Notas sobre o significado político do futebol
Nildo Viana
Resumo
O presente artigo traz uma breve discussão na forma de notas sobre o significado político do futebol. Neste contexto, mostra o significado conservador do futebol através de vários aspectos: construção de identidade nacional, axiologia, representações ilusórias, evasão e a sua possibilidade de carregar uma potencialidade emancipadora.
Palavras-chave: Futebol, Conservadorismo, Capitalismo, Política.
Abstract
The present article brings one brief quarrel in the form of notes on the meaning politician of the soccer. In this context, it shows to the meaning conservative of the soccer through some aspects: construction of national identity, axiology, false representations, evasion and its possibility to load a liberating potentiality.
Key words: Soccer, Conservatism, Capitalism, Politics.
O nosso objetivo, no presente texto, é discutir brevemente o significado político do futebol [1]. Discutiremos, em nossas breves notas, o significado político do futebol, entendendo por isso a relação entre futebol e a política na sociedade moderna. Aqui deixamos de lado todas as paixões, a dos adoradores do futebol e a dos detratores, ou seja, tanto daqueles que dão grande valor ao futebol, fazendo esse assumir grande importância em sua vida, quanto daqueles que menosprezam ou odeiam o futebol, incluindo aqueles que o consideram uma “ideologia do poder” (Ramos, 1994) ou um “estupro” (Alves, 2010). Afinal, tanto o amor quanto o ódio exagerado sem grande motivação pessoal é algo psiquicamente problemático e não nos colocamos em nenhum dos dois campos, para utilizar um trocadilho. Também deixamos de lado os nossos sentimentos passados e atuais em relação ao futebol, pois a consciência é o melhor meio de reconstituir os sentimentos e valores de forma que contribua com a emancipação humana e possibilite uma percepção mais adequada de um determinado fenômeno com os quais possuímos envolvimento.
Futebol e identidade nacional
O futebol, politicamente, é extremamente conservador. O caráter conservador do futebol pode ser reconhecido a partir de alguns pontos básicos, que destacaremos brevemente aqui. O primeiro ponto a destacar é o que é mais reconhecido pelos estudiosos do futebol: o futebol reforça a identidade nacional.
“O que faz a especificidade do futebol é que ele se desenvolve num espaço nacional. Não apenas porque quase todos, no Brasil, estão concernidos pelo futebol. Mas porque qualquer time pode, em tese, competir com qualquer outro, porque os jogadores podem mudar de time, porque, no universo futebolístico, tudo se relaciona com tudo num clima geral de autotransparência, apesar dos conchavos e manipulações dos cartolas. A ‘sociedade futebolística’ é política precisamente pelo fato de alcançar essa dimensão nacional” (Debrun, 1983, p. 89).
É claro que isto é mais forte e visível nos períodos de copa do mundo. Nesse momento, ao assistir um jogo da Copa do Mundo, “se sente mergulhado num oceano de vontades parecidas com a sua. Pois sabe de antemão que todos, praticamente, estão também assistindo” (Debrun, 1983, p. 90). A identidade nacional e o futebol estão inter-relacionados:
“É portanto essencialmente a nível de futebol, e não de outras atividades – nem pela mediação unificante do palavrório oficial, do discurso tecnocrático-competente ou militar-ufanista –, que os brasileiros constituem, uns para os outros, uma nação. Nessa sociedade global todos ‘reconhecem’ todos, isto é, reconhecem no outro um alter ego de fato, e não um ser abstratamente igual, no qual poderiam pisar sem maiores dores de consciência” (Debrun, 1983, p. 90).
Sem dúvida, as reflexões de Debrun são oportunas e carregam momentos de verdade, embora haja certo exagero. O futebol é um dos principais veículos de criação de identidade nacional, no caso brasileiro, mas existem vários outros canais para tal criação (família, ideologias, sentimentos, escola, etc.). Porém, não há como não perceber que o futebol é um veículo da identidade nacional, e que isso é reforçado tanto internamente, nos marcos da nação, como externamente, nos outros países. Os livros didáticos de inglês sempre mostram uma figura de um jogador negro como símbolo do Brasil, é o Pelé que representa o brasileiro, o “soccer player” ao invés do americano “football player”. A identidade nacional é conservadora e o que reforça ela é, por extensão, conservador. A identidade nacional abole imaginariamente as profundas divisões sociais, a luta de classes, os interesses antagônicos, sem falar em outras divisões e subdivisões (região, raça, sexo, idade, cultura, etc.). Ela exerce o papel de criar uma unidade ilusória e, como já dizia Marx , a ilusão é mobilizadora, logo, reprodutora do existente.
Futebol e axiologia
Mas o futebol não é conservador apenas por reforçar a identidade nacional, o seu conservadorismo também se manifesta na reprodução dos valores dominantes. O futebol é axiológico, no sentido de ser uma determinada configuração do padrão de valores dominantes (Viana, 2007), principalmente no caso brasileiro. O futebol reforça e reproduz a sociabilidade capitalista competitiva. Obviamente que, como esporte, desde que surgiu a sociedade de classes, há competição. Porém, a competição se tornou o único objetivo do futebol para muitos, o que tem a ver com seu outro aspecto conservador, que é o fato de ser “sem sentido”, questão que abordaremos mais adiante.
Aqueles que perderam a competição social, não “venceram na vida”, como diz os valores dominantes (Viana, 2007), precisam compensar isso com a vitória em algum outro lugar, e esse lugar, no Brasil, é principalmente o futebol. Os maiores amantes do futebol estão justamente nas classes desprivilegiadas, onde o sucesso, a fama, a riqueza e o poder não foram atingidos e estão distantes de se concretizar. Ao perder a competição social, se compensa se dizendo melhor do que os outros, seja por ser “mais inteligente”, “mais esperto”, “mais bonito”, supostos atributos individuais, seja por atributos coletivos, como “ser da raça superior” ou “torcer pelo time vencedor”.
O perdedor da competição social se satisfaz sendo melhor do que os outros em qualquer coisa, mesmo que o melhor seja apenas a satisfação de saber que alguém está supostamente (ou realmente) pior. Assim, há um processo psíquico de criação de compensação, buscando vitória em algum lugar para compensar a derrota em outro. Poderíamos apresentar milhares de exemplos da mentalidade burguesa (Viana, 2008), ou uma de suas principais características, a competição, onde qualquer coisa é pretexto para defender a superioridade, desde o pouco dinheiro a mais, o consumo, a moral, etc. Alguns exemplos: “sou pobre, mas sou honesto”, ou seja, estou mal, mas estou melhor moralmente; “eu estou tão ruim quando o meu vizinho, mas eu sou branco”, diz o que compensa seu fracasso com o racismo; “a minha vida está uma droga, mas não uso droga como o meu irmão”, diz mais um querendo arrumar qualquer coisa para ficar acima dos outros, não percebendo que qualquer droga é droga (...); “eu pelo menos tenho um carro, velho, mas meu, e você que não tem carro nenhum”, onde se vê o consumo ou a posse como estratégia de competição; por fim, “a minha namorada é a mais bonita do bairro”, onde se vence a competição masculina com o bem mais almejado nesse caso, a beleza feminina (Alberoni, 1988) .
A personalidade competidora (Wright Mills, 1971) perpassa o futebol, é por isso que não existe apenas uma competição dentro do campo, mas fora dele, na torcida, nas piadas na vida cotidiana, onde cada um busca engrandecer seu time, se não foi campeão hoje, foi no passado, teve os melhores craques, ou mesmo tem a maior torcida. É isto que cria a tendência do crescimento das torcidas dos clubes de futebol. A principal tendência é que o time vencedor – quando tem vitórias sucessivas, preferencialmente por alguns anos – conquiste cada vez mais torcedores. Em Goiânia, até a década de 1950, o Goiânia e o Atlético goianiense eram os times de maior torcida, a partir da segunda metade dos anos 1960, a situação começa a mudar com os títulos ficando com o Vila Nova e o Goiás, que passaram a ser os times de maior torcida a partir da década de 1970.
Claro que existem outras determinações, como a tradição (familiar, etc.) e as características do time vencedor (ser elitista, por exemplo, o que ao invés de criar atração cria repulsa em certos setores), e por isso o Vila Nova, apesar de seus sucessivos fracassos nos últimos anos, ainda é o time de maior torcida no Estado de Goiás, tal como o Corinthians ficou muito tempo sem ser campeão e não perdeu o posto de time de maior torcida. Porém, existe também a competição para saber qual é o time de maior torcida e isso reforça a reprodução dos clubes de grande torcida pela inércia da tradição e a vantagem competitiva derivado de estar com a maioria e com um clube que ganha alguma coisa.
A competição substituta da competição social, no Brasil, é prioritariamente, pelo menos para os indivíduos do sexo masculino e geralmente das classes desprivilegiadas, o futebol. Isso se deve justamente ao fato de que o futebol tem grande importância a nível nacional, através de um longo processo histórico de esporte preferido nacionalmente, de vitórias em copa do mundo, de símbolo do país, do reforço dos meios oligopolistas de comunicação, etc. Ao ser um espaço de competição que substitui a competição social, mas a reforça no universo psíquico do indivíduo, fortalecendo os valores dominantes, o futebol mostra outro aspecto conservador. As rivalidades de torcidas reforçam isso, no qual o lumpemproletariado e membros das classes exploradas criam outra competição, muitas vezes violenta, entre si, uma competição derivada da competição futebolística e social (Viana, 2010).
Futebol e representações ilusórias
O futebol reproduz a falsa consciência sobre si mesmo e até por intelectuais e críticos do futebol. Um exemplo disso é a falsa ideia de que o futebol é igualitário. Assim, a suposta igualdade no mundo do futebol é mais uma ilusão do que uma realidade. Debrun, remetendo ao antropólogo Roberto Da Matta e sua obra Carnavais, Malandros e Heróis, sustenta uma relação entre igualdade e futebol:
“Um primeiro aspecto da politização imediata reside na igualdade de todos no futebol ou perante o futebol. Regras impessoais, objetivas, vigoram de fato nessa esfera, à diferença do que ocorre nas outras: quem ganha leva. Segundo, qualquer menino brasileiro pode nutrir a esperança de ingressar um dia na Seleção Brasileira, exatamente como qualquer soldado de Napoleão tinha uma potencialidade concreta de se tornar marechal. Nenhuma barreira de classe ou de casta. Terceiro, todos podem comentar, discutir, criticar infindavelmente os eventos do futebol: não há nessa área, como diria Marilena Chauí, nenhum ‘saber competente’ que possa recusar liminarmente a tomada da palavra por parte dos humildes” (Debrun, 1983, p. 89).
A ilusão de igualdade reforça a desigualdade. Dizer que todos são iguais perante o futebol é tão ilusório quanto afirmar que “todos são iguais” numa sociedade de classes ou mesmo “todos são iguais perante a lei”, desconhecendo como a lei é produzida, como é utilizada e como é dirigida . As regras pessoais e objetivas no futebol vigoram apenas na imaginação dos intelectuais que dizem isso. Basta ver os visíveis acordos e casos de corrupção, como pela própria estrutura do futebol brasileiro para ver seu caráter ilusório. A forma de disputa do campeonato brasileiro é o exemplo mais visível disso. Antes, participava do campeonato brasileiro os primeiros colocados nos campeonatos regionais, o campeão e alguns outros, cujo número variava de acordo com o estado (São Paulo e Rio de Janeiro, como não poderia deixar de ser, tinham maior número de vagas, e depois vinham estados como Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraná, Bahia, Pernambuco, etc., até chegar aos do norte e menos privilegiados do nordeste, o que já manifestava uma desigualdade: a desigualdade futebolística reproduzia a desigualdade regional, o que ocorre hoje de forma diferenciada). Porém, a desigualdade era menor, pois se o Juventus de São Paulo ficasse bem classificado no campeonato paulista, disputaria o campeonato brasileiro, e se o Itumbiara de Goiás ficasse entre os quatro primeiros do campeonato goiano, também teria esse direito.
A partir da nova forma de disputa do campeonato brasileiro, com Séries A, B e C, entre outras mudanças relacionadas, o “Clube dos 13” e mais alguns conseguiram cristalizar os clubes com maior rendimento financeiro ao se “fixarem” na Série A e com isso não só ter maiores rendas, como também dinheiro do Estado e dos meios oligopolistas de comunicação. Para os Estados que só possuem um clube nessa série, ficou extremamente desigual o processo de disputa interna, já que tal clube passou a ter muito mais recursos e estrutura que os demais. A tartaruga e a lebre disputam uma corrida desigual, que, ao contrário do exemplo de Zenon (o filósofo grego, não o jogador...), é a lebre que já tem melhores condições sai com frente e vantagem na corrida.
Qualquer menino brasileiro pode ter a esperança em chegar à Seleção Brasileira, sem dúvida, assim como qualquer um pode sonhar em ganhar na loteria esportiva ou na mega-sena, e isso não vai deixar de ser ilusão que promove sonhos burgueses nas classes desprivilegiadas e geram lealdade para com a sociedade que produz e reproduz a dominação e a exploração, bem como a pobreza e miséria. Quem precisa da esperança em chegar à seleção brasileira? Os filhos da burguesia? Obviamente que não. O significado conservador dessa ilusão é o mesmo de toda ilusão de vencer a competição social: a não recusa da sociedade existente, a lealdade e sua defesa, tal como o indivíduo sem propriedade privada que é contra o seu fim por sonhar que um dia a terá. Doce ilusão, amarga realidade.
Todos podem comentar o futebol. Essa afirmação parece ser a mais plausível de todas sobre o caráter igualitário do futebol. Porém, quem tem a voz e a supremacia são os comentaristas dos meios oligopolistas de comunicação, com suas representações cotidianas mescladas com discurso técnico e superficialidade. A partir destes, os indivíduos não especialistas em futebol reproduzem em seus debates cotidianos os argumentos desse “discurso quase-competente”: “você não entende de futebol”; “é preciso entender técnica e tática”, diz o leigo que se julga entendido por ouvir os brilhantes comentários nos meios oligopolistas de comunicação.
O caráter conservador do futebol se revela nas representações ilusórias que apontam para seu suposto caráter igualitário enquanto ele é, profundamente, desigual. O conjunto de relações sociais por detrás de um jogo ou da situação de alguns jogadores, desde a corrupção, a vida privada dos jogadores, a marca da origem de classe, tal como se pode ver no filme Rudo e Cursi (dirigido por Carlos Cuarón, México-EUA, em 2008), até as artimanhas dos verdadeiros donos da bola, ou seja, os empresários do futebol. Nada de novo no front futebolístico. E isso legitima não somente o futebol, mas também a sociedade que o transformou em mero produto mercantil.
Futebol e evasão
Outra característica do futebol é ser algo sem sentido. Uma obra literária, por exemplo, repassa uma mensagem, assim como qualquer outra obra artística. Isso vale também para a produção artesanal ou intelectual. Sem dúvida, como todo esporte, o futebol pode ser manifestação das energias físicas, da criatividade, possibilitando prazer em seu exercício. Mas entre o poder e o ser há uma diferença bem grande. O futebol, hoje, é algo bem diferente disso, pois não tem sentido, significado, a não ser o da consciência coisificada. A coisificação pode dar significado humano às coisas .
A falta de sentido do futebol se revela no fato de que para o jogador profissional o futebol não é um objetivo em si e sim apenas um meio de adquirir dinheiro, fama, riqueza; os burocratas e empresários do futebol, também almejam a mesma coisa, com raras exceções. O amante do futebol, que vai ao estádio ou vê na TV, não recebe nenhuma mensagem, nada de significativo se apresenta no desenrolar de um jogo – além da competição como valor. Obviamente que isso é diferente do jogador de várzea ou amador, que joga por gostar e gasta suas energias físicas e obtém prazer neste exercício, ganhando ou perdendo. Também é diferente do torcedor que vê um jogo para observar habilidade, criatividade, o que é algo significativo. Porém, isso não existe mais. Começou a deixar de existir com o processo de profissionalização, ou seja, pela mercantilização e burocratização do futebol, no qual ele cada vez mais é um espelho da sociedade competitiva, mercantil e burocrática. Isso também tem o efeito despolitizador, se colocando fora da sociedade, fora do social e do político, uma realidade paralela sem sentido e sem nada a oferecer a não ser sua própria redoma, a si mesmo.
Assim, os saudosistas do futebol-arte são mais críticos e avançados do que os torcedores que cederam ao discurso tecnicista do “futebol de resultados”, cópia futebolística do reformismo do “sindicalismo de resultados”. Os dribles do Garrinha, os gols de Pelé, o balão e dribles da seleção brasileira de 1982/1986 com Falcão, Zico, Júnior, Sócrates, os gols de bicicleta e olímpicos, foram substituídos por passes errados, defensivismo, mediocridade.
O resultado é um elemento fundamental da competição social capitalista, mas é ao mesmo tempo uma negação do que haveria de humano no futebol. A criatividade e a habilidade, por um lado, e o gol (“o grande momento do futebol”, como já dizia um programa televisivo, que é cada vez mais raro), desaparecem dos estádios e em seu lugar aparece a mesquinha busca de resultados. O técnico quer o resultado para manter seu cargo e conseguir sucesso (e dinheiro) e por isso geralmente é “retranqueiro”; o jogador quer o resultado e por isso não ousa e não expõe seu corpo, pois é o seu “capital”, e por isso “pipoca” e, como o sambista, “não entra em bola dividida”, além de não se esforçar mais que o necessário para continuar ganhando o seu dinheiro e não vai driblar porque o zagueiro pode lhe atingir a perna por causa disso – e carreira de jogador é curta e contusão grave pode encurtá-la ainda mais; os empresários e burocratas querem o resultado porque é isso que vai dar o retorno financeiro. Até alguns torcedores viraram defensores do “resultado”. Estes são aqueles que desistiram de lutar e caíram no conformismo, ou então que padecem do que Nietzsche chamou de “espírito de rebanho”. Pode ser comparado ao “homem medíocre”:
“O homem medíocre é uma sombra projetada pela sociedade; é essencialmente imitador e está perfeitamente adaptado para viver em rebanho, refletindo as rotinas, preconceitos e dogmatismos reconhecidamente úteis para a domesticidade. Assim como o inferior herda a ‘alma da espécie’, o medíocre adquire a ‘alma da sociedade’. Sua característica é imitar todos os que o rodeiam: pensar com a cabeça alheia e ser incapaz de formar ideais próprios” (Ingenieros, 2010, p. 48).
Assim, o futebol provoca a adesão dos conformistas em sua mediocridade cotidiana oriunda de sua mercantilização e burocratização crescentes e, ao mesmo tempo, atrai para si aqueles que fogem da dura realidade cotidiana do trabalho alienado e da sociedade burocrática e mercantil, manifestando uma espécie de psicose coletiva que tem no futebol uma realidade paralela, às vezes mais importante do que a realidade cotidiana. A psicose, como já se colocou, se desenvolve mais no proletariado e nas classes exploradas (Schneider, 1977), enquanto que a neurose atinge mais as classes privilegiadas. Junto a isso vem a pseudestesia coletiva de alegria com a vitória, o título do campeonato e a conquista da copa. O futebol, ao provocar evasão, mostra mais um aspecto conservador, que é formar uma realidade paralela que permite aos explorados e oprimidos fugirem da realidade ao invés de lutar por sua transformação.
Futebol e emancipação humana
Depois disso tudo, o que resta para falar do futebol sua relação com a política? Devemos esquecê-lo, murmurar frases mal-humoradas e virar-lhe as costas? Isso é demasiado pouco, já que as ilusões futebolísticas são mobilizadoras no sentido conservador, já que a evasão é desmobilizadora no sentido revolucionário, então o futebol em nada pode contribuir com a emancipação humana. Terrível conclusão para os amantes do futebol. E isso será verdade enquanto houver amantes do futebol, enquanto houver fetichismo do futebol. O futebol é um produto humano, social e histórico, como qualquer outro, nada tem de sagrado, assim como a religião, a arte, a ciência, e outros fetiches existentes. A dessacralização do futebol para os seus adoradores, é o primeiro passo para que ele abandone seu caráter conservador.
Porém, é ilusão pensar que o futebol profissional poderá mudar, largar de ser mercantil, burocrático, competitivo, conservador. Somente em uma sociedade pós-capitalista, somente na utopia autogestionária isso seria possível de se concretizar. Logo, defender o retorno ao futebol amador é uma bandeira de luta, mas pouco realista e que não se concretizará. Abandonar o futebol para os fetichistas, competidores, capitalistas e burocratas? Não há possibilidade de luta nesta esfera? Tirando pequenos fatos isolados, como a “democracia corintiana” incentivada pelo médico e jogador Sócrates, numa sociedade marcada pela ditadura militar e apresentando frases democratizantes, é uma politização parcial do futebol, que é despolitizador. A torcida organizada do Ferroviário do Ceará, Ultras Resistência Coral, antiviolência e composta por anarquistas e outras tendências politizadas é um exemplo de torcedores fazendo algo politizante num mundo paralelo despolitizado. Porém, é preciso ir mais longe.
Há uma luz no fim do túnel. O futebol pode adquirir um significado emancipador. Numa sociedade que mercantilizou e burocratizou tudo, o futebol pode voltar a ser uma prática não alienada e isso pode ocorrer se os torcedores largarem a divisão do trabalho entre eles e os jogadores e deixarem de ser meros expectadores e se tornarem jogadores amadores, tal como o foi no início do século 20 em São Paulo. Ao invés de ir ao estádio assistir ao triste teatro futebolístico contemporâneo, pode desalienar o seu lazer e criar jogos, campeonatos amadores, a partir de associação de torcedores-jogadores ao invés do controle burocrático do Estado, onde o prazer de jogar faz renascer o prazer de ver, pois o que se vê é criatividade, habilidade, e ao invés da competição total, espaços para solidariedade. Obstáculos existirão, sem dúvida. Mas tudo faz parte da luta por uma nova sociedade, e luta não é competição, é outra lógica, outros objetivos, outras conseqüências. Esta e outras iniciativas poderão florescer e o caminho então é plantar flores revolucionárias para transformar esse mundo cinzento do futebol profissional.
Referências:
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Notas:
1 - Por isso sob a forma de notas. Uma análise mais ampla do futebol e seu caráter social e histórico, pode ser vista em outro texto de nossa autoria: O Futebol Como Fenômeno Social, em vias publicação.
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Artigo publicado originalmente em: Revista Espaço Acadêmico. Vol. 10, nº 111, agosto de 2010.
Maravilhoso Nildo !
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