais polêmico e passível de discordância nos meios libertários se refere justamente ao problema do dinheiro. É possível, no caso do dinheiro e da remuneração, se discordar da solução dos comunistas libertários da tendência de Kropotkin, tal como faz Guérin. Mas também a solução defendida por Guérin e Santillan é questionável. Os primeiros partem do erro de pensar seres humanos totalmente livres e sem heranças negativas da sociedade capitalista, segundo argumentação de Guérin. Guérin e Santillan, por sua vez, partem do erro oposto de tomar como base os seres humanos socializados e adaptados ao modo de vida capitalista, não percebendo que, ao aceitar e propor “novas” relações adequadas a estes seres humanos, abrem uma brecha enorme para a contra-revolução. Assim, fazem tal como Lênin em sua obra Como Iludir o Povo, na qual defende que o dinheiro não desaparece na sociedade socialista, mas se torna a “nata” da sociedade, se generalizando e ampliando o seu uso. Os resultados das teses de Lênin e seu “realismo” todos conhecem.

A terceira e última parte da obra aborda a prática anarquista. Desde o isolamento do movimento operário ocorrido de 1880 a 1914, passando pela Revolução Russa de 1917, pela emergência dos conselhos de fábrica na Itália em 1919, até a Guerra Civil Espanhola, Guérin faz um apanhado histórico da prática anarquista. Depois da maré baixa até 1914, a retomada das lutas operárias conta com a presença anarquista. Isto ocorre tanto na Revolução Russa, embora de forma relativamente marginal (a não ser em locais mais precisos, tal como na Ucrânia com Nestor Machnó), e na Revolução Alemã, atuando nos conselhos operários, tal como Landauer, Musham e outros, e a breve e modesta participação no caso italiano e o papel proeminente na Revolução Espanhola.

Mas Guérin não se limita a descrever os acontecimentos históricos, pois ele faz avaliações e análises. Esta é uma parte muito importante da obra, embora cometa alguns equívocos. Este é o caso de sua afirmação de que Pannekoek confundia Conselhos Operários e ditadura bolchevista. Isto não deixa de ser curioso, porquanto ele cita a obra deste autor que leva o título de Conselhos Operários e na qual realizou uma crítica radical ao bolchevismo, especialmente no capítulo dedicado à Revolução Russa, definindo, não pela primeira vez, o regime russo como capitalismo de Estado. Mas esse pequeno deslize não compromete a reconstituição histórica que ele realiza. O dilema espanhol é o mais importante no contexto da obra, já que foi o caso no qual o anarquismo teve um papel fundamental. Sem dúvida, é possível a discordância em relação à sua explicação das dificuldades e derrota da Revolução Espanhola, mas de qualquer forma ele realizou um exercício necessário de pensar a prática revolucionária e recuperar uma das mais ricas experiências revolucionárias do século 20.

Por fim, Guérin termina sua obra apresentando, em sua conclusão, um balanço da questão da autogestão, abordando sua emergência na Iugoslávia e Argélia na década de 60. Nesta parte, ele é extremamente condescendente com o capitalismo estatal iugoslavo, bem como com o da Argélia, se iludindo com a falsa autogestão, mais uma palavra do que uma prática, como ele mesmo desconfia e coloca em certo momento do texto. Ele apenas retoma a condescendência que já havia tido com Lênin, quando citou, na segunda parte da obra, o livro O Estado e a Revolução, que teria aspectos libertários, embora posteriormente ele mostre o recuo do autor no decorrer de sua argumentação, passando a defender a centralização. Essa condescendência não lhe permite perceber que em tal livro não há nada de libertário, sendo apenas mais uma manifestação do oportunismo de Lênin. Assim, quando na conclusão apresenta que o Marechal Tito explorou “zonas libertárias” do pensamento de Marx e Lênin, encontra tanto em Tito quanto em Lênin o que não existe. Não existem burocratas libertários. Nem mesmo com zonas libertárias em seu pensamento. Os burocratas querem dirigir. Quando aceitam ou propõem a “participação” dos trabalhadores é apenas para domesticá-los e dirigir melhor.

Porém, apesar de discordâncias de pormenores, a obra de Guérin, em sua totalidade, é um avanço para a discussão sobre o anarquismo e o futuro do socialismo libertário. A necessidade de compreender e pesquisar o anarquismo no atual contexto de ampliação da exploração é visível, e isto explica o seu próprio reaparecimento. Hoje, a nova geração de anarquistas deve retomar o pensamento anarquista e impedir sua deformação e assimilação por tendências oriundas das ideologias burguesas produzidas na esfera acadêmica, retirando o seu caráter revolucionário e libertário e domesticando-o, de acordo com os interesses dominantes. Assim, a luta por uma nova sociedade, livre da exploração e da dominação, deve perceber o papel fundamental da consciência, pois a autogestão pressupõe indivíduos conscientes e libertários, bem como a autogestão das lutas, que pressupõe um desenvolvimento da consciência dos agentes deste processo. Neste sentido, a obra de Guérin ajuda a resgatar este elemento essencial para as lutas contemporâneas que é o pensamento anarquista.

O grande mérito de Guérin, presente em outras obras e que se repete nesta, é abrir o caminho para a reflexão não dogmática sobre o marxismo libertário e sobre o anarquismo, “irmãos gêmeos, irmãos inimigos”, como colocou em outra obra, embora sua referência, e daí o “inimigo”, fosse o “marxismo” autoritário. A reflexão crítica e a autocrítica são elementos fundamentais que devem seguir a práxis revolucionária e Guérin produziu obras que incentivam esta prática reflexiva, que só pode gerar efeitos benéficos para a prática libertária. O espírito libertário, portanto, reflexivo, não-dogmático, crítico, autocrítico, é a grande contribuição de obras como esta.

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Prefácio ao livro "O Anarquismo - Da Doutrina à Ação", edição brasileira a ser publicada.

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