Os
valores natalinos são axiológicos
Nildo
Viana
O
Natal é uma festa cristã realizada no dia 25 de dezembro, data em que se
comemora o nascimento de Jesus Cristo. No entanto, é visível a mudança do
significado do natal no decorrer da história. A sua origem está ligada a uma
festa pagã que antecedeu o cristianismo e foi adaptado pelos valores e
concepções cristãs transformando-se com o passar do tempo. Após isto ganhou um
significado religioso e os símbolos pagãos, bem como a forma da festividade
mudou.
O natal cristão foi, inicialmente, a
partir do século, uma festa religiosa. Inspirado na mitologia babilônica, a
figura de Papai Noel – inspirada em Nicolau, Bispo de Mira, século 05 –
representava a solidariedade, já que era uma pessoa que presenteava três
crianças de família pobre. Posteriormente, Papai Noel foi transformado em um
indivíduo que dá presentes para crianças e estas pedem presentes através de
cartas. Já não se trata de solidariedade e de crianças pobres e sim do ato
consumista de exigir presentes (as crianças, da forma como são socializadas na
atualidade) e oferecer presentes, inclusive usando este para disfarçar as
dificuldades de afetividade, sendo um oferecimento de uma satisfação substituta
a quem é presenteado. Muitos, inclusive, se não forem presenteados (não só
crianças) pensam que não são amados (VIANA, 2002).
A
religiosidade e seus valores acabam sendo substituídos por outros valores e
interesses. O natal deixa de ser festa religiosa comemorativa para se tornar
festa mundana consumista. Na sociedade capitalista, onde tudo é paulatinamente
transformado em mercadoria, temos a mercantilização do natal. O significado
mercantil do natal substitui o seu antigo significado religioso. O natal é
transformado numa festa consumista, na qual a publicidade e o mercado buscam
aumentar o consumo geral e isso é efetivado todos os anos, como comprovam as
estatísticas. Ocorre a generalização da troca de presentes, compras de artigos
natalinos e o Papai Noel passa a ser o maior símbolo desta festa em
substituição à Jesus Cristo. As crianças nascem e são socializadas nesse
contexto e por isso tendem a naturalizar, inclusive quando adultos, tal
consumismo e percepção do natal.
Desta forma, há uma manipulação de sentimentos e produção
de valores visando aumentar o mercado consumidor. Alguns setores específicos
ganham mais com este processo e se criam costumes, desejos, fabricados para
esta época, como a “ceia natal”, brinquedos, decoração, determinados alimentos
(panetone, peru, castanhas, etc.). Isso produz uma euforia e falsa sensação de
alegria em uns, insatisfação e conflitos para outros (os que não possuem
dinheiro para consumir). Assim, o natal passa a ter um significado
predominantemente mercantil na sociedade contemporânea e de nada adianta apelos
para a recuperação de seu sentido religioso, pois estes só possuem ecos em
círculos restritos, nos quais a religiosidade ainda é importante e se tornam
matéria para produção de novas mercadorias e mais consumo (inclusive os
símbolos natalinos, mas também presépios, etc.) (VIANA, 2002).
Os valores dominantes de cada época dominam as
manifestações culturais em geral. Os valores natalinos são apenas mais uma
versão dos valores axiológicos, dominantes. Sem dúvida, a palavra “valores” é
muito utilizada, mas poucos a define e por isso falta clareza em seu uso em
muitos casos. Nós entendemos que os valores são aquilo que é importante e
significativo para os indivíduos e que existem valores autênticos, tais como a
liberdade e a criatividade e valores histórico-particularistas, ligados aos
interesses da classe dominante, os valores axiológicos (VIANA, 2007). Os
valores natalinos, em sua atual configuração, aparentemente são axionômicos
(autênticos), pois pregam a solidariedade e fraternidade, tornando-os valores.
Contudo, em uma análise mais profunda, no contexto da sociedade capitalista, o
discurso da solidariedade e fraternidade apenas disfarça um mundo competitivo,
no qual quem vai fazer mais compras e realizar o consumo dos bens mais caros e
desejados, e marcado por conflitos sociais diversos, tornando tais palavras a
manifestação de pseudovalores, pois estão subordinados e apagados pelos valores
dominantes. A existência de pseudovalores apenas mostra a hipocrisia reinante
na sociedade moderna.
A solidariedade, ou fraternidade, é um valor axionômico,
autêntico, pois o ser humano, enquanto ser social, tem a necessidade psíquica
de associação com outros seres humanos, não somente no sentido de estar junto
mas também através de uma comunidade na qual haja relações sociais harmônicas.
No período natalino, muitos afirmam a solidariedade como valor e alguns até
buscam praticá-la, seja apenas no restrito círculo familiar, seja através da
caridade, entre outras formas. No entanto, isso é apenas um dia no ano,
cumprindo um papel de reforçar o resto do ano marcado pela competição e
conflito. Ou seja, a sua manifestação ocorre no interior de determinadas
relações, que são conflituosas e competitivas, e apenas uma vez no ano,
servindo para renovar as práticas comuns ao invés de realmente questioná-las e
isso mostra que são subordinadas a outros valores, que são permanentes e
dominantes, fazendo com que essa manifestação esporádica de solidariedade seja
um reforço da axiologia.
A literatura, o cinema, bem como outras formas de arte,
são veículos da reprodução destes pseudovalores. Claro que na época ou para
seus produtores, poderia ser realmente manifestação de seus valores, mas este
não é o caso de grande parte das pessoas na atualidade. Desde os clássicos “contos de Natal” de Charles Dickens e
suas diversas adaptações cinematográficas até os filmes de Frank Capra,
especialmente “A Felicidade não se compra”,
o dinheiro e a avareza são apresentados como desvalores ou como valores
secundários diante da família, dos amigos, da solidariedade.
A superação dessa festividade mercantil e consumista
pressupõe mudanças sociais radicais, nas quais o mundo da mercadoria seja
substituída pelo mundo dos seres humanos e os valores axiológicos sejam
substituídos por valores axionômicos.
Referências
DICKENS, Charles. Conto de Natal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2009.
VIANA, Nildo. O Significado do Natal.
In: Capitalismo, Psicanálise e Cotidiano.
Goiânia: Edições Germinal, 2002.
VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.
Veja Mais:
Texto: O Significado do Natal
Brinquedos "made in china", consumismo exagerado, exploração do trabalhador, endividamento, desperdício de comidas, poluição visual e ambiental,...e o "espírito de Natal" vai se reproduzindo de geração em geração. Até o brasileiro marxista radical se rende a isso. Como fazer para cortar esse mal?? Tenho um filho e evito ao máximo expô-lo à essa empolgação, mas é difícil, deveriam fazer um manual para isso.
ResponderExcluirErcília, estes e outros fenômenos destrutivos ocorrem e se reproduzem na sociedade, sem dúvida. Contudo, para superar isso é necessário uma transformação social radical, e essa depende de nossa luta cotidiana e diversas ações que podemos efetivar para criar uma situação favorável para sua concretização. A luta cultural contra os valores dominantes, o consumismo, as ideologias reinantes, etc., é uma das coisas que podemos fazer; outra coisa é incentivar e participar da auto-organização da população, e efetivar o mesmo combate cultural no seu interior, assim como atuarmos em nosso local de trabalho, moradia, estudo e formar coletivos de atuação política (não-partidária, pois essa reproduz tudo que discordamos). Já existem muitas pessoas fazendo isso (seja focando mais em uma ou outra coisa), mas precisamos aglutinar mais pessoas e ampliar nossa ação. Sobre educação dos filhos, é algo difícil, tendo em vista a sociedade que o cerca, os amigos, os meios de comunicação e buscar criar uma redoma de vidro para cercá-los não é uma solução, pois pode criar conflitos e afastamentos. Precisamos saber articular a recusa dessa sociedade e ao mesmo tempo saber que vivemos nela, que nós mesmos não somos imunes a ela, e que temos que viver nela e combatê-la ao mesmo tempo. Não podemos evitar certos consumos e necessidades socialmente constituídas que atingem os filhos, só temos que evitar os exageros e tentar mostrar outros valores e concepções, bem como, sem exageros, realizar críticas ao consumo e consumismo.
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