A
OBSERVAÇÃO RELACIONAL COMO TÉCNICA DE PESQUISA SOCIAL
Nildo Viana
A investigação nas ciências humanas se depara,
constantemente, com o problema dos métodos e das técnicas de pesquisa. No
último caso, há uma grande extensão de técnicas de pesquisa e uma variedade
grande de formas assumidas por algumas delas, como a entrevista, por exemplo.
Nesse sentido, é importante a produção de reflexões sobre as mais variadas
técnicas de pesquisa e suas variações. O nosso objetivo aqui é apresentar uma reflexão
sobre a observação relacional, que pode ser considerada uma variação da técnica
de pesquisa chamada “observação”. Neste contexto, pretendemos colocar que a
observação relacional é distinta de outras formas de observação e sua forma
específica, bem como explicitar como ela pode contribuir com a investigação no
âmbito das ciências humanas.
Os
Pressupostos da Observação Relacional
A observação relacional é uma técnica de pesquisa pouco
discutida, por ser bastante recente (VIANA, 2015). A razão de ser da observação
relacional se origina nas debilidades e limites das demais formas de
observação. Isso se deve ao fato de que a observação relacional ser intimamente
vinculada ao método dialético e ao materialismo histórico, o que torna as
demais formas de observação inapropriadas sem alterações e adaptações. Contudo,
a observação relacional não é apenas uma alteração e adaptação das demais
formas de observação, pois sua base teórico-metodológica é distinta e é o que
gera as demais diferenças. Nesse sentido, antes de definir o que é observação
relacional é útil explicitar o seu vínculo com o método dialético e
materialismo histórico.
A observação relacional se difere, inicialmente, por seus
pressupostos, que são antagônicos ao objetivismo e ao subjetivismo, bem como
sua teoria da realidade e teoria da consciência, além do seu vínculo analítico
com a radicalidade, historicidade e totalidade. O objetivismo, em sua definição
mais simples, é a concepção segundo a qual existe uma realidade objetiva,
independentemente do observador, e que, se este for “objetivo”, poderá captá-la
exatamente como ela é. Para o método dialético, existe uma realidade que é
independente da vontade e consciência do observador, mas que o acesso a ela é
mediado pelas relações sociais e pela cultura, bem como é dependente do
indivíduo e sua posição na sociedade. Ou seja, a solução objetivista é a
neutralidade e uso de métodos e técnicas que retire o aspecto subjetivo da
pesquisa. A solução dialética aponta para a impossibilidade da neutralidade e
da existência de métodos e técnicas “objetivas”.
Isso pressupõe uma crítica da ideologia da neutralidade.
Marx já havia colocado que as ideias, as representações, a moral, a religião,
etc., são produtos históricos e sociais e, mais do que isso, são perpassados
por interesses, valores, que também são históricos e sociais, bem como
vinculados a classes sociais (MARX; ENGELS, 1982). Não pode existir uma
interpretação da realidade (nem mesmo no âmbito das ciências naturais)
desvinculada de interesses e valores. Assim, embora a realidade exista e seja
independente do observador, ela não é meramente “observada”. O observador não é
um indivíduo sem interesses e valores, sem ideias e concepções geradas
histórica e socialmente.
De qualquer forma, esse é um falso problema. A questão não é
a existência de interesses e valores, ou então de uma cultura anterior que
realiza uma mediação entre o observador e a realidade e sim quais são os
interesses e valores, bem como cultura, que serve de base para o observador
realizar a observação (VIANA, 2007a). Isso significa que a concepção dialética
nada tem de relativista. Os interesses e valores podem apontar para o
compromisso com a verdade ou compromisso com a inverdade. E isso remete
novamente ao social. As classes dominantes na história não possuem o interesse
na verdade, nem as classes auxiliares e aqueles que reproduzem os interesses e
valores de tais classes. Assim, interesses e valores, se expressando o
compromisso com a verdade, com a transformação radical e total do conjunto das
relações sociais (pois aqueles que estão integrados e atrelados à sociedade
atual não possuem a capacidade crítica e a radicalidade necessária para
enxergar sua historicidade e características desumanizadoras), o que significa
se vincular ao proletariado, compreendido como classe revolucionária de nossa
época[1].
O subjetivismo, em sua definição mais simples, é a concepção
segundo a qual o “sujeito” (que aparece como um ente abstratificado[2], que pode ser o indivíduo,
o grupo, a sociedade como um todo) é a fonte do saber e não a realidade.
Segundo Hessen, “o subjetivismo, como seu nome já indica, restringe a validade
da verdade ao sujeito que conhece e que julga. Este pode ser tanto o sujeito
individual ou indivíduo humano quanto o sujeito genérico ou o gênero humano”
(2000, p. 28). Para uma concepção dialética, o subjetivismo é uma concepção
reducionista e limitada, pois reduz o saber ao sujeito, mas este é algo
abstratificado. No subjetivismo contemporâneo, ele é materializado em grupos
sociais, indivíduos, que são, novamente, abstratificados. Isso, obviamente,
gera uma primazia do “sujeito” e desconsideração da realidade concreta (muitas
vezes acompanhada por uma recusa da sua força em relação ao saber ou mesmo sua
inexistência, ou, ainda, a impossibilidade de ter uma consciência correta
dela).
Assim, a observação relacional parte do princípio dialético
que tanto o observador quanto o que é observado são relacionais. Eles só
existem como observadores e observados na relação entre ambos. O observador não
pode observar o que não existe, bem como um fenômeno não pode ser observado a
não ser por um observador. O saber constituído é como a observação, ou seja, o
ato do observador em relação ao observado. Logo, na concepção dialética, não há
como cair no subjetivismo nem no objetivismo, que não passam de antinomias do
pensamento burguês (VIANA, 2018).
Isso remete a outros dois aspectos que são pressupostos da
observação relacional, que é a teoria da realidade e a teoria da consciência.
Contudo, essa é uma questão extensa e que só poderemos sintetizar brevemente. A
realidade, na concepção dialética, é concreta. O concreto, como categoria do
pensamento, remete para as categorias de determinação, historicidade e
totalidade (MARX, 1983). O real é histórico, não pode ser retirado da história.
Ele também é uma totalidade, mesmo que seja um fenômeno particular, pois ele é composto
por partes, e, além disso, está inserido numa totalidade mais amplas, rica em
relações e determinações. Por fim, o real é determinado, ou seja, e, sendo a
realidade social, é um produto histórico e social (VIANA, 2007a).
A consciência, por sua vez, é o indivíduo, ser humano
singular, histórico-concreto, consciente. A consciência, como é algo real, é
histórica, determinada, bem como é uma totalidade (inserida em uma totalidade
mais ampla). Os indivíduos que desenvolvem sua consciência, são seres sociais,
históricos, determinados. Logo, a consciência individual é uma produção social,
bem como a consciência social. Não é possível compreender a consciência humana
fora da sociedade. E a sociedade como fenômeno concreta é histórica, assumiu
várias formas e se desenvolveu, bem como, em certas sociedades, é perpassada
pela divisão de classes, o que gera distintos interesses e valores, e gera
formas distintas de consciência. Inclusive, a consciência é parte da realidade
social e logo, atua sobre ela, sendo uma de suas determinações (KORSCH, 1977).
Uma coisa, no entanto, é a consciência em geral, que assume
inúmeras formas e conteúdos, mas outra coisa é a consciência correta da
realidade, ou seja, o momento em que a consciência coincide com a realidade.
Isto foi denominado por alguns como verdade. A consciência pode ser ilusória ou
verdadeira. A consciência verdadeira pode ser parcialmente verdadeira ou
globalmente verdadeira. No primeiro caso, temo as representações cotidianas
verdadeiras[3]
e, no segundo caso, a teoria. A teoria é um saber complexo e totalizante, o que
significa que abarca uma percepção de conjunto, com fundamentação e embasamento
em método e reflexão mais desenvolvida, que expressa (e explica) a realidade
através de um conjunto de conceitos.
Essa breve discussão sobre realidade e consciência é
importante para o passo seguinte, que é retomar a observação relacional. A
observação relacional é realizada tendo essa teoria da realidade como
pressuposto, bem como essa teoria da consciência. Por conseguinte, o observador
relacional focaliza um determinado fenômeno (tal como apontaremos a seguir) sem
realizar o seu isolamento, pois aborda as suas relações, o que remete para
determinações, história, sociedade. Esse é um pressuposto que existe antes,
durante e depois da observação. O observador já sabe, antes de realizar a
observação, que o fenômeno observado tem história, é uma totalidade inserida em
outra totalidade, é determinado. O que ele deve descobrir é qual é sua relação
com a história em geral, sua história em particular, seus elementos
constitutivos, suas determinações, a sua inserção num contexto mais amplo, etc.
Da mesma forma, o observador sabe que sua observação é
realizada a partir de uma determinada forma de conceber o real e a consciência
(própria e alheia) e que por isso ele não pode confundir sua consciência com as
dos indivíduos que podem estar envolvidos em sua observação ou fenômeno
observado. É preciso, no processo de observação, entender o contexto, as
relações, as funções, mas também saber que as interpretações, interesses,
valores, etc., dos indivíduos variam e não podem ser tomadas como homogêneas.
Os indivíduos possuem sua personalidade (singularidade psíquica), seu processo
histórico de vida que gera distintos valores, concepções, sentimentos, etc., e
por isso é necessário evitar os riscos da simplificação e do reducionismo. A
compreensão do contexto, a totalidade, é fundamental, mas é preciso também
compreender a historicidade, as particularidades e especificidades, bem como os
indivíduos envolvidos nesse processo.
Além disso, há a teoria, ou seja, o observador deve conhecer
a realidade mais ampla que observa e que é uma totalidade maior. Um mendigo não
consegue observar a totalidade das relações sociais e por isso sua relação com a
realidade é limitada, sua consciência é limitada. Um pesquisador, por sua vez,
não possui a experiência pessoal do mendigo, mas possui um conjunto de
informações, interpretações, sobre sua situação, bem como não possui uma
compreensão mais ampla da sociedade em que vive, de sua formação histórica, de
suas contradições, entre milhares de outros elementos. Ele tem um saber amplo
sobre si mesmo, sua história, etc., mas geralmente não tem grande reflexão
sobre isso e nem os recursos intelectuais para uma análise mais ampla (como
teria, por exemplo, um psicólogo, um psicanalista, etc.) de sua mente ou mesmo
de sua vida em geral. Logo, a percepção da realidade do mendigo é limitada, o
que é derivado de suas relações sociais limitadas[4]. Isso significa que o
observador relacional faz a observação a partir de sua formação teórica e a
teoria lhe permite realizar a seleção do que é mais importante observar,
entender relações estabelecidas, entre outros processos.
Assim, podemos colocar que a observação relacional se difere
de outras formas de observação por causa de seus pressupostos, que geram outras
diferenças (que são suas características e serão abordadas adiante). A
observação relacional tem como pressuposto a recusa do objetivismo e
subjetivismo, derivados de produções ideológicas, uma teoria da realidade, uma
teoria da consciência, e a necessidade de que o observador tenha uma teoria
sobre o contexto que vai analisar. Assim, o observador relacional não se ilude
com uma suposta “realidade objetiva” que caberia apenas “captar”, nem com uma
ideia subjetivista ao seu respeito ou ao respeito dos demais indivíduos,
entende a realidade como algo histórico, social, determinado, além de ter
pesquisado e refletido sobre o contexto que pesquisará[5].
O
que é observação relacional?
A observação relacional difere das demais formas de
observação por causa de seus pressupostos, como afirmamos acima, mas também por
suas características próprias. Não poderemos aqui discutir as diversas formas
de observação, mas tão-somente apontar sua existência. Existem autores que
abordam as várias formas de observação (PERETZ, 2000), bem como obras que
discutem ou explicam formas específicas (MALINOWSKI, 1978). Também existem
manuais que tratam da questão da observação (QUIVY; CAMPENHOUDT, 1998; MARCONI;
LAKATOS, 1982). Os manuais, no entanto, são geralmente (o que não significa que
não existam exceções), problemáticos. A confusão entre observação e outras
técnicas de pesquisa é o mais comum, o que, em muitos casos, é derivado de uma
conceituação muito ampla do termo “observação”. Por isso é fundamental definir
observação para, posteriormente, abordarmos sua forma relacional.
Não é difícil encontrar a definição segundo a qual a
observação é o “ato de observar”. Mas não existe muita clareza, nem nos
dicionários, nem nas representações cotidianas, sobre o que significa
exatamente “observar”. A palavra observar pode significar “espionar” (ou,
“espiar”, quer dizer, olhar, geralmente num sentido indiscreto), seguir regras
(“observar as leis de trânsito”), olhar atentamente, constatar, etc. Desses
sentidos comuns da palavra, o mais próximo do que é usado na pesquisa social é
“olhar atentamente”. Partindo destes elementos, podemos chegar a uma definição
mais adequada. Observar pode ser entendido mais adequadamente como olhar
atentamente algo. A observação, por conseguinte, significa o ato de olhar
atentamente algo. Nesse sentido, todo mundo observa o tempo todo. Nesse caso,
trata-se de observação ordinária.
A pesquisa social não trabalha com observação ordinária. O
motivo disso é que ela é esporádica, sem reflexão, sem objetivos definidos, sem
rigor, etc. A observação ordinária pode até servir como fonte de informações
específicas, mas não como técnica de pesquisa. Assim, podemos dizer que a
observação ordinária pode ser integrada na observação relacional, como fonte de
informações específicas. Por exemplo, um pesquisador que realiza uma pesquisa
no partido político X através da observação relacional, pode observar,
ordinariamente, um elemento que não tinha relação com seus objetivos. Numa
pesquisa posterior, ele pode recordar tal observação e o que foi recordado pode
ser informação para os objetivos da nova investigação. Esse é mesmo caso que um
transeunte vê um assalto e observa a placa do carro dos assaltantes e depois
informa a polícia o seu número. É uma informação, verdadeira e útil. Porém,
também pode ser limitada, se o número estiver errado ou se não recordar todos.
A observação relacional é o ato de olhar atentamente um
fenômeno (indivíduo, acontecimento, grupo social, organização, relações
interindividuais, relações sociais, etc.) com o objetivo de o expressar
fidedignamente através da percepção de suas relações. Portanto, se um
pesquisador vai a uma manifestação estudantil (o fenômeno que se busca olhar
atentamente) e seu objetivo é expressar fidedignamente as divergências internas
(objetivo da pesquisa), ele não irá isolar uma contenda, os cartazes, etc. Se
ele observa apenas os cartazes, por exemplo, poderá concluir, se todos eles
apontam para uma recusa de uma política governamental específica, que não
existe divergência. É aí que o domínio teórico-metodológico e a compreensão das
relações permitem ir além da aparência do fenômeno. Todos os cartazes são
contra a referida política governamental, mas alguns apontam elementos
complementares, como, por exemplo, “nova constituição”, outro pode colocar
“novas eleições”, e, alguns, ainda, “revolução”. Embora a manifestação e os
cartazes em geral apontem para uma recusa de uma determinada política
governamental, o que daria a impressão de não-divergência, os complementos
mostram que a forma como fazem isso é diferente e isso revela divergência, que
pode até parecer secundária, mas é apenas naquele contexto. Ou mesmo se todos
os cartazes manifestarem apenas o repúdio à determinada política governamental,
mas as formas de participar, os subgrupos existentes, etc., mostram as
divergências. Muitos observadores não perceberiam isso. Porém, quem trabalha
com a observação relacional (e mesmo outras formas de observação), percebe as
divergências[6].
A observação relacional pode ser espontânea ou planejada. A observação
relacional espontânea é aquela na qual o fenômeno é observado atentamente
com a finalidade de expressá-lo fidedignamente a partir de suas relações.
Assim, temos aqui a base teórico-metodológica, o problema de pesquisa, o
objetivo, entre outros elementos, que difere a observação relacional espontânea
da observação ordinária. Porém, o mais adequado é o uso da observação
relacional planejada. Esta tem a vantagem do planejamento da própria observação
e assim garantir uma maior quantidade de informações, bem como menor
possibilidade de perda das informações. Isso ocorre através do plano de observação, realização da
observação, caderno de notas e síntese observacional. A observação
relacional espontânea tem como ponto de partida a base teórico-metodológica,
problema e objetivo, como antecedente da observação. A observação, em si, é
realizada de forma mais flexível e menos formal. O observador pode também fazer
anotações e síntese observacional, o que depende de sua decisão. A observação
relacional espontânea pode ocorrer sem a existência de um problema e objetivo,
pois ela pode anteceder esse estágio da pesquisa, mas só existe se o
pesquisador tiver a base teórico-metodológica necessária. Caso não tenha estes
elementos (base teórico-metodológica, problema, objetivo), então trata-se de
observação ordinária, que pode até ser fonte de informações, mas para coisas
bem específicas. Vamos focalizar, a partir de agora, a observação relacional
planejada, pois é esta que traz mais elementos para reflexão.
A observação relacional planejada tem alguns
elementos constitutivos e é efetivada em momentos distintos. O primeiro passo é
a definição do fenômeno a ser pesquisado e elementos derivados (problema de
pesquisa, referencial teórico, etc.), além da base teórico-metodológica mais
ampla, que constituem seus pressupostos. Após isso se inicia o processo de
observação relacional. O primeiro momento é a preparação, que gera um plano de observação. O plano de
observação são algumas anotações nos quais o pesquisador desenvolve um
planejamento (dias, horários, locais, situações, etc.) relativo ao processo
observacional. Se o pesquisador vai analisar uma aula de um professor, a partir
dos objetivos e problematização levantados, então precisa elaborar o plano e
neste estabelecer se irá assistir todas as aulas ou apenas algumas (e quais,
nesse caso, o que pode ser definido por importância dos temas das aulas, por
disponibilidade do observador, etc.), se focalizará a questão didática ou o
conteúdo, ou, ainda relação com os alunos, etc. O plano de observação, que não
é rígido, pois a observação concreta pode alterar o plano e em certos casos
isso ocorre de forma ampla, aponta para a definição da dimensão temporal e
espacial, bem como a delimitação do foco, além de outros detalhes, sendo que
alguns podem variar dependendo da pesquisa, fenômeno, objetivos, etc.
O segundo momento é a observação em si mesma. Este é o
momento que o observador se encontra com o fenômeno observado. Se é uma
comunidade, uma escola, um sindicato, entre outras possibilidades, ele irá até
o local realizar a observação. Nesse momento, a atenção se torna fundamental e
o foco no objetivo e outros elementos da pesquisa. O observador deve se atentar
para não haver distração. A observação, no entanto, difere da concepção
objetivista, pois não busca “neutralidade” e “objetividade”[7]. Assim, “a observação
relacional, no entanto, não pensa, ingenuamente, que o observador não interfere
no comportamento dos outros. Sem dúvida, a interferência intencional deve ser
evitada, mas a inintencional é inevitável, pois basta a sua presença para já
ser uma interferência” (VIANA, 2015, p. 125). Sem dúvida, a interferência pode,
em determinadas casos, ser estabelecida sem problemas. Este é o caso quando o
pesquisador é parte do fenômeno observado, ou seja, é integrante da comunidade,
grupo, organização, etc. ou possui adesão a alguma posição no seu interior.
Isso não é problemático por fazer parte do fenômeno pesquisado, não alterando
sua existência ou dinâmica.
A interferência é um problema quando pode desvirtuar as
relações sociais estabelecidas, criando um diferencial que não existiria com a
observação. E isso pode ocorrer em vários casos. Por exemplo, um pesquisador
que investiga uma escola e sua observação inibe os estudantes e alguns irão
mudar seu comportamento por não querer que suas práticas sejam identificadas ou
então em uma empresa, na qual os burocratas vão buscar direcionar os
funcionários para as respostas que a empresa, bem como esconder informações.
Essa é uma interferência inintencional e é problemática, pois o comportamento
alterado gera informações alteradas, mas o observador deve perceber isso para
que no momento da análise saiba como proceder, bem como, antes disso, conseguir
outras fontes de informações. O que o observador deve evitar é, caso não seja
parte do fenômeno pesquisado, não provocar (via conversa, comportamento, etc.)
uma alteração nas ações e discursos dos observados.
O terceiro momento, vai além da observação em si, pois após
sua efetivação, é necessário o seu registro. Isso pode ocorrer diariamente ou
em qualquer outro período de tempo, dependendo das frequências das observações[8]. O pesquisador deve anotar
os acontecimentos mais significativos (VIANA, 2015), o que é importante para
evitar esquecimento e contribuir com uma percepção mais totalizante. O registro
deve ocorrer num caderno de notas. O
caderno de notas serve para registrar os acontecimentos mais significativos e
possibilita a consolidação de um novo material informativo a respeito do
fenômeno pesquisado.
O quarto e último momento é a síntese observacional. No
fundo, as anotações no caderno de notas fornecem todo o material informativo
necessário e a síntese apenas aponta elementos mais gerais e totalizantes que,
posteriormente, facilitam a análise, tendo aspectos que podem ser incorporados
e outros descartados. Esse quarto momento pode ou não ser efetivado, dependendo
da decisão do observador.
Porém, esses momentos podem assumir diferenças em casos
específicos, bem como em distintas formas de observação relacional. Nesse
sentido, é útil realizar algumas distinções. Já fizemos a distinção anterior
entre observação relacional espontânea e a planejada, mas existem outras
distinções que devem ser apresentadas. A observação relacional pode ser intensiva
ou extensiva. Ela é intensiva quando reduz o seu alcance, ou seja,
quando o seu fenômeno é restrito, como uma associação de bairros. Ela é
extensiva quando o fenômeno é mais amplo, como um bairro inteiro (o que inclui
a referida associação). Ou então pode ser considerada intensiva quando se
limita a um partido político específico, e extensiva quando se trata de um
conjunto de partidos políticos ou sua totalidade em determinado país ou no
mundo.
Ela também pode ser internalista ou externalista. Ela é
internalista quando o observador está envolvido com o fenômeno pesquisado e é
externalista quando ele é externo ao mesmo. O morador de um bairro específico
realiza observação internalista, pois ele tem um conjunto de informações
preliminares, determinado saber, bem como valores e relações estabelecidas com
moradores, que geram uma pesquisa marcada pelo engajamento (ou não, em alguns
casos, dependendo da posição do indivíduo no seu local de moradia) em ações e
reivindicações, quando estas estão relacionadas com a investigação. Ela é
externalista, se o pesquisador não for morador do referido bairro. Mas isso
pode ocorrer de forma distinta, pois um observador que quer analisar a doutrina
liberal em determinado lugar (partido, comunidade, instituição, etc.) e é
liberal, então a observação seria internalista (apesar de ser difícil um
liberal usar tal técnica de pesquisa) e se for marxista, então seria
externalista. E o mesmo ocorre em casos contrários. Nesse caso específico, a
observação relacional internalista é geralmente precedida por sua forma
espontânea para depois assumir a forma planejada e, em alguns casos, é apenas
espontânea, pois o vínculo do pesquisador com o fenômeno pesquisado permite
isso.
Porém, a distinção mais importante se a observação relacional
ocorre no contexto de uma pesquisa experimental ou numa pesquisa
teórica. Até aqui priorizamos o uso da observação relacional na pesquisa experimental,
também denominada “pesquisa empírica” (ou, ainda, “pesquisa de campo”). O que
distingue a pesquisa experimental e a pesquisa teórica é a forma de
problematização que cada uma efetiva. A primeira trabalha com uma
problematização experimental e a segunda trabalha com a problematização teórica.
A problematização experimental visa descobrir algo que é acessível via
experiência (ou experimentação, que é uma de suas formas) e por isso é algo
mais delimitado, tanto no sentido espacial, temporal e até conceitual. Assim,
se busca descobrir quais representações cotidianas os estudantes de medicina
têm sobre o SUS (Sistema Único de Saúde), é uma pesquisa experimental. Se eu
problematizo o que é a doença, então trata-se de uma pesquisa teórica. Se eu
busco entender os reais objetivos do Partido Verde realizo uma problematização
experimental, mas se eu busco entender o que são os partidos políticos, realizo
uma problematização teórica. Em síntese, na problematização experimental se
busca descobrir aspectos mais restritos da realidade e que geram explicações de
alto grau de concreticidade, como, por exemplo, as representações cotidianas
dos estudantes de medicina sobre o SUS, enquanto que na problematização teórica
se busca descobrir aspectos mais amplos da realidade e que geram explicações de
alto grau de abstração, como, por exemplo, o que são os partidos políticos.
Dito isto, fica claro que a observação relacional possui um
vínculo mais forte com a pesquisa experimental. No entanto, a observação
relacional tem uma utilidade também na pesquisa teórica. Se eu quero analisar
os objetivos do Partido Verde, então posso usar a observação relacional para
realizar tal pesquisa. Isso seria feito frequentando a sede do partido, suas
reuniões (abertas), suas ações (no parlamento, por exemplo), entre outras
possibilidades. Claro que tal pesquisa teria que também usar a investigação
documental e talvez outras técnicas (entrevistas, por exemplo). Porém, se eu
quero é descobrir o que são os partidos políticos, o procedimento é bem
distinto. Não posso descobrir o que são os partidos políticos a partir do
acesso à apenas um partido político. Os partidos são diferentes e, assim, o
pesquisador teria uma percepção equivocada, realizando uma generalização
indevida. E isso é ainda mais provável se for um partido com muitas
especificidades que o distingue dos outros. Sem dúvida, em alguns casos,
dependendo do pesquisador, é possível extrair de um partido (de um único caso)
apenas o que é essencial[9] e, assim, compreender os
partidos em geral. Porém, a concepção dialética não é empiricista e nem
“indutiva”. Isso seria um caso raro.
Então qual é a relação entre observação relacional e
pesquisa teórica? Na pesquisa teórica, assim como na pesquisa experimental, se
utiliza informações. As informações que são demandadas pela pesquisa teórica
são mais amplas e gerais. Se quero descobrir o que são os partidos políticos,
então devo ter acesso a informações sobre eles. No entanto, trata-se de
informações de fonte secundária, na maioria dos casos. E aqui temos mais uma
diferença entre pesquisa experimental e pesquisa teórica, pois a primeira
trabalha, prioritariamente, com fontes primárias e a segunda com fontes
secundárias. Para analisar o que são os partidos políticos, o pesquisador deve
ler as obras existentes que já apresentam o que eles são. Porém, cabe ao
pesquisador, nesse caso, mostrar as deficiências destas concepções para
justificar uma nova. Nesse processo, ele estará utilizando as informações
trabalhadas pelos outros pesquisadores para compor sua própria concepção, além
das interpretações que eles apresentam. A pesquisa teórica pressupõe tratamento
crítico, tanto das informações, quanto das interpretações. As informações são
confiáveis? São verdadeiras? São incompletas ou completas? Entre outras
questões que devem ser realizadas no processo de pesquisa em relação a cada
obra e autor consultado. No que se refere às interpretações, é preciso um
trabalho no sentido de saber sua base teórico-metodológica, entre outros
aspectos, bem como sua relação com as informações em si. Assim, se um
pesquisador lê Robert Michels e sua obra Sociologia
dos Partidos Políticos, verá inúmeras informações, que são fontes
secundárias. Se lê Duverger (1982) e outros autores, então terá uma quantidade
muito maior de informações de fontes secundárias. Um conjunto de informações
sobre os partidos, seus líderes e discursos, entre diversas outras. Se ele quer
elaborar uma teoria dos partidos políticos, essa é leitura fundamental e a
análise crítica das informações e interpretações é elemento basilar.
Porém, a pesquisa teórica trabalha prioritariamente, mas não
unicamente, com fontes secundárias. Em certos casos pode ser apenas fontes
secundárias, enquanto que em outros pode lançar mão também de fontes primárias.
E é aqui que a observação relacional assume importância na pesquisa teórica. Se
eu quero realizar uma análise sobre escolas, por exemplo, eu tenho além de uma
ampla gama de informações de fontes secundárias, a possibilidade de uso de
fontes primárias. E quais são estas fontes primárias? Isso depende do
pesquisador. Nada o impede, por exemplo, de fazer entrevistas, questionários,
investigação documental, etc. Porém, isso é raro e desnecessário na maioria dos
casos. O uso da observação relacional é mais comum e mais adequado.
Nesses casos, trata-se, geralmente, de observação relacional
espontânea e extensiva, bem como pode ser também internalista. Ela geralmente é
espontânea, pois, como se trata de pesquisa teórica, a planejada é mais rara.
Se ela é internalista, então tende a ser espontânea. Por exemplo, um indivíduo
passa por várias instituições de ensino em sua vida. Nesse contexto, ele
realizou observação ordinária. A partir de certo momento ele adquire base
teórico-metodológica e assim passa a realizar observação relacional espontânea.
Essa é internalista e espontânea e permite ao pesquisador ter mais elementos
para questionar as fontes secundárias e as interpretações. Ela também pode ser
extensiva, pois como se trata de um fenômeno específico, no caso de nossa
ilustração, os partidos políticos, assume um alcance maior. Nesse mesmo caso, o
pesquisador pode utilizar observação relacional espontânea internalista no(s)
partido(s) que passou e externalista nos que não fez parte, como, por exemplo,
nos embates nos movimentos sociais, no processo eleitoral, nas alianças,
manifestações, etc.
Em síntese, a observação relacional é um elemento auxiliar
da pesquisa teórica. Na pesquisa experimental, se torna elemento fundamental.
Numa pesquisa experimental sobre as práticas esportivas dos professores de
educação física na Universidade X, a observação relacional é um elemento
fundamental. Numa pesquisa teórica sobre educação física ou sobre as
universidades, ela é um elemento auxiliar.
Um aspecto importante que não podemos deixar de fora é a
relação entre a observação relacional e as demais técnicas de pesquisa. A
observação relacional, em certas pesquisas, pode ser uma técnica auxiliar, tal
como na pesquisa em representações cotidianas (VIANA, 2015), pois nesse caso o
objetivo é analisar o que as pessoas pensam e a observação não capta isso
facilmente. Desta forma, em várias situações a observação relacional é uma
técnica auxiliar. Porém, em muitos casos, ela é a única técnica. Isso depende
de vários aspectos: fenômeno a ser pesquisado, problema, objetivos, etc. Desta
forma, a observação relacional pode ser técnica única, técnica principal ou
técnica auxiliar, como todas as demais técnicas de pesquisa. Esse
esclarecimento é útil para pensarmos o uso de técnicas auxiliares no caso da
observação relacional ser a técnica principal. Sem dúvida, o uso de técnicas
auxiliares pressupõe afinidade teórico-metodológica e, por isso, a entrevista
interpretativa, por exemplo, pode ser uma técnica auxiliar da observação
relacional, bem como a investigação documental (VIANA, 2015).
Considerações
Finais
Em síntese, o nosso objetivo foi o de apresentar uma
reflexão sobre a observação relacional e destacar alguns de seus elementos e
relações com a pesquisa e outros processos investigativos. Consideramos que
atingimos tal objetivo e que a presente reflexão abre espaço para novas
reflexões e análise sobre a observação relacional e outras formas de observação
e técnica de pesquisa.
Referências
EDWARDS, D. Manual
de Psicologia Geral. São Paulo: Cultrix, 1983.
GRISEZ, J. Métodos
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Publicado originalmente em:
PURIFICAÇÃO, Marcelo Máximo (org.). Investigação
científica nas ciências humanas. Vol. 03. Ponta Grossa: Atena, 2019.
ISBN 978-85-7247-718-5
DOI 10.22533/at.ed.185191710
[1] Há uma longa discussão a
este respeito e Marx foi o autor que iniciou a percepção desse processo (MARX,
1968) e depois dele, Korsch (1977), o jovem Lukács (1989), entre outros
desenvolveram numa análise dialética do processo de formação social da
consciência.
[2] Abstratificar significa
tornar algo um “abstractum”, entendido aqui como uma constituição mental
deslocada da realidade, ou seja, transformar um ser em algo metafísico. Assim,
abstratificação é diferente de abstração, pois a primeira é um processo que retira
o ser (indivíduo, fenômeno, etc.) da realidade (retira o ser social da história
e relações sociais, por exemplo), enquanto que a segunda, no sentido dialético,
apenas focaliza uma parte da realidade, sem desligá-la da totalidade na qual
está inserida. Essa distinção pode ser vista em Marx (1983), quando usa
abstração num sentido negativo (abstração metafísica) e num sentido positivo
(abstração dialética), o que nem sempre é percebido (VIANA, 2007b). Nesse caso,
a abstratificação seria uma abstração metafísica.
[3] Sobre as representações
cotidianas e suas formas, características, entre outros elementos, veja: Viana
(2008); Viana (2015); Marques (2018). As representações cotidianas são o que
geralmente se denomina “senso comum”, “conhecimento cotidiano”, “saber popular”,
etc.
[4] Marx explica as
representações cotidianas ilusórias pela limitação das relações sociais (MARX;
ENGELS, 1982).
[5] Um exemplo poderá
esclarecer esse aspecto, que será mais desenvolvido adiante, que é o uso da
teoria no processo de observação relacional. Se o fenômeno a ser observado é,
por exemplo, um partido político, então o observador deve ter pesquisado sobre
partidos políticos. E se for uma pesquisa sobre dissidência nos partidos
políticos, então o acesso a teoria dos partidos políticos é necessário. Nesse
caso, observará indivíduos, falas, ações, no interior de uma instituição que já
sabe vários aspectos, como objetivos, funcionamento, história, etc.
[6] Claro que isso depende
também de quem é o observador, pois mesmo que queira trabalhar com a observação
relacional, pode ter dificuldades, derivadas de sua idiossincrasia, em efetivar
isso. Isso depende, no caso da observação relacional, do seu domínio
teórico-metodológico. Se ele tem pelo menos noção do que significa anarquismo,
maoísmo, autonomismo, etc., poderá compreender as divergências. Mas se é apenas
uma noção e não tiver um saber um pouco mais desenvolvido, poderá não perceber
certas sutilezas. Por exemplo, num mesmo grupo, ainda seguindo o mesmo exemplo,
que reúne anarquistas, pode ter divergências, pois se uniram nesse contexto,
mas são de tendências diferentes. Para quem não conhece as diferentes correntes
anarquistas e suas diferenças, incluindo as contemporâneas, é mais difícil
compreender as divergências do que quem tem maior formação e saber sobre isso.
[7] Esse é o caso, por
exemplo, da chamada “observação naturalista”: “a característica marcante da
compilação de dados por observação naturalista consiste em que o investigador
deve unicamente observar e não interferir no comportamento em curso” (EDWARDS,
1983, p. 18). Veja também: Grisez, 1978.
[8] Aqui é preciso entender
que a observação relacional pode ocorrer em apenas um dia e momento, mas também
pode ocorrer durante um longo tempo (muitos dias, num espaço de um ano, por
exemplo, dependendo da pesquisa, objetivos, observador, etc.), e sua
periodicidade pode ser diária, semanal, mensal, etc. A observação relacional é
o conjunto das observações parcelares que são realizadas durante a pesquisa.
[9] Isso é mais provável no
caso de alguns pesquisadores, que são aqueles que possuem uma ampla e sólida
formação teórica e metodológica para conseguir distinguir o essencial do
inessencial. Isso, no entanto, não anula os riscos de equívocos. Não custa
recordar, para entender o real significado dessa discussão, que, numa concepção
dialética, o essencial é, simultaneamente, universal (VIANA, 2007a).
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