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segunda-feira, 30 de julho de 2018
quinta-feira, 19 de julho de 2018
Nildo Viana: Dialética e Contemporaneidade
MARQUES, Edmilson e MAIA, Lucas (orgs.). Nildo Viana: Dialética e Contemporaneidade. Lisboa: Chiado, 2018.
A obra que o leitor tem em mãos é uma introdução a alguns temas presentes na vasta obra de Nildo Viana. Trata-se de um intelectual engajado que vem há vários anos realizando pesquisas nos mais variados campos das humanidades: psicanálise, sociologia, filosofia, história, economia etc. Entretanto, seu pensamento não pode ser acorrentado em nenhuma destas especialidades. A produção intelectual deste autor é, como ele próprio define, adisciplinar.
É um dos principais pesquisadores no desenvolvimento do pensamento marxista na contemporaneidade. Surge daí sua preocupação em rediscutir a obra de Marx, procurando afastá-la das deformações que se acumulam sobre ela. Contudo, suas pesquisas vão muito além. Esforça-se em atualizar o marxismo, identificar onde o pensamento de Marx é ainda pertinente, onde está ultrapassado etc. A partir disto, consegue elaborar instigantes análises do capitalismo contemporâneo, demonstrando a vitalidade do materialismo histórico-dialético.
Ao reunir em um único volume algumas considerações sobre aspectos da obra de Nildo Viana, Dialética e Contemporaneidade permite um melhor entendimento do próprio desenvolvimento capitalista, de suas contradições, de elementos de sua constituição: seus regimes de acumulação, o problema da educação, dos valores, das representações cotidianas etc. Permite, sobretudo, compreender a luta de classes na sociedade moderna e o processo de autoemancipação da classe proletária. O projeto autogestionário é o esteio, o fio condutor que dá unidade a toda a produção intelectual de Nildo Viana. Sua obra é, portanto, parte do processo de constituição de tal projeto, ou seja, da Autogestão Social.
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quarta-feira, 18 de julho de 2018
O Marxismo Vivo de Nildo Viana - Nova Edição
Nildo Viana: Um Marxismo Vivo - comunistas de conselhos / Galiza (Orgs.).
O marxismo foi petrificado. Rosa Luxemburgo, já em 1903, escrevia sobre a “estagnação do marxismo”. Após a morte de Marx há o desenvolvimento do pseudomarxismo, ou seja, um conjunto de grupos, indivíduos, intelectuais, que se dizem “marxistas”, mas que não expressam a perspectiva do proletariado revolucionário e por isso entram em contradição com as ideias daqueles que fazem isso, a começar pelo próprio Marx. A compilação de textos de Nildo Viana, realizada pelos Comunistas de Conselhos da Galiza/Espanha, recebe o título de “Marxismo Vivo”, justamente por se opor ao “marxismo morto” dos pseudomarxistas. Um marxismo vivo é revolucionário. Uma revolução no pensamento que aponta para uma revolução proletária, uma revolução social que promove a superação radical e total da totalidade das relações sociais que formam a decrépita sociedade capitalista. §§§ Brochura com 104 páginas, no formato 14X21cm;
Comunistas de conselhos da Galiza/Espanha. Nildo Viana: Um Marxismo Vivo. Rio de Janeiro: Rizoma, 2018.
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sábado, 14 de julho de 2018
A Autogestão como projeto de uma nova sociedade
A Autogestão como projeto de uma nova
sociedade
Nildo Viana
A palavra “autogestão” é relativamente
nova e seu uso no significado revolucionário remete ao final dos anos 1960, durante a rebelião estudantil de
maio de 1968 em Paris. Apesar de sua origem recente, o seu significado já havia
sido desenvolvido, sob outros nomes, por diversos pensadores, tais como Marx e
Bakunin (e os nomes seriam “comunismo” e “anarquia”, respectivamente).
Esse é o significado da palavra que
estaremos discutindo aqui. Por isso, autogestão aqui não se trata de controle
de fábrica ou empresa pelos trabalhadores e sim um processo social geral, sem o
qual tal controle nada significa. Nesse sentido, a autogestão é um projeto
de uma nova sociedade. Nós vivemos na sociedade capitalista – marcada pela
exploração, dominação, opressão, etc. – e ela é uma totalidade, na qual a base
é composta pela relação de exploração que a classe capitalista – os patrões –
exerce sobre a classe proletária – os trabalhadores. Para essa exploração
existir e se reproduzir sem que os proletários se rebelem, precisa criar um
conjunto de instituições (sendo o estado capitalista a principal destas
instituições, mas universidades, partidos, sindicatos, igrejas, etc., são
outros exemplos), ideias falsas (encobrindo a exploração, o papel dessas
instituições, etc.) visando conter os trabalhadores e impedir uma revolução
social. Ela se distingue radicalmente da sociedade feudal (Idade Média) e da
sociedade escravista (Idade Antiga), pois a exploração, do Estado, das
instituições, da cultura, assumem formas extremamente diferentes. Assim, a
autogestão é também radicalmente diferente da sociedade capitalista (bem como
da escravista e feudal), mas a diferença é ainda mais radical, pois estas três
formas de sociedade são baseadas na existência de classes sociais e exploração.
A ruptura da autogestão com a sociedade atual é muito mais radical, pois abole
o capital (a exploração), o Estado, diversas instituições, etc. e instaura um
mundo de liberdade e igualdade, promessa antiga que nunca foi cumprida.
A autogestão é um projeto de uma sociedade
autogerida. Em sentido amplo, autogestão significa autogoverno, uma relação
social na qual não há dirigentes e dirigidos, mas todos, coletivamente, se
organizam e agem sem hierarquias. A luta pela autogestão existe desde o
surgimento do capitalismo, seja como projeto, ideias (desde o socialismo
utópico, passando pelo anarquismo, marxismo, etc. até chegar ao comunismo de
conselhos, situacionismo, etc.), experiências históricas (desde a Comuna de
Paris, de 1871, até as revoluções inacabadas da década de 1910 e 1920, até as
mais recentes tentativas como na Argentina em 2001) e só existe como projeto e
experiências por ter agentes sociais para colocar isso em prática, o
proletariado e o conjunto dos demais trabalhadores e classes desprivilegiadas na
sociedade atual. A classe proletária, através de seu movimento grevista (e
formas de auto-organização que emerge nesse momento, como o comitê de greve),
avança na compreensão da sociedade e na forma de organização e assim cria sua
associação que é o embrião de novas relações sociais. No próprio processo de
luta, o proletariado desenvolve sua consciência e perde ilusões, desenvolve sua
solidariedade e formas de auto-organização, e assim criam os embriões de uma
nova sociedade. Quando o processo de greve passa a ser de ocupação ativa das
fábricas, lojas, etc. emergem os conselhos de trabalhadores que marcam um
esboço de autogestão, que ao se ampliar e generalizar, constitui a autogestão
social. A autogestão é, portanto, a autogestão do processo de produção de bens materiais que se generaliza e se torna autogestão coletiva generalizada, atingido toda a sociedade. É um processo de luta, pois a classe capitalista e o Estado, seu
principal aparato repressivo, buscam impedir e somente com a destruição do
capital (“propriedade privada”) e do Estado, esse processo será vitorioso e a
emancipação humana e individual estará completa.
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Publicado originalmente em: Jornal Perspectiva Autogestionária. Ano 01, num. 01, Agosto de 2012.
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Publicado originalmente em: Jornal Perspectiva Autogestionária. Ano 01, num. 01, Agosto de 2012.
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sexta-feira, 13 de julho de 2018
O significado histórico da classe burocrática
Nildo Viana
A burocracia como
fenômeno social e histórico é um dos temais mais discutidos no interior das
ciências humanas. Contudo, essa discussão é realizada sob uma perspectiva
ideológica, a começar pelo mais renomado sociólogo que tratou desse fenômeno,
Max Weber. O caráter ideológico presente na maioria das abordagens sobre
burocracia se revela no ocultamento dos seres humanos reais, de carne e osso,
que permitem a existência das organizações burocráticas. Por isso é necessário
discutir a questão da classe burocrática e seu significado histórico, que é o
nosso objetivo no presente artigo.
Burocracia e Ideologia
O significado
histórico da classe burocrática é ocultado pelas ideologias e a principal forma
de ocultamento é no tratamento da burocracia como mera forma organizacional,
sob forma fetichista, abstratificada, como se não fosse relações sociais e não
existisse uma classe social envolvida em sua existência. Outra forma de
realizar tal ocultamento é entender a burocracia como “camada social” e não
classe social. Esse processo é realizado por várias ideologias e produtos
derivados e por isso não poderemos abordar todas, sendo que vamos nos limitar a
apenas duas entre as principais ideologias que ocultam a classe burocrática: a
concepção weberiana e a concepção leninista.
A concepção
weberiana traz algumas contribuições para pensar a burocracia como forma
organizacional, mas abstrai a burocracia como classe social. Um dos temas
fundamentais da sociologia weberiana é justamente a burocracia. Weber, a partir
de uma concepção liberal, realiza algumas críticas ao fenômeno burocrático,
pois burocracia e indivíduo são coisas opostas para um liberal e
individualista. Um liberal sempre toma partido do indivíduo, visto
abstratificadamente. Weber tenta compreender a burocracia a partir do método
compreensivo e por isso elabora o “tipo ideal” de burocracia[1].
A partir do tipo ideal de burocracia, que é uma abstratificação[2],
Weber abole a historicidade da burocracia. Ele passa a enxergar burocracia em
variadas sociedades (capitalista, despótica, etc.). Isso é possível por causa
da abstratificação, processo caracterizado por tomar um elemento isolado de uma
totalidade (burocracia) e ao observar que esse aspecto isolado existe sob forma
semelhante em outras sociedades, o denomina igualmente como burocracia. A
sociologia tipológica de Weber é abstratificante e por isso ele encontra vários
tipos de “capitalismo”, “racionalização” e pode não enxergar a especificidade
histórica e a historicidade da burocracia.
Quando Weber trata
da “burocracia moderna” (pois, para ele, existiria outras formas de burocracia
antes da sociedade moderna), ele aborda um tipo específico de dominação[3],
a racional-legal, que é justamente a burocrática. Ele apresenta seu “tipo
ideal” de burocracia, que, apesar da abstratificação, possui alguns momentos de
verdade, especialmente no que se refere à forma organizacional burocrática. Ele
consegue perceber a racionalização, a legitimação por documentos escritos, a
hierarquia, entre outros aspectos da organização burocrática. Ele até consegue
perceber os seres humanos reais que fazem a organização burocrática existir,
quando trata de “autoridade”, “meios de coerção”, “pessoas qualificadas”,
“hierarquia de postos e níveis de autoridade”, “superiores e inferiores”, a
relação do poder e o controle do aparato burocrático, etc. (WEBER, 1971). Essa
percepção se revela principalmente quando trata dos “funcionários”, dos “cargos”
e “quadro burocrático”. Esta percepção é cercada e dominada por momentos de
falsidade, tal como trata da “impessoalidade”, das “vantagens técnicas da
organização burocrática”, etc.
No entanto, tudo
isso é apresentado sob forma abstratificada. E os burocratas pouco aparecem.
Eles, no fundo, parecem meros componentes de uma engrenagem, o que é, de certa
forma, uma reprodução da autoilusão da burocracia por parte de Max Weber. Isso
reproduz o que Marx (1988) percebeu na economia política: a sistematização das
representações cotidianas dos agentes envolvidos nas relações sociais reais e
sua transformação em ideologia. Max Weber era incapaz de perceber a burocracia
como classe social, não apenas por causa do seu método abstraficado e
abstratificante, mas também por causa de seu construto de classe social,
distinto do conceito de classes sociais elaborado por Marx. A sociologia da
burocracia após Weber foi, em grande parte dos casos, uma reprodução de sua
concepção, e, em outros, novas formas de abstratificação, mesclada ou não com
ela[4].
Outra forma de
ocultamento do caráter de classe da burocracia tem sua origem no leninismo e
seus derivados. Não poderemos realizar aqui uma análise geral do leninismo, mas
apenas apontar alguns elementos básicos de sua concepção de burocracia. Lênin
apresentou uma concepção de classes sociais que seria supostamente “marxista”,
mas era tão somente pseudomarxista, e que servirá de base para todos os demais
leninistas ocultarem o caráter de classe da burocracia. A concepção de classes
em Lênin, pouco desenvolvida, tem uma definição apresentada em um parágrafo de
texto de umas quatro páginas, que se tornou “canônica” para o pseudomarxismo:
As
classes são grandes grupos de homens que se diferenciam entre si pelo lugar que
ocupam em um sistema de produção historicamente determinado, pelas relações em
que se encontram frente aos meios de produção (relações que as leis fixam e
consagram), pelo papel que desempenham na organização social do trabalho e, por
conseguinte, pelo modo e proporção em que recebem a parte da riqueza social de
que dispõem. As classes são grupos humanos, um dos quais pode apropriar-se do
trabalho do outro por ocupar postos diferentes em um regime determinado de
economia social” (apud. VIANA,
2018, p. 251).
Lênin revela,
nessa definição, a sua incompreensão do método dialético[5].
Isso se revela, por exemplo, em sua quantificação (“grandes grupos”,
“proporção”). Mas o mais importante é a sua concepção economicista de classes
sociais: a diferença entre as classes é reduzida a posição que se ocupa no
“sistema de produção”, na relação diante dos “meios de produção” e na
organização do trabalho e “modo e proporção em que recebem a parte da riqueza
social de que dispõem”. Assim, as classes sociais ganharam, no construto leninista,
um aspecto quantitativo (só são classes se forem “grandes grupos”, afirmação
que jamais se encontraria em Marx) e relacionadas com a renda (proporção de sua
parte da riqueza social) e os meios de produção e ainda tendo um aspecto
“jurídico” (ao enfatizar a questão da lei, o que remete ao problema da
propriedade – enquanto forma jurídica, mais que às relações de produção). Desta
forma, Lênin exclui aqueles que estão nas formas sociais (“superestrutura”) do
pertencimento de classe. Assim, a concepção leninista, simplista,
abstratificada e ideológica, exclui, curiosamente, grande parte da humanidade
do pertencimento de classe. Existiria, nesse caso, indivíduos “sem-classe”.
Depois de Lênin, muitos leninistas (CUEVA, 1974; ERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986;
HARNEKER e URIBE, 1980) tentaram justificar e legitimar essa concepção e usando
um termo que este usou para qualificar os intelectuais e burocratas: camada
social. Os herdeiros do leninismo, como, por exemplo, o althusserianismo,
reproduzirão tal ideologia tornando-a mais sofisticada.
A deformação da
concepção marxista de classe social leva, por sua vez, ao ocultamento do
caráter de classe da burocracia. Esse ocultamento, no caso do leninismo e seus
derivados, não possui a mesma razão que no caso de Max Weber. O leninismo é,
ele mesmo, uma expressão ideológica da classe burocrática e isso gera a sua
necessidade de se ocultar e gerar autoilusão e autolegitimação. Voltaremos a
isso adiante quando abordarmos as ideologias burocráticas.
Antecedentes da teoria da classe burocrática
Após apresentarmos
duas das principais concepções que ocultam o caráter de classe da burocracia,
vamos apresentar, brevemente, os antecedentes da teoria da classe burocrática.
A percepção da existência da classe burocrática surge com Karl Marx. O leninismo
ofuscou essa contribuição de Marx ao deformá-lo e criar uma concepção
ideológica de burocracia. Em alguns escritos, Marx discute esse aspecto, sendo
que em algumas obras ele avança mais no sentido de explicitar a existência da
classe burocrática, especialmente em Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel (1979)[6]
e o Dezoito Brumário (1986a). A
concepção de classe social em Marx remete para um conjunto de indivíduos que
possuem em comum um determinado modo de vida, interesses e luta contra outras
classes a partir de sua posição na divisão social do trabalho que é determinada
pelo modo de produção dominante (MARX e ENGELS, 1982. VIANA, 2018)[7].
A burocracia seria uma classe social na perspectiva de Marx, pois possui todos
estes elementos e ele mesmo admitiu a sua existência (VIANA, 2015b).
No entanto, a
social-democracia e o bolchevismo geraram um pseudomarxismo que deformou tanto
a concepção de classes sociais quanto a de burocracia. O bolchevismo
(leninismo), através de Lênin, forneceu a base ideológica dessa deformação. A
partir disso se criou uma camada obscurante que impedia a percepção da
burocracia como classe social. Hans Müller, um representante do “Grupo dos
Jovens”, do Partido Social-Democrata Alemão, no final do século 19, já
criticava a burocracia do partido, inclusive a partir da ideia de luta de
classes no interior do mesmo, mas usando o termo “pequena-burguesia”. Essa foi
a palavra-chave utilizada por diversos outros críticos, como Rosa Luxemburgo
(apesar dela usar também burocracia, mas não com o sentido de classe social) e
outros. Assim, se instaurou uma confusão entre burocracia e pequena-burguesia
na abordagem de vários militantes e intelectuais. Pouco depois, Lênin passaria
a acusar quase todos os seus opositores de “pequeno-burgueses”, termo abstratificado
e que servia para todos os usos políticos oportunistas realizados por ele. Os
social-democratas dissidentes e depois os socialistas radicais também usavam
tal terminologia.
Esse ofuscamento
do caráter de classe da burocracia, no entanto, começou a ser superado quando a
burocracia se autonomizou como classe social e isso permitiu a sua percepção.
Isso ocorreu, num primeiro momento, de forma ambígua. Jan Wanclaw Makhaïsky foi um dos primeiros a retomar a
percepção da burocracia como classe social, apesar de certa confusão com a
intelectualidade (1981). Em sua crítica da intelligentsia,
apontou elementos que ele mesmo reforçou e desenvolveu no bojo da revolução
bolchevique, mostrando o caráter de classe do leninismo. Porém, foi somente
algum tempo depois que a burocracia como classe ou camada social virou alvo de
análises, tanto dos marxistas quanto de outras concepções. A burocratização da
Rússia, iniciada em outubro de 1917 sob o comando de Lênin e Trotsky, chamou a
atenção não somente dos dissidentes e militantes marxistas, mas também de
ideólogos e opositores conservadores.
A revolução russa
de 1917 significou uma contrarrevolução burocrática que implantou um
capitalismo de Estado e realizou a fusão da burocracia partidária (do Partido
Bolchevique) com parte da burocracia estatal que permaneceu, formando uma
burguesia burocrática, pois era uma fusão de duas classes sociais (burguesia e
burocracia) que executava a função de ambas simultaneamente (apropriação do
mais-valor e decisão sobre acumulação de capital, como função burguesa, e
controle social, como função burocrática). Isso gerou as várias interpretações
da burocracia relacionadas à problemática da Rússia. O tema da burocratização e
do “socialismo real” (capitalismo estatal) fez proliferar inúmeros textos,
pesquisas, livros, sobre burocracia.
Esse processo de
análise da burocracia se ampliou com a ascensão de Stálin e emergência do que
ficou conhecido como stalinismo, bem como o do surgimento simultâneo do seu
irmão gêmeo, o trotskismo. A versão stalinista e a versão trotskista se
tornaram versões dominantes a respeito da burocracia. Os stalinistas e seus
simpatizantes geraram toda uma legitimação da burocracia, como se ela não fosse
problemática e fizesse parte do socialismo. Os Partidos Comunistas seguiram
essa interpretação, bem como seus intelectuais. Por outro lado, a interpretação
de Trotsky apontava para a reprodução da vulgata leninista da burocracia como
camada social e interpretando a Rússia como estado operário com deformações burocráticas
(1980). Essa interpretação, por sua vez, apontava para a ideia de que a “base
econômica” da Rússia era “socialista” e apenas a “superestrutura” era
não-socialista, o que, evidentemente, é algo sem sentido. Daí vinha a proposta
trotskista: a necessidade de revolução política, superestrutural, na qual se
trocaria os burocratas stalinistas por burocratas trotskistas. O problema, para
os trotskistas, evidentemente, não era a burocracia e sim o stalinismo.
Essa interpretação
ideológica e problemática ficava cada vez mais difícil ao se saber dos
acontecimentos no capitalismo estatal e seu regime ditatorial. É nesse momento
que surge a dissidência trotskista e novas interpretações do regime russo.
Alguns se mantiveram trotskistas e geraram novas interpretações, outros
abandonaram o trotskismo. Entre os novos intérpretes se destacam: os
ex-trotskistas Bruno Rizzi (que defendia que o regime russo era um “coletivismo
burocrático”), James Burnham (autor de “A
Revolução dos Gerentes”), e entre os trotskistas dissidentes se destacaram
Max Schatman e Toni Cliff, que retomavam, ao modo trotskista (logo, deformado)
a caracterização da Rússia como capitalismo de estado. A burocracia aparece
como classe social ou como camada social que se torna dominante, o que vai romper,
parcialmente, com a exclusão da percepção de que a ela é composta por seres
humanos com interesses próprios e que não são proletários ou trabalhadores, não
podendo ser confundida com o proletariado.
A dissidência
bolchevique e o autonomismo também discutiram, nesse contexto, a burocracia.
Quando Lênin estava no poder, até ele conseguir abolir as frações dentro do
partido, uma crítica moderada da burocracia podia ser vista nos bolcheviques
dissidentes: Comunistas de Esquerda (Bukhárin e outros), Centralismo
Democrático (Osinsky e outros), Oposição Operária (Alexandra Kollontai e
outros)[8].
O autonomismo francês, representado por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort,
dois ex-trotskistas, com sua tese do “capitalismo burocrático”, interpretaram a
burocracia como uma classe social oposta ao proletariado, sob forma
pretensamente marxista[9].
Nesse contexto,
surgiram novas interpretações: Djilas e a ideia da burocracia como “nova
classe”; a interpretação crítica e conservadora de Berdiaev; bem como diversos
pesquisadores e militantes que apresentaram a burocracia como classe sem
nenhuma análise mais aprofundada. Os opositores internos do regime capitalista
estatal também apresentaram, utilizando diversos termos, uma crítica e
percepção da burocracia como classe ou grupo social (Volenski, Biekowski,
Kuron, etc.). Também, no contexto da guerra fria, diversos sociólogos e
economistas passaram a tentar interpretar a burocracia dita “soviética”:
aqueles preocupados com “o controle da propriedade” e outros com a criação de
uma alternativa ao “marxismo” (Aron, Dahrendorf, Berle e Means) e seus
herdeiros (Gurvitch, Touraine, Bresser Pereira, João Bernardo). João Bernardo
(1975), autonomista português, foi um dos que mais trabalhou com a ideia
burocracia como classe social (depois mudando o nome para tecnocracia e, por
último, “classe dos gestores”)[10].
Já a partir de
1920 os chamados Comunistas de Conselhos (Pannekoek, Korsch, Rühle, Mattick,
etc.) haviam começado uma crítica da burocracia. Antes de se tornarem
comunistas conselhistas, alguns deles já criticam a burocracia na
social-democracia e na Rússia. A ruptura no interior do socialismo radical[11]
entre “comunistas de partido” (leninismo) e “comunistas de conselhos”
(antipartido) permitiu uma percepção mais crítica da burocracia e da Rússia,
que passou a ser caracterizada como capitalismo de Estado. No entanto, os
comunistas de conselhos não conseguiram aprofundar na crítica da burocracia no
sentido de explicitar o seu caráter de classe, o que foi apenas esboçado.
Esses processos
facilitaram a inclusão, no campo perceptivo do marxismo, da burocracia como
classe social, tanto ao resgatar pensadores do passado (como Makhaïsky, os
comunistas conselhistas, etc.) e assim produzir uma teoria da burocracia como
classe social. Isso é condição de possibilidade para entender o significado
histórico da classe burocrática.
O Significado Histórico da Classe Burocrática
A burocracia já
foi nomeada sob várias formas: burocracia, tecnocracia, gestores,
Tecnoburocracia, intelligentsia, classe
dirigente, gerentes, nomenclatura, etc. Na concepção marxista, Marx utilizou
burocracia para tratar da burocracia estatal e usou gerentes para tratar da
burocracia empresarial e o termo utilizado pelos demais foi, com raras
exceções, o mesmo. Se Marx colocou a classe burocrática no seu campo perceptivo
e os ideólogos tentaram excluí-la, ela voltou devido às mudanças históricas e à
percepção do significado histórico e político da burocracia. Esta é a questão
fundamental a ser tratada aqui: qual é o significado histórico da burocracia,
ou seja, qual função ela cumpre e para que ela serve no processo histórico e
nas lutas de classes.
Para compreender
isso é necessário iniciarmos com o conceito marxista de burocracia e, após
isso, analisar a burocracia como classe social e seus interesses de classes e
vínculo com a burguesia para finalmente entender qual é o seu significado
histórico. Além de Marx, as obras de Weber, Michels, Makhaïsky, Lapassade,
Motta, Faria, Tragtenberg, entre inúmeros outros, contribuem para se pensar
esse fenômeno moderno. Sem dúvida, em alguns casos há limites, como já citamos
no caso de Weber e reencontramos em diversos outros, mas há momentos de verdade
que podemos extrair e inserir, como sua assimilação, numa outra totalidade de
pensamento que é o marxismo.
O conceito geral
de burocracia é o de uma organização que é comandada por um quadro dirigente,
que constitui a classe burocrática. Assim, temos a burocracia como forma
organizacional e como classe social (VIANA, 2015a). A organização burocrática é
composta por um quadro dirigente (o que pressupõe a existência de dirigidos e a
relação social entre dirigentes e dirigidos), a legitimação via normas
escritas, funcionamento através de meios formais de admissão e relações
hierárquicas, quadro dirigente (a burocracia como classe) assalariado que
possui posse dos meios de administração e poder de decisão, cujo objetivo é
garantir o controle social[12].
A burocracia como classe social constitui o quadro dirigente hierarquicamente
organizado nas instituições (organizações burocráticas).
O nosso foco aqui
é a classe burocrática e só quando for necessário abordaremos a forma
organizacional. A classe burocrática
possui um modo de vida comum. Este é o modo de vida burocrático, marcado pelo
dirigismo, formalismo, tecnicismo, regras escritas, hierarquia, normativismo,
controle. O burocrata vive para dirigir as organizações da qual faz parte.
A sua função é exercer o controle para reproduzir a organização e os objetivos
desta, mesmo quando tal objetivo é a própria autorreprodução. E por isso o
burocrata é aquele que se preocupa e se dedica a garantir tal reprodução e faz isso cotidianamente, através de reuniões
com subordinados (onde se repassa as decisões superiores, toma-se decisões
secundárias – ou não, dependendo do caso, etc.), manutenção da hierarquia (sempre solicitando o atendimento das
exigências e normas impostas pelos burocratas superiores), controle (vigilância, supervisão, punição, etc.), elaboração das normas ou adaptação a elas
quando a burocracia superior o decide (leis, regimentos, etc.) ou seu
repasse para a burocracia inferior (que por sua vez faz o repasse para os
dirigidos), comando das relações sociais
no interior da instituição, etc. Estes e outros elementos do modo de vida
burocrático geram interesses comuns, bem como disputas interburocráticas. Os
interesses gerais da classe burocrática, comum a toda a burocracia, é a
burocratização, ou seja, a ampliação de cargos e do controle. Desta forma, a
burocracia busca concretizar seus interesses e para isso encontra o obstáculo
de outras classes sociais e dos dirigidos. Assim, a burocracia efetiva uma luta
comum com outras classes e grupos: os dirigidos em geral, que variam de acordo
com a organização. O fundamental é a luta contra outras classes. A burocracia
estatal pode ir contra os interesses da burguesia ao criar excesso de cargos e
aumentar a despesa pública, bem como aumentar a corrupção, etc. ao invés de
investir onde é interesse do capital ou então quando congela os salários e
entra em conflitos com as classes trabalhadoras (proletariado, subalternos,
etc.). O aumento do controle pode gerar a insatisfação e resistência dos
dirigidos, tal como no caso de fábrica capitalista na qual se aumenta o
controle dos operários, que tendem a resistir e entrar em confronto com a
burocracia empresarial[13].
A partir desse
modo de vida, interesses e lutas, a burocracia produz representações,
ideologias, etc. Ela busca, constantemente, sua autovaloração e
autolegitimação, colocando-se como importante, racional, técnica, etc. Sem
dúvida, os dirigidos e outros opositores vão criar representações contrárias:
morosidade, irracionalidade, autoritarismo, onerosidade, etc., que varia de
acordo com o opositor. As ideologias burocráticas sistematizam as representações
cotidianas da burocracia e tiveram em Hegel, Lassalle, Kautsky, Lênin, Ford,
Taylor, alguns de seus ideólogos. As ideologias gerencialistas, dirigistas são
manifestações dessa produção ideológica burocrática, realizada por burocratas
ou intelectuais (ideólogos) externos.
Sem dúvida, não
existe uma unidade na classe burocrática. A burocracia, como toda classe
social, é subdividida em frações e outras subdivisões. Assim, as frações da
burocracia são várias: burocracia estatal, burocracia empresarial, burocracia
escolar (incluindo a universitária), burocracia partidária, burocracia
sindical, eclesiástica, etc. Além disso, é também dividida em burocracia
estatal (que, por sua vez, é dividida entre burocracia governamental, que é
temporária e estatutária, que é permanente) e burocracia civil (das inúmeras
organizações burocráticas da sociedade civil) e burocracia superior e
burocracia inferior (no interior das organizações, o que remete à sua
hierarquia).
Essas divisões
ajudam a compreender o caráter mais conservador das burocracias mais
privilegiadas (estatal, universitária, empresarial) e o caráter mais
progressista das burocracias menos privilegiadas (partidária, sindical, etc.) e
mais contestador ainda das burocracias inferiores e dos extratos inferiores da
burocracia[14]. Assim,
as divisões burocráticas muitas vezes geram lutas interburocráticas, tanto no
âmbito da política institucional (social-democracia versus leninismo; trotskismo versus
stalinismo, etc.) quanto na sociedade civil em geral (sindicatos conservadores versus sindicatos progressistas; chapas
opostas disputando eleições de sindicatos, etc.). Esse processo, por sua vez,
gera disputas ideológicas entre os representantes de cada uma desses setores da
burocracia. No plano da consciência, essas disputas nunca são apresentadas como
disputas interburocráticas e sim, no âmbito da política institucional, como
luta do “povo”, do “proletariado”, dos “trabalhadores” contra a “burguesia”, os
“conservadores”, etc., do lado dos perdedores e do lado dos ganhadores aparece
como uma luta dos “representantes do povo” ou do “proletariado, ou da “nação”,
“paz”, “socialismo” ou “democracia”,
contra os “revolucionários”, os “traidores”, os “inimigos do povo”, os
“agitadores”, etc.
Essa breve
conceituação da burocracia é importante para entendermos seu significado
histórico. A burocracia vai surgindo com o próprio desenvolvimento capitalista.
Marx escreveu numa época em que a burocracia estava consolidada no aparato
estatal e nas empresas capitalistas (MARX, 1986a; MARX, 1986b, MARX, 1988,
VIANA, 2015b), que são as fontes da burocracia (MOTTA, 1985). A sociedade
moderna vai se desenvolvendo e gerando ondas de burocratização (ao lado de
ondas de mercantilização)[15].
O desenvolvimento capitalista gera ondas de burocratização, que significa aumento
de organizações burocráticas e do controle social, indo desde o regime de
acumulação extensivo com a consolidação, fortalecimento e formalização das
burocracias estatal e empresarial[16];
passando pelo regime de acumulação
intensivo no qual ocorre a segunda
onda de burocratização, marcada pela ampliação da burocracia estatal e
empresarial e a emergência de uma nova burocracia civil (partidos, sindicatos,
etc.); e pelo regime de acumulação conjugado, quando se estabelece a terceira onda de burocratização,
avançando para novos setores da sociedade, como o lazer, meios oligopolistas de
comunicação, etc.; até chegar no regime de acumulação integral: com a quarta e atual onda de burocratização,
caracterizada pela emergência de novas burocracias civis (ONGs, por exemplo) e
maior rigidez no controle social.
Isso significa que
quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais forte fica a burocracia, pois
cresce quantitativamente, se complexifica e se desenvolve, com setores dela
tentando se autonomizar. É nesse contexto que podemos compreender o seu
significado histórico. A burocracia surge no capitalismo com uma função
determinada na divisão social do trabalho, que é o controle social, que visa,
simultaneamente, resguardar os interesses da classe burocrática e reproduzir as
relações de produção capitalistas. Os extratos inferiores da burocracia se
autonomizam mais (leninismo, por exemplo) e buscam enfrentar a burguesia e
suplantá-la, tornando classe dominante com a fusão entre burocracia partidária
e burocracia estatal.
A burocracia surge,
portanto, como classe auxiliar da burguesia. E, como tal, sua autonomia é
relativa e limitada. Os seus interesses
de classe, por sua vez, não levam a uma necessidade de ruptura com o
capitalismo, pois esse traz a necessidade de burocratização. É por isso que a
burocracia é, majoritariamente, conservadora. Esse é o caso da burocracia
estatal (a governamental e mais ainda a estatutária – exército, judiciário,
etc.), da burocracia das grandes instituições da sociedade civil (grandes igrejas,
grandes sindicatos, etc.). A burocracia, como classe determinada pelo capital,
mantém sua autonomia no plano de reproduzir as relações de produção
capitalistas e apoiar a burguesia. No máximo, ela pode se opor a setores da
burguesia, especialmente os favoráveis à “desburocratização”, como liberais e
outros semelhantes e isso mais no caso da burocracia estatal. As burocracias
civis podem buscar se autonomizar nas instituições da sociedade civil, mas
apenas algumas delas, as vinculadas a organizações burocráticas autônomas, é
que possuem capacidade de autonomização até chegar ao ponto de buscar
substituir a burguesia. Esse é o caso dos partidos políticos leninistas
(ortodoxos, ou seja, aqueles que são fiéis à ideologia leninista, pois muitos
deles acabam cedendo às ideologias reformistas).
O leninismo surgiu
como a ideologia que expressa os interesses de parte da burocracia, que visa se
tornar classe dominante. Obviamente que, por sua posição na divisão social do
trabalho, a burocracia não tem condições de constituir novas relações de
produção. E também não tem força suficiente para enfrentar a burguesia
isoladamente, pois não tem o seu poder financeiro, o controle da acumulação de
capital, a hegemonia na sociedade civil, etc. É por isso que a burocracia extremista
precisa do apoio popular, especialmente do proletariado. Para tanto, realiza
uma assimilação e deformação do marxismo e se diz representante do
proletariado, para assim conquistar seu apoio e dirigi-lo. Isso é expresso
magistralmente na ideologia da vanguarda, esboçada por Kautsky e desenvolvida
por Lênin sob forma mais extrema. A concepção leninista aponta para o controle
do partido sobre o proletariado durante a conquista do aparato estatal e depois
após tal conquista, se apropriando do estado e se fundindo com a burocracia
estatal[17],
exercendo, a partir disso, uma ditadura sobre o proletariado.
Assim, mesmo tomando o poder estatal, a
burocracia não pode abolir o capitalismo e, portanto, a burguesia. Ela deve se
fundir com a burguesia ou se metamorfosear em burguesia burocrática, pois é
incapaz de abolir a produção de mais-valor. Para tal teria que se generalizar a nível mundial
e gerar uma nova ideologia legitimadora de uma nova forma de dominação. A única
forma de conseguir isso seria através da implantação do capitalismo estatal e
sua expansão a nível mundial, o que permitiria se livrar do comércio
internacional e gerar uma forma burocrática de distribuição de riquezas. A
emergência de um modo de produção no qual a burocracia, agora já com outro nome
e forma desenvolvida, é algo que dificilmente poderia ocorrer.
Considerações
Finais
Desta forma, a
burocracia surge, historicamente, para colaborar com a burguesia no sentido de
reproduzir o capitalismo e, mesmo em seus setores mais autonomizados e
extremistas, o máximo que conseguem é implantar um capitalismo de Estado, o que
significa reproduzir o capitalismo, só que sob outra forma. A burocracia, por
conseguinte, é uma classe conservadora e contrarrevolucionária e só perde para
a burguesia, entre todas as classes existentes, no grau de conservadorismo e
caráter contrarrevolucionário. Assim como é raro indivíduos da classe burguesa
abandonar sua classe e aderir à perspectiva do proletariado (é mais comum em
alguns jovens que são de famílias burguesas, embora, mesmo nesse caso, ao
findar a juventude e se tornarem adultos, tendem a voltar ao seio de sua classe
de origem), o mesmo ocorre com os indivíduos da classe burocrática (é mais
comum, nesse caso, em indivíduos mais jovens e dos extratos inferiores da
burocracia, embora também seja raro e algo que geralmente é ultrapassado quando
se tornam adultos).
Desta forma, a
burocracia é uma classe antagônica ao proletariado, pois seu setor mais
moderado é lacaio do capital e seu setor mais extremista visa substituir a
burguesia privada e realizar diretamente a exploração e a dominação. As
organizações burocráticas são instituições de controle social visando impedir a
transformação radical e total das relações sociais e são espaços de cooptação,
corrupção, dos indivíduos das classes desprivilegiadas. Por conseguinte, cabe ao proletariado e ao conjunto das classes
desprivilegiadas, buscar abolir a burocracia como classe social e como forma
organizacional. Isso é parte do processo de revolução social e constituição da
sociedade autogerida. No entanto, deve ser um projeto consciente, pois a
burocracia é um dos obstáculos para o processo revolucionário e para a
libertação humana. Nesse sentido, a compreensão do significado histórico da
burocracia aponta para a necessidade de sua abolição pelo proletariado.
Referências
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1975.
BETTELHEIM, Charles. As Lutas de Classes na URSS. 2 vols. São
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Marxista de las Clases Sociales. Debate e Crítica. Revista Quadrimestral de
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São as Classes e a Luta de Classes? Moscou, Progresso, 1986.
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Intelectuais. in: TRAGTENBERG,
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MARX, Karl. A
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MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Lisboa: Presença, 1979.
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MOTTA, Fernando P. O Que é Burocracia. São Paulo, Brasiliense, 1985.
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VIANA,
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acessado em: 31/12/2016b.
WEBER,
Max. Economia e Sociedade. Brasília:
Edunb, 2004.
WEBER,
Max. Ensaios de Sociologia. Rio de
Janeiro: Zahar, 1971.
[1]
Não poderemos aqui discutir o método compreensivo elaborado por Weber. O que
podemos colocar, sinteticamente, é que se trata de uma manifestação da episteme
burguesa, com seu reducionismo, antinomismo e anistorismo, que, enquanto
método, é muito mais um obstáculo para entender a realidade do que uma
ferramenta que ajude a percebê-la.
[2]
Abstratificação é uma abstração metafísica, ao contrário da abstração
dialética. A abstratificação é uma forma de coisificação, de fetichismo, pois
retira um fenômeno da realidade concreta, ou seja, da história e das relações
sociais, promovendo seu isolamento e desistoricização.
[3]
Apesar da abstratificação, Weber não pode ocultar a historicidade em sua
totalidade e por isso, quando trata dos “tipos de dominação legítima” (2004),
acaba fazendo uma tipologia que expressa uma mudança histórica nas formas de
dominação, embora sob forma ideológica.
[4]
Isso se revela, inclusive, nas tentativas de mesclar Marx e Weber, o que
significa um empobrecimento do marxismo. Uma coisa é reconhecer momentos de
verdade na obra de Weber e assimilá-los, o que não constitui “mescla”, mistura
de duas coisas distintas, e sim inserção transformada de elementos que são
inseridos em outra totalidade de pensamento. Um suposto “marxismo weberiano” é
uma espécie de Frankenstein (a criatura e não o criador, os ideólogos marxistas
weberianos é que são o Viktor da história), sendo mais um ecletismo das
ideologias burguesas que visam descaracterizar o marxismo. Outros utilizam
Weber de forma mais crítica, mas mesmo assim, ao faltar clareza metodológica,
acabam caindo em muitos erros deste.
[5]
Isso não é tão somente um problema de dificuldade intelectual (alguns diriam
“cognitiva”), pois, em que pese Lênin não fosse um grande pensador, isso se
deve, principalmente, à sua perspectiva de classe. O método dialético, ou seja,
a dialética marxista, é inseparável da perspectiva do proletariado, o que
constitui o seu campo axiomático. Lênin, por sua vez, expressava a perspectiva
da burocracia e, portanto, de outro campo axiomático, bem distante do campo
axiomático da episteme marxista.
[6]
De forma embrionária, pois ele estava iniciando suas reflexões sobre classes
sociais, o que só desenvolveu nas obras posteriores.
[7]
Uma discussão mais aprofundada e desenvolvida da concepção de classes sociais
em Marx pode ser vista nessa obra (VIANA, 2018) e de forma mais sintética em
outra obra (VIANA, 2016a) e seus elementos básicos encontrados em algumas obras
de Marx (1982; 1989; 1988).
[8]
Posteriormente, alguns maoístas vão definir a União Soviética como capitalismo
de Estado, especialmente Charles Bettelheim (1979), mas que não discutiu a
burocracia e sim o que ele denominou “burguesia de Estado”.
[9]
Trata-se de uma concepção pseudomarxista, pois as classes sociais, na concepção
marxista, são relacionais, ou seja, só existem em relação umas com as outras,
através da divisão social do trabalho no interior de determinadas relações de
produção. O proletariado só existe como classe produtora de mais-valor, o que
significa que não existe fora da relação com a burguesia, classe apropriadora
do mais-valor. Se a burguesia deixa de existir, automaticamente o proletariado
também desaparece. Assim, Castoriadis e Lefort interpretam a burocracia como
classe dominante, mas apenas no sentido de dominação, administração, deixando
de lado a questão do mais-valor e de que se trata de uma burguesia burocrática,
a fusão de duas classes sociais e uma nova forma de burguesia.
[10]
Um dos maiores problemas dessa concepção está em confundir burocracia
(gestores) com burguesia. Para uma crítica dessa concepção, cf. Marques (2013).
[11]
Socialismo radical é um nome genérico aplicado a todas as correntes, grupos e
indivíduos que romperam com a social-democracia a partir de 1914 (espartaquistas,
bolchevistas, comunistas internacionalistas, etc.) e que não formavam nenhuma
unidade, a não ser o passado de adesão, mesmo como dissidentes internos, da
social-democracia e a crítica posterior a ela.
[12]
Essa breve síntese não aborda diversos aspectos, como, por exemplo, a diferença
entre organizações burocráticas e organizações autárquicas, bem como as
diferenças entre as organizações burocráticas (autocráticas ou democráticas,
autônomas ou heterônomas, formais ou informais, etc.), o que pode ser visto em
outra obra (VIANA, 2016b).
[13]
Aqui apresentamos apenas uma síntese da questão da classe burocrática. Uma
explanação mais desenvolvida pode ser vista em: Viana (2018; 2015).
[14]
Os extratos inferiores de uma classe social são aqueles que possuem menor
renda, prestígio, etc., ou seja, aquilo que grande parte das ideologias da
estratificação usam como critérios para definir uma classe social, sendo que na
abordagem marxista é algo de menor importância
[15]
No sentido de “ondas sociais”, que significam um processo cumulativo, no qual
há a ampliação e intensificação de algo.
[16]
Ao lado da transformação das igrejas em organizações burocráticas, o que
significa uma mutação em sua forma organizacional.
[17]
Esse processo não é, necessariamente consciente. Lênin podia pensar
sinceramente que lutava pelos interesses do proletariado, mas suas ideias
correspondiam aos interesses da burocracia e os problemas e soluções apontados
por ele são os dessa classe social. Sem dúvida, Lênin foi antecedido por
versões mais moderadas, como as do “socialismo de estado” de Lassalle e o
reformismo kautskista, bem como foi sucedido por outros, como foi o caso de
Trotsky, Stálin, Mao Tse-Tung e muitos outros. No entanto, mesmo que Lênin
fosse um iludido com sua produção intelectual e ação política, ele sabia
perfeitamente que sua perspectiva era burocrática, pois seus valores,
concepções, sentimentos, correspondiam aos da burocracia.
domingo, 1 de julho de 2018
Luta de Classes e Universo Cultural
Luta de Classes e Universo
Cultural
Nildo Viana
Certa vez o
psicanalista alemão Wilhelm Reich afirmou que a grande questão para a luta pela
transformação social e criação de um novo mundo – livre da exploração e
alienação e baseado na igualdade e liberdade – é responder por qual motivo os
trabalhadores e oprimidos em geral não se rebelam e fazem uma revolução. Por
qual motivo uma pessoa faminta não rouba a comida que matará sua fome? Ou seja,
a questão, ao contrário da que é colocada normalmente em nossa sociedade, não é
explicar porque algumas pessoas famintas roubam e sim por qual motivo outras no
mesmo estado não fazem a mesma coisa.
Segundo ele:
“Se dois homens A e B têm
fome, um pode resignar-se, não roubar, mendigar ou ficar esfomeado; o outro
pode procurar alimento pelos seus próprios meios. Uma vasta camada do
proletariado vive segundo os princípios de B. Chama-se lumpemproletariado. Não
partilhamos da admiração romântica pelo mundo dos malfeitores mas é preciso
esclarecer o assunto. Qual dos dois tipos de homens acima citados tem mais
elementos de consciência de classe? Roubar não é ainda um índice de consciência
de classe; mas uma breve análise mostra – mesmo se isto choca o nosso sentido
de moral – que o que não se adapta às leis e rouba quando tem fome, exprimindo
assim a sua vontade de viver, é possuidor de uma maior capacidade de revolta do
que o que se entrega docilmente ao matadouro do capitalismo. Mantemos a tese de
que o problema fundamental de uma boa psicologia não é saber porque rouba o
esfomeado mas, ao contrário, porque é que não rouba[1]”.
Reich
acrescenta que roubar não é ainda consciência de classe mas coloca que é um
tijolo com a qual, junto com outros tijolos e elementos (vidros, janelas etc.)
se constrói uma casa, isto é, é um elemento que permite a formação da
consciência de classe. A questão fundamental seria, então, explicar por qual
motivo os trabalhadores, oprimidos, descontentes não realizam atos de negação
da sociedade existente. Por qual motivo o esfomeado não rouba? Os trabalhadores
não tomam conta das fábricas? O desabrigado não toma conta dos lotes baldios ou
das grandes propriedades territoriais? São questões que nos remetem ao motivo
dos explorados, dominados, oprimidos etc. não terem feito uma revolução, a
transformação social radical abolindo a exploração, dominação, opressão. Sem
dúvida a resposta é complexa. Podemos falar do aparato repressivo do Estado, o
exército e a polícia como fator importante para a não realização da revolução.
No entanto, este aparato só entra em ação quando o confronto é aberto, quando
todos os outros meios que a classe dominante e o governo utilizam para manter a
passividade da população já não funcionam mais. Hoje, apenas uma minoria
radical entra em confronto direto com o aparato repressivo do estado
capitalista e não por propor a revolução social mas sim por questões pontuais
(protestos, manifestações, lutas pela moradia, luta pela terra, ou seja,
tijolos que são elementos para construir a casa mas ainda não é a casa).
Existe algo
anterior à força repressiva que é um forte obstáculo ao processo
revolucionário. Aqui lembramos o filósofo Rousseau. Segundo ele, o que importa,
para explicar a origem das desigualdades, é indicar, “no progresso das
coisas, o momento em que, o direito sucedendo à violência, a natureza
submeteu-se à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios pôde o forte
decidir-se a servir ao fraco, e o povo a comprar um repouso imaginário ao preço
de uma felicidade real”[2].
Portanto,
Rousseau explica a origem das desigualdades a partir do momento em que surgiu a
supremacia do direito sobre a violência. Isto se encontra de acordo com o que
colocamos anteriormente: a força repressiva é sustentáculo da desigualdade, da
exploração, da dominação, da opressão, mas só é utilizada no momento em que
falham os outros sustentáculos destas relações. Rousseau assim coloca a origem
da propriedade privada e, por conseguinte, da desigualdade:
“O primeiro que, tendo
cercado um terreno, arriscou-se a dizer: “isso é meu’, e encontrou pessoas
bastantes simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade
civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado
ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos,
tivesse gritado aos seus semelhantes: Fugi às palavras deste impostor; estareis
perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a terra não é de
ninguém. Entretanto parece que as coisas já haviam chegado ao ponto de não mais
poder continuar como estavam; pois essa idéia de propriedade, dependendo de
muitas idéias anteriores que não puderam nascer senão sucessivamente, não se
formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer muitos progressos,
adquirir muita indústria e saber transmiti-los e aumentá-los de geração em
geração, antes de se atingir esse último estágio do estado de natureza”[3].
Rousseau,
apesar de sua contextualização histórica-social deixar muito a desejar, coloca
um elemento fundamental para nossa discussão. A questão do consentimento.
Ou seja, a repressão estatal só atua quando se rompe o consentimento da
população, a força só entra em ação quando as palavras não funcionam mais. Aqui
entramos na questão cultural e no papel da cultura para a reprodução da
exploração, da desigualdade, da opressão. Por que os explorados, oprimidos,
esfomeados, não se rebelam? Basta uma rápida olhada no mundo contemporâneo para
ver milhões de indivíduos passando fome ou outros milhões em estado de miséria,
milhões de trabalhadores explorados, milhões de desempregados, milhões de
indivíduos oprimidos devido à cor da pele, a religião, a etnia etc. A grande
questão reside no que foi colocado por Reich: por qual motivo não se rebelam? E
Rousseau nos afirma que a origem da desigualdade se encontra na cultura, no
consentimento. Sem dúvida, a cultura exerce um papel fundamental na reprodução
da sociedade existente e em todos os males gerados por ela. De que forma a
cultura contribui com a reprodução do capitalismo? O universo cultural na
sociedade capitalista é muito amplo e possui vários aspectos. Iremos destacar
os principais:
A)
A Axiologia
B)
A Ideologia;
C)
As Representações Cotidianas Ilusórias.
Iremos discutir
cada um destes itens. A axiologia é uma determinada configuração dos valores
dominantes em determinada sociedade[4]. A
axiologia na sociedade capitalista moderna aponta para determinados valores,
tais como a competição, o culto à autoridade, a luta pela ascensão social e
status, o desejo de consumo e posses etc. A sociedade capitalista produz uma
estruturação de valores que são inculcados nos indivíduos desde sua infância. A
competição é uma parte constitutiva do processo de socialização, tanto familiar
quanto escolar. Nós vivemos num mundo competitivo e a competição acaba formando
valores introjetados pelos indivíduos. Todos querem “ser o melhor”, o melhor
aluno (o que tira “as melhores notas”), o melhor jogador de futebol, o torcedor
do melhor time e assim por diante. A competição que se encontra na sociedade
(na escola, na busca de posições através de concursos, na disputa por uma vaga
na escola ou universidade ou por um emprego no mercado de trabalho), no mundo
dos esportes, nas igrejas, nas instituições em geral. A competição é tão grande
que se encontra até mesmo nas relações amorosas entre homens e mulheres[5],
nas quais os homens competem pelas mulheres (segundo, geralmente, os valores
dominantes, que valoram a beleza, em especial) e as mulheres competem pelos
homens (também segundo os mesmos valores, o que leva a preferência pelos homens
poderosos e ricos). Esta sociedade competitiva irá criar indivíduos
competitivos e é por isso que diversos pesquisadores irão colocar a existência
de uma “personalidade competidora”, de um “caráter competitivo”. A ascensão
social, a riqueza e o status são elementos fundamentais na cultura capitalista
contemporânea.
Como isto
interfere na formação da mentalidade dos indivíduos explorados e oprimidos?
Isto gera, no interior dos grupos sociais oprimidos e das classes exploradas, o
individualismo e a competição. Aliás, o mesmo se vê nos grupos políticos –
tanto os falsamente de esquerda, tais como os partidos políticos, quanto os que
realmente buscam a emancipação humana, embora neste último caso isto ocorra
geralmente de forma minimizada. Muitos tentam superar sua situação indesejável
de exploração e opressão através de uma solução individual, buscando realizar a
ascensão social, adquirir o poder ou riqueza. Aqui temos uma negação de uma
situação – de exploração e opressão – simultaneamente com sua reafirmação – a
solução individual que reforça os valores burgueses e leva os indivíduos a
quererem a conservação da sociedade capitalista na ilusão de que poderão
realizar tais valores. Eles também irão incentivar a formação de determinados
sentimentos, como os do ciúme e inveja, entre outros, que dificultarão o
processo de engajamento na luta pela transformação social.
Os valores são
mobilizadores, eles fazem as pessoas agirem, escolherem, decidirem. O aspecto
mais importante do universo cultural reside justamente nos valores. E existem,
para os indivíduos, valores fundamentais que estão acima na sua escala de
valores e estes são mais eficazes do que os outros. Estes valores são
constituídos socialmente e reproduzem a sociabilidade existente, capitalista.
Tal como colocou Reich:
“A existência e as condições
de existência dos homens, refletem-se, incrustam-se e reproduzem-se na sua
estrutura mental, à qual dão forma. É só através desta estrutura mental que
este processo objetivo nos é acessível, que podemos entravá-lo, favorecê-lo ou
dominá-lo. Só por intermédio da cabeça do homem, da sua vontade de trabalho, da
sua procura da alegria de viver, em resumo, de sua existência psíquica, que nós
criamos, consumimos, transformamos o mundo. Foi tudo isto que esqueceram há
muito os ‘marxistas’ que degeneraram em economicistas”[6].
Esta referência
ao marxismo é importante, pois muitos consideram que para Marx as idéias não
passavam de mero epifenômeno, de coisa sem importância e influência no curso
real dos acontecimentos e das lutas sociais, o que é um equívoco, pois para ele
as idéias se transformam em “forças materiais” quando são desenvolvidas pelos
explorados e oprimidos. Segundo Marx:
“Se alguém acredita possuir
100 táleres*, se essa não é para ele
apenas uma representação arbitrária, subjetiva, se ele acredita nela, então os
100 táleres imaginados têm para ele o mesmo valor que 100 táleres reais. Por
exemplo, ele contrairá dívidas em função desse seu dado imaginário, o qual terá
uma ação efetiva: foi assim, de resto, que toda a humanidade contraiu dívidas
contando com seus deuses”[7].
A força do
imaginário, tal como Marx colocou, é ativa e mobilizadora. Uma idéia é,
independentemente de ser verdadeira ou falsa, mobilizadora, ativa. Assim, os
valores geram uma visão imaginária de sua realização que mobiliza
conservadoramente grande parte da população.
Tendo sua base
nos valores dominantes e servindo para reproduzi-los, temos a ideologia. A
ideologia surge com a divisão entre trabalho intelectual e manual e se
desenvolve em formas cada vez mais complexas. A ideologia na sociedade
capitalista se manifesta sob a forma de ciência, filosofia, teologia. Ela é uma
sistematização da falsa consciência, ou seja, é um pensamento complexo,
sistemático, que dá forma a um conteúdo falso. Daí a valoração da linguagem
técnica, do formalismo, da metodologia, da tradição e erudição etc. A filosofia,
a ciência e a teologia são as principais formas deste pensamento sistemático e
falso. Ora, a ideologia está intimamente ligada à divisão social do trabalho e
são os especialistas na produção de idéias, os ideólogos, que irão produzir e
reproduzir a ideologia. Os ideólogos irão, na sociedade capitalista, se
subdividir em diversas especializações (o economista, o psicólogo, o filósofo,
o matemático, o físico, o biólogo) e terão um status social e um reconhecimento
de sua capacidade e formação especializada. A sociedade capitalista é marcada
por uma crescente especialização e por criação de técnicos e especialistas em
quase tudo. E tais especialistas acabam assumindo a forma de autoridade e isto
propicia o que podemos denominar “culto á autoridade”. Algumas pessoas se
julgam incapazes de tomar decisões sem consultar um especialista (médico,
dentista, psicólogo e cada vez mais, arquitetos, agentes de turismo e coisas do
gênero).
Os ideólogos,
no entanto, estão a serviço do poder. Existem, entre os especialistas
(cientistas, filósofos, teólogos) algumas exceções, mas a maioria está a
serviço da reprodução do capitalismo, inclusive alguns com discurso
supostamente progressista. A razão disto se encontra no fato de que eles
constituem classes sociais auxiliares da burguesia, e devido a isto recebem
privilégios (salariais, principalmente) de sua posição e devido seu papel de
falsificação da realidade social e também na elaboração de técnicas de controle
social e amortecimento dos conflitos sociais. Um psiquiatra, por exemplo, que
realiza psicocirurgia ou indica uma droga para evitar a depressão está
tão-somente representando os interesses daqueles que fazem a psicocirurgia e da
indústria farmacêutica e apresentando um paliativo para um problema psíquico
que tem sua origem nas relações sociais e no conjunto das insatisfações geradas
por elas. Um psicólogo terapeuta realiza o mesmo papel, ou seja, representa
seus próprios interesses – pois recebe dinheiro pelo tratamento terapêutico – e
os da classe dominante, ao produzir mais um indivíduo enquadrado e adaptado
(bem ou mal...) à sociedade existente. O urbanista que elabora um projeto
urbano contribui com a organização do espaço urbano capitalista, um espaço
dividido e voltado para a reprodução das relações de exploração e dominação. Em
outras palavras, os ideólogos não apenas legitimam a sociedade capitalista como
atuam no sentido de reproduzi-la através de sua prática profissional, da criação
de técnicas e tecnologias e assim por diante.
Devido ao culto
à autoridade e pela desvaloração do saber popular, cria-se nos grupos oprimidos
e classes exploradas uma valoração da ideologia e um sentimento de incapacidade
de alcançar “tão relevante” saber, que é o científico, filosófico, teológico.
Assim, o discurso dos especialistas, dos cientistas e outros ideólogos, assumem
a aparência de verdade inquestionável (como muitos dizem ingenuamente: “isto já
foi comprovado pela ciência”...). A popularização da ideologia, o que traz sua
desfiguração e simplificação, reforça, pois, o conservadorismo da população. As
revistas de vulgarização científica, os meios de comunicação de massas (rádio,
televisão, jornais, revistas semanais) e o ensino escolar cumprem este papel.
Assim, a ideologia, apesar de sua produção estar restrita no círculo dos
ideólogos, possui uma eficácia política que é uma força que garante o
consentimento e a conservação da sociedade burguesa.
Por fim, temos
as representações cotidianas ilusórias, o reino do imaginário popular. O saber
popular, chamado pelos ideólogos de “senso comum”, é formado pelo conjunto das
representações cotidianas que os indivíduos possuem da natureza e das relações
sociais. Estas representações cotidianas, que se expressam no dia-a-dia da
população, podem ser falsas ou verdadeiras. Para algumas ideologias, elas são
necessariamente e sempre falsas, o que é uma inversão da realidade. As
representações cotidianas – que são as representações não apenas produzidas
pelos indivíduos das classes exploradas e grupos oprimidos mas por todos os
indivíduos desta sociedade, inclusive os cientistas que não pensam
“cientificamente” sobre tudo e a todo o momento – são predominantemente falsas,
especialmente nos setores privilegiados da sociedade. Na realidade concreta,
existe nos indivíduos uma mescla de representações cotidianas falsas e
verdadeiras, que expressa a contraditoriedade da consciência de classe já
discutida por Reich e Gramsci[8].
As representações cotidianas ilusórias reforçam o imobilismo, os valores
dominantes e assim por diante, também servindo para a reprodução do
capitalismo. Elas nascem, em primeiro lugar, das próprias relações sociais
existentes, que são “naturalizadas” e “universalizadas”. Quem já não ouviu a
frase “a desigualdade existirá para sempre”. Ora, as pessoas que nascem numa
sociedade caracterizada pela desigualdade, vivem e envelhecem nesta sociedade,
tendem a pensar que isto é “natural” e “universal”: assim é, assim sempre será.
Tal opinião fica mais forte ainda quando algum cientista vem para afirmar que
existe na natureza uma “luta pela sobrevivência”, onde há uma “seleção natural
dos mais aptos” e só estes sobrevivem (tal como afirmou Darwin, o ideólogo da
evolução) ou então que a fome é produto do crescimento populacional, que cresce
em proporção muito maior do que a produção de alimentos (tese do economista
Malthus, ideólogo do século 19 que tem adeptos até hoje e inspirador de
Darwin). Assim, as representações cotidianas também são mobilizadoras, e as que
são ilusórias mobilizam no sentido de conservação da sociedade existente.35314000
No entanto, até
agora apenas observamos o papel conservador da cultura na luta de classes. Isto
é fundamental para percebermos a força das idéias no processo de conservação da
sociedade capitalista e da necessidade de buscar realizar uma intensa luta
cultural visando diminuir a eficácia política da cultura burguesa e aumentar a
força do projeto revolucionário. As classes exploradas e grupos oprimidos
trazem em si um conjunto de idéias, valores, representações que realizam uma
crítica da sociedade capitalista. É preciso, pois, reforçar isto. Os grupos
políticos revolucionários também produzem um amplo material crítico e
revolucionário, bem como alguns intelectuais dissidentes e movimentos sociais.
Ora, o que é preciso é reforçar todo este processo de constituição de uma
cultura libertária, ampliando-a quantitativamente e qualitativamente, bem como
realizar uma articulação entre as diversas produções culturais libertárias. A criação
de meios de comunicação alternativos e de intervenção nos meios de comunicação
existentes é outra forma de encaminhar esta luta cultural, pois além da
produção de uma cultura libertária, é preciso sua divulgação, para proporcionar
sua ampliação, produzindo novos produtores.
Assim, a
produção cultural libertária deve se expandir e articular e se realizar sob os
mais variados meios (jornais, revistas, livros, CDs, apresentações públicas
etc.) e sob as mais variadas formas (teatro, música, teoria etc.). Isto, ao
lado da atuação militante nos movimentos sociais e luta pela auto-organização
das classes exploradas e grupos oprimidos e da articulação dos movimentos
revolucionários, abre espaço para se contribuir com o processo de transformação
social, que hoje vem sendo reforçado pela tendência de crise e instabilidade do
capitalismo, fornecendo condições sociais de crescimento do descontentamento
popular e adesão ao projeto de transformação social. A luta cultural é um ponto
fundamental para a luta pela transformação social. A cultura libertária, assim
como a cultura burguesa, também é mobilizadora e, portanto, deve ser considerado
elemento fundamental da luta revolucionária.
Artigo publicado
originalmente em: Letralivre. Rio de Janeiro, Ano 11, n. 45, 2006.
[2] Rousseau, Jean-Jacques. Discurso
Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens.
Brasília/São Paulo, Edunb/Ática, 1989, p. 49.
[3] Rousseau, J-J. ob. cit., p. 84.
[4] Cf. Viana, N. A Questão dos Valores.
Revista Cultura & Liberdade. Ano 02, Número 02, Abril de 2002.
[6] Reich, W. ob. cit., p. 19.
* Moeda alemã
da época (século 19).
[7] Cit.
Por: Lukács, George. Ontologia
do Ser Social. Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx. São Paulo,
Lech, 1979, p. 13.
[8] Reich, W. Ob. cit.; Gramsci, A. Concepção Dialética da
História. 7a edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1988.
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