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domingo, 6 de janeiro de 2008

Um veredicto sobre a teoria das esferas sociais - Edmilson Marques


Um veredicto sobre a teoria das esferas sociais

Edmilson Marques*

VIANA, Nildo. As Esferas Sociais: a constituição capitalista da divisão do trabalho intelectual. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.

            Em nenhuma sociedade da história humana a divisão social do trabalho atingiu a amplitude e intensidade como veio atingir na sociedade capitalista. Com o desenvolvimento do capitalismo ampliou-se ao mesmo tempo a especialização do trabalho e em seu interior foram sendo criadas subdivisões. Entre as várias formas assumidas pelo trabalho especializado está o trabalho intelectual, que por sua vez, foi perpassado por um processo de complexificação, fruto da ampliação e aprofundamento da divisão social do trabalho intelectual.
Esse processo mostra a necessidade de compreender o trabalho intelectual e sua dinâmica interna, suas especificidades, seu papel na sociedade moderna e a determinação fundamental que explica as características assumidas por ele no capitalismo. Uma análise desse fenômeno foi publicada recentemente no Brasil, com o título As Esferas Sociais: a constituição capitalista da divisão do trabalho intelectual, produto de uma pesquisa realizada pelo sociólogo e filósofo brasileiro Nildo Viana. Trata-se de um livro de 152 páginas dividido em oito partes. É esta obra que julgaremos no presente texto.
  Como está expresso em seu título, a obra aborda as esferas sociais, concebidas pelo autor como um fenômeno derivado da constituição capitalista da divisão do trabalho intelectual. Em estudos anteriores, Nildo Viana já havia refletido sobre o processo de divisão social que gerou as esferas sociais. Os estudos mais aprofundados sobre este processo foram realizados por Karl Marx, Max Weber e Pierre Bourdieu. Eles são, inclusive, como aponta Nildo Viana, “as fontes inspiradoras” de sua concepção sobre as esferas sociais. A inspiração aqui aludida não quer dizer que os três autores foram tomados indistintamente como pressupostos teórico-metodológicos de sua análise, o que seria uma contradição, tendo em vista a diferença radical de perspectivas entre os três autores. Na verdade, Nildo Viana utiliza alguns elementos das reflexões desses autores para demonstrar o significado das esferas sociais e sua relação com a totalidade da sociedade capitalista. É sobre esta questão que ele debruça-se no primeiro capítulo da obra.
O autor ressalta que Marx não desenvolveu uma teoria das esferas sociais e nem utilizou este nome ou outro semelhante. Contudo, ao apresentar a teoria da historicidade das sociedades humanas e sua evolução histórica assim como a teoria do capitalismo, Marx tratou de forma rigorosa a questão da complexificação da divisão social do trabalho. Esta sua análise é o ponto fundamental na qual se baseia Nildo Viana para entender as esferas sociais. Para tanto, as contribuições de Marx para a articulação da teoria das esferas sociais e pressupostos fundamentais para a discussão de Nildo Viana são: 1) Seus pressupostos teórico-metodológicos, aqui se refere ao método dialético e ao materialismo histórico; 2) Sua teoria do modo de produção capitalista e 3) Suas análises diversas “sobre os agentes ou produtos de uma ou outra esfera social” (p. 10).
Já Max Weber buscou sistematizar suas observações sobre questões específicas das esferas sociais, utilizando inclusive o termo “esferas”, embora também não tenha criado uma teoria das esferas sociais. Nildo Viana retoma os estudos de Weber que tratam da formação das esferas e sua análise sobre estas no contexto desenvolvimento do processo de racionalização da sociedade moderna, gerando, concomitantemente, o processo de especialização. Weber fez estudos gerais sobre as esferas e abordou algumas esferas específicas. São estes estudos que fornecem alguns dos elementos que são utilizados por Nildo Viana para elaborar a teoria das esferas sociais.
Já a principal contribuição de Bourdieu está em seu estudo sobre o que denominou de “campo”. Para Viana, Bourdieu oferece duas contribuições fundamentais: 1) “A tentativa de delimitar o processo de funcionamento e dinâmica interna dos campos” e 2) “Um material informativo que traz e amplia as possibilidades analíticas” (p. 11). Dos três autores citados anteriormente, Viana considera haver limites e problemas nas concepções de Weber e Bourdieu, apesar de não desconsiderar suas contribuições para a explicação que fornece das esferas sociais. É a partir destas considerações iniciais que Nildo Viana vai posteriormente construir a teoria das esferas sociais, iniciando com uma breve introdução onde aborda a inserção das esferas sociais na sociedade capitalista.
Mas, o que são “esferas sociais”? A concepção de esferas sociais desenvolvida por Nildo Viana não pode ser confundida com as “esferas”, segundo a concepção de Weber, e nem com a concepção de “campo”, de Bourdieu. Partindo desta crítica é que Viana observa que as esferas sociais são um fenômeno típico da sociedade capitalista e só existem nesta, sendo expressão da complexificação da divisão social do trabalho e sendo explicadas pelo modo de produção capitalista e seu desenvolvimento.
É sobre esta tese que o autor vai se debruçar na primeira parte de sua obra, apontando a dinâmica do modo de produção capitalista e sua relação com as esferas sociais, sua compreensão sobre o que são as esferas sociais e suas características, a relação das esferas sociais com a intelectualidade, o processo de especialização da ciência e a ampliação da divisão social do trabalho intelectual etc. O papel fundamental das esferas sociais para Nildo Viana é “a reprodução das relações de produção capitalistas” (p. 23). Isso quer dizer que não são autônomas e nem estão livres da dinâmica do modo de produção capitalista, pelo contrário, as esferas sociais atuam sobre sua dinâmica, assim como são determinadas pelo mesmo. A conclusão à qual o autor chega é que as esferas sociais são partes das formas sociais (“superestrutura”) que integram a sociedade capitalista, mas que possuem especificidades.
É sobre estas especificidades que será dedicada a segunda parte do livro. As especificidades de cada esfera social, segundo ele, “manifestam-se através do produto de suas atividades, do seu modus operandi, do seu ethos, seu corpus mentalis (mentalidade), da sua função na sociedade e dos seus espólios[1]” (p. 26). Apesar de distintas e no seu interior haver contradições (incluindo concepções distintas que buscam superar elas próprias), as esferas sociais possuem em comum o objetivo de produção e reprodução cultural voltada para a manutenção do modo de produção capitalista. O papel de produção cultural no interior das esferas sociais deve-se especificamente à classe social que está em suas bases, tratando-se da intelectualidade.
Como colocamos anteriormente, as esferas sociais não são autônomas. Elas integram as relações sociais, o que quer dizer que em sua dinâmica interna reproduz a dinâmica do modo de produção capitalista, manifestando características básicas como a mercantilização, a burocratização e a competição social. A luta de classes também se manifesta em seu interior. Isso coloca a necessidade de compreender o processo que faz emergir a competição em suas relações internas, é o que o autor busca fazer na terceira parte do livro, focando as relações sociais que se estabelece nas esferas sociais.
A competição existente nas esferas sociais é fruto da forma como se organizam, ou seja, internamente se estabelece uma hierarquia entre seus agentes. Esta forma de organização leva alguns indivíduos a possuírem mais privilégios, recursos, espaços institucionais, reconhecimento do que outros. Viana ressalta que essa hierarquia é dos seus segmentos, uma vez que em casos individuais pode ser diferente. É a partir desta discussão que Nildo Viana apresenta uma representação piramidal dos segmentos que compõem as esferas sociais, com intuito de esclarecer os aspectos das relações hierárquicas em seu interior, que tem no topo os hegemônicos e logo abaixo deles os dissidentes. Em seguida há os venais seguidos pelos ambíguos. E em sua base estão os engajados e os amadores.
Os hegemônicos são aqueles que dominam determinada esfera social. Os dissidentes, que estão logo abaixo dos hegemônicos, defendem os mesmos interesses que aqueles. A diferença entre ambos é que estes últimos manifestam uma posição mais crítica à hegemonia estabelecida. Já os venais, que estão logo abaixo destes dois anteriores, têm como principal objetivo buscar dinheiro e poder, o que é feito a partir de sua busca extraesférica, o que quer dizer que seu foco é o círculo externo à esfera social que integra, tal como empresas e meios de comunicação. Outro segmento das esferas sociais é o composto pelos ambíguos, que se caracterizam por ficar entre a esfera que integra profissionalmente e outros espaços (um cientista, por exemplo, que se relaciona com um determinado partido político). E na base da hierarquia piramidal das esferas sociais estão os amadores e os engajados. Estes dois também estão mais distantes da competição interna de uma determinada esfera social. Os amadores, por exemplo, “estão ligados a outras atividades no nível da sobrevivência ou então vivem sob formas precárias como amador, mas seu público é mais restrito” (p. 51). Já os engajados podem ou não ser integrantes das esferas sociais. Na verdade, eles são antiesféricos em sua posição diante da esfera. A questão é que, apesar de participarem de uma determinada esfera social, estão na base da hierarquia, estando marginalizados. Eles não compartilham dos interesses esféricos e assumem uma postura crítica de negação da própria esfera social. Isso ocorre por partirem da perspectiva do proletariado enquanto que os outros partem de uma posição de defesa e reprodução das esferas sociais.
Observa-se, no entanto, que as esferas sociais reproduzem a sociabilidade capitalista e nesse sentido constituem uma hierarquia, uma divisão interna entre seus agentes e uma competição social intensiva. O último aspecto analisado por Viana para compreender a dinâmica das esferas sociais são os mecanismos de competição. O autor ressalta que os “mecanismos de competição” não podem ser confundidos com “estratégias de luta”. O primeiro se refere às “formas de encaminhar a competição social”, já o segundo às “formas de garantir a perspectiva do proletariado no interior das esferas sociais e no conjunto da sociedade” (p. 63). Essa é a questão abordada por Nildo Viana na quarta parte do livro, onde analisa os mecanismos gerais de competição das esferas sociais (competência real, competência formal, competência aparente, reprodução da hegemonia, popularidade, procedimentos institucionais, processo de ataque, originalidade, pseudo-originalidade, o esquecimento das fontes, complementado com as táticas de defesa).
Na parte seguinte, o autor propõe apresentar em linhas gerais “alguns dos aspectos mais determinantes para o processo de emergência das esferas sociais” (p. 81). Sua análise recai aqui mais especificamente sobre o processo inicial de formação das primeiras esferas sociais, buscando apresentar suas determinações e focando a primeira das esferas sociais, a religiosa. O autor faz uma minuciosa análise a respeito de movimentos que ocorreram desde o século XII, que são considerados por ele como os embriões desta esfera social, até chegar ao século XVI quando é dado o passo seguinte na formação da esfera religiosa através da reforma protestante e do anabatismo. É nesse período também que vão se formando outras esferas sociais, a exemplo da esfera artística, científica, técnica e também o que ele considera como semiesfera filosófica.
É a partir deste estudo que Nildo Viana conclui que as esferas sociais são produtos do desenvolvimento do capitalismo, ou seja, elas não surgem de imediato com a emergência do capitalismo. Os elementos que são fundamentais nesse processo se referem à expansão comercial, ao sistema colonial e ao Estado absolutista. A emergência e formação das esferas sociais foi um processo longo, que o autor observa ser caracterizado pela mercantilização, racionalização e burocratização, por conseguinte pela especialização e competição. Esse processo demarca uma sociedade distinta que tem como marco a produção capitalista de mercadorias e como “condição de possibilidade a divisão social do trabalho” (p. 89).
Uma vez que as esferas sociais surgem e vão se ampliando concomitantemente com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, torna-se fundamental abordar a relação entre capital e esferas sociais, como coloca o autor “é com o desenvolvimento do capitalismo que se amplia a divisão social do trabalho e emergem as esferas sociais”. Esta discussão é realizada por Viana na sexta parte do livro que tem como título Capital e Esferas Sociais. Há aí uma análise rigorosa das características da sociedade capitalista, a exemplo da mercantilização e burocratização das relações sociais, do aprofundamento da divisão social do trabalho intelectual que resulta na emergência e ampliação da especialização.
 O estado também é essencial na explicação das esferas sociais. Segundo o próprio autor “o aparato estatal é uma das principais determinações das esferas sociais e em alguns casos assume uma importância primordial” (p. 107). A discussão sobre esta questão é apresentada na sétima parte de sua obra, onde ressalta que outros autores não deram muita importância à atuação do estado sobre as esferas sociais, a exemplo de Weber e Bourdieu. O autor discute as várias formas de atuação do estado sobre as esferas sociais, como as formas de controle direto e indireto, que promove um amplo processo de burocratização. A questão é que a atuação do estado influencia a própria dinâmica interna das esferas sociais, inclusive fortalecendo e ampliando a competição através do controle de algumas instâncias de formação e reprodução, financiamento, etc., processo esse pautado por investimentos em políticas culturais.
Nildo Viana finaliza a obra com uma última parte onde aborda as esferas sociais e sua relação com a luta de classes. Aqui o leitor poderá finalmente perceber de forma explícita, embora em todo o livro isso já tenha ficado claro, a diferença radical entre sua análise das esferas sociais com a perspectiva e concepção de Bourdieu e Weber, autores que, apesar de evidenciarem vários elementos das esferas sociais que podem ser interpretados como integrantes da luta de classes, não concebem a luta de classes como questão fundamental em suas análises, o que promove o seu ocultamento, abolindo-a de suas interpretações.
O autor demonstra que a luta de classes é inerente à história das esferas sociais. Perpassa por seu processo de formação e desenvolvimento, se reproduz nas relações internas das esferas sociais e se manifesta em suas produções culturais. Se há luta, há resistência interna e momentos de desestabilização das próprias esfera sociais. A questão é que “as esferas sociais são constituídas por frações da classe intelectual, relacionadas com a burguesia, burocracia, etc.” (p. 120). A intelectualidade, por sua vez, é uma classe que auxilia a burguesia no processo de manutenção e reprodução do modo de produção capitalista e faz isso através da produção cultural.
No interior da intelectualidade, no entanto, há indivíduos que integram o segmento que está nas bases da hierarquia piramidal, a exemplo dos engajados. Estes, por partirem da perspectiva do proletariado, assumem uma posição distinta do que as esferas sociais exigem de seus integrantes. Criam estratégias de luta que são distintas dos mecanismos de competição sendo responsáveis pela manifestação da luta de classes no interior das esferas sociais. Sua referência é a classe operária revolucionária e seu objetivo contribuir para a emancipação humana, que só pode ser efetivada com a abolição do capitalismo, e concomitantemente das próprias esferas sociais, e efetivação da autogestão social.
Bom, apresentamos algumas das principais teses que estão presente em As Esferas Sociais. Agora podemos apresentar um veredicto a respeito do objetivo que o próprio autor esperava de sua obra, qual seja, “uma compreensão mais profunda das esferas sociais e sua relação com a sociedade capitalista”. Antes, porém, é preciso apresentar uma observação geral sobre a obra. A primeira questão que emerge desta leitura é o rigor do autor em sua análise, na precisão conceitual e metodológica; sua abordagem apresenta as esferas sociais como resultado de múltiplas determinações. Além disso, há uma originalidade em sua análise, pois ultrapassa os limites que Weber e Bourdieu apresentaram na abordagem que realizaram das “esferas” e do “campo”, respectivamente, e inova apresentando uma teoria das esferas sociais que se fundamenta na perspectiva do método dialético.
Não resta dúvida de que temos, a partir desta obra, um marco essencial para a análise e compreensão das esferas sociais. Como o objetivo do autor não era analisar uma determinada esfera social[2], mas reconstituir o significado e dinâmica das esferas sociais na sociedade capitalista, isso nos desperta para a necessidade de se ampliar a aprofundar este estudo com a abordagem de esferas sociais específicas, a exemplo da esfera jurídica. Os novos estudos que surgirem, no entanto, poderão encontrar aqui um referencial necessário e indispensável para aprofundar sua análise.
Ao leitor deste breve texto, ressaltamos que não objetivamos apresentar todos os detalhes e riqueza que a obra oferece sobre as esferas sociais. A proposta era destacar algumas das questões apontadas pelo autor e oferecer uma ideia geral sobre a mesma. Portanto, a leitura que fizemos nos possibilita utilizar do malhete e considerar: a obra oferece uma explicação das esferas sociais e sua especificidade e sobre a relação que estabelece com o conjunto das relações sociais que constituem a sociedade capitalista. Cabe a outros leitores percorrer suas páginas e apresentar o seu julgamento.





* Doutor em História e pós-doutor em Sociologia. Professor da universidade Estadual de Goiás/Câmpus Uruaçu.
[1] O modus operandi “está ligado à atividade e bem (produto) que resulta de sua produção, bem como dos espólios almejados” (p. 27). O ethos é o modo de ser que os agentes da esfera manifestam e está intimamente ligado ao bem cultural produzido e modus operandi da mesma e seus espólios, bem como à sua função específica e ao seu conjunto de valores, representações e interesses (p. 29). O corpus mentalis se refere ao conjunto de valores, representações e interesses, ou seja, a uma determinada mentalidade que compartilha elementos básicos da mentalidade burguesa. E os espólios são aquilo que é oferecido por ela para seus agentes e que é o objetivo da maioria (p. 29).
[2] Em outras obras o autor analisa esferas e subesferas específicas, a exemplo de A Esfera Artística e seus estudos sobre cinema, quadrinhos, música etc.

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Publicado originalmente em:
Revista Ciências Sociais - Unisinos, vol. 52, n. 2, 2016.

sábado, 5 de janeiro de 2008

O Google está nos tornando estúpidos?

O Google está nos tornando estúpidos?
O que a Internet está fazendo com nossos cérebros


Nicolas Carr

(Em breve este texto estará disponível).

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

A conspiração dos imbecis - Umberto Eco


A conspiração dos imbecis

O escritor italiano diz que a internet dá voz a todo tipo de opinião desqualificada — e que o jornalismo, tema de seu novo romance, deve atuar como um filtro para o que se lê na rede


O Castelo Sforzesco, em Milão, preserva tesouros da arte italiana, como a Pietà Rondanini, de Michelangelo. Um dos sóbrios edifícios residenciais em frente ao castelo abriga outro tesouro italiano: Umberto Eco, filósofo, crítico literário e romancista traduzido em mais de quarenta idiomas. O autor de O Nome da Rosa, romance ambientado na Idade Média que vendeu mais de 30 milhões de exemplares, lançou neste ano Número Zero – que chega ao Brasil nesta semana, pela Record -, um retrato crítico do jornalismo subordinado a interesses políticos. Na casa milanesa, onde conserva uma biblioteca de 30 000 livros (há outros 20 000 em sua residência em Urbino), Eco, 83 anos, recebeu VEJA para falar de jornalismo, internet, conspirações e, claro, literatura.
Foi um estrondo a sua declaração, em uma cerimônia na Universidade de Torino, de que a internet dá voz a uma multidão de imbecis. O que o senhor achou da dimensão que o assunto tomou?
As pessoas fizeram um grande estardalhaço por eu ter dito que multidões de imbecis têm agora como divulgar suas opiniões. Ora, veja bem, num mundo com mais de 7 bilhões de pessoas, você não concordaria que há muitos imbecis? Não estou falando ofensivamente quanto ao caráter das pessoas. O sujeito pode ser um excelente funcionário ou pai de família, mas ser um completo imbecil em diversos assuntos. Com a internet e as redes sociais, o imbecil passa a opinar a respeito de temas que não entende.
Mas a internet tem seu valor, não?
A internet é como Funes, o memorioso, o personagem de Jorge Luis Borges: lembra tudo, não esquece nada. É preciso filtrar, distinguir. Sempre digo que a primeira disciplina a ser ministrada nas escolas deveria ser sobre como usar a internet: como analisar informações. O problema é que nem mesmo os professores estão preparados para isso. Foi nesse sentido que defendi recentemente que os jornais, em vez de se tornar vítimas da internet, repetindo o que circula na rede, deveriam dedicar espaço para a análise das informações que circulam nos sites, mostrando aos leitores o que é sério, o que é fraude. Será que os jornais estão prontos para isso? A crítica da internet exige um novo tipo de expertise, mesmo para os jornais. E isso é muito importante para os jovens, pois eles não têm, aos 15, 16 anos, os conhecimentos necessários para filtrar as informações a que têm acesso na rede. Ora, assim como quem lê diversos jornais acaba aprendendo a distinguir as abordagens distintas de cada um deles, os jovens hoje precisam aprender a buscar essa variedade de abordagens nos sites que frequentam.
O jornalismo – que é tema de seu novo romance, Número Zero – conseguia desempenhar melhor essa tarefa crítica antes da internet?
A crise do jornalismo começa nos anos 50, com a televisão. Antes disso, os jornais diziam, pela manhã, o que havia acontecido no dia anterior, ou até mesmo na noite anterior. Os próprios nomes indicavam um pouco isso: o italiano Corriere della Sera, o francês Le Soir, o inglês Evening Post. Depois da televisão, os jornais passaram a dizer, pela manhã, o que as pessoas já sabiam. Eles deveriam ter mudado – e não mudaram. Mudar, naquele contexto, significaria reduzir o número de páginas, mas, em vez disso, os jornais ampliaram o tamanho, sobretudo por razões de publicidade. Ora, como preencher esse espaço? Três possibilidades. Primeira: aprofundar a informação através de análises e comentários. Alguns jornais foram por esse caminho, com maior ou menor êxito, como o New York Times. Segunda possibilidade: a pura fofoca, que foi o caminho de certos jornais britânicos. Terceira: a repetição das mesmas notícias. Há dois dias, um garoto sul-americano atacou um controlador de trem aqui em Milão com um machado. É uma informação que pode ser dada em uma pequena coluna. No entanto, você olha os jornais e lá estão páginas inteiras sobre o assunto. Pode até ser divertido, enquanto tomo o café, ler mais detalhadamente uma matéria mais longa. Acredito que Hegel estava certo: a leitura dos jornais de manhã é a oração do homem moderno.
Em alguns de seus romances anteriores, como O Pêndulo de Foucault, as teorias da conspiração estavam no centro da trama. Em Número Zero, no entanto, o senhor faz um uso diverso das conspirações. Por quê?
Há um personagem paranoico, Braggadocio, que constrói a sua própria conspiração, com um elemento inventado: Mussolini não teria sido executado. Fora isso, todos os fatos que relato em Número Zero pertencem à categoria das conspirações reais. A característica de uma conspiração verdadeira é que ela é invariavelmente descoberta. Houve uma conspiração para matar Júlio César, e todos sabemos. O perigo está nas conspirações falsas, pois você não consegue desmenti-las – mas elas se prestam à manipulação: quem quiser tirar proveito delas poderá montar contraconspirações muito reais. Foi o que Hitler fez, propagando a falsa conspiração dos judeus, dos Protocolos dos Sábios de Sião.

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Entrevista em:
http://veja.abril.com.br/brasil/a-conspiracao-dos-imbecis/ 

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

INTELECTUAIS MIDIÁTICOS, OS NOVOS REACIONÁRIOS - Maurice T. Maschino


INTELECTUAIS MIDIÁTICOS, OS NOVOS REACIONÁRIOS

Maurice T. Maschino

Ilusões perdidas, desencanto ou, pura e simplesmente, oportunismo? Por que teriam os intelectuais franceses de hoje dado uma guinada à direita? Le Monde diplomatique fez uma pesquisa cujo resultado é publicado nesta edição. Maurice T. Maschino

Quando o povo está amordaçado e a democracia em perigo, “a insurreição é o mais sagrado dos deveres”. De Rousseau a Sartre (“Temos razão em nos revoltar!”), de Voltaire, que defendeu a viúva Callas, a Zola – que denunciou a condenação injusta do capitão Dreyfus – e Gide, que se insurgiu contra a guerra do Marrocos e contra o colonialismo no Congo, os intelectuais, na França – pelo menos os mais representativos – estiveram, durante dois séculos, na vanguarda do combate em prol da justiça e da liberdade.

De Rousseau a Sartre, de Voltaire a Zola e Gide, os intelectuais franceses foram, durante dois séculos, a vanguarda da luta pela justiça e pela liberdade

Sem temer o confronto com os poderes constituídos, sofrendo pessoalmente as conseqüências (Hugo e Zola tiveram que se exilar), participaram de todas as lutas contra opressores e tiranos. A guerra da Espanha mobilizou-os, e Saint-Exupéry, Georges Bernanos, François Mauriac e André Malraux, entre tantos outros, tomaram parte ativa na denúncia do fascismo. A guerra da Argélia faria com que a maioria deles se opusesse à política de “pacificação”: quase todos (François Mauriac, André Mandouze, Pierre-Henri Simon) denunciaram a tortura e os excessos do exército francês, e mais de 121 deram apoiaram os desertores e os refratários num famoso Manifesto. Em primeiro lugar, é claro, Jean-Paul Sartre e sua revista, Les Temps Modernes, mas também etnólogos (Jean Pouillon), historiadores (Pierre Vidal-Naquet), orientalistas (Maxime Rodinson), matemáticos de renome internacional (Laurent Schwartz), escritores, artistas, atores, jornalistas… Atualmente, é difícil imaginar o impacto que essa mobilização das maiores cabeças da época produziu na opinião pública, e nos poderes constituídos.

As “aparências da história”

Pois os tempos mudaram. E se Maio de 68, para muitos, ainda teve um cheiro de revolução, a descoberta do gulag e do socialismo real, bem como a evolução dos países da África e Ásia recém-independentes, provocaram em muitos intelectuais franceses um verdadeiro trauma.

A perda de suas ilusões, ou de suas esperanças, levou muitos deles, nas décadas de 70 e 80, a se refugiarem num silêncio constrangido e a renegarem os compromissos da juventude. Ou a intervirem, ruidosamente, com o ímpeto e a má consciência dos arrependidos, em sentido inverso. Fazem mea culpa, ou a dos que os precederam, acusados de se terem sempre enganado. Ou ainda, aderindo ostensivamente à americanização do mundo, à globalização econômica e à ideologia neoliberal, que antes denunciavam tão energicamente. Atualmente, alguns não hesitam em assumir, sobre uma questão qualquer (política, econômica ou cultural), posições que eles mesmos teriam qualificado, alguns anos atrás, de extremamente reacionárias.

Outros continuam marcados pelo choque que sofreram na juventude. Se o tempo das autocríticas acabou, o fracasso da Perestroika e o colapso da União Soviética convenceram-nos de que a construção de um socialismo de aspecto humano era apenas uma utopia. Longe de estimulá-los, a política que François Mitterrand e a esquerda implementaram na década de 80 fortaleceu-os, em seu ceticismo, e continuam decididos a não mais se deixarem enganar pelas “aparências da história”.

Esquecendo o que foi escrito

A guerra da Espanha mobilizou Saint-Exupéry, Bernanos, Mauriac e Malraux. A guerra da Argélia levou-os a denunciarem a tortura e os abusos do exército

O próprio termo intelectual engajado é por eles repudiado. Refugiados em universidades, confinados em seus gabinetes e só se manifestando em revistas destinadas a um público restrito, os mais sérios deles dedicam-se essencialmente à “pesquisa da verdade”.

Pierre Nora é um exemplo disso. Ao intervir no presente, sempre ambíguo e enganador, o intelectual corre o risco de se perder e enganar os cidadãos, diz ele. Deve, portanto, ter sobre a sociedade em que vive o mesmo “olhar distante” que tem o etnólogo sobre os nambiquaras: “O que pensávamos de De Gaulle em 1958? Toda a esquerda gritava que era um aprendiz de ditador e denunciava um golpe de Estado fascista?. Faríamos esse mesmo julgamento nos dias de hoje?” Em primeiro lugar, prudência: “É preciso separar a atividade intelectual da atividade militante… É horrível dizer, mas quando me perguntaram, vinte anos atrás, que slogan eu queria para Le Débat, respondi rindo: ?Os intelectuais falando aos intelectuais? como ?Os franceses falando aos franceses?. É preciso aceitar que não se é o porta-voz das multidões.” Mas quem lhes oferecerá uma linguagem de verdade, se o intelectual se esconder e se calar? “Azar delas, se não houver intermediário!”

Pierre Nora vai até mais longe, no que se assemelha muito a um desprezo de aristocrata: não hesitaria, eventualmente, em “dissociar o que pensa do que escreve”. Convencido, por exemplo, de que a saída para o conflito entre israelenses e palestinos só pode ser trágica, não falaria sobre isso e deixaria alguma esperança ao leitor. Aliás, “é inútil escrever artigos puramente opinativos. Acrescentar opinião à opinião. Que um Théo Klein denuncie a política de Sharon, tudo bem. Mas de que serviria minha opinião?[1] Se o cidadão Pierre Nora é de esquerda (“É claro que votei em Jospin!”), o intelectual assume outra posição.

Intelectuais de televisão

A perda das ilusões e das esperanças levou muitos deles a se refugiarem num silêncio constrangido e a renegarem os compromissos da juventude

Outros, também partidários da maior discrição, não parecem, à primeira vista, sofrer de esquizofrenia. Sem a menor hesitação, afirmam que o papel do intelectual é “pensar o mundo para transformá-lo”: “Intelectual”, declara, por exemplo, Pierre Rosanvallon, historiador e professor do Collège de France, “é quem vincula um trabalho de análise a uma preocupação cidadã. De contrário, é um especialista.” Mas, como esses intelectuais não pretendem de forma alguma vulgarizar seu saber – e rejeitam as “caricaturas” que são, em sua opinião, os “ensaístas superficiais” e “assinantes de jornais” – condenam-se ao individualismo e ao conservadorismo dos professores mais clássicos.

Pierre Rosanvallon discorda: “Há intermediários e há mediações: professores do secundário, intelectuais da sociedade, jornalistas… Nossos trabalhos são percebidos de uma maneira ou de outra pela sociedade.” Ilusão: cinquenta anos depois do final da guerra da Argélia, muitos professores, inclusive de esquerda, passam rápido demais pelas páginas sombrias desse período. Quando não as ignoram[2]. Considerar-se “mediado”, quando não se atinge senão uma fração ínfima do público, é delírio. E declarar que os livros de intervenção de Pierre Bourdieu, por exemplo, representam “uma queda na exigência de verdade” (Pierre Rosanvallon), é adotar uma concepção elitista do intelectual que faz o jogo do poder.

Diante desses intelectuais que recusam qualquer publicidade – e, aliás, não interessam aos meios de comunicação por serem muito complicados, sejam eles claramente de esquerda (Daniel Bensaïd, Miguel Benasayag) ou simples democratas (Clément Rosset, Marcel Gauchet) – surgem figuras bastante hábeis, que ocupam toda a cena e se confundem, para o grande público, com os intelectuais. É à própria habilidade, bem como à onipotência, politicamente orientada, da televisão, que devem seu sucesso.

Big Brother, um programa “educativo”

Alguns não hesitam em assumir, sobre uma questão qualquer, posições que eles mesmos teriam qualificado, alguns anos atrás, de extremamente reacionárias

Marxistas ou simpatizantes até há pouco tempo, no começo de suas “carreiras”, apressaram-se – foi um dos “efeitos Soljenitsin” – em negar seus primeiros amores e jogar fora o bebê com a água do banho: em sua fantasmagoria, os mestres pensadores tornavam-se “comedores de criancinhas” – do cérebro de Hegel, Marx, Fichte ou Nietzsche teriam saído diretamente, diziam eles, o antissemitismo e o Estado totalitário. Era hora de promulgar uma “nova filosofia”, que daria ao capitalismo um aspecto humano: André Glücksmann, Bernard-Henri Lévy, Jean-Paul Dollé e alguns outros entregaram-se a essa tarefa. Com toda a sinceridade, sem dúvida. Mas sem excesso de lucidez.

É provável que essa agitação tivesse durado o tempo de vida das rosas, se esses jovens, que tinham em sua bagagem mais relações mundanas do que livros, não tivessem suscitado a curiosidade, e depois o entusiasmo, dos meios de comunicação – entre outros, da televisão. Não estavam eles dando seu aval (de “esquerda”) à ordem existente, e um pouco de vida a um mundo cínico? Não hesitando em combater as violações dos direitos humanos em Bangladesh ou na América Latina, não estavam eles contribuindo para manter a lenda de uma França na vanguarda do combate em prol da liberdade?

Logo levados para o primeiro plano do palco midiático, por ali foram ficando. Não em consequência de sua “obra” – uma série de ensaios apressados não constitui uma obra, assim como algumas ideias de impacto não formam um pensamento -, mas porque estão em simbiose com uma época que, em todos os campos, gosta da bazófia e apresenta, tal como a alquimia do século XVI, cobre em vez de ouro e lata em vez de prata. São esses intelectuais os primeiros beneficiários dessa perversão dos valores, que transforma um caso policial, por mais trágico que seja, em acontecimento de primeira importância, faz de Big Brother uma espécie de curso de educação amorosa (Luc Ferry[3]) ou, de um mediador de debates na televisão, um professor de filosofia.

Um troca de favores incestuosa

O próprio termo intelectual engajado é por eles repudiado. Refugiados em universidades, os mais sérios deles dedicam-se à “pesquisa da verdade”

A época, de fato, não é mais aquela em que um intelectual se definia, em primeiro lugar, por seu trabalho de intelectual. Por uma obra que o tornava conhecido e, quando intervinha nos assuntos do século, fundamentava sua legitimidade. Voltaire, Hugo, Zola, Sartre, Gide, Foucault, Bourdieu… todos foram, antes de tudo, criadores, que só deviam a fama a si mesmos, a seu talento e à força de seus escritos. Hoje, pouco importa a qualidade, ou a nulidade, de uma produção: são os meios de comunicação, e a televisão em primeiro lugar, que consagram os intelectuais. Que os fazem existir como intelectuais. Decidem quem é e quem não é intelectual. E, por isso mesmo, modificam radicalmente seu status: não se trata de escrever os livros mais substanciais, mais profundos, para ser reconhecido como intelectual, mas ter a maior visibilidade, estar o maior número de vezes no vídeo, no rádio e na manchete dos jornais. Do Libération ou do Le Monde, se possível, e nas revistas.

Melhor ainda: se ocupar um cargo de editorialista de um grande jornal de Paris – ou nas revistas Le Point, Le Nouvel Observateur ou L’Express, sem esquecer a diretoria de uma coleção numa editora – pode estar certo de conservar seu lugar ao sol, graças à rede de relações parisienses que assim se forma.

É uma troca de favores: aos meios de comunicação, os intelectuais devolvem o brilho que deles receberam, e os meios de comunicação, que os solicitam por qualquer motivo, mantêm a sua reputação. Semelhante dependência servil em relação aos que os fazem reis e podem, de um dia a outro, deixá-los de lado, tem repercussões na própria natureza da produção intelectual: esta deve ser mantida – um livro por ano, a cada dois anos, pelo menos, mesmo que seja um comentário incoerente da atualidade mais disparatada, batizado “diário” – e, entre um livro e outro, artigos, conferências, participação no programa de um colega ou de um diretor de redação qualquer, cujo novo livro será, é claro, aclamado (embora nem sempre lido…). Tudo isso em detrimento da qualidade, da seriedade, do rigor, do trabalho em profundidade, e no maior desprezo pelos fatos.

Quando um gato não é um gato…

Pierre Nora é um exemplo. Ao intervir no presente, sempre ambíguo e enganador, o intelectual corre o risco de se perder e enganar as pessoas, diz ele

Desempenhando alegremente o papel de jornalistas, esses “intelectuais de paródia”[4] 4 raramente se deslocam in loco (e quando o fazem, dirigem-se às autoridades que controlam o território, são guiados por elas, protegidos por seguranças, quando não pela polícia militar do país que visitam…) e pouco se dedicam ao trabalho minucioso de entrevistas do repórter, que corre riscos, coleta pacientemente informações e dá tanta atenção aos simples cidadãos quanto aos chefes de Estado ou de guerra. “Eles não estão a serviço de uma causa”, diz Pierre Nora. “Servem-se dela, põem a infelicidade do mundo a serviço de seu ego.” E de um narcisismo exorbitante.

Repórteres por um dia ou escritores prolixos, todos cultivam sua especificidade. E, na falta de inovação – de criação – se repetem para acentuá-la: ruidosa defesa dos direitos humanos, de preferência na Croácia, na Bósnia ou em Ruanda, países mais “exóticos” do que a França; elogio sensacionalista do neoliberalismo e da globalização econômica (forçosamente bem sucedida); apologia incessante dos Estados Unidos; crítica constante do “terceiro-mundismo”; denúncia permanente do “progressismo” e de qualquer tipo de modernismo; apoio incansável e incondicional ao governo de Israel… Cada qual com seu estandarte, que o torna imediatamente identificável. Cada qual com sua reserva de mercado. Por menos sólido que seja, seu detentor pode se permitir qualquer fantasia.

Por exemplo: afirmar que um gato não é um gato, ou que um racista é um humanista, ou, fazer como Alain Finkielkraut, que não se deixa comover com o anti-semitismo de um Renaud Camus. Afirmar que “um judeu é incapaz de assimilar, de fato, a cultura francesa” não lhe parece escandaloso: desde que não se recuse o desconhecimento da “parte da herança na identidade”, nem de reconhecer que existem “graus de pertença nacional”, essas declarações, diz ele, “adquirem outro sentido[5]“.

A tática do mas…

Assim como nada tem de racista, ainda segundo Finkielkraut, o recente panfleto antimuçulmano de Oriana Fallaci, La Rage et l’Orgueil[6]. Ao injuriar os filhos de Alá, que se reproduzem como ratos, ela nos obriga a “olhar de frente a realidade” e ver, finalmente, na paz da boa consciência, o que são de fato os árabes. Rompendo tabus, “ela tem o mérito insigne de não se deixar intimidar”, e solta o verbo[7]7b.

Preocupado, naturalmente, com as reações que essas opiniões provocaram, o “humanista” volta atrás e decreta que, no fundo, o livro de Oriana Fallaci é “indefensável”. Depois de a ter defendido. Mas, na entrevista que nos concede, não deixa de encontrar qualidades nele e, mais uma vez, defendê-lo: “Fiquei impressionado por uma certa força. Oriana Fallaci disse à Europa, sem rodeios, tudo o que pensa. Seu livro é um livro anti-europeu.” Em suma, anti-tudo.

“Intelectual é quem vincula um trabalho de análise a uma preocupação cidadã. De contrário, é um especialista”, diz Pierre Rosanvallon, professor

Tática de Finkielkraut: atacado num ponto preciso, muda de assunto, se esconde, escorrega como uma enguia entre as objeções. Daí decorre o emprego constante do mas, que tem como função negar – e não, matizar – o que ele acaba de admitir, por aparente submissão ao politicamente correto. Não é saudosista, mas cuidado com o progresso (com a clonagem, com os casamentos entre homossexuais, com o divórcio por consentimento mútuo, com a paridade…); não é moralista, mas julga; diz-se de esquerda, mas “não gosta nem um pouco dessa propensão da esquerda a ser binária”; não está do lado da classe dominante, mas “nem todos os poderosos estão errados”; é preciso “sair do discurso liberal”, mas não se deve cair, em hipótese alguma!, no discurso progressista.

Os traços do intelectual medíocre

Quando é mencionado o racismo anti-árabe, Finkielkraut logo desvia para o anti-semitismo. Será que é mais difícil ser judeu do que árabe na França, e, sendo judeu, encontrar uma moradia, um emprego, ocupar altas funções…? Incomodado, ele se esquiva: “Não é fácil ser judeu num bairro árabe.” Não responda que talvez seja mais difícil ser árabe em Israel, pois ele se irrita: “Os árabes israelenses gozam dos mesmos direitos civis e sociais comuns a todos os israelenses” e, sobretudo, que não se diga que Israel trava uma guerra colonial, na Palestina, com os métodos que se conhecem: ele pode ter um enfarto.

Parcialidade, medo rancoroso dos árabes, apoio cego a Israel, ênfase narcisista: Alain Finkielkraut tem pelo menos um mérito. Por seus excessos, permite perceber, tal como numa caricatura, traços comuns a muitos intelectuais franceses atuais, por mais diferentes que sejam entre si:

A arrogância aristocrática e o desprezo pelo povo: Luc Ferry, que certamente nunca falou das massas francesas, não hesita, por outro lado, em falar das “massas árabes”. É verdade que não tem grande estima pelas primeiras: “Às vezes, tenho a impressão de que quase há programas interessantes em demasia na televisão8“;

O descrédito injurioso de quem pensa de forma diferente: o jornalista Didier Eribon não passa de um “pitbull”, os pedagogos do gênero de Philippe Mérieux são “guardas vermelhos da cultura” (Alain Finkielkraut9), Pierre Bourdieu era “louco de orgulho, narcisista, manipulador, hipócrita, perverso, grandiloqüente, ridículo, insuportável” (Alain Minc10), “o antiamericanismo é o progressismo dos idiotas” (Pascal Bruckner11);

A incoerência: Philippe Sollers denuncia o racismo de Renaud Camus, mas publica, em sua revista L’Infini, um artigo de Marc-Edouard Nabe, que se exalta contra “a volta do anti-semitismo. Esse nojento do Sinclair já está lambendo os beiços…” 12;

Uma sensibilidade muito maior ao anti-semitismo do que à islamofobia: se as reflexões de Renaud Camus sobre os judeus provocaram uma torrente de protestos que durou mais de três meses, as 175 páginas de insultos de Oriana Fallaci contra os muçulmanos pouco comoveram o microcosmo intelectual: com exceção de Bernard-Henri Lévy, que imediatamente reagiu no mesmo número de Le Point que publicava a vociferação da jornalista italiana, e Laurent Joffrin, que a condenou num artigo do Nouvel Observateur, quase todos os outros se calaram. A começar por alguns dos (Claude Lanzmann) que protestaram veementemente contra as afirmações de Renaud Camus. Dois pesos e duas medidas?

Uma certa indiferença em relação às vítimas de guerras, boicotes, fome e doenças que devastam o Terceiro Mundo: mais de 3 mil mortos no 11 de setembro de 2001 em Nova York, é horrível, e “somos todos norte-americanos”, mas centenas de milhares de mortos em Ruanda e três milhões em três anos no Congo-Kinshasa, também é horrível, mas não comove ninguém: Norte-americanos sim, africanos não! André Glucksmann, tão rápido em denunciar os crimes dos russos, dos chineses ou dos norte-coreanos, não tem “uma palavra de compaixão, observa Gilbert Achcar, para com as vítimas dos países da Otan e assimilados, como os curdos e os palestinos13“.

Dedicar-se a “contemplar a natureza”

Diante dos intelectuais que recusam publicidade, surgem figuras bastante hábeis, que roubam a cena e se confundem, para o público, com os intelectuais

Humanismo sob medida? Mas não é tudo.

“Um intelectual”, dizia Herbert Marcuse, “é alguém que recusa compromissos com os poderosos.” E cuja principal tarefa, diz Pierre Rosanvallon, é tornar o mundo um pouco mais inteligível e produzir “uma legibilidade sem concessões”. A maioria dos intelectuais franceses de hoje não cumpre essa tarefa: em vez de incitar à reflexão, embaralham as cartas, assim como a mídia. Mesmo quando não desconhecem a realidade.

Como Pascal Bruckner, que cita, nas primeiras páginas de seu recente ensaio, Misère de la prospérité (Miséria da prosperidade) 14, alguns números assustadores sobre as desigualdades do mundo contemporâneo: “20% dos 6 bilhões de habitantes da terra subsistem com menos de um dólar por dia e uma criança entre quatro sofre de desnutrição no hemisfério Sul… 10% da população do globo produz e consome 70% dos bens e serviços…” Logicamente, uma única conclusão se impõe: um modo de produção que torna famintos 2/3 do planeta e fabrica excluídos às centenas de milhões é um escândalo e deve ser combatido.

É o que aparentemente escapa ao entendimento de Pascal Bruckner. Sem transição, ele se enfurece contra os antiglobalização – invejosos que denunciam os donos do mundo porque dele não fazem parte. Lamenta que os Estados Unidos intervenham tão pouco nos assuntos dos outros: “Não é a liderança norte-americana que é preocupante, mas, sobretudo, sua discrição.” Atacado de amnésia, diz “sim ao capitalismo”, cujos delitos acaba de estigmatizar, e sugere àqueles que são “obcecados” pelo assunto que “não mais pensem nisso”: “Ser anticapitalista (…) é pensar em outra coisa. Mais do que ser contra, por que não ficar de lado, se esquivar?” E, esquecendo “a ordem das utilidades”, dedicar-se “à poesia, ao amor, ao erotismo, à contemplação da natureza”?

“Reformar” o capitalismo

Ocupam a mídia porque estão em simbiose com uma época que apresenta, como a alquimia do século XVI, cobre em vez de ouro e lata em vez de prata

Entre os contemporâneos, Pascal Bruckner é seguramente um caso à parte. Mas é representativo de uma atitude muito difundida entre numerosos intelectuais – pouco amor e florzinhas do campo.

Com variações, é claro. Se a globalização liberal deixa eufórico Alain Minc, próximo das posições de Anthony Blair – “lutar contra a globalização é (com perdão pela expressão) mijar contra o vento” – outros são mais sutis. Porém, mesmo se denunciam o intervencionismo norte-americano ou defendem uma globalização mais “humana” – que respeite “os valores não mercantis: a felicidade, a amizade, a solidariedade” (Jacques Julliard) – a maioria considera que o capitalismo é o menos ruim dos sistemas e que deve ser, simplesmente, “reformado”. Todos mencionam a necessidade de contra-poderes, uns contando com a sociedade civil e acordos entre “parceiros”, e outros, com as lutas sociais.

“Liberal de esquerda”, Alain Minc admite que “o mercado cria desigualdades”, mas está convencido de que isso pode ser “regulamentado” e “controlado”. Quanto a Laurent Joffrin, reformista moderado, partidário de uma social-democracia “renovada”, considera necessário “reabilitar o político”: “Tudo passa pela esquerda clássica. Os partidos de esquerda devem reinventar novos métodos de ação e se pôr de acordo em escala européia, com vistas a intervenções comuns.”

O canto da sereia

Pouco importa a qualidade, ou a nulidade, de uma produção: são os meios de comunicação, e a televisão em primeiro lugar, que consagram os intelectuais

São quimeras, avalia Jean-François Kahn: no momento em que cada vez mais homens e mulheres, nos países ricos, são condenados a uma vida cada vez mais dura, em que os países do Terceiro Mundo sofrem mais do que nunca com a fome e uma mortalidade cada vez mais elevada, no momento, portanto, em que o capitalismo mata, direta ou indiretamente, milhões de seres humanos, imaginar que se pode humanizá-lo, quando, em sua própria essência, ele é desumano, é se iludir – por completo.

Na ausência dessa alternativa, não resta outra solução senão uma frente comum dos democratas para lançar as bases de outro tipo de sociedade: “Em maio de 68”, prossegue o diretor de Marianne, “eu achava a agitação ?revolucionária? perfeitamente ridícula – o contexto não era favorável. Mas, hoje, penso que é preciso fazer a revolução. Em relação à lógica neoliberal – que é uma dinâmica louca, que provoca estragos terríveis, que dilacera, esmaga, quebra, que destrói o homem e representa um autêntico recuo da civilização – é preciso uma ação de tipo revolucionário que a detenha. Se não fizermos isso, quem o fará? Os que já o estão fazendo – os fanáticos religiosos, os fundamentalistas islâmicos, os populistas, os neofascistas, os nacionalistas étnicos… A opção é clara: ou se estrutura um projeto revolucionário para o melhor, ou se aceita que outros o façam para o pior. E a maioria dos intelectuais não compreende isso.”

Porque se aburguesaram? Com certeza. “Muitos ex-militantes de 68 entraram na economia de mercado para modificar seu curso e foram plenamente integrados”, constata, com conhecimento de causa, Laurent Joffrin. “O regime liberal paga bem aos intelectuais que são cooptados”, denuncia Michel Onfray. “Ele sabe tornar desejável a submissão. Conferências a 70 mil francos, integração do filósofo na assessoria da empresa, participação em comissões de direção, coordenação de noites de debates ricamente dotadas, lugares privilegiados na mídia em que seus livros são comentados… Positivamente, são poucos os que resistem a esse canto da sereia.”

Bajulação, subserviência e maniqueísmo

Luc Ferry, que certamente nunca falou das massas francesas, não hesita em falar das “massas árabes”. É verdade que não tem grande estima pelas primeiras

Philippe Sollers, André Glucksmann, Alain Minc, Pascal Bruckner, André Comte-Sponville e Luc Ferry, entre outros, não resistem e se promovem tranqüilamente nas empresas. Bernard-Henri Lévy resiste, mas, em seus artigos no Le Point, não deixa de louvar seus superiores, como Jean-Luc Lagardère – “Gosto desse seu lado de condottiere, ou de Cyrano levando sua própria vida” – e Jean-Marie Messier, que “se abre ao vento do largo, força o destino, inverte a ordem estabelecida das coisas… 15”

Outros, ou os mesmos, não hesitam em cortejar ou servir o Príncipe. Há três anos, Luc Ferry se gabava de ter partilhado um café com o secretário-geral do Palácio do Eliseu que se tornara ministro das Relações Exteriores: “Estava tomando café da manhã com Dominique de Villepin, que queria me encontrar a sós… e adivinhem quem apareceu? Chirac! 16” Se um ministro ou um presidente lhes confia uma missão ou uma pasta, exultam, entram em transe…

No entanto, só o modo de vida deles não justifica sua incapacidade de ter uma medida justa do mundo. Talvez fosse preciso que tivessem operado uma verdadeira revolução interna. Não é o que acontece: contrariamente ao que acham, eles não mudaram, não se desfizeram do velho homem. Suas estruturas mentais permaneceram idênticas: “Com a mesma paixão com que antes denunciavam o ?socialismo?, porque subordinava o homem ao Estado, louvam o neoliberalismo e não compreendem, ou não querem compreender, que ele subordina o homem ao dinheiro”, constata Jean-François Kahn. “Da mesma maneira que eram stalinistas ou maoístas, tornaram-se pró-americanos. E da mesma maneira que se diziam internacionalistas, declaram-se pró-globalização. Continuam maniqueístas, como antes. E não percebem que mudaram de lado.”

O papel do intelectual

“Um intelectual”, dizia Marcuse, “é alguém que recusa compromissos com os poderosos.” A maioria dos intelectuais franceses de hoje não cumpre essa tarefa

Dizem-se defensores ardorosos dos direitos humanos, mas apóiam um Estado que não os respeita, nem em seu próprio país, nem nos países que domina, assim como fazia a ex-União Soviética. Dando ajuda incondicional às ditaduras mais violentas – como às políticas mais cegas e mais assassinas, golpes de Estado, atentados, condenação à morte lenta (fome, doenças) de centenas de milhares de seres humanos (Iraque, Sudão) – os Estados Unidos são “um Estado terrorista de primeira linha” (Noam Chomsky17), e é a esse Estado, que dizem ser “democrático” (Jacques Julliard), que a maioria apóia, quando não lhe dedica uma admiração sem limites.

Politicamente submissos, ideologicamente servis, aduladores dos grandes, cortesãos bajuladores, cobertos de títulos que exibem como medalhas (professor da Escola Politécnica, professor concursado da universidade, “filósofos”), freqüentemente bons oradores e às vezes estilistas brilhantes, têm, como se diz, tudo para agradar. Não é surpreendente que tenham seduzido os meios de comunicação, nem que, em troca, deles se sirvam. Esquecendo, por isso mesmo, a principal função de um intelectual – “marginal, inútil e essencial”, como diz Pierre Nora: a função crítica, a recusa total de compromissos com os poderosos.

Contrariamente a esses espíritos pessimistas que, tomando seus desejos pela realidade, anunciam sistematicamente o “fim dos intelectuais”, os intelectuais – os verdadeiros – são mais do que nunca necessários: numa sociedade em que a escola está sendo degradada, em que a televisão lança em altas doses suas idiotices sobre milhões de cidadãos, em que os jornais se aviltam e, muito freqüentemente, dão mais importância ao caso policial do que ao fato em si, só os intelectuais podem incitar à reflexão. A ter um certo distanciamento em relação ao evento bruto. A ver, ler e compreender de outra maneira.

“O papel de um intelectual é hoje o mesmo que sempre foi”, lembra Michel Onfray: “Baseado no princípio de Diógenes (ou de Bourdieu), ser a má consciência de seu tempo, de sua época. A mosca, o inoportuno, o rebelde com o qual não se reproduz o sistema social. O intelectual pode pensar e dar idéias aos políticos, pouco dotados para o raciocínio e a reflexão. Deve denunciar as injustiças, as taras do sistema, os mecanismos alienantes…” Sem fazer concessões.

(Trad.: Regina Salgado Campos)

Recusaram-se a dar entrevista para este artigo Pascal Bruckner, Jean-Claude Casanova, André Glucksmann, Serge July e Jorge Semprun. Luc Ferry reservou-se o direito de responder posteriormente.

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[1] Ler, de Théo Klein, Le Manifeste d’un Juif libre, ed. Liana Lévi, Paris, 2002.
[2] Ler, “La mémoire expurgée de la guerre d’Algérie”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2001.
In Le Monde televisión, 12 de agosto de 2002.
[3] Ler, de Louis Pinto, “Des prophètes pour intellectuels”, Le Monde diplomatique, setembro de 1997.
[4] Ler, de Alain Finkielkraut, L’Imparfait du present, ed. Gallimard, Paris, 2002.
[5] Ler, de Oriana Fallaci, La Rage et l’Orgueil, ed. Plon, Paris, 2002.
[6] Alain Finkielkraut, in Le Point, 24 de maio de 2002.
[7] Luc Ferry, in Le Monde televisión, 12 de agosto de 2002.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

UMA IMAGEM VALE MAIS DO QUE MIL PALAVRAS: INTELECTUALIDADE E INTERESSES DE CLASSE - Rubens Vinicius da Silva


UMA IMAGEM VALE MAIS DO QUE MIL PALAVRAS: INTELECTUALIDADE E INTERESSES DE CLASSE


Rubens Vinícius da Silva

Licenciado em Ciências Sociais pela FURB – Universidade Regional de Blumenau.




Nos últimos anos, alguns intelectuais brasileiros têm ganhado muita evidência, prestígio e dinheiro, em especial ao ampliar suas atividades para além do fixado pela divisão social do trabalho. Ademais, os vínculos entre estes que mais se destacam na competição no seio desta classe, buscam se aproximar ainda mais, reforçando vínculos e angariando ainda mais espaço na sociedade capitalista. Um exemplo é o caso da foto abaixo, que apesar de ter sido apagada por aquele que a postou numa famosa rede social, nos abre espaço para uma crítica que não pode ser escamoteada. O que intelectuais em primeiro momento tão díspares, como o juiz federal Sergio Moro e o professor e historiador Leandro Karnal (que tão logo recebeu críticas exasperadas teve a “prudência” em retirá-la de circulação) possuem em comum?



Devido aos limites do texto e ao fato de Karnal ter postado a imagem, além de sua notoriedade cada vez maior (ele possui um programa na Rede Bandeirantes, com o sugestivo nome “Careca de Saber”) iremos nos concentrar em sua figura sem, contudo apontar o que há de comum entre ele e o cada vez mais renomado juiz federal Sérgio Moro. Assim, partimos do pressuposto segundo o qual intelectualidade é uma classe social essencialmente conservadora, portanto uma das classes auxiliares da burguesia (VIANA, 2012). Isso significa dizer que todos aqueles que pertencem a esta classe (dos conservadores aos hegemônicos, bem como dos venais aos progressistas, expressando distintas posturas intelectuais) compartilham de um modo de vida e de atividade comum, do qual derivam interesses comuns e, por conseguinte, determinados valores, costumes e representações que também são partilhadas.

No que tange ao termo progressista, empregado para definir a produção, postura e discursos de Karnal, cumpre ressaltar que o uso deste termo possui conotação negativa. Progressista aqui se refere justamente aos membros do bloco progressista: Leandro Karnal se enquadra entre os membros da intelectualidade que manifestam, de forma organizada e consciente, a perspectiva burguesa sob um manto mais “crítico”.

Para este bloco social, cuja expressão é a ação de setores da intelectualidade e da burocracia partidária e sindical, numa união que se dá através de suas forças organizadas e formas de consciência, gerando assim novos interesses e processos de luta, existe a necessidade de defender posições que apontem para um questionamento de determinados aspectos isolados da sociedade moderna. Portanto, não se trata de propor uma crítica radical, ou seja, que vá até às raízes do problema.

A dinâmica dos blocos sociais complexifica a luta de classes (VIANA, 2016): uma de suas formas se dá pela confusão, muitas vezes estabelecida (e algumas até intencionalmente) pelos representantes intelectuais do bloco progressista, no sentido de desviar a luta de classes da questão fundamental, o modo de produção capitalista, para, no caso da foto, questões de ordem moral. Como se outros orgulhosos colegas de classe social não fizessem o mesmo ao longo da história do capitalismo subordinado brasileiro...

Numa palavra, para o bloco progressista trata-se de defender o progresso, o desenvolvimento, portanto uma crítica limitada que só aponta para microrreformas, negando a totalidade concreta, as relações sociais e a necessidade urgente de transformação social. É defender, de forma diferente, a manutenção das relações de exploração e dominação características da sociedade moderna, capitalista.

Os vínculos de Moro e Karnal com o capital comunicacional também são explícitos. Além disso, ambos os intelectuais são muito bem pagos para ministrar palestras e seminários no país e no resto do mundo. Cumpre saliente que ambos são financiados pela classe dominante, em especial pela fração do capital industrial. O que explica a proximidade entre ambos é o fato de Moro se tratar de um representante intelectual do bloco dominante, ao passo que Karnal pode ser considerado um representante da ala moderada do bloco progressista: as críticas dirigidas por ambos à ditadura militar, a defesa enérgica da democracia (burguesa) revelam a grande proximidade existente entre os dois ideólogos.

Por ser uma classe auxiliar da burguesia, sua dependência material desta (a saber, uma parte do imenso mais-valor extraído do proletariado, sendo as duas classes citadas as fundamentais do modo de produção capitalista) se manifesta também na necessidade de buscar alianças com membros dessa classe.

Tal processo expressa seus interesses e alianças de classe, os quais se dão quer com membros da mesma classe ou de outras classes privilegiadas, (como por exemplo, a burocracia) no sentido de se reproduzir enquanto tal. A intelectualidade é paga pelos capitalistas para produzir ideologias, e seus membros tendem a se aliar e deste modo conservar e manter seus interesses e privilégios de classe.

Neste sentido, por mais aparentemente opostos que possam parecer em seus discursos, os intelectuais enquanto classe (ou seja, os indivíduos reais, históricos, concretos que produzem e reproduzem falsa consciência sistematizada - ideologia -, devido ao seu papel na divisão social do trabalho) têm sim algo em comum: para eles, trata-se de interpretar, compreender e criticar (nunca radicalmente, por óbvio) o mundo.

Porém, parafraseando Marx (MARX & ENGELS, 2004), um intelectual engajado e, portanto, revolucionário: os ideólogos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. Isso implica dizer que é necessário fortalecer posições intelectuais e produzir elementos de cultura que contestem a sociedade capitalista na sua totalidade, apontando para (dentre outras determinações) evidenciar a urgência do fortalecimento da perspectiva revolucionária, na forma de denúncia das alianças havidas entre a intelectualidade e a burguesia.

 O compromisso com a verdade e a busca pela transformação social são duas premissas fundamentais para os intelectuais engajados: romper com os vínculos com o capital e fomentar a luta pela autogestão social expressam a defesa do projeto de emancipação humana. Isso significa romper com os valores, ideias, sentimentos, interesses e representações de sua própria classe social, o que manifesta a luta individual e coletiva pelo resgate de uma produção efetivamente teórica, ou seja, uma expressão da realidade e não a deformação da mesma.

Bibliogr
bbbb
Referências
APÓS perder seguidores, Karnal apaga post de jantar com Sergio Moro. Disponível em: https://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/284567/Após-perder-seguidores-Karnal-apaga-post-de-jantar-com-Sergio-Moro.htm.  Acesso em 12 de março de 2017.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã 1º Capítulo: Seguido das Teses sobre Feuerbach. 7ª Edição. São Paulo: Centauro, 2004.

VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. Florianópolis: Bookess, 2012.

VIANA, Nildo. Blocos Sociais e Luta de Classes. Disponível em: http://informecritica.blogspot.com.br/2016/03/blocos-sociais-e-luta-de-classes.html Acesso em 12 de março de 2017.

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Publicado originalmente em:
Revista Posição, Vol. 04, num, 14, 2017. 

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