ORGANIZAÇÃO E TEORIA
Nildo Viana
A organização é um termo que, como
quase todos, é polissêmico. Apenas uma rápida olhada nos sinônimos disponíveis
nos dicionários e poderemos ver: aparelhamento, arranjo, preparo, aparelho,
coordenação, associação, clube, liga, cadastramento, composição, confecção,
tessitura, contextura, estrutura, organismo, formação, instauração, teia,
instituto. O significado da palavra pode, por conseguinte, remeter a diferentes
fenômenos, tal como a) ato ou efeito de organizar; b) modo pelo qual um ser
vivo é organizado, conformação, estrutura; c) modo pelo qual se estrutura um
sistema; d) associação ou instituição com objetivos definidos; e) organismo; f)
a designação oficial de certos organismos (ONU – Organização das Nações Unidas,
por exemplo); g) Planejamento ou preparo (a organização de uma reunião, por
exemplo).
Indo além dos dicionários, é
necessário entender o que significa uma organização no sentido que usaremos a
palavra na presente obra. Organização é uma associação voluntária de pessoas
que formam um grupo que possui uma finalidade comum e busca atingi-lo através
de um planejamento de suas atividades e tomadas de decisão. Assim, uma
organização, no sentido aqui utilizado, pressupõe um coletivo, um grupo de pessoas,
associadas voluntariamente (e não obrigatoriamente) ou não (no caso de algumas
organizações, nas quais os indivíduos são constrangidos a participar sem querer
ou por necessidade) que possui um projeto, uma finalidade, compartilhada por
todos (pelo menos no plano do discurso), que busca concretizar através de um
planejamento, o que implica atividades e decisões. No caso das organizações
políticas, ou seja, que agrupa militantes políticos, geralmente elas são relativamente
voluntárias e cujo objetivo é, em muitos casos, compartilhado por todos.
Obviamente que o caráter voluntário e o compartilhamento de objetivos são maior
em pequenas organizações e não-burocráticas, enquanto que nas grandes
organizações burocráticas isso é abolido.
A partir disto é possível pensar
várias formas de organização. O que nos interessa aqui é a organização dos
militantes políticos e esta assume duas formas principais: a organização
burocrática e a auto-organização. As organizações burocráticas serão abordadas
no próximo capítulo. Neste capítulo, apresentaremos a concepção marxista sobre
a questão da organização dos militantes revolucionários.
A primeira questão que deve ser
analisada é o caráter voluntário das organizações revolucionárias e também em
outras organizações políticas. Isso significa que as pessoas que participam de
uma organização política não são constrangidas a participar, elas o fazem por
vontade própria. Claro que tal vontade própria, dependendo da organização (principalmente
aquelas que fazem um “discurso” revolucionário, mas no fundo se adapta à
sociedade capitalista abandonando todo projeto revolucionário e mais ainda as
que não se dizem revolucionárias), pode ser produzida inclusive através de
várias formas de pressão. Essa vontade própria pode ser mais ou menos
refletida, pode se fundamentar apenas na concordância com a finalidade, o
projeto, da organização, ou por outros motivos, tal como relações de amizade,
busca de pessoas para conviver (fuga da solidão), interesses financeiros,
sexuais, acadêmicos, político-eleitoral, etc. ou vários destes motivos
reunidos.
O grau de reflexão do indivíduo que
adere a uma organização pode ser maior ou menor, bem como a concordância com a
finalidade. Em alguns casos, a concordância com a finalidade, o projeto ou
objetivo final, da organização é apenas pretexto ou justificativa para sua
entrada e/ou permanência. Em síntese, o caráter voluntário da entrada ou
permanência nas organizações é mais ou menos reflexivo dependendo do indivíduo
e seu vínculo e relação com a finalidade da organização também é variável.
Claro é que isto também não é estático, pois uma pessoa pode aderir a uma
organização por determinado motivo (por exemplo, interesse financeiro) e depois
adotar a finalidade da organização e abandonar a motivação inicial. Também pode
entrar numa organização por acreditar no seu objetivo declarado (por exemplo,
luta pelo socialismo) e pode posteriormente se adequar ao seu objetivo real
(ganhar eleições, por exemplo) ou, se não houver tal adequação, abandonar a
organização. Também é possível uma pessoa entrar numa organização por concordar
com a finalidade e mudar a este respeito e permanecer devido relações afetivas
e de amizade, bem como entrar por relações afetivas e de amizade sem grande
concordância com a finalidade e passar a concordar com esta e se tornar a
motivação fundamental da permanência.
Mas o que nos interessa aqui é o
momento da reflexão, ou seja, é a pessoa que adere a uma organização
voluntariamente sem fazer grandes reflexões, o que tem consequência para a
própria organização. A reflexão é fundamental para que não haja reprodução
mecânica do estabelecido, conformismo, entre outros elementos, no caso de uma
organização revolucionária. O momento da reflexão, portanto, é fundamental numa
organização revolucionária.
As organizações revolucionárias que
existiram na história do capitalismo foram produzidas por diversos militantes e
pensadores. A reflexão sobre a organização revolucionária, no caso do marxismo,
foi bastante incipiente. O motivo disso se deu, principalmente, pela base da
teoria marxista da revolução proletária: “a emancipação da classe operária é
obra da própria classe operária”. Sendo assim, os militantes revolucionários e
sua organização não são o elemento fundamental como ocorre numa organização
burocrática, tal como o partido leninista que se julga uma vanguarda e,
portanto, a questão organizacional é o próprio centro da reflexão sobre
revolução.
Apesar de nunca ter sido o aspecto
central do marxismo, ao contrário do bolchevismo, a questão da organização
revolucionária foi analisada e discutida por alguns marxistas. A reflexão sobre
organização revolucionária centrou-se sobre dois aspectos principais: a relação
com o proletariado, a classe revolucionária de nossa época, e o objetivo da
organização.
Marx apontou alguns elementos sobre
a questão da organização. Não cabe retomar a prática de Marx na Liga dos
Comunistas ou na Associação Internacional dos Trabalhadores, por exemplo, e nem
analisar detalhadamente todos os seus textos sobre organização, o que
demandaria uma obra específica e aprofundada sobre isso, devido à extensão e
diversidade de questões envolvidas, além de problemas de interpretação. O nosso
foco aqui é outro. O objetivo é abordar os elementos fundamentais que estão
expostos em suas obras mais desenvolvidas e alguns trechos complementares em
cartas e outros textos menores. A ideia básica é a de que textos circunstanciais
e menos refletidos não são uma boa base para reconstituir a concepção de um
autor e, por isso, nas suas obras mais refletidas e desenvolvidas é que
poderemos perceber com mais clareza e exatidão a perspectiva do autor.
Encontramos no Manifesto Comunista, de Marx e Engels, algumas considerações sobre
a relação dos comunistas com a classe operária:
Qual é a posição dos
comunistas diante dos proletários em geral? Os comunistas não formam um partido
à parte, oposto aos outros partidos operários. Não têm interesses que os
separem do proletariado em geral. Não formulam quaisquer princípios
particulares a fim de modelar o movimento proletário (MARX e ENGELS, 1978, p.
116).
Assim, Marx coloca que os
comunistas (não necessariamente uma “organização”) não formam um “partido à
parte”, ou seja, não possui uma posição diferente, destacada, dos demais
“partidos operários”. Obviamente que a palavra “partido” aqui não tem o significado
pelo qual hoje ela é entendida. Marx colocava “partido” no sentido de posição,
assim como em sua obra Dezoito Brumário,
se refere a “partido de César” (MARX, 1986). Na época em que Marx escreveu não
existia os partidos políticos modernos, ou seja, as organizações burocráticas
que passarão a existir nos últimos anos da vida de Marx e se estruturarão de
forma cada vez mais burocrática, principalmente no final do século 19 em diante[1].
Nesse caso, os demais “partidos operários” seriam os demais indivíduos e grupos
dentro do movimento operário, que não são vistos como sendo opostos, não
havendo oposição.
Afirma também que os comunistas
“não tem interesses que os separem do proletariado em geral”, ou seja, não
possui interesses próprios. Aqui Marx
apresenta um elemento importante, o que nos possibilita perceber que há uma
distinção clara entre uma organização revolucionária e uma organização
burocrática, pois esta última cria “interesses próprios”. E isto é
complementado pelo fato de que os comunistas “não formulam quaisquer princípios
particulares a fim de modelar o movimento proletário”, ou seja, não se
constitui como uma vanguarda, como um grupo destacado da classe que busca
modelá-la.
Apesar disso, os comunistas não são
parte indiferente do proletariado. Segundo Marx e Engels:
Os únicos pontos que
distinguem os comunistas dos outros partidos operários são os seguintes: 1) nas
lutas nacionais dos proletários dos diversos países, destacam e fazem
prevalecer os interesses comuns, de todo o proletariado, independentemente da
nacionalidade; 2) nas diferentes fases de desenvolvimento por que passa a luta
entre proletariado e burguesia, representam, sempre e em toda a parte, os
interesses do movimento em seu conjunto (MARX e ENGELS, 1978, p. 117).
Aqui temos os dois pontos de
distinção entre os comunistas e demais posições no interior do proletariado: a
sua posição internacionalista e sua ligação com o interesse geral da classe, ou
seja, sempre se enfatiza a ligação com o proletariado como classe
revolucionária, como portadora da consciência revolucionária e não como
indivíduos atomizados ou como a classe vista como algo “empírico”. Assim, os
comunistas expressam o interesse geral
de classe do proletariado revolucionário.
Isto quer dizer que não expressa interesses particulares ou corporativistas,
nem mesmo nacionais, e também não expressa interesses imediatos da classe
operária vista empiricamente.
Marx e Engels prosseguem:
Praticamente, os comunistas
constituem, pois, a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a
fração que impulsiona as demais; teoricamente, têm, sobre a grande massa do
proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e
dos fins gerais do movimento proletário (MARX e ENGELS, 1978, p. 117).
Assim, pois, temos uma
diferenciação prática e outra teórica. No plano prático, os comunistas[2] são
(ou devem ser) a fração mais resoluta do proletariado, ou seja, mais decidida,
radical e veloz nas decisões. No plano teórico, há uma vantagem de compreensão
mais nítida das condições, marcha e objetivo final do movimento proletário, ou
seja, tem uma percepção mais totalizante do processo, das tendências e do
objetivo final. Obviamente que estes dois elementos estão entrelaçados, pois
somente a partir do plano teórico é que é possível justificar a diferença no
plano prático, o que significa que a teoria é fundamental nesse processo e sem
ela não haveria distinção entre os comunistas e demais indivíduos e grupos no
interior do movimento operário. Marx, em síntese, não observa contradição entre
movimento comunista e movimento operário, vê uma unidade que, na situação
concreta, pode conter discrepâncias, contradições, etc., mas que é uma
diversidade dentro de uma unidade.
O objetivo imediato dos
comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários:
constituição do proletariado em classe, derrubada da supremacia burguesa,
conquista do poder político pelo proletariado (MARX e ENGELS, 1978, p. 117).
Aqui temos uma exposição de Marx
sobre os objetivos dos comunistas, que é o mesmo do proletariado, ou seja, a revolução
proletária e instauração do comunismo. A constituição do proletariado em classe
é uma formulação problemática e dá margem a interpretações equivocadas. O proletariado,
desde que existe ao estar inserido na relação-capital (ou seja, desde surge uma
classe de trabalhadores assalariados que produzem mais-valor em sua relação com
o capital, que os explora), já está formado, o que Marx quer dizer é como
classe organizada e consciente, ou seja, com consciência revolucionária e
auto-organizado, autodeterminada[3]. Esta
passagem do proletariado de classe existente no processo de produção
capitalista para classe revolucionária é objetivo imediato dos comunistas e,
portanto, seria papel destes contribuir com esta passagem.
Como isso ocorreria? Tal como Marx
escreveu nos preâmbulos da Associação Internacional dos Trabalhadores, a emancipação dos trabalhadores é obra dos
próprios trabalhadores. O texto clássico de Marx sobre isso é o seguinte:
As condições
econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em trabalhadores. A
dominação do capital criou para essa massa uma situação comum, interesses
comuns. Essa massa, pois, é já, em face do capital, uma classe, mas ainda não o
é para si mesma. Na luta, [...], essa massa se reúne, se constitui em classe
para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses de classe (MARX, 1985).
Mas, para aqueles que podem pensar
que é um texto isolado de Marx e que não expressa sua posição, basta ler, no
próprio Manifesto Comunista, a
seguinte passagem:
Em
geral, as colisões da velha sociedade favorecem de diversas maneiras o
desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em luta contínua: no início
contra a aristocracia; depois, contra as partes da própria burguesia cujos
interesses entram em conflito com os progressos da indústria; e sempre contra a
burguesia dos países estrangeiros. Em todas essas lutas, vê-se obrigada a
apelar para o proletariado, a solicitar o seu auxílio e a arrastá-lo assim para
o movimento político. A burguesia mesma, portanto, fornece ao proletariado os
elementos de sua própria educação, isto é, armas contra si mesma (MARX e ENGELS,
1988, p. 75).
Ou seja, o proletariado, nas
próprias lutas, desenvolve sua autoeducação, criando suas formas de organização
e desenvolvendo sua consciência revolucionária. Isto é extremamente oposto à
concepção kautskista-leninista da vanguarda e da consciência que vem de fora.
Marx, ao contrário do que coloca alguns ideólogos, não se fundamenta em lutas
de partidos ou de nações e sim na luta de classes e pensa a autoemancipação
proletária:
Há quase quarenta anos, colocamos em primeiro plano a luta
de classes como força motriz direta da história e, em particular, a luta de classes
entre burguesia e proletariado como a mais poderosa alavanca da revolução
social. Portanto, é-nos impossível caminhar junto com pessoas que tendam a
suprimir do movimento esta luta de classes. Quando fundamos a Internacional
lançamos em termos claros seu grito de guerra: ‘a emancipação da classe
operária será obra da própria classe operária’. Não podemos evidentemente
caminhar com pessoas que declaram aos quatro cantos que os operários são muito
pouco instruídos para poder emancipar a si mesmos, e que eles devem ser
libertados pelas cúpulas, pelos filantropos burgueses e pequeno-burgueses. Se o
novo órgão do partido toma uma atitude que corresponda às ideias destes
senhores, se essa orientação é burguesa e não proletária, não nos restará mais
nada para fazer, por mais lamentável que seja, do que debater abertamente e
romper a solidariedade da qual demos prova até agora, na qualidade de
representantes do partido alemão no exterior (MARX e ENGELS, 1978b, p. 30)[4].
Assim, na época de formação dos
partidos políticos, de forma incipiente e ainda não tão burocratizado como
serão futuramente, já mostravam seu caráter conservador e daí a crítica de
Marx. Assim, a proposta de Marx não é substituir o proletariado por ser sua
vanguarda e sim de colaborar com a sua formação como classe revolucionária.
Isto significa a derrubada da supremacia burguesa, ou seja, o fim de sua
hegemonia, exploração e dominação. Outro objetivo, intimamente relacionado, é a
tomada de poder político pelo proletariado, o que pode dar margem a más
interpretações. Na verdade, o objetivo dos comunistas não é tomar o poder
político e sim que o proletariado o faça, ou seja, a classe e não um suposto
“partido” ou os comunistas ou qualquer organização. Além disso, Marx pensa o
poder político não como o Estado capitalista, e sim como um de seus aspectos, o
aspecto repressivo[5]. Isso significa que tal
tomada do poder político é realizado pela classe e significa o poder de
repressão, de uso da violência, por parte da classe em sua totalidade e não
grupos que agem em seu nome. Isso é muito distinto da conquista do estado burguês
com seu aparato burocrático.
Marx e Engels apresentam, no Manifesto, uma posição que nada tem de
vanguardista e isto se refere também ao aspecto teórico:
As proposições teóricas dos
comunistas não se baseiam, de forma alguma, em ideias ou princípios inventados
ou descobertos por este ou aquele pretenso reformador do mundo. São apenas
expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um
movimento histórico que se desenvolve diante de nossos olhos (MARX e ENGELS,
1978, p. 117).
Aqui, de acordo com o princípio do
materialismo histórico, não se trata de inventar e sim expressar a realidade da
luta de classes. Neste sentido, os comunistas, no plano teórico, apenas
expressam a realidade da luta de classes e buscam efetivar seus objetivos a
partir desta compreensão teórica. Em síntese, em Marx, a relação dos comunistas
com o proletariado é de expressão teórica e prática do seu movimento real, mas
não do proletariado “empírico” e sim da classe que se torna revolucionária, o
que significa não um reboquismo, ou seja, os comunistas não se limitam às
reivindicações e lutas imediatas e espontâneas do proletariado e sim no sentido
da superação desta situação e sua passagem para classe efetivamente
revolucionária. Isto, ao mesmo tempo, não significa vanguardismo, já que os
comunistas não possuem o papel de dirigente e nem interesses próprios, bem como
não busca, para si, o poder político. Desta forma, em Marx, o objetivo dos
comunistas é a abolição do capitalismo e instauração do comunismo, o que ocorre
via passagem do proletariado de classe potencialmente revolucionária para
classe efetivamente revolucionária, ou seja, de classe determinada para classe autodeterminada.
Esta posição será, no entanto,
deformada pela socialdemocracia e pelo bolchevismo, tal como colocaremos
adiante. No interior da socialdemocracia emergente, devido a um conjunto de
mudanças históricas, tal como a passagem do regime de acumulação extensivo para
o regime de acumulação intensivo, que significou a transformação do estado
liberal em estado liberal-democrático, e a instituição da democracia partidária
em substituição da democracia censitária (VIANA, 2003). A legalização de
partidos e sindicatos ocorreu através de sua regularização que provocava um
processo tendencial de burocratização (que vai avançar bastante no regime de
acumulação posterior, o intensivo-extensivo, que emerge após a segunda guerra
mundial).
Os militantes, mesmo os mais bem
intencionados, buscam desenvolver uma ação política e o mecanismo para tal,
nesta época, era fundamentalmente os partidos políticos socialdemocratas. Estes
já eram organizações burocráticas e conservadoras (basta ver a crítica de Marx)
e com o passar do tempo, vão se tornar ainda mais burocráticas e conservadoras,
principalmente com seu crescimento quantitativo e mais ainda graças ao seu
crescimento eleitoral e recursos financeiros. A sociedade capitalista corrompe
facilmente os partidos socialdemocratas. Mas o descontentamento daqueles que
possuem uma perspectiva revolucionária vai gerar as diversas dissidências no
interior da socialdemocracia, tal como Gorter e Pannekoek, na Holanda, e Rosa
Luxemburgo, na Alemanha. As posições de Gorter e Pannekoek se desenvolveram com
o próprio desenvolvimento das lutas operárias e as tentativas de revoluções
proletárias em diversos países, enquanto que Rosa Luxemburgo também avançou,
mas não conseguiu efetivar uma ruptura tão radical quanto a que outros
efetivaram devido sua morte prematura em 1919. Luxemburgo desenvolve suas teses
sobre organização no interior da socialdemocracia alemã e em debate com as concepções
existentes em sua época, principalmente em oposição à socialdemocracia russa
expressa no leninismo. Devido ao embate com Lênin, Rosa Luxemburgo vai discutir
a questão da organização de forma mais aprofundada do que muitos outros e por
isso abordaremos brevemente sua análise do problema organizacional dos
militantes revolucionários.
Rosa Luxemburgo partia da tese
marxista de que a “emancipação da classe operária é obra da própria classe
operária” e sua visão da socialdemocracia era bem semelhante a que Marx
apresentava para os comunistas. Um dos grandes problemas da análise de
Luxemburgo é a confusão que ela fazia a respeito da socialdemocracia. Ela
confundia o que era efetivamente a socialdemocracia (e que ela mesma criticou)
com o que deveria ser, em sua posição/concepção. Essa confusão entre o ser e o
dever-ser, o real e o ideal, provocará alguns problemas e tornar a obra de Rosa
Luxemburgo mais fácil de deformação e assimilação por parte das tendências
reformistas.
As nossas considerações a seguir
também não se pretendem uma análise exaustiva ou detalhada abarcando várias
obras de Luxemburgo e sim mostrar, a partir do seu texto de polêmica com Lênin,
a sua posição sobre a questão da organização, que para ela é o problema de
organização da socialdemocracia, ou seja, do partido socialdemocrata. Segundo
Luxemburgo:
No movimento socialdemocrata,
diferentemente dos antigos experimentos utópicos do socialismo, a organização não
é um produto artificial da propaganda, mas um produto histórico da luta de classes,
no qual a socialdemocracia simplesmente introduz a consciência política (LUXEMBURGO,
1991, p. 39).
Tal como para Marx, Luxemburgo
pensa que a socialdemocracia é produto da luta de classes e seu papel não é o
do ultracentralismo leninista e sim o de expressar o conjunto do proletariado,
buscando sua unidade na luta contra a burguesia:
Destinada a representar, nos
limites de um dado estado, a totalidade dos interesses do proletariado como
classe, em oposição a todos os interesses parciais e de grupo do proletariado,
a socialdemocracia esforça-se naturalmente, em toda a parte, por unir todos os
grupos nacionais, religiosos e profissionais da classe operária num partido
comum, unitário (LUXEMBURGO, 1991, p. 41).
Aqui é visível, como em todo o
texto de Luxemburgo que, ao contrário de Marx, se trata de um partido político
no sentido moderno da palavra. Nesse sentido, as posições de Luxemburgo são
semelhantes às de Marx, mas num contexto social e histórico diferente e, além
disso, pensando numa forma de organização diferente. Em resposta à posição
leninista, Rosa Luxemburgo acaba tendo que colocar em questão as relações
existentes no interior do partido. Lênin propunha uma organização rigidamente
centralizada e um comitê central com amplos poderes e colocava que isso era
facilitada no caso do proletariado que já era disciplinado nas fábricas, e por
isso o problema da disciplina seria mais intenso nos intelectuais, que seriam
“indisciplinados”. Luxemburgo responde a Lênin da seguinte forma:
Não é partindo da disciplina
nele [no proletariado – NV] inculcada pelo Estado capitalista, com a mera
transferência de batuta da mão da burguesia para a de um comitê central
socialdemocrata, mas pela quebra, pelo extirpamento desse espírito de
disciplina servil, que o proletariado pode ser educado para a nova disciplina,
a autodisciplina voluntária da socialdemocracia (LUXEMBURGO, 1991, p. 45).
Assim, a autodisciplina e a
liberdade de ação são fundamentais para a luta política da socialdemocracia:
Se a tática socialdemocrática
for criada, não por um comitê central, mas pelo conjunto do partido ou, melhor
ainda, pelo conjunto do movimento, então é evidente que, para as células do
partido, a liberdade de movimento é necessária. Apenas ela possibilita a utilização
de todos os meios oferecidos em cada situação para fortalecer a luta, tanto
quanto o desenvolvimento da iniciativa revolucionária (LUXEMBURGO, 1991, p.
48).
Rosa Luxemburgo pensa a socialdemocracia
como sendo uma coordenação que visa unificar o proletariado no sentido de
atingir o seu objetivo final, ou seja, o comunismo. Ela pensa na socialdemocracia
como sendo uma parte do movimento proletário, isto é, haveria uma fusão entre
movimento operário e socialdemocracia. Porém, isto não manifesta o que
realmente a socialdemocracia era, ou seja, esta fusão era um dever-ser e não
uma realidade concreta e em algumas passagens Luxemburgo percebe isso, principalmente
quando aborda o seu caráter conservador. É por isso que ela coloca a oposição
entre reforma e revolução[6] e por
isso ela coloca o dilema entre as duas possibilidades postas pelo contexto da
luta proletária no capitalismo, lutar contra o capitalismo no interior deste:
cair num estado de seita ou abandonar o objetivo final. Cair no estado de seita
significa manter o objetivo final, revolucionário, em contraposição às lutas
cotidianas do proletariado e afastando-se, por conseguinte, das “massas”, e
abandonar o objetivo final significa abraçar o reformismo, ao lado das “massas”
e reproduzindo sua lógica própria que é de lutas reivindicativas dentro do
capitalismo.
A solução luxemburguista é a fusão
entre socialdemocracia e proletariado, ela representando o objetivo final e não
abandonando as lutas cotidianas das “massas”, servindo como uma coordenação do
movimento proletário. Ela nem abandonaria o objetivo final e nem se
transformaria numa seita. Porém, não é isto que ocorria praticamente, tal como
a própria Rosa Luxemburgo percebeu, pois o caráter da direção socialdemocrata é
conservador. Porém, Luxemburgo considera que isso é produto de um estágio das
lutas ainda incipiente, que, tende a ser superada com o avanço das lutas que
geraria a fusão entre o movimento socialdemocrata e o movimento operário. Daí
sua defesa da socialdemocracia e sua explicação do seu conservadorismo, que
teria como base a própria classe operária e sua situação no capitalismo. Assim,
o burocratismo e reformismo seriam um mal passageiro e um processo natural.
O grande problema da análise de
Rosa Luxemburgo é seu esquema analítico que parte da oposição entre burguesia e
proletariado e não fornece importância para as demais classes sociais,
inclusive não percebendo a formação de uma nova classe social, a burocracia,
que se amplia e tem suas bases forjadas em organizações oriundas do
proletariado, tais como partidos e sindicatos. Assim, o problema da socialdemocracia
não é o estágio das lutas operárias, que é apenas um elemento de fortalecimento
do seu conservadorismo, e sim o processo de burocratização e a formação de
interesses próprios pelas camadas dirigentes dos partidos.
Apesar disso, Luxemburgo contribui
com duas ideias importantes: a necessidade da fusão da organização
revolucionária (o que é impossível no caso dos partidos políticos, seja os
reformistas e de “massas”, seja os leninistas-vanguardistas) com o movimento
revolucionário (sem abandonar o objetivo final, ou seja, sem aderir e se
limitar às lutas cotidianas da classe) e a autodisciplina interna da
organização. O primeiro ponto já está em Marx e o segundo é uma inovação de
Luxemburgo, mesmo porque ela pensa mais em termos de organização.
Porém, o processo histórico vai
servir para Luxemburgo entender que tal fusão é um dever-ser que não se
concretiza na prática efetiva da socialdemocracia e sua saída do Partido Socialdemocrata
e formação do Partido Socialdemocrata Independente demonstrou isso. Porém, ao
não entender a verdadeira raiz do reformismo socialdemocrata, ela contribuiu
com a fundação de outro partido, e este, também, seguiu o mesmo caminho e, mais
uma vez, ainda na ilusão da possibilidade de unidade entre um partido e o
movimento operário, ajudou a fundar o Partido Comunista da Alemanha, mais
radical que o anterior, durante pouco tempo. Apesar da ascensão das lutas
operárias e sua radicalização, os diversos partidos (Socialdemocrata, Socialdemocrata
Independente) irão manter sua inércia burocrática, e seus interesses próprios,
tal como chegar ao poder estatal. Isso refuta a tese de Luxemburgo a respeito
do conservadorismo socialdemocrata ser produto do caráter incipiente da luta,
pois quando esta se radicalizou ele manteve a sua posição conservadora, ajudando
ao processo de contrarrevolução. O Partido Comunista da Alemanha, por sua vez,
também irá se tornar se tornar reformista, o que provocará a formação de uma
nova organização, o Partido Comunista Operário da Alemanha. Este, porém, se
coloca como não sendo um “partido propriamente dito”. É neste contexto de
tentativa de revolução proletária na Alemanha que uma nova discussão sobre a
questão da organização surgirá e, no início, Herman Gorter e Otto Rühle estarão
juntos, mas depois se separam, dando origem a duas teses: a da organização
unitária e a da dupla organização. Este é o nosso próximo item de discussão.
A ideia dos conselhos operários
ganha força com o ressurgimento dos sovietes na Rússia (que surgiram pela
primeira vez em 1905) em 1917 e em outros países, tal como Hungria, Itália e
Alemanha. O holandês Hermann Gorter, que foi dissidente no interior da
socialdemocracia holandesa ao lado de Pannekoek e outros, transferiu-se para a
Alemanha e se tornou um dos grandes expoentes do KAPD (Partido Comunista
Operário da Alemanha), expressou uma concepção que posteriormente ficou
conhecida como sendo da dupla organização, que foi contestada por Otto Rühle,
que propunha a “organização unitária”. Porém, ambos tinham, de início, a mesma
concepção. Rühle e Gorter estavam entre os fundadores do partido. Inclusive
Rühle foi o autor, segundo dizem, do seu manifesto de criação. Apesar de
carregar o nome de “partido”, que era parcialmente negado, “no sentido tradicional”,
a sua organização não tinha nenhuma semelhança com os partidos socialdemocratas
ou bolcheviques.
A ideia de que é preciso fazer
da vontade revolucionária das massas preponderante nas tomadas de posição
táticas, de uma organização realmente proletária, é o leitmotiv da construção organizativa do nosso partido. Exprimir a
autonomia dos membros em todas as circunstâncias é o princípio de base de um
partido proletário, que não é um partido no sentido tradicional.
O KAPD coloca que as organizações
de fábrica (conselhos de fábrica) e sua articulação na União Operária Alemã era
o elemento fundamental para a luta de classes e tinha alguns objetivos
principais: a destruição dos sindicatos e a organização da futura sociedade
comunista, o “sistema de conselhos”. O KAPD aglutinaria os setores mais
esclarecidos e decididos e atuaria em consonância com a União Operária Alemã.
Nesse momento, Rühle e Gorter estavam de acordo. Porém, um Congresso da III
Internacional dos Trabalhadores, em Moscou, no qual Rühle era um dos delegados,
gerou sua expulsão. Isso foi provocado pelo fato de Rühle não ter ficado para o
Congresso após uma conversa com Lênin, que leu um trecho de sua obra O Esquerdismo, A Doença Infantil do
Comunismo, no qual ataca os partidos comunistas que não seguiam a linha bolchevique
ou seus principais teóricos (Pankhurst na Inglaterra, Bordiga na Itália, Gorter
e Pannekoek na Alemanha), o que lhe fez desistir de participar. Gorter e os
demais consideraram isto um grave erro, pois seria necessário fazer oposição e
articulação no Congresso com outros agrupamentos dissidentes, e por isso
decidiram por sua expulsão. Daí em diante surge a proposta de Otto Rühle de
“organização unitária”.
A tentativa de revolução proletária
na Alemanha gerou os conselhos operários e em 1920 surgiu a AAUD (União Geral
dos Trabalhadores da Alemanha), aglutinando os conselhos de fábrica. Com a
fundação do KAPD, uma estreita relação e colaboração, apesar de alguns setores
se opor a isso, passou a existir entre ele e a AAUD. Após a expulsão de Rühle,
essa oposição aumentou e através dele foi formada a AAUD-E (o “E”,
significando, em português, organização unitária), que recusa a existência de
uma organização de revolucionários separada da classe proletária.
Em síntese, a posição de Rühle pode
ser assim resumida: os partidos políticos são órgãos da dominação e, portanto,
não servem para a ação revolucionária. No seu famoso escrito, A Revolução não é Tarefa de Partido, ele
diz:
A revolução não é uma questão
de partido. Os três partidos socialdemocratas têm a loucura de considerar a
revolução como a sua própria tarefa de partido e de proclamar a vitória da
revolução como o seu objetivo de partido. A revolução é a tarefa política e
econômica da totalidade da classe proletária. Só o proletariado como classe pode
conduzir a revolução à vitória. Tudo mais é superstição, demagogia,
charlatanice política (RÜHLE, 1978, p.161).
Porém, na época deste escrito,
Rühle ainda se encontrava no KAPD e por isso irá afirmar que este foi formado a
partir da “elite do proletariado”, pelos seus elementos mais experientes e
esclarecidos, sendo uma organização política, “mas não um partido político”,
“não um partido no sentido tradicional do termo”. A sigla contendo o nome
“partido” é “o último vestígio exterior – depressa supérfluo – duma tradição”,
um vestígio que “será apagado”.
Posteriormente, Rühle chegará à conclusão
de que mesmo uma organização política não é necessária. A própria União
Operária realizaria o papel que é reservado às organizações políticas, tal como
colaborar com o processo de educação da classe e superação de seus limites. A
organização unitária seria simultaneamente política e econômica.
A posição de Gorter, no entanto,
não apresenta a mesma evolução. Para ele, a organização política ainda era
necessária. Ainda usando o nome de partido, ele considerava que este deveria
ser composto apenas por revolucionários efetivos e esclarecidos, agrupando os
proletários com uma consciência mais ampla e profunda. Porém, ele distingue dos
demais partidos políticos, pois recusa o parlamentarismo e o processo
eleitoral, por um lado, e não aspira tomar o poder estatal, implantar uma
“ditadura de partido”. Por aglutinar apenas os elementos com saber mais
profundo e amplo, sempre será um “pequeno partido”, maior ou menor, em
determinado contexto e lugar, mas sempre pequeno. A sua base deve ser o
proletariado e as organizações de empresas. Estas são, porém, demasiado débeis
para realizar o processo revolucionário e o KAPD não busca uma ditadura de
partido, o que parece ser uma contradição. A solução disso se encontra na
ditadura do proletariado, no qual a expansão das organizações de empresa e fortalecimento
da União Geral dos Trabalhadores abarcando a classe operária em unidade com o
KAPD, ou seja, com a organização política do proletariado, institui a revolução
proletária. A unidade entre União e KAPD, um partido antiparlamentar e
antiditatorial, é a chave para o avanço da luta proletária. É preciso
esclarecer que o KAPD, apesar do nome, não era um partido político no sentido
moderno da palavra, não sendo uma organização burocrática. E se opunha ao
“partido de chefes”, o que foi uma das motivações do ataque leninista aos
“esquerdistas alemães” (LÊNIN, 1989).
Com a derrota da revolução alemã,
as organizações de fábrica se enfraqueceram e se tornaram mais organizações
políticas e por isso as duas uniões (AAUD e AAUD-E) e o KAPD acabaram se
confundindo e, posteriormente, gerou a KAUD (União Operária Comunista), onde
Gorter e Rühle se reencontrariam.
A KAUD exprimia, portanto, a
mudança ocorrida nas concepções de organização. Esta mudança tinha um sentido;
é preciso lembrar o que significava até então a noção de ‘classe organizada’. A
AAUD e a AAUD-E tinham confiado à primeira vista que seriam elas a organizar a
classe operária, que milhões de operários adeririam à sua organização. [...].
Agora a KAUD incitava os operários a organizarem eles próprios os seus comitês
de ação e a estabelecerem ligações entre esses comitês. Por outras palavras, a
luta de classes organizada já não dependia de uma organização criada antes das
lutas. Segundo esta nova concepção, a ‘classe organizada’ tornava-se a classe
operária lutando sob a sua própria direção. Esta mudança de concepção tinha consequências
em relação a numerosas questões: a ditadura do proletariado, por exemplo. Com
efeito, visto que a ‘luta organizada’ já não era um problema exclusivo de
organizações especializadas na sua direção, estas já não podiam ser
consideradas como os órgãos da ditadura do proletariado. [...]. O papel da nova
organização, a KAUD, reduzir-se-ia então a uma propaganda comunista
clarificante dos objetivos, incitando a classe operária à luta contra os
capitalistas e as antigas organizações, principalmente através da greve
selvagem e fazendo-lhe ver a sua força e a sua fraqueza (MEIJER, 1976, p.
43-44).
Em toda esta discussão, podemos
resgatar alguns itens importantes para a análise da questão da organização
revolucionária. A ideia de Rühle de organização unitária se desenvolveu num
contexto histórico preciso, que foi o da ascensão das lutas operárias na
Alemanha, que teve seus grandes momentos desde a Revolução de Novembro de 1918
e a expansão dos conselhos operários e autogestão em algumas regiões, até
meados de 1921, e ainda tendo fortes lutas sociais até 1923. Neste contexto, a
formação das Uniões Gerais facilitava a recusa de uma organização política distinta
da organizada nos locais de trabalho. Porém, nas lutas sociais concretas
enfraquecia a luta proletária, pois deixava o campo da ação política para os
partidos tradicionais, ou seja, para a socialdemocracia e seus partidos ou para
os partidos bolchevizados. A posição de Gorter, por sua vez, exagerava a
importância e alcance da organização, além de alguns equívocos sobre questões
pontuais. Os desdobramentos da luta
promoveram uma espécie de síntese, que se consolidou na KAUD, embora nesse caso
já seja um período de refluxo do movimento revolucionário. A posição da KAUD
será desenvolvida pelos grupos de comunistas conselhistas que irão enfatizar a
propaganda e produção teórica.
A relação com o proletariado não é
de direção, embora na tendência de Gorter esta palavra apareça algumas vezes. O
objetivo da organização política, desde o KAPD até o KAUD, é o mesmo exposto
por Marx e Rosa Luxemburgo. Um outro elemento que está presente é a relação
interna dentro da organização, que é entendida não no sentido leninista de
dirigentes e dirigidos, controle burocrático, hierarquia e regulamentos. Neste
sentido, a ideia de organização revolucionária avançou em relação à Rosa
Luxemburgo no sentido de romper com a ideia de partido, embora no caso do KAPD
ainda não se rompeu com a palavra, o que permite confusões[7].
Essas reflexões sobre a questão da
organização recebeu outras contribuições, tal como a de Pannekoek e outros, mas
já fornece uma visão geral do processo de análise marxista da organização
revolucionária e os três pontos fundamentais para se discutir no caso de uma
organização revolucionária: objetivo, relação com o proletariado e organização
interna. Esta precisa ser aprofundada, mas antes disso é necessário realizar
uma breve discussão sobre a organização burocrática.
[1] Na verdade, é preciso
superar a concepção dogmática e não marxista de buscar ler todos os textos de
Marx e todas as suas afirmações como se fossem “verdades reveladas”. Muitos
fazem isso descontextualizando tais afirmações ou cristalizando-as, transformando-as
em dogmas. Assim, se Marx disse em algum trecho de sua obra que é preciso fazer
aliança com a burguesia, a afirmação se transforma em algo inquestionável (além
de ser descontextualizada, ou seja, pode ser uma afirmação sobre um período de
revolução burguesa e se toma isso como um absoluto, e daí se aplica para a
revolução proletária, o que é totalmente sem sentido). Em primeiro lugar, é
necessário analisar o contexto histórico em que Marx fez determinadas
afirmações. Outro problema é a coisificação de textos de Marx e outros autores.
Algumas passagens em que ele aborda o processo de eleições são vistas com
horror por algumas pessoas que pretendem fazer uma leitura libertária de Marx,
o que é outro tipo de erro a ser evitado. A leitura do texto se torna um
simples exercício de coisificação, pois não se contextualiza o que foi escrito,
não se observa que o significado da palavra “eleições” não é o mesmo que possui
hoje, e que mesmo se fosse, o processo eleitoral daquela época era bem
diferente do atual, que a burocratização das organizações, formação dos
partidos políticos, democracia representativa estava em seu início e que a
visibilidade de seu caráter conservador não era tão evidente assim, etc. Contra
o dogmatismo, é preciso ressaltar que o marxismo não significa fidelidade a
textos escritos, seja lá de quem for, e sim a manutenção do caráter
crítico-revolucionário, ou seja, como expressão teórica do movimento
revolucionário do proletariado. Contra a coisificação dos textos (de Marx ou
qualquer outro), é preciso resgatar o método dialético como recurso heurístico
para compreender que um determinado texto é algo concreto, e, portanto,
“síntese de múltiplas determinações”, é um produto histórico e social e que só
assim pode ser realmente compreendido.
[2] Aqui é preciso alertar de
que “comunistas” não tem nada a ver com os que hoje se autointitulam assim,
pois na época em que Marx escreveu a palavra mais usada era “socialistas” e,
posteriormente, socialdemocrata. Aqui “comunistas” deve ser entendido com marxistas
no verdadeiro sentido da palavra, sem vínculos com partidos políticos, ou seja,
marxistas autênticos e não suas deformações socialdemocrata ou bolchevique.
[3] Em A Miséria da
Filosofia, retomando linguagem hegeliana, Marx (1985) fala em classe em si
(existente devido às relações sociais concretas, classe determinada pelo
capital) e classe para-si (auto-organizada e com consciência revolucionária,
classe autodeterminada). Devido estas afirmações, alguns comentaristas
transformam Marx num idealista, para quem a classe só existiria possuindo
“consciência de classe” (revolucionária), o que é um equívoco derivado das
formulações não muito claras de passagens como essa. Na verdade, o proletariado
é potencialmente revolucionário devido o seu ser-de-classe e nas lutas de
classes realiza tal potencialidade, se constituindo como classe revolucionária:
“Não se trata de saber que
objetivo este ou aquele proletário, ou até o proletariado inteiro, tem
momentaneamente. Trata-se de saber o que é
o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a fazer de acordo com
este ser” (MARX, 1979, p. 55). Para uma análise do
proletariado como classe, cf. Viana, 2012.
[4] Marx realiza aqui uma das primeiras críticas
ao pseudomarxismo, ao analisar o Partido Socialdemocrata Alemão em seu período
de formação, sendo uma carta circular de 1879 endereçada a vários líderes deste
partido.
[5] O problema é que é comum
nas leituras entendermos as palavras tal como elas significam para nós e não
para o autor que a utiliza e, assim, uma leitura crítica deve saber distinguir
e perceber o real significado das palavras de acordo com o autor. Por isso a
interpretação de Marx é problemática, já que se entende por “partido político”,
“poder político”, etc., no sentido das representações cotidianas ou do
bolchevismo, que geralmente serve de mediação para grande parte da leitura que
se faz de Marx e isso é mais forte porque há uma semelhança entre os construtos
(falsos conceitos) do bolchevismo e as representações cotidianas. É preciso
contextualizar historicamente os escritos, entender os significados das
palavras em sua época e seu uso pessoal inovador das mesmas, ou seja, um
processo de leitura crítica. E o que significa poder político para Marx? Ele
mesmo define isso no Manifesto,
embora a falta de leituras críticas e rigorosas dispense a percepção da própria
definição do autor: “O poder político é o poder organizado
de uma classe para opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a
burguesia, se constitui forçosamente em classe, se, através de uma revolução, se converte em classe
dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações
de produção, destrói, junto com essas, as condições dos antagonismos de
classes, destrói as classes em geral e, com isso, sua própria dominação de
classe” (MARX e ENGELS, 1988, p.
97).
[6] Essa questão será mais
desenvolvida em sua obra de crítica ao revisionismo de Bernstein (LUXEMBURGO, 1986;
VIANA, 2013).
[7] Ainda hoje isso persiste,
tal como alguns que afirmam que haviam comunistas conselhistas que defendiam a
necessidade de um “partido”, o que significa desconhecer o momento histórico de
emergência do comunismo de conselhos e, ao mesmo tempo, a diferença entre
partido e organização revolucionária, bem como a própria essência do comunismo
de conselhos.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Questão da Organização Revolucionária. Rio de Janeiro: Rizoma, 2014.