Hegemonia e Luta
Cultural
Nildo Viana*
A sociedade capitalista se reproduz e um dos grandes
obstáculos para sua superação é a questão da reprodução. Essa reprodução é
realizada pelo conjunto das formas sociais (jurídicas, políticas, culturais),
mais conhecidas como “superestrutura”. É nesse contexto que alguns ideólogos,
como Althusser e Gramsci, desenvolverão suas teses da reprodução, e, em outro
sentido, outros pensadores farão o mesmo. A reprodução, em Althusser (1985),
remete principalmente ao Estado e seus “aparelhos ideológicos” e em Gramsci
(1987) ao problema da hegemonia. Sem dúvida, a repressão estatal, a integração
via consumo, a burocracia, o “sistema escolar”, entre outros elementos das
formas sociais foram também responsabilizados por esse processo de reprodução.
A nossa perspectiva é outra. Apesar de existir momentos de verdade em todas
essas concepções de reprodução, ainda falta algo mais. Henri Lefebvre (2015),
apesar de toda sua imprecisão e confusão, conseguiu se aproximar mais disso ao
colocar a questão da totalidade e da contradição. Porém, não conseguiu resolver
a questão que estava posta, a da dinâmica da reprodução.
Os Pressupostos
Os pressupostos dos quais partimos são os seguintes. O
primeiro pressuposto, a reprodução do modo de produção capitalista e, por
conseguinte, da sociedade capitalista como um todo, tem como fonte geradora o
próprio modo de produção. É ele que gera as riquezas existentes e o processo
necessário para a reprodução da sociedade como um todo, os bens materiais para
a sobrevivência da população. Ele é produção e reprodução, pois ao produzir
mais-valor e as mercadorias, expande esse processo dominando a distribuição e
circulação e mercantilizando tudo, além de gerar a dinâmica histórica da
sociedade moderna. As relações de distribuição, constituídas a partir da
produção capitalista, são elementos de reprodução e imposição da
mercantilização. A acumulação de capital gera concentração e centralização,
oligopólios. O capital exerce domínio sobre o aparato estatal e através dele
regulariza o conjunto das relações sociais.
O segundo pressuposto é o de que as formas sociais existem
justamente para realizar o processo de reprodução da sociedade, o que vale para
todas as sociedades, incluindo o capitalismo. As formas sociais, em seu
conjunto, instituem relações de reprodução e formas de reprodução do
capitalismo. Logo, não se trata de encontrar um aspecto da realidade ou das
formas sociais (como a escola, por exemplo) para explicar a reprodução. A
reprodução está na totalidade da sociedade e por isso está na totalidade das
formas sociais.
O terceiro pressuposto é que, entre esse conjunto de formas
sociais, existem algumas que são mais importantes para efetivar esse processo
de reprodução. O aparato estatal tem a função de reproduzir as relações de
produção capitalistas e o conjunto das relações sociais, ou seja, a sociedade
capitalista. A força do aparato estatal é inegável, tanto por seus aparatos
especializados, a começar pelo aparato repressivo, passando pelo aparato jurídico,
político-institucional e educacional, até chegar ao aparato comunicacional. Ele
exerce uma função fundamental de garantir a legitimidade do capitalismo e
criação de um conjunto de ideologias, imaginários (representações cotidianas
ilusórias), discursos, correntes de opinião, legislação, etc., que são
fundamentais para a manutenção da sociedade moderna, bem como é fonte de
cooptação e corrupção de movimentos sociais, indivíduos, grupos, etc. Ele é a
principal instituição de reprodução do capitalismo (VIANA, 2015a). Ele é
fundamental também para garantir a reprodução da acumulação de capital, através
de sua intervenção direta, políticas financeiras, investimentos, etc.
O aparato estatal e seus aparatos específicos são
fundamentais para a reprodução do capitalismo. No entanto, intimamente ligado a
ele e produzido, reproduzido e reforçado por ele, temos a hegemonia. Mas
voltaremos a ela mais adiante. A sociabilidade e a mentalidade são outros
elementos fundamentais para garantir a reprodução do capitalismo. A
sociabilidade, na nossa sociedade, é comandada pela mercantilização,
burocratização e competição social (VIANA, 2008). A raiz da sociabilidade
capitalista se encontra no modo de produção capitalista e no aparato estatal. O
modo de produção capitalista é o principal responsável por esse processo de
mercantilização, burocratização e competição, sendo que o aparato estatal é
outra fonte desse processo. Uma vez instituída essa sociabilidade, emerge, a
partir dela, uma mentalidade burguesa, que a naturaliza, legitima, reproduz. Os
indivíduos introjetam em sua mente a burocratização e a necessidade de
burocracia são legitimadas e naturalizadas, bem como a mercantilização, onde o
dinheiro e o ter se tornam valores fundamentais, legitimados e naturalizados, e
a competição, o meio de conseguir ascensão social, cargos e poder, dinheiro e
riqueza, também sofre o mesmo processo de naturalização e legitimação. A
mentalidade burguesa domina a mente dos indivíduos e não só permitem eles
agirem da forma necessária para a reprodução dessa sociedade, mas também criam
o desejo e necessidade fabricada de fazê-lo.
O poder financeiro da classe capitalista na sociedade civil
(formas sociais privadas) e a força da burocracia nas instituições e sociedade
em geral, a serviço do controle social, e a produção de ideologias e
imaginários pela classe intelectual, promovem um reforço de tudo isso: modo de
produção capitalista, estado, sociabilidade, mentalidade. O poder financeiro da
burguesia lhe permite se apropriar dos meios de comunicação, da produção
cultural, etc. Dessa forma, ela pode criar um “mundo à sua imagem” (MARX e
ENGELS, 1988). Isso também lhe permite o controle sobre suas classes auxiliares
(burocracia e intelectualidade), sobre os meios de comunicação, as instituições
educacionais privadas, etc. O capital comunicacional (reforçado pelo aparato
comunicacional do Estado capitalista) acaba se destacando nesse processo de
reprodução do capitalismo. A sua força é inegável e mesmo quando perde parte
dela, ainda continua sendo um instrumento poderoso de reprodução. A burocracia
exerce o controle social no sentido de reproduzir as instituições, sua
estabilidade, a burocratização, etc. A classe intelectual produz ciência, arte,
técnica, etc., no sentido de legitimar e reforçar as relações sociais
existentes.
Esses elementos estruturais reprodutores da sociedade
capitalista convivem com outros, que são também elementos de reprodução, mas
são mais variáveis e mutáveis. Aqui entra o caso da hegemonia. A hegemonia, que
será definida adiante, tem como base sólida a mentalidade burguesa (e,
obviamente, a sociabilidade que está na base desta). A hegemonia burguesa é uma
determinada configuração específica da mentalidade burguesa adequadas às
tarefas e necessidades momentâneas da classe capitalista. A mentalidade
burguesa é permanente, a hegemonia burguesa é mutável. A hegemonia burguesa
oferece respostas às tarefas de reprodução imediata do capital e por isso sofre
alterações de acordo com a luta de classes ordinárias (um determinado regime de
acumulação instituído), diante das lutas políticas, correlação de forças,
divisões internas da classe dominante, etc.
A constituição da hegemonia burguesa ocorre via bloco
dominante. O bloco dominante é composto pelos setores organizados e mais
conscientes da classe capitalista e suas classes auxiliares, embora alguns
setores desta estejam no bloco progressista, geralmente representado pelas
forças reformistas ou supostamente revolucionárias existentes. Alguns
indivíduos dessas classes sociais, especialmente da classe intelectual, podem,
no entanto, aderir ao bloco revolucionário. O bloco progressista busca ser uma
oposição que aponta para reformas ou mudanças sociais (social-democratas,
bolchevistas, filantropos, etc.) e sua base social são os setores mais
organizados e conscientes das classes auxiliares da burguesia (aqueles que não
estão no primeiro bloco e buscam maior autonomia de classe, geralmente nos
chamados “partidos de esquerda” e outros semelhantes). Apesar de sua busca de
autonomização e de conquista do poder estatal, bem como sua tentativa de
angariar a simpatia das classes desprivilegiadas[1],
especialmente o proletariado ou “os trabalhadores”, ele ainda é demasiado preso
à hegemonia burguesa. Não há uniformidade no seu interior e a ala mais extremista
(geralmente bolchevique mais ortodoxa) se afasta mais da hegemonia burguesa
instituída pelo bloco dominante.
Assim, a hegemonia burguesa é instituída não pelo conjunto
da classe capitalista, mas pelo seu setor mais organizado, consciente e combativo,
isto é, por aqueles que estão aquartelados no aparato estatal (governos) ou em
partidos e outras organizações (como fundações, instituições, meios
oligopolistas de comunicação, etc.), que aglutina alguns setores das classes
burocrática e intelectual. Esse é o setor ativo, que acaba levando a reboque o
setor mais passivo. Retornaremos a essa questão adiante.
Algumas outras formas sociais são importantes para a
reprodução do capitalismo, mas estas são as mais poderosas forças reprodutivas
do capital. Assim, o lazer, as representações cotidianas, etc., são outros
elementos de reprodução da sociedade capitalista. O nosso foco aqui, no
entanto, será a hegemonia e isso significa que não estamos desconsiderando os
elementos acima citados ou outros existentes, mas tão-somente que nosso foco
teórico é este. É por isso que aprofundaremos, a partir de agora, a análise do
conceito de hegemonia e algumas de suas principais características.
A Questão da Hegemonia
O termo hegemonia tem uma longa história. Os pensadores gramscianos
ou interpretes de Gramsci são os que mais discutiram esse termo (GRUPPI, 1991;
SANTOS, 1979; BODEI, 1978). A primazia da ideia de hegemonia no edifício
ideológico de Gramsci justifica essa importância fornecida a tal termo. Alguns
intérpretes do pensamento gramsciano buscam comparar sua concepção com a de
Lênin, esta muito mais embrionária e imprecisa. Para Lênin, a hegemonia seria a
“capacidade dirigente do proletariado na fase da revolução
democrático-burguesa” (GRUPPI, 1991, p. 11). Hegemonia, portanto, seria algo
realizado pelo proletariado.
A concepção de hegemonia, em Gramsci, é diferente. Para ele,
a hegemonia é a direção moral e intelectual exercida na sociedade civil
(GRAMSCI, 1987; GRAMSCI, 1988; GRAMSCI, 1982). Essa direção moral e intelectual
é realizada pela classe dominante e é dominada pela ideologia, o cimento da
dominação. Essa concepção de hegemonia é distinta da de Lênin por ser mais
geral. Lênin pensa em hegemonia apenas do proletariado e Gramsci pensa a
hegemonia burguesa e a contra-hegemonia. A concepção leninista é demasiado
restrita e ele pouco desenvolveu a abordagem sobre hegemonia. A concepção
gramsciana é mais ampla, mas tem um conjunto de elementos complementares
questionáveis (partido, conquista do poder estatal, etc.). Assim, devido nossas
divergências com Gramsci no que se refere á totalidade do seu pensamento
(VIANA, 2015b) e as consequências de sua concepção de hegemonia, entre as quais
a possibilidade de uma hegemonia proletária na sociedade civil antes da revolução
social, bem como o vínculo da hegemonia com um partido político, descartamos
sua concepção e colocamos a necessidade de constituição de uma teoria da
hegemonia.
Assim, é necessário apresentar um conceito de hegemonia e,
posteriormente, analisar seu processo de constituição, reprodução e crise, bem
como na luta cultural existente na sociedade civil. O conceito de hegemonia que
utilizamos é o de uma vigência cultural. A vigência significa que determinadas
ideias, valores, concepções, ideologias, teorias e representações cotidianas
são produzidas e reproduzidas constantemente na sociedade, o que significa que
são acatadas por uma parte da população. Uma hegemonia pode existir através da
dominação, inércia, confluência e autoformação. A dominação reproduz a afirmação
de Marx, segundo a qual, “as ideias dominantes são as ideias da classe
dominante” (MARX e ENGELS, 1988). O processo de dominação cultural ocorre via
ação do bloco dominante e suas principais formas de imposição hegemônica, como
setores da classe intelectual, capital comunicacional, aparato estatal, etc.
Isso significa que além da produção de ideias, concepções, ideologias,
representações cotidianas, o bloco dominante consegue, via seus mecanismos de
dominação, criar os produtores e reprodutores de sua hegemonia. Os produtores
são o que Marx denominou “ideólogos ativos” (MARX e ENGELS, 2002) e os
reprodutores são os “ideólogos passivos” (MARX e ENGELS, 2002). Esses dois
tipos de ideólogos, por sua posição social, acesso aos meios oligopolistas de comunicação,
financiamento do grande capital, apoio do aparato estatal, conseguem produzir e
disseminar a hegemonia burguesa no conjunto da sociedade, fazendo suas ideias
tornarem-se dominantes na sociedade civil.
Essa dominação é uma relação social, o que pressupõe
dominantes (o bloco dominante e seu conjunto de ideólogos e demais responsáveis
pela produção e reprodução de uma determinada hegemonia), seus mecanismos de
dominação (aparato estatal, capital comunicacional, educação formal, etc.) e os
dominados. Os dominados são aqueles submetidos a tais mecanismos de dominação
cultural (estudantes, constrangidos a reproduzir as ideias dominantes, na
educação formal; público do capital comunicacional; cidadãos submetidos às
exigências estatais, etc.). Os dominados são constrangidos a aceitar e
reproduzir determinada hegemonia e mesmo aqueles que resistem, não escapam
totalmente desse processo e muitos nem percebem que estão reproduzindo um
processo de dominação que até pretendem combater. A inércia é a forma como a
hegemonia se reproduz por parte daqueles que não são diretamente constrangidos,
mas que, por influência, comodismo, interesses pessoais, falta de senso
crítico, etc., acabam reproduzindo mecânica e automaticamente as ideias
dominantes, mesmo aqueles que têm certa discordância em relação a elas ou
aspectos delas.
Essa dinâmica acima citada ocorre de acordo com o processo
de hegemonia burguesa e, secundariamente, hegemonia burocrática. A hegemonia
burocrática é muito semelhante à burguesa e usa elementos idênticos em seu
processo de produção e reprodução de ideias, valores, etc. Ela se realiza em
concordância com alguns elementos da hegemonia burguesa. Isso ocorre devido ao
fato da burocracia e da intelectualidade serem classes auxiliares da burguesia
e compartilhar determinadas ideias e valores com a classe dominante e por
outros motivos secundários. Entres estes podemos citar os seus vínculos com
outros setores de sua classe mais moderados e totalmente subordinados á
hegemonia burguesa, a sua ambiguidade que busca unir elementos proletários e
burgueses, a tendência de reprodução da hegemonia dominante mesmo por parte
daqueles que se dizem opositores do capitalismo, etc. Isso serve para
reproduzir a dinâmica da dominação e inércia, só que na pequena escala dos
partidos e suas zonas de influência, que em alguns momentos históricos pode se
alargar. A inércia ocorre em diversos pontos de tais zonas de influência.
Contudo, a hegemonia proletária possui outra dinâmica de
constituição. Ela ocorre principalmente através da confluência e da
autoformação. Utilizamos o conceito de confluência no sentido de um processo no
qual ocorre uma produção cultural que expressa determinada classe social e seus
interesses. Essa produção é realizada por alguns intelectuais engajados,
círculos militantes, grupos de jovens e proletários que avançam no
desenvolvimento de sua consciência superando a hegemonia burguesa e
burocrática. Ou seja, a força propulsora da confluência intelectual que gera a
hegemonia proletária é o bloco revolucionário, o setor mais organizado,
combativo e consciente da sociedade que expressa os interesses do proletariado
e da libertação humana[2].
A confluência, ao contrário da dominação, não tem a possibilidade de
constranger as pessoas a aceitarem as ideias, valores, teorias, etc.,
apresentadas, pois não só não detém o poder financeiro, capital comunicacional,
aparato estatal, etc., como entra em confronto com as ideologias,
representações cotidianas, valores, dominantes na sociedade e não oferece
nenhuma vantagem pessoal ou retorno para os indivíduos. Como está ligado a um
projeto de futuro, não oferece vantagens no presente, o que é uma desvantagem
numa sociedade competitiva e submetida à mentalidade burguesa.
A força da confluência gerada pelo bloco revolucionário
reside em sua proximidade com a realidade (concreta, determinada e não a
realidade aparente), a capacidade explicativa da teoria, o compromisso com a
verdade, transformação social e proletariado e seu humanismo radical. Em épocas
revolucionárias, a confluência assume um caráter contagiante e assim
possibilita o avanço da hegemonia proletária no interior das classes
desprivilegiadas. Não se trata, pois, de dominação de classe (ou qualquer
outra) no plano cultural, como no caso da hegemonia burguesa e sim de expressão
do que entra em confronto com o imediato, determinado pelo capital, mas que
revela o essencial, os interesses mais profundos daqueles submetidos à
dominação e exploração. É por isso que a hegemonia proletária ocorre no
interior do bloco revolucionário e não no conjunto das classes exploradas, que
estão submetidas à hegemonia burguesa e, em menor grau, à hegemonia
burocrática. Essa possibilidade existe não só pela força do bloco dominante (e,
secundariamente, do bloco reformista), mas também pela coincidência da
hegemonia dominante com os interesses imediatos das classes desprivilegiadas. A
hegemonia proletária é coincidente com os interesses históricos e futuros das
classes desprivilegiadas. A hegemonia proletária é caracterizada por uma
cultura (teoria, representações cotidianas, valores, etc.) que apontam para a
libertação humana e autoemancipação proletária, expressando o proletariado como
classe autodeterminada e por isso não oferece vantagens imediatas e é tida como
“utopia”, no sentido pejorativo do termo. O proletariado como classe
determinada pelo capital está sob hegemonia burguesa (ou burocrática) e voltado
para sua reprodução no interior do capitalismo e como classe autodeterminada
desenvolve a hegemonia proletária, que aponta para a ruptura total e radical
com o capital, o que significa sua autoabolição como classe[3].
No entanto, a hegemonia proletária se constitui também
através da autoformação. Enquanto a confluência é um processo no qual
circulação e reprodução de ideias e experiências permite a adesão e
desenvolvimento da hegemonia proletária, a autoformação é um processo no qual
um indivíduo ou grupo de indivíduos, devido suas necessidades, valores,
interesses, realiza a iniciativa de formação por conta própria, buscando
desenvolver sua consciência voluntariamente e de forma autônoma e independente.
O processo de autoformação pode ter percalços por falta de informação e acesso
a materiais essenciais, mas permite um senso crítico mais desenvolvido e uma
autonomia intelectual que permite, desde que se tenha acesso e coerência[4],
avançar e assim reforçar a confluência geral da hegemonia proletária. Nesse
caso, a confluência e a autoformação se reforçam reciprocamente, especialmente
nos momentos revolucionários.
A Luta Cultural
A luta cultural é realizada por todas as classes sociais,
mas duas se destacam nesse processo. A burguesia, como classe dominante, e o
proletariado, como classe social explorada e revolucionária. A burguesia é,
também, a força dominante no interior do bloco dominante e esse aquartela
também suas classes auxiliares, a burocracia e a intelectualidade. A
burocracia, nesse caso, é moderada e subordinada à burguesia, tal como a
intelectualidade. Alguns setores da burocracia e da intelectualidade buscam se
autonomizar e por isso assumem posições progressistas e se tornam as principais
forças do bloco reformista, possuindo influência sobre as classes exploradas,
devido seu discurso eclético que une interesses do capital e do proletariado
(como classe determinada). A luta cultural da burguesia se estabelece através
do bloco dominante, que reúne, além do aparato estatal e toda sua capacidade de
produção, divulgação, manipulação, cultural, as grandes organizações privadas
(tais como fundações, tanto as internacionais quanto as nacionais), os partidos
políticos, as instituições estatais (universidades e escolas), os meios de
comunicação (estatais e o capital comunicacional), a maior parte da classe
intelectual, etc.
Além disso tudo, a sociabilidade capitalista e a mentalidade
burguesa são elementos determinantes na força da hegemonia burguesa e facilita
sua luta cultural, tanto contra o bloco reformista, quando isso é necessário
(pois muitas vezes e em muitos casos o que ocorre são alianças, especialmente
com a ala moderada). A hegemonia burguesa na sociedade civil tem essas
determinações. Assim, a hegemonia burguesa ocorre no conjunto da sociedade, mas
existem setores da sociedade nas quais a hegemonia pertence ao bloco reformista
ou ao bloco revolucionário, tal como mostraremos a seguir.
A luta cultural do bloco reformista varia com o contexto,
podendo ser mais forte e influente num período e menor em outro. A sua luta
cultural é realizada principalmente através das organizações burocráticas que
acabam se tornando forças intermediárias na sociedade civil, especialmente
partidos, igrejas, sindicatos, que visam se autonomizar, seja conquistando o
aparato estatal via eleição ou insurreição. Esse processo garante uma hegemonia
burocrática em certas organizações, movimentos sociais, setores da sociedade.
Assim, setores da burocracia e intelectualidade, alguns indivíduos burgueses e
de outras classes sociais, incluindo até mesmo alguns das classes
desprivilegiadas que em muitos casos acabam mudando de classe social (entrando
nas organizações burocráticas e tornando-se burocratas), são seus principais
agentes.
A luta cultural do bloco revolucionário é muito mais
limitada, pois não possui os recursos da burguesia (poder financeiro, aparato
estatal, capital comunicacional, grande quantidade de intelectuais que
funcionam como ideólogos ativos e passivos, grandes organizações burocráticas,
aparato educacional estatal, aparato comunicacional estatal, capital
educacional, etc.) e nem os do bloco reformista (aparatos partidários e sindicais,
organizações burocráticas, grande quantidade de burocratas e intelectuais como
dirigentes e ideólogos, etc.). Esse, além de maior parte de seus integrantes
não possuírem recursos financeiros (alguns nem mesmo para sua própria
sobrevivência), organizações burocráticas, etc., e ter poucos intelectuais e
indivíduos oriundos das classes privilegiadas, ainda realiza uma produção
cultural que não é adequada à sociabilidade e mentalidade dominantes e nem
aponta para a resolução dos problemas imediatos, bem como não oferece vantagens
pessoais, além o seu caráter essencialmente crítico-revolucionário. Mas, apesar
disso, ele existe e efetiva uma luta sob formas alternativas e tem a vantagem
de possuir compromisso com a verdade e com a transformação social, o que acaba
aglutinando setores da sociedade, bem como a produção teórica que, quanto mais
desenvolvida, aponta para uma análise mais profunda da realidade e crítica das
ideologias, imaginários (representações cotidianas ilusórias), projetos
alternativos de sociedade, etc.
Os agentes do bloco revolucionário são algumas parcelas da
juventude, círculos militantes, intelectuais engajados, proletários e
indivíduos mais politizados das classes desprivilegiadas. A fonte dos
integrantes do bloco revolucionário advém de determinadas classes sociais,
especialmente no período da juventude, que é quando o pertencimento de classe é
via família, a não ser nos casos dos jovens das classes desprivilegiadas. Além
de parcela da juventude, proletários autodidatas e formados nas lutas de
classes, indivíduos mais politizados e atuantes das classes desprivilegiadas em
geral, intelectuais engajados (sendo uma parte de origem proletária e outra
parte oriunda de diversas outras classes sociais), são os outros componentes do
bloco revolucionário.
O bloco revolucionário, ao expressar a hegemonia proletária
e apontar para o novo, um projeto alternativo de sociedade, a autogestão social[5],
acaba se tornando atrativo para muitos indivíduos, inclusive alguns
intelectuais, tal como no caso de Pannekoek, Korsch e vários outros, e outros
indivíduos oriundos de outras classes privilegiadas, tal como no caso de Marx.
Assim, esses indivíduos e os setores da sociedade acima mencionados, permitem
emergir o que Marx denominou como “representantes intelectuais do proletariado”
(MARX, 1986). Esses são fundamentais na luta cultural pela hegemonia proletária
e, portanto, para a luta operária. A produção intelectual desse setor composto
pelos representantes intelectuais do proletariado, ao se unir com as lutas operárias
concretas, acaba transformando a teoria em “força material” (MARX, 1968),
realizando a fusão entre marxismo (teoria) e movimento operário (LUXEMBURGO,
2009). A quantidade de representantes intelectuais do proletariado aumenta, bem
como a qualidade e radicalidade (esta sendo condição daquela) de suas produções
intelectuais, em momentos de crise e ascensão da luta revolucionária do
proletariado. Os intelectuais vinculados à classe dominante, quando possuem
suas condições de vida deterioradas ou em épocas de crise e revolução, tendem a
radicalizar e fornecer elementos de cultura e educação ao proletariado,
aumentando o número de intelectuais engajados e diminuição de intelectuais
atrelados ao capital[6].
Além do
mais, como já vimos, com o progresso da indústria, frações inteiras da classe
dominante são lançadas no proletariado, ou pelo menos ameaçadas em suas
condições de existência. Também elas fornecem ao proletariado uma massa de
elementos de educação. Finalmente, nos períodos em que a luta de classes se
aproxima da hora decisiva, o processo de dissolução da classe dominante, de
toda a velha sociedade, adquire um caráter tão violento e agudo que uma pequena
parte da classe dominante se desliga dela e se junta à classe revolucionária, à
classe que traz o futuro em suas mãos. Portanto, assim como outrora uma parte
da nobreza passou-se para a burguesia, hoje uma parte da burguesia passa-se
para o proletariado, especialmente uma parte dos ideólogos burgueses que
conseguiram alcançar uma compreensão teórica do movimento histórico em seu
conjunto (MARX e ENGELS, 1988, p. 75).
Quando, nesse contexto, ocorre uma produção cultural
excepcional, cujo exemplo clássico e maior é Marx, há uma forte contribuição
para a luta cultural do bloco revolucionário, pois traz esclarecimento,
autoesclarecimento, crítica das ideologias (o que permite ir além das
ambiguidades e da confusão entre projeto revolucionário e reformismo ou
conservadorismo), compreensão do capitalismo, seu desenvolvimento e tendências,
bem como reflexões sobre a sociedade futura, o que permite superar ilusões e
elaborar estratégias mais eficazes e assim intervir de forma mais consciente,
coerente, organizada e eficaz na luta de classes.
A luta cultural pode e deve ocorrer sob as mais variadas
formas, tal como concretamente ocorre. A teoria, a arte, o humor, a propaganda
generalizada, a crítica, os projetos alternativos, são formas de luta cultural,
bem como isso pode e deve ser feito sob os mais variados meios: livros,
revistas, panfletagens, boletins, obras de arte (música, poesia, contos, etc.),
uso da internet, etc.
Assim, é necessário compreender que a luta cultural é um
elemento fundamental da luta de classes em geral e da luta proletária em
particular. A luta cultural do bloco revolucionário é fundamental para a
hegemonia proletária. Nesse sentido, o conceito e significado de hegemonia
proletária se torna fundamental, além de ser necessário esclarecer sua
distinção em relação à concepção gramsciana.
A Hegemonia Proletária
A luta cultural visa promover um avanço da luta operária e
das demais classes desprivilegiadas e para isso é necessário a hegemonia
proletária. A hegemonia proletária é a vigência cultural marcada pela
confluência e autoformação que expressa os interesses históricos do
proletariado revolucionário. Nesse sentido, é preciso esclarecer que não se
trata da hegemonia da classe proletária tal como existe na sociedade
capitalista, ou seja, determinada pelo capital, pois nesse caso está sob
hegemonia burguesa ou burocrática. É por isso também que a hegemonia
proletária, em momentos não revolucionários, só ocorre em setores da sociedade,
que varia de acordo com as lutas de classes, produção cultural, entre outros
processos sociais. Ela é mais comum em certos setores da juventude, da
intelectualidade (os intelectuais engajados), círculos militantes e
proletários, tendências revolucionárias dos movimentos sociais, entre outras
possibilidades mais raras. A tese gramsciana de conquista da hegemonia na
sociedade civil antes da revolução social é uma ilusão e só tem sentido em sua
abordagem, que aponta para uma hegemonia burocrática (MONDOLFO, 1967; VIANA,
2015b; GARCIA, 1980).
A hegemonia proletária na sociedade civil só emerge como
possibilidade em épocas de radicalização da luta de classes, especialmente nos
momentos revolucionários. Porém, mesmo nesse caso não é uma hegemonia
automática e tão estabelecida como a burguesa. Ela é uma possibilidade e para
se concretizar depende da luta cultural anterior, antes do momento
revolucionário, da força das classes sociais, da produção cultural anterior e
atual. A sua força depende de sua capacidade de dar respostas, apontar
estratégias e soluções, de crítica e superação teóricas das ideologias,
expressar os interesses do proletariado no sentido de conseguir contemplar as
tarefas históricas e imediatas postas no processo revolucionário.
Isso depende do processo cumulativo que se concretiza no
decorrer da história das lutas de classes, envolvendo diversas determinações e
processos sociais. A produção intelectual, teórica, pode ser marginalizada,
deformada, esquecida, etc., e precisa ser retomada, desenvolvida e ampliada. Da
mesma forma, as experiências revolucionárias e o saber proletário também são
submetidos à mesma dinâmica. As experiências autogestionárias e as formas de
auto-organização e autoformação desenvolvidas precisam ser preservadas,
desenvolvidas, atualizadas.
Quando não são preservadas, precisam ser recuperadas. No
entanto, isso precisa ser realizado sob forma crítica-revolucionária, ou seja,
compreendendo os limites históricos de cada contribuição. A contribuição de
Marx não poderia abarcar uma análise da classe intelectual, em processo de
formação em sua época, nem apontar claramente os perigos da contrarrevolução
burocrática, apesar de suas críticas à burocracia, pois o surgimento da
socialdemocracia e bolchevismo é posterior, bem como suas ações
contrarrevolucionárias. A experiência da Revolução dos Cravos, por sua vez,
deve ser entendida em seu contexto e limite, tal como as demais revoluções proletárias
inacabadas. Isso se deve ao fato de seu próprio inacabamento e que por isso a
mera apologia sem a compreensão dos seus limites, permite reproduzir os mesmos
equívocos que, entre outras determinações, permitiram a sua derrota. A
afirmação de que os trabalhadores portugueses não deveriam decretar autogestão
e formação dos conselhos de trabalhadores (MAILER, 1978), é equivocada, apesar
dos diversos acertos do autor. O problema não estava na formação dos conselhos
de trabalhadores e autogestão das fábricas e sim ficar apenas nisso, não
conseguir das os passos seguintes que permitiram a superação do capital e do
aparato estatal. Essa, inclusive, é uma reflexão fundamental para as lutas
proletárias do futuro. Assim, evitar a apologia, que significa aceitar os
limites e reproduzir os equívocos, bem como evitar a crítica sem uma
perspectiva autogestionária, revolucionária, comunista[7]. A
perspectiva autogestionária é a do proletariado como classe autodeterminada e
da sociedade futura e não do proletariado que fica no meio do caminho, apesar
de seu avanço e autonomização. Isso, inclusive, deveria ser objeto de reflexão
dos analistas para avaliar as revoluções proletárias inacabadas, pois o grau de
inacabamento é variável. O inacabamento da Revolução Portuguesa é muito maior
do que da Revolução Russa, para comparar apenas dois exemplos. O estágio da
luta proletária em Portugal ficou num grau muito mais limitado do que o russo.
Esses processos históricos remetem ao caso da hegemonia
proletária. No caso russo, a hegemonia proletária era mais forte e presente nos
meios operários. Já existia um embrião com a divulgação do pensamento de Marx e
com a produção de Makhaïsky, entre outros elementos (incluindo os vislumbres de
Parvus e do Jovem Trotsky, para citar mais alguns exemplos). O desencadeamento
da revolução, no entanto, não marcou um grande desenvolvimento desta hegemonia
e o bolchevismo ocupou o lugar do proletariado, tanto cultural quanto político.
O lugar do proletariado em relação ao político seria a generalização da
autogestão e destruição do aparato estatal, enquanto que isso não ocorreu e
assim o que existiu foi uma dualidade política da autogestão da produção e
manutenção do poder estatal burguês. O bolchevismo aproveitou a indefinição (o
poder estatal burguês não conseguiu destruir os sovietes – conselhos operários
– formas de auto-organização dos trabalhadores que também efetivava a gestão da
produção, e o proletariado não conseguiu destruir o aparato estatal, no período
que vai de fevereiro a outubro) e foi buscando a hegemonia no movimento
operário desde abril e, ao conseguir um significativo apoio proletário,
conseguiu a tomada do poder estatal burguês.
Nesse sentido, a hegemonia proletária era frágil e restrita
a círculos limitados, mas com um grande potencial, pois as lutas e formas
organizativas apontavam para sua concretização prática. No entanto, o
bolchevismo exerceu uma função contrarrevolucionária e foi constituindo uma
hegemonia burocrática e enfraquecendo a hegemonia proletária e sua tendência de
fortalecimento. Isso se deve ao fato da fraqueza do bloco revolucionário, que
não conseguiu acompanhar as lutas proletárias e tinha dificuldade de
identificar no bolchevismo uma tendência contrarrevolucionária.
No caso da Revolução Portuguesa, o que ocorreu foi
diferente. Já existiam mais elementos propícios para uma hegemonia proletária,
pois a própria experiência da contrarrevolução bolchevique e as práticas do
bloco reformista já apontavam para esse processo. Os trabalhadores, em grande
parte, já recusavam as práticas bolchevistas. No entanto, não tinha projeto
alternativo, o que revela, novamente, a fraqueza do bloco revolucionário. Este,
inclusive, foi formado, em sua maior parte, no calor da luta. Logo, além da
fraqueza organizativa e quantitativa, ainda tinha debilidade teórica e
estratégica. A reflexão pós-revolução de Phil Mailer (1978) e Maurice Brinton
(Apud MAILER, 1978), este do grupo inglês Solidarity, demonstra a sua
permanência mesmo depois das lições da luta operária em Portugal. As outras revoluções
proletárias inacabadas mostram elementos semelhantes aos dois exemplos aqui
aludidos.
A partir destas reflexões, é possível discutir dois aspectos
fundamentais para a hegemonia proletária: a sua dinâmica cumulativa e a
estratégia para fortalecê-la. A dinâmica cumulativa da hegemonia proletária
precisa ser reforçada em momentos não-revolucionários, pois assim permite um
maior avanço pré-revolucionário e, portanto, no momento revolucionário, em
vários aspectos (rapidez, qualidade, força, etc.). É por isso que a produção e
divulgação teórica é um dos elementos fundamentais nesse processo. Ao lado
disso, o aumento do número de teóricos é fundamental. O crescimento da
quantidade (e qualidade, o que é uma tendência ocorrendo aumento quantitativo)
de intelectuais engajados é fundamental. O mesmo vale para os círculos, grupos
e organizações revolucionárias, que não só podem e devem contribuir com a
produção e divulgação teórica, quanto também na sua divulgação sob forma mais
simples junto à grande maioria da população, ou seja, nas classes
desprivilegiadas. Nesse campo, diversas outras formas de produção cultural
ganham espaço, como artes (música, histórias em quadrinhos, cinema, etc.),
formas de propaganda e divulgação (panfletos, humor, pichações, etc.), entre
diversas outras.
No entanto, a produção teórica assume uma importância
fundamental, já que ela é não só fonte de compreensão da realidade
contemporânea e base das críticas das ideologias e da força hegemônica burguesa
(bloco dominante e hegemonia burguesa) e burocrática (bloco reformista e
hegemonia burocrática), como também base necessária para a elaboração de uma
estratégia revolucionária, o que é essencial para o bloco revolucionário e luta
proletária. O processo de divulgação, propaganda, luta revolucionária, ganham
em força e eficácia através de uma consciência correta da realidade e percepção
mais ampla da complexidade da luta de classes na sociedade capitalista. As
minorias revolucionárias devem se ampliar em quantidade e consciência e ao
fazê-lo, reforçam o processo cumulativo de autoformação e desenvolvimento do
bloco revolucionário[8].
A fraqueza da hegemonia proletária significa força da
hegemonia burocrática ou burguesa. Esse é um obstáculo tanto para o desencadear
de uma revolução como para sua vitória. As manifestações de junho de 2013 no
Brasil mostrou justamente isso. A hegemonia proletária era muito diminuta,
atingindo a pouquíssimos indivíduos e grupos. A maior parte do bloco
revolucionário era formada por militantes sem formação mais profunda, por
intelectuais e ativistas rebeldes e sem grande percepção teórica ou
estratégica. O bloco revolucionário, como um todo, até que aglutinava um
conjunto razoável de indivíduos, mas sua ala semiproletária era a maioria
esmagadora e por isso não contribuiu efetivamente com a passagem da luta
espontânea para uma luta autogestionária. Alguns poucos tentaram analisar
corretamente a situação e propor um caminho que apontasse para a hegemonia
proletária (MARQUES, 2013; MAIA, 2013; VIANA, 2013a; VIANA, 2013b), mas não foi
suficiente forte para conseguir algum resultado, pois o outro setor do bloco
revolucionário preferia o obreirismo e praticismo, e o recuo veio rapidamente. A falta de hegemonia proletária
provocava, portanto, falta de estratégia revolucionária por parte da maioria do
bloco revolucionário e, ao mesmo tempo, falta de objetivo para as classes
desprivilegiadas e demais envolvidos nas manifestações, o que inclui falta de
um projeto alternativo de sociedade.
Assim, é necessário perceber que o combate à hegemonia
burguesa e burocrática é algo necessário e faz parte das tarefas da hegemonia
proletária, incluindo a luta contra a social-democracia e bolchevismo. No
entanto, isso é insuficiente e até problemático se ficar apenas no negativismo,
no “antitudo” (como alguns que se diziam antimercado, antiestado, anticapital,
antiparlamento, etc., e não eram a favor de nada, ou seja, não apresentam
nenhuma alternativa). Isso serve apenas para perder espaço que será ocupado
pelos setores progressistas (bloco reformista) que apresentarão proposições,
propostas, promessas. As classes desprivilegiadas, sem projeto alternativo,
podem ficar perdidas mesmo se autonomizando e não começar a constituir o novo.
Nesse sentido, a utopia[9] é
uma necessidade da luta proletária e a própria teoria além de expressão da
realidade concreta é também consciência antecipadora, pois percebe no real sua
negação, suas tendências, suas potencialidades e sua finalidade é a
transformação social. A hegemonia proletária, que a hegemonia da “classe que
traz o futuro em suas mãos” (MARX e ENGELS, 1988, p. 36), significa a vigência
de um projeto alternativo de sociedade nos meios em que existe. A juventude, um
dos setores mais atuantes e presentes no bloco revolucionário, se afastou do
projeto utópico com a crise do bolchevismo e emergência da hegemonia
pós-estruturalista, bem como intelectuais e outros setores da sociedade. Isso
precisa ser revertido, bem como as deformações do projeto autogestionário
(democratismo, economia solidária, etc.) devem ser combatidos.
Esses aspectos são fundamentais e por isso precisam ser
recapitulados: a importância da solidez teórica (com sua ampliação quantitativa
e qualitativa), a propaganda generalizada e divulgação da teoria, a existência
de um projeto utópico e sua ampla circulação na sociedade. Sem dúvida, cada um
destes elementos possuem diversas formas e elementos que precisariam ser
aprofundados e detalhados, o que já foi esboçado e apresentado em diversas
oportunidades, e que aqui cabe apenas destacar e colocar sua importância para a
hegemonia proletária.
Nos momentos revolucionários, esse processo se amplia, tanto
tendencialmente quanto concretamente. Mas para que já tenha uma base forte que
contribua com a vitória do processo revolucionário, quanto mais enraizada na
sociedade, quanto mais forte for o bloco revolucionário e mais coerente,
organizado, consciente, ele for, mais a possibilidade de revolução proletária
vitoriosa e libertação humana se torna próxima e concreta.
Regimes de Acumulação, Luta de Classes e
Renovação Hegemônica
A hegemonia burguesa precisa sempre se renovar com as
mutações dos regimes de acumulação. Denominamos esse processo como “renovação
hegemônica”. A renovação hegemônica é formal e substancial, que são
inseparáveis. O aspecto formal da renovação hegemônica pode ser entendida como
renovação linguística, caracterizada pela formação de uma novilíngua (um novo
léxico ligado às ideologias emergentes) e ressignificação de termos de uso
anterior. Assim, emergem novos termos, como “globalização”, “subjetividade”,
“pós-modernidade”, “multiculturalismo”, “gênero”, e, ao mesmo tempo, outros
termos são mantidos mas sob novo significado, tal como “participação”, que
tinha um caráter no período integracionista e ganha novo significado no período
neoliberal ou “capitalismo” quando é inserido no interior de reformulações
ideológicas como em “capitalismo cognitivo”. Essa renovação linguística,
formal, apenas concretiza a renovação substancial, expressa no conteúdo novo
que emerge. Assim, “globalização” é um termo novo que foi apresentado com
fatalismo e determinismo, invertendo e naturalizando a realidade (VIANA, 2009;
BOURDIEU e WACQUANT, 2013). Esse processo de renovação hegemônica tem o
objetivo de justificar, legitimar, naturalizar, fortalecer e/ou impor o novo
regime de acumulação e garantir a estabilidade do capitalismo.
Os regimes de acumulação expressam mutações no interior do
capitalismo, no qual o modo de produção capitalista se reproduz em seus
elementos essenciais (inclusive sua necessidade de desenvolvimento) e ele e a
sociedade capitalista, em sua totalidade, se altera formalmente. O regime de
acumulação é um determinado estágio da acumulação capitalista, no qual o
processo de valorização (expresso nas formas de organização do trabalho), de
forma estatal e exploração internacional se organizam visando garantir a
reprodução das relações de produção (VIANA, 2009; VIANA, 2015a). Na história do
capitalismo, existiram quatro principais regimes de acumulação nos países
imperialistas: o extensivo (da revolução industrial até final do século 19); o
intensivo (que vai do final do século 19 até 1945); o conjugado (de 1945 a
1980) e o integral, que é o atual e que tem sua constituição a partir de 1980.
Em cada regime de acumulação, ocorre uma mutação cultural e
a mentalidade dominante, capitalista, se mantém, mas muda e assume formas que
revelam alterações na hegemonia burguesa. Como isso já foi abordado
anteriormente, passaremos a tratar apenas da renovação hegemônica que ocorre
com a emergência de um novo regime de acumulação. A época do regime de
acumulação extensivo foi marcado pela hegemonia burguesa renovada, que
suplantou as ideologias e concepções burguesas anteriores, tal como o
iluminismo[10].
A renovação hegemônica significa a suplantação de uma hegemonia por outra.
Nesse momento histórico, o positivismo emerge e traz consigo o cientificismo e
outros elementos inovadores, apesar de reproduzir alguns elementos presentes no
iluminismo, tal como aspectos da obra de Montesquieu e outros que antecederam
algumas teses positivistas. É a época de surgimento das ciências humanas e da
proliferação de “novas ciências”. No plano político, a renovação hegemônica
aponta para o liberalismo e sua concepção de livre mercado, concorrência, etc.
e valoração do indivíduo, concebido como o indivíduo burguês, tal como o de
Bentham, criticado por Marx (1988).
A renovação hegemônica durante o regime de acumulação
intensivo suplanta a hegemonia anterior. O positivismo e o cientificismo mantém
sua força, mas sob novas formas. O darwinismo ganha força e passa a ser usado
para justificar o neocolonialismo e imperialismo (posteriormente recebe o
rótulo de “darwinismo social”). No plano político, as ideologias
liberal-democráticas avançam e também a ideologia social-democrata e, após
1917, a ideologia bolchevique. A renovação hegemônica durante o regime de
acumulação conjugado já aponta para a hegemonia do funcionalismo (EUA),
estruturalismo (França e Europa Ocidental), e, com menos impacto, a “teoria”
(ideologia) dos sistemas, existencialismo, etc. No plano político, a ideologia
estatista, tanto keynesiana quanto social-democrata, ganha força, ao lado de
outras ideologias menos fortes, como eurocomunismo. No capitalismo subordinado,
o bolchevismo possui mais força ao lado do nacionalismo e outras ideologias.
A crise do regime de acumulação conjugado faz nascer a nova
hegemonia de acordo com a ascensão do novo regime de acumulação, o integral,
através do pós-estruturalismo nas ciências humanas e pós-vanguardismo nas
artes, ideologicamente chamados de “pós-modernismo” e no plano político o
neoliberalismo assume a posição principal. Essa nova hegemonia vai se
generalizando, e como em todos os casos anteriores, vão invadindo até mesmo o
pensamento oposicionista. Esse é o momento histórico atual e por isso ganha
importância fundamental sua compreensão para a luta e hegemonia proletárias.
O desafio hoje é justamente combater a nova hegemonia
burguesa através de uma luta cultural proletária, criticando desde suas formas
complexas, ideológicas, às suas reproduções ilusórias na forma de
representações cotidianas, para assim fazer avançar a hegemonia proletária.
Essa luta vem sendo desenvolvida no interior do bloco revolucionário e começou
a ganhar maior folego a partir de 1999 e de lá para cá teve alguns altos e
baixos, sendo que o aumento da quantidade de grupos e indivíduos
oposicionistas, em sua maioria, não parte da perspectiva proletária e alguns,
que possuem tal pretensão, apresentam um vínculo muito limitado, especialmente
devido às influências das ideologias dominantes e dogmatismo. Nos últimos anos,
esse processo de avanço do bloco revolucionário vem ocorrendo em ziguezague,
com avanços e recuos, sendo que a classe dominante vem sendo habilidosa em criar
divisionismo no interior dos setores insatisfeitos da sociedade.
O caso exemplar é o brasileiro, no qual as manifestações
populares de 2013, que tinha tudo para desembocar numa politização e
fortalecimento do bloco revolucionário, acabou gerando um recuo e desvio da
luta para questões de grupos ao invés de classes e nisso até os partidos ditos
de “esquerda” colaboraram e continuam colaborando, seguindo a agenda eleitoral
secundária das eleições de 2014. Assim, duas polarizações que a classe
dominante no Brasil conseguiu impor, a eleitoral (PT versus PSDB, que continua
após as eleições com a proposta de Impeachment
da presidente eleita) e a entre “moralistas conservadores” (Igrejas e setores
da sociedade a favor da família, religião, etc.) e “moralistas progressistas”
ou mesmo “imoralistas” (os setores “progressistas”) (VIANA, 2015e).
Assim, a situação, no Brasil, tal como em outros países,
depende da força e ação do bloco revolucionário e do movimento operário. O
primeiro, além de sua divisão interna e sua parte proletária ser ainda
demasiadamente fraca, precisa superar seus limites e contribuir mais
efetivamente com as lutas operárias. O segundo, a grande esperança, envolvido
pela hegemonia burguesa e burocrática, não vem demonstrando iniciativa, a não ser
em casos isolados e setores específicos, o que dificulta a hegemonia proletária
e o trabalho do primeiro.
Considerações Finais
A hegemonia proletária é um horizonte possível, mas depende
da luta de classes e da capacidade do proletariado e do bloco revolucionário de
tomar iniciativa e avançar, tanto no âmbito teórico e cultural, quanto no
político e organizativo. Isso vem ocorrendo, vagarosamente, mas que, apesar de
seus limites, pode contribuir com o processo cumulativo que, por sua vez, pode
dar um salto com uma nova ascensão das lutas. Isso não parece distante em
alguns países, tal como o Brasil, pois a crise da política institucional e a
crise financeira tendem a fortalecer essa tendência. O trabalho de toupeira
pode, enfim, emergir e fortalecer a tendência de uma nova vaga revolucionária.
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VIANA, Nildo. As Lutas de Classes no
Brasil (2013-2015). Revista Espaço Livre. Vol. 10, num. 20, jul./dez. de 2015e.
*Professor
da Faculdade de Ciências Sociais e Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB e pós-Doutor pela USP. Autor de
diversos livros, entre os quais “As Esferas Sociais” (Rio de Janeiro: Rizoma,
2015); “O Capitalismo na Era da Acumulação Integral” (São Paulo: Ideias e
Letras, 2009); “Os Movimentos Sociais” (Curitiba: Prismas, 2016), entre outros.
[1] No
presente texto, classes desprivilegiadas significa as classes que estão
submetidas ao processo de exploração, dominação, marginalização, etc.,
incluindo o proletariado, o campesinato, o lumpemproletariado, os artesãos, os
subalternos, etc. O termo classes privilegiadas, por sua vez, remete à classe
capitalista (a burguesia e suas diversas frações) e suas classes auxiliares
(burocracia e intelectualidade), latifundiários e outros que vivem da
exploração ou de rendimentos doados pela classe dominante. Para uma análise das
classes sociais no capitalismo contemporâneo, sugerimos a leitura de nosso
livro A Teoria das Classes Sociais em
Karl Marx (VIANA, 2012), que além da parte que busca reconstituir a
concepção de classes de Marx, aponta, em sua segunda parte, para alguns
desenvolvimentos e desdobramentos das classes sociais de acordo com o
desenvolvimento capitalista.
[2] O
que não significa que não existem subdivisões, aliás, como também ocorre no
bloco dominante e no bloco reformista. O bloco revolucionário é composto por
uma ala proletária, coerente e mais organizada e fundamentada, e uma ala
semiproletária, que inclui aqueles que estão na fronteira entre o bloco
reformista e o bloco revolucionário, os rebeldes, os insatisfeitos, que, no
entanto, não possuem uma maior coerência (de classe) e maior capacidade organizativa
e desenvolvimento da consciência revolucionária. Nesse campo também se
encontram muitos proletários que, apesar do pertencimento de classe, não
ultrapassam o nível da revolta e insatisfação, gerando recusa sem um projeto
alternativo de sociedade ou uma percepção mais desenvolvida da mesma. A
confluência, nesse caso, acaba se dividindo em dois campos, sendo que a ação
recíproca de ambos permite deslocamentos individuais e até grupais. Em épocas
de estabilidade, a ala semiproletária é amplamente predominante e nos momentos
revolucionários a ala proletária se torna hegemônica, fortalecendo a hegemonia
proletária internamente e externamente. Isso, obviamente, depende de alguns
elementos que podem facilitar ou dificultar tal processo, entre os quais a
produção teórica, a capacidade de iniciativa, etc., dos setores da ala
proletária.
[3] É
por isso que o reboquismo (e o obreirismo, uma de suas formas de manifestação)
é uma reprodução da hegemonia burguesa no interior do movimento operário, já
que fica nos limites do proletariado como classe determinada pelo capital.
[4] Aqui se trata de coerência valorativa, de interesses
e sem apego a doutrinas e concepções num sentido dogmático e sem cair, também,
no ecletismo ou amálgama.
[5]
Autogestão social aqui tem o mesmo significado que “comunismo”, para Marx (e
não para os pseudomarxistas e não se confunde com formas de capitalismo
reformado, seja o proposto pela social-democracia, seja o capitalismo estatal
implantado pelo bolchevismo).
[6] Os
intelectuais engajados são aqueles que assumem os compromissos apontados por
Sartre (1994) e se distinguem de outros intelectuais, que denominamos
hegemônicos, dissidentes, venais, amadores e ambíguos (VIANA, 2015c; VIANA,
2015d).
[7]
Essa concepção é muito comum, principalmente no caso dos bordiguistas, que
sempre criticam pela falta de um “programa comunista”, que, no entanto, eles
nunca explicitam o seu significado e o que é isto realmente. No fundo, o
bordiguismo com seu economicismo regride às concepções abstratas de Marx antes
da Comuna de Paris (MARX e ENGELS, 1988), ao invés de avançar, ou seja, partir
do estágio superior da teoria marxista original (de Marx) da autogestão
inspirada na Comuna de Paris, e a desenvolver, acabam regredindo e se mantendo
num nível abstrato de compreensão do comunismo e assim realiza uma
pseudocrítica aos comunistas de conselhos e experiências revolucionárias do
proletariado, tal como se vê em Jean Barrot e Denis Authier (1975;1978).
[8]
Isso também serve ao indivíduo, tanto em sua luta quanto vida cotidiana. Assim,
todo militante revolucionário que queira algo mais do que benefícios pessoais
ou expressar revolta, deve aprofundar as pesquisas e reflexões, apesar dos
inúmeros obstáculos para isso. Para alguns indivíduos, o pertencimento de
classe é um obstáculo (falta de tempo, cansaço, etc., para os que são
proletários e de outras classes desprivilegiadas), a dificuldade de acesso a
teoria, os bloqueios psíquicos que acometem outros, o dogmatismo, as
influências sociais (das ideologias vigentes e da hegemonia burguesa ou
burocrática, etc.). No entanto, a luta deve ser permanente nesse caso e também
é necessário colocar como uma das prioridades de quem luta por uma nova
sociedade, o que significa que é necessário abandonar os aparelhos tecnológicos
(celulares, computadores, videogames, etc.) e meios de comunicação (TV,
Internet, etc.) que absorvem grande parte do tempo que poderia ser gasto de
forma mais rica e enriquecedora, tal como na formação intelectual.
[9]
Aqui usamos utopia no sentido blochiano de “utopia concreta”, sendo o marxismo
a sua forma mais desenvolvida de manifestação.
[10]
“Suplantar”, aqui, significa conservar e transformar ao mesmo tempo. É um
equivalente ao termo hegeliano “superação” (aufheben),
que significa, simultaneamente, guardar e abolir, ou conservar e finalizar. Ou
seja, suplantar significa uma mutação parcial, uma mudança que não é total,
pois conserva elementos do que foi suplantado. Isso difere da categoria
marxista de superação, que significa abolição, no sentido radical e total
(VIANA, 2015d).
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Hegemonia e Luta Cultural. Sociologia em Rede, Ano 05, num. 05, 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rsr/article/view/4viana5b/261
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Hegemonia e Luta Cultural. Sociologia em Rede, Ano 05, num. 05, 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rsr/article/view/4viana5b/261
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