DAS LUTAS DE CLASSES ÀS BRIGAS
PESSOAIS
Nildo Viana
Desde que Marx elaborou
sua teoria da história e ter demonstrado que as lutas de classes são a
determinação fundamental das mudanças históricas e sociais, um novo horizonte
intelectual se abriu para a compreensão da história das sociedades humanas. No
entanto, os supostos “marxistas” logo transformaram as lutas de classes em
“querelas de partido”, a começar por Lênin. Hoje vemos um outro fenômeno que é
o das brigas pessoais. Obviamente que grande parte das brigas pessoais é
manifestações de luta de classes. Contudo, muitas vezes pessoas que expressam a
mesma classe social, no caso o proletariado revolucionário, se envolvem em
debates e conflitos desnecessários e prejudiciais para o desenvolvimento da
luta proletária. Por isso é importante compreender esse fenômeno, visando
realizar uma reflexão que pode ajudar a muitos militantes e intelectuais
engajados na luta pela transformação radical do conjunto das relações sociais evitarem
essas pendengas inúteis, que significam perda de tempo, desunião e perda de
eficácia das ações revolucionárias.
O reconhecimento do processo
de luta de classes não gera um humanismo abstrato e sim um humanismo concreto.
O ser humano é um valor fundamental para qualquer militante revolucionário, mas
a natureza humana é negada na sociedade capitalista e por isso diversos
indivíduos são destruídos psiquicamente e se tornam seres egoístas,
competitivos, entre outros problemas gerados, bem como devido ao seu
pertencimento de classe, caso pertença às classes privilegiadas e,
principalmente, à classe dominante, torna inevitável o conflito quando não há
ruptura com este pertencimento de classe. A luta de classes se manifesta na
vida cotidiana mas é no processo político que se torna mais clara e visível. As
lutas cotidianas envolvem as classes e seus interesses, bem como os indivíduos
pertencentes a cada classe. Para o caso dos militantes revolucionários, um
elemento essencial é ter sempre em mente o projeto revolucionário, ou seja, o
projeto de revolução social, totalizante, realizado pelo proletariado e buscar
colaborar com este processo, visando o objetivo final que é a instauração da
autogestão social. As lutas das classes sociais ocorrem na vida cotidiana e se
tornam mais acirradas, radicalizadas, em determinados momentos, até chegar ao
nível mais explícito e radical que são os momentos revolucionários. As lutas
dos revolucionários estão intimamente ligadas a este processo e se manifesta ao
lado da luta proletária.
Um dos obstáculos
fundamentais do movimento revolucionário do proletariado é a questão da união,
da associação, que dá o caráter de classe autodeterminada, ou seja, agindo como
classe autônoma e independente contra o capital. Marx foi um dos pensadores que
mais enfatizou isso e sob várias palavras e frases famosas, tais como “trabalhadores
de todo o mundo, uni-vos” (Marx e Engels, 1988), a necessidade de o
proletariado agir como “partido” (posição unificada), etc. até sua definição de
comunismo: “livre associação dos produtores”, “produtores livremente
associados”, etc. A ideia de associação era fundamental no pensamento de Marx,
pois é como “associação” que as classes fazem valer os seus interesses de
classes, se tornam classes autodeterminadas e as classes dominantes possuem no
Estado sua associação coletiva que manifesta seus interesses de classe. As
classes exploradas precisam criar sua associação e o proletariado, classe
revolucionária de nossa época, deve criar sua associação, agir coletivamente,
no sentido de generalizar essa associação e abolir o capitalismo.
Contudo, o capital e o
Estado produzem diversas ações para impedir a união do proletariado, e as
demais classes privilegiadas, especialmente a burocracia e a intelectualidade,
reforçam todo este processo. A sociabilidade capitalista[1],
por sua própria essência, fundada na burocratização, mercantilização e
competição, é um forte incentivo para a desunião do proletariado e das classes
exploradas. Nos processos de lutas, ocorrem momentos de união da classe,
especialmente com a radicalização das ações e a reação conservadora e repressiva
do aparato estatal e organizações burocráticas em geral. A greve, por exemplo,
cria laços de solidariedade entre os trabalhadores (Pannekoek, 2007; Marx, 1989).
Nos momentos revolucionários isso ocorre em grande escala e é um dos elementos
fundamentais para a concretização da revolução proletária. Em períodos
não-revolucionários e de lutas moderadas, o individualismo e a competição são
dominantes.
Na luta dos revolucionários
esse processo também ocorre, sob forma diferenciada. A importância das minorias
revolucionárias nos momentos não-revolucionários é perceptível, pois são elas
que promovem lutas mais amplas e mantem aceso o fogo utópico através da luta
cultural (produção teórica, propaganda generalizada, panfletagens, publicações,
jornais, zines, etc.) e da sua ação cotidiana em movimentos, manifestações,
etc. que geram uma cultura contestadora fundamental para os momentos
revolucionários.
Nessa luta, sem dúvida,
os problemas e divisões que ocorrem no interior do proletariado e demais
classes exploradas também se reproduz no seu interior e com muito mais força,
já que os revolucionários são muito mais heterogêneos do que qualquer classe
social. Além de reproduzir as divisões que todas as classes sociais possuem
(raça, sexo, cultura, região, nacionalidade, formação individual, etc.), ainda
possuem uma divisão ainda mais grave e profunda que é a de classe, já que eles
são pertencentes a classes distintas e, devido sua heterogeneidade, as questões
das tradições revolucionárias, projetos políticos, concepções políticas gerais,
ganham um peso maior e como são diversas e com pontos de discordância, mesmo
que não seja nos aspectos fundamentais, abre todo um espaço de divergência e
conflito. Os revolucionários, apesar de sua posição crítica (que varia de grau
dependendo do indivíduo e sua história de vida, além das outras diferenças já
aludidas), estão envolvidos na sociedade capitalista, são produtos dela e
muitas vezes a reproduz pensando que a combate. A sociabilidade capitalista e a
mentalidade burguesa estão presentes na mente dos revolucionários e isso
provoca mais motivos para conflitos.
Contudo, entendendo que
os revolucionários (autênticos e não todos aqueles que se dizem
“revolucionários”)[2]
são aqueles que desejam e lutam pela revolução proletária que institui a
autogestão social (o que exclui os indivíduos ligados aos partidos, mesmo os
mais radicais), então eles possuem em comum o projeto revolucionário e o objetivo
final. Esse é o elemento fundamental, pois o objetivo final, a autogestão
social (ou “anarquia”, “comunismo” no sentido de Marx, “livre associação dos
produtores”, etc.) é o que move e dá sentido à militância revolucionária. Da
mesma forma, a ideia de revolução social proletária como meio deixa claro um
certo consenso de que a transformação social em questão é radical e total,
atingindo todas as relações sociais.
A partir disto pode
parecer difícil a existência de divergências no interior do movimento
revolucionário. Estas, no entanto, existem. E podemos colocar duas formas de
divergências no interior do movimento revolucionário: a primeira forma é a de
diferenças na forma de conceber o processo revolucionário e o seu próprio papel
nesse processo, o que remete ao problema da teoria e da estratégia e a segunda
forma é a que ocorre a nível pessoal. Assim, temos as divergências políticas e
as divergências pessoais. Elas podem se entrelaçar e se confundir, mas quando
são motivações únicas e distintas, torna-se possível a separação e análise
separada do fenômeno.
As divergências
políticas podem se manifestar através de debates e discussões sobre formas de
luta, posição diante de questões específicas ou conjunturais, etc. As
diferenças no plano teórico e estratégico revelam problemas e conflitos entre
indivíduos e grupos. No movimento revolucionário, devido a influência das
ideologias burguesas e burocráticas, há a tendência a cair no vanguardismo ou
no reboquismo. O vanguardismo, forte influência cujo grande ideólogo foi Lênin,
acaba se manifestando no interior de forma direta e indireta, seja por
voluntarismo e ativismo de alguns, seja por falta de formação teórica e
política de outros. O reboquismo, por sua vez, também é influente e tem as
mesmas fontes, embora seu voluntarismo e ativismo sejam subordinados ao
proletariado como classe determinada, antes de formar sua associação
revolucionária e se torna classe autodeterminada. Os vanguardistas tentem a
propor ações e estratégias para dirigir os movimentos sociais, o movimento
operário, etc. e ficar à frente do movimento, apesar de negar o leninismo e
seus derivados enquanto que os reboquistas focalizam no processo de “inserção
social” e proximidade com os trabalhadores, uma espécie de idolatria do
proletariado e tomando como parâmetro deste a sua manifestação cotidiana na
nossa sociedade, a classe operária determinada pelo capital e que não
ultrapassa os limites reivindicativos e reformistas. As reivindicações, ações,
etc., se tornam diferenciadas e por isso há uma oposição real entre estas duas
tendências no interior do movimento revolucionário, que só pode ser superada
quando se vai além do vanguardismo e do reboquismo.
Outro ponto de
divergência, que é a fonte desta, está entre voluntarismo e determinismo. O voluntarismo
pensa que a luta de classes ou as lutas políticas são principalmente frutos da
vontade humana, abstraindo as relações sociais concretas, as determinações que
atuam sobre os indivíduos, etc. O determinismo já desconsidera a iniciativa na
história, dos indivíduos, grupos e classes, sendo que em alguns casos reserva
espaço apenas para o proletariado como agente da história, mas concebido
geralmente de forma evolucionista e imanentista, como se não fosse produto da
luta de classes. O voluntarismo promove diversos equívocos como, por exemplo,
pensar que os sindicatos, organizações burocráticas, podem se tornar agentes da
revolução social em uma época de completa burocratização dos mesmos através de
um mero ato de vontade dos revolucionários que assim fariam retomar o seu
período heroico, tal como no caso do Brasil durante as lutas operárias no
início do século 20, antes da emergência das burocracias sindicais. O
determinismo também provoca diversos equívocos como, por exemplo, considerar
que a revolução será produto de uma “crise final do capitalismo” sem ação
humana, sem luta e cultura contestadora, esquecendo-se, inclusive, da
possibilidade da contrarrevolução.
Outra fonte de
divergência no interior do movimento revolucionário é a de distintas tradições
teóricas e o apego dogmático a elas. A velha briga entre anarquistas e
marxistas (autogestionários ou libertários, pois em relação aos de partido
torna-se luta de classes, já que expressam classes distintas) se reproduz ad eternum. Quando se trata de marxistas
libertários, que apontam para a autoemancipação proletária e autogestão social,
o que significa proximidade entre as duas concepções, isso tem pouco sentido,
pois sua fonte é o apego dogmático e idolatria de pensadores, o que acaba
gerando eternos debates que não levam a lugar algum a não ser à perda de tempo
e afastamento de possíveis aliados. As velhas rusgas entre Marx e “marxistas”,
por um lado, e Proudhon, Bakunin e anarquistas, por outro lado, se torna mais
importante do que a luta proletária e a concordância com o processo de
revolução social e o objetivo final que é a autogestão social. Aqui a
identificação formal se torna mais importante do que a identificação
fundamental. A definição de posição política ou de tradição revolucionária se
torna mais importante do que o objetivo final e o processo revolucionário para
constituí-lo, criando processo de desunião que serve para a reprodução do poder
e força das burocracias partidárias e sindicais na sociedade civil.
Esses processos, no
entanto, podem ser minimizados através da convergência prática e solidariedade
instituída com a ascensão das lutas sociais. São produtos das lutas de classes
e quando o proletariado e outras classes exploradas agem com maior
radicalidade, o formal e os equívocos tendem a diminuir, embora seja necessária
uma luta cultural constante contra isso, pois quanto mais a luta das minorias revolucionárias avançar, maior é a probabilidade das
lutas operárias também avançar e ambas se reforçarem mutuamente.
No entanto, contemporaneamente,
vem aumentando um fenômeno nos meios revolucionários, em parte por causa da
internet e novas possibilidades de comunicação, em parte por causa de novas
ideologias de “revolução individual” e “revolução no cotidiano” dentro do
capitalismo, mas que sempre existiram com graus e formas distintas dependendo
da época, país e outras especificidades de cada caso concreto. Trata- de brigas
pessoais desvinculadas das lutas de classes. Obviamente que no plano mais
profundo de suas determinações, elas são produtos das lutas de classes, tal
como mostraremos mais adiante. No entanto, elas não manifestam luta de classes
diretamente e são obstáculos para a luta proletária. As divergências pessoais
são marcadas por uma sobrevaloração de questões individuais e outros processos
que geram dogmatismo, sectarismo, exigências exageradas de perfectibilidade
pessoal, bem como influência de ideologias vigentes, contextos específicos,
idiossincrasias[3],
etc.
Um dos elementos que
provocam disputas desnecessárias entre militantes reside na já citada
sociabilidade capitalista, especialmente um dos seus elementos fundamentais, a
competição, que gera, por sua vez, uma mentalidade competitiva (VIANA, 2008).
Os revolucionários, por mais que sejam críticos e façam autocrítica, não
escapam do seu processo de formação na sociedade capitalista e embora possam
reduzir e possuir um grau menor de mentalidade competitiva do que a grande
maioria da população, não são imunes a isso. É por isso que muitos debates que
poderiam render um melhor entendimento das questões levantadas e avanço
político ou teórico, acabam sendo um círculo vicioso que geralmente termina em
brigas pessoais e afastamentos. Isso ocorre porque o debate não é visto como um
processo de livre intercâmbio de ideias no sentido de avançar o saber e a
consciência das lutas de classes e sim
uma competição que se quer ganhar a qualquer custo.
Esse ganhar a qualquer
custo é um obstáculo para admitir equívocos, refletir ao invés de simplesmente
negar por negar, ultrapassar a rigidez de pensamento, entre outros problemas.
Obviamente que em um debate, é possível que alguém consiga apresentar mais
informações e argumentos e mesmo assim o outro não ficar convencido, o que é
outra coisa, pois nesse caso, ao invés de usar subterfúgios pouco libertários
(já que o debate se trava entre pessoas libertárias) é possível simplesmente
aceitar que é necessário aprofundar e que continua não concordando, mantendo
uma relação amistosa e uma atitude sincera e honesta diante da discussão. O
problema é que mesmo entre os meios libertários isso não ocorre com frequência.
Outra fonte de brigas
pessoais entre indivíduos com posições libertárias são os mal entendidos e as
intrigas. Os mal-entendidos são comuns e não significam nenhuma falta de ética
ou intencionalidade por parte dos envolvidos. Eles são produtos de falta de
informações, problemas de comunicação, etc. Por exemplo, caso alguém veja um
militante com um policial pode considerar isso suspeito e pode reproduzir essa
informação. Quando tal militante fica sabendo disso, dependendo de como lhe foi
relatado (“fulano não é confiável por que anda com a polícia e pode ser um
infiltrado”, apesar de que pode ter simplesmente dito, sem maiores avaliações,
o que viu, pois era uma informação que seria necessária compartilhar), pode
considerar que foi acusado levianamente de algo que não fez, mesmo porque, o
policial em questão é seu parente e apenas isso. Claro que os mal-entendidos
são mais comuns na internet. Alguém pode postar no Facebook o texto de Otto
Rühle, A Luta Contra o Fascismo começa
com a Luta contra o Bolchevismo, e um amigo recém adicionado e não
conhecido posta o comentário: “do ponto de vista dos mencheviques, é claro”,
mas era apenas uma ironia, segundo afirmou posteriormente seu autor, pouco
acessível para quem postou o texto, pode gerar uma resposta ríspida (isso
ocorreu concretamente) e outro se sentir “ofendido” por causa da rispidez.
Também ironias e brincadeiras, por e-mails ou redes sociais, quando não
explicitados (sem risos, seja rs, kkk, hahaha, rarará ou qualquer outra forma),
tendem a provocar mal-entendidos e às vezes mesmo com esse cuidado, pois o
outro pode considerar que é apenas uma indireta ou algo “inconsciente” (usando
concepção freudiana, segundo a qual os “chistes” – tiradas engraçadas –
manifestam o inconsciente dos indivíduos). Esses mal-entendidos são mais graves
e constantes entre pessoas que não se conhecem, como em comunidades na
internet, quando alguém, por exemplo, critica Marx e um marxista libertário
tenta fornecer explicações e é chamado de “autoritário”, confundindo-o com um
bolchevista (“marxista”-leninista). O debate pode desembocar em ofensas e
brigas pessoais nesses variados casos.
A intriga é algo pior e
é uma prática condenável no interior do movimento revolucionário, embora
exista, seja por problemas de falta de formação ou experiência, seja por
reprodução de práticas de outras instâncias da sociedade (partidos, por
exemplo) no seu interior. Às vezes pode ocorrer por ingenuidade de quem o fez.
A intriga pode começar com indivíduo X, que interpretou equivocadamente um
acontecimento ou discurso e repassou para o indivíduo Y, que ao invés de
verificar o acontecimento e discurso acredita ingenuamente no que foi dito pelo
outro e reproduz, atingindo outros indivíduos e isso pode se reproduzir ad infinitum, e como passam a ser muitas
pessoas dizendo, fica parecendo “verdade”. Isso pode ser referente a indivíduos
ou grupos e aqueles que recebem a “informação”, não se dão ao prazer de ver
suas origens e nem avaliar e tentar obter fontes de informação confiáveis e ter
acesso a elas em primeira mão. Claro que isso é mais problemático quando
libertários começam a acreditar em versões de pessoas que são de outras
tendências, não-libertárias, só por semelhanças de ações ou atividades
conjuntas. As intrigas podem provocar diversas dissidências e isso é mais comum
em certos contextos, tal como no caso da segunda metade do século 19, na qual o
recuo das lutas proletárias após a derrota da Comuna de Paris e alto grau de
repressão criou uma situação propícia para isso, o que foi reforçado pela
existência de diversas tendências oposicionistas. É neste momento que ocorre as
intrigas a respeito de Bakunin ser agente russo e Marx ser agente de Bismarck,
para citar apenas dois exemplos.
Há também brigas
pessoais derivadas de posicionamentos moralistas e exigências de
perfectibilidade, geralmente a partir da perspectiva daquele que realiza tal
cobrança. O moralismo parte de um cânone abstrato e busca encaixar todo mundo,
independente do contexto social e histórico, das especificidades e
particularidades dos indivíduos e situações. Um princípio abstrato, como, por
exemplo, “não matarás”, e o exemplo retirado da religião não é gratuito, é
colocado como algo que não pode ser desrespeitado sob forma alguma e em
contexto algum. Se alguém matou outra pessoa, não interessa se em legítima
defesa, guerra, revolução, ou qualquer outro contexto, deve ser acusado,
julgado e condenado[4].
Nos meios
revolucionários isso muitas vezes se manifesta. Este é o caso do princípio
abstrato de ser contra o Estado ou contra o capital. Enquanto princípio, é correto,
mas quando se exagera no sentido de afirmar que a pessoa não pode, por exemplo,
trabalhar numa instituição estatal ou numa empresa privada, cai no moralismo se
não analisar o contexto e outros elementos. Todos os revolucionários, a não ser
que sejam burgueses ou filho de classes privilegiadas e por isso dispensados de
trabalhar, precisam vender sua força de trabalho em troca de um salário e só
pode fazer isso para o Estado ou para o capital. Obviamente que ser candidato e
eleito governador significa, claramente, romper com um princípio fundamental de
todo movimento autenticamente revolucionário (o que exclui, obviamente, os
partidos da suposta “esquerda”), agora ser um professor ou
técnico-administrativo numa universidade estatal ou ser professor na rede
estadual ou municipal de ensino, é algo sem o menor problema. Cada caso deve
ser avaliado em sua concreticidade, envolvendo milhares de questões e por isso
o princípio abstrato é equivocado e problemático.
A exigência de
perfectibilidade é outro problema grave nos meios revolucionários. Obviamente
que pensar, querer e idealizar um militante ideal, que faz da militância uma
prioridade, agindo e atuando constantemente, bem como não tivesse nenhum
defeito, resquício de concepções, valores e sentimentos burgueses ou
burocráticos. Contudo, é necessário descer do ideal para o real. No primeiro
ponto, a militância não é algo fora da realidade social dos indivíduos
militantes e por isso, desde doenças, problemas familiares e amorosos,
dificuldades psíquicas e financeiras, elementos envolvidos com formação
intelectual, idiossincrasias, entre diversos outros aspectos, são fundamentais
para compreender obstáculos para a militância, tanto em casos temporários como
permanentes. Certas pessoas têm dificuldades em realizar determinadas
atividades, embora sejam sinceros em suas concepções e sentimentos
revolucionários, e não são exigências e pressões exageradas que farão elas
avançar.
Da mesma forma, todos
os indivíduos revolucionários nascem, vivem e morrem na sociedade burguesa,
submetidos à sua sociabilidade, ideologias, valores, pressões, etc. Não se
nasce revolucionário, torna-se revolucionário, para parafrasear Simone de
Beauvoir (1980). O tornar-se revolucionário, inclusive, não ocorre num salto
brusco, de uma hora para outra e, por conseguinte, não podemos tratar todos os
indivíduos revolucionários como se já tivessem no mesmo grau dos mais
experientes ou com maior formação política e teórica, ou comparando com aquele
que faz tal exigência, que pode ter maior ou menor tempo, experiência, leitura,
etc., do que aquele que ele está julgando. Anton Pannekoek, por exemplo, já
alertava que todo novo militante tende a repetir erros do passado, pois ele,
enquanto indivíduo, não tem o acúmulo de experiência e teoria que outros,
anteriores, já tiveram, e é por isso que muitos jovens se aproximam da
socialdemocracia (e, podemos acrescentar, do bolchevismo, etc.), apesar dela já
ter sido superada teoricamente e pelas experiências históricas e de outros
militantes.
Muitos indivíduos (e
isso só vale para indivíduos, não para tendências ou partidos) buscam
honestamente o processo de transformação social, mas fazem a partir daquilo que
sabem, valoram, viveram e sem maiores leituras, informações, experiências
podem, o que ocorre efetivamente em milhares de casos[5],
entrar em partidos políticos, por exemplo. Isso ocorre também porque estes são
mais adequados à sociedade capitalista e seus valores e concepções, parecendo
ser mais “realistas”. Contudo, com o passar do tempo, as experiências vão
aparecendo, as práticas oportunistas, manipuladoras, burocráticas, corruptas,
autoritárias, etc., vão se manifestando e grande parte se afasta de tais
partidos, enquanto que outros continuam, abandonando sua anterior honestidade.
Alguns tentam passar para outros partidos, pensando que o problema é o partido
X e que isso não ocorre no partido Y, mais radical, mas essa ilusão também se
desfaz, ou não, tal como no caso de pessoas que ficaram tão envolvidas pelas
doutrinas e ideologias do partido anterior e da suposta necessidade de
dirigentes e da própria organização partidária (reforçadas pela mentalidade
burguesa que é dominante e burocrática), que acabam abandonando qualquer
perspectiva revolucionária ou tenta, num trabalho de Sísifo, mudar o partido ou
construir outro que seria o “partido ideal”, inexistente na realidade.
Os indivíduos tornam-se
revolucionários sob formas diferentes. Alguns possuem acesso à formação
escolar, livros, etc. e por isso podem avançar mais rapidamente em sua formação
intelectual, outros não e por isso seu processo pode ser mais lento. Da mesma
forma, pequenos detalhes podem ajudar ou atrapalhar, tal como ter um tio que
teve militância e tem bibliografia ou um professor que possui posições críticas
e indicações de leitura, pois tudo isso faz parte do processo histórico de vida
dos indivíduos que geram diferenças.
Alguns indivíduos são
oriundos das classes desprivilegiadas e isso traz vantagens e desvantagens, tal
como o interesse, no primeiro caso, e a dificuldade de acesso às informações,
no segundo. Os que são oriundos das classes privilegiadas também possuem
vantagens e desvantagens, tal como o acesso maior às informações, no primeiro
caso, e o menor interesse direto, no segundo. Os valores, a mentalidade, as representações,
as necessidades, o sofrimento, as insatisfações, as relações familiares, as
relações afetivas em geral, a situação no trabalho e nas escolas, as
informações, os contatos, o hábito de leitura, o domínio formal da escrita, experiências,
singularidade psíquica e diversos outros aspectos produzem diferenças nesse
processo de formação de um indivíduo revolucionário.
O contexto histórico
tem um forte efeito nesse processo, principalmente em épocas de ascensão das
lutas revolucionárias. Nessas épocas, a adesão ao movimento revolucionário é
muito maior, mas tão logo há a derrota do mesmo e o refluxo do movimento,
aqueles que não eram e se tornaram devido ao contexto, podem regredir ou
sustentar sua nova posição. Os exemplos na história são muitos: basta ver
aqueles que foram revolucionários durantes as experiências revolucionárias e o
que fizeram depois para ver isto, e o exemplo do maio de 1968, entre outros, é
bem ilustrativo[6].
O processo inverso também ocorre para indivíduos que apoiam forças supostamente
“revolucionárias” e depois descobrem que são contrarrevolucionárias, tal como
no caso da Revolução Bolchevique, onde muitos integrantes do partido e
apoiadores do mesmo acabaram formando dissidências internas[7] e
posteriormente saíram do partido e se tornaram adversários do regime numa
perspectiva libertária.
Nesse sentido, a
exigência de perfectibilidade é algo sem sentido, mesmo porque nem quem exige é
perfeito e nem numa sociedade livre e fundada na igualdade haverão indivíduos
perfeitos (até porque até a ideia que se tem do que seria o indivíduo perfeito
ou ideal é diferente para pessoas diferentes). Ninguém está livre de todas as
influências negativas da sociedade burguesa e é óbvio que se deve combater, por
exemplo, o preconceito, o conformismo, as crenças conservadoras, mas é preciso fazer
isso sem exageros e não reduzir a questão ao indivíduo e querer que ele seja,
na sociedade burguesa, um indivíduo que é possível e comum numa sociedade
autogerida (comunista, anárquica), livre de todos os valores, concepções,
sentimentos, etc., da sociedade capitalista, mas que hoje é algo praticamente
impossível em sua totalidade.
Além disso, é muito
problemático um indivíduo revolucionário cobrar de outros uma perfeição devido
a algumas questões específicas e esquecer que ele mesmo possui diversos
“defeitos” em diversas questões específicas. Assim, dizer que o militante X não
está atuante, abstraindo seu passado de luta e contribuição, e condená-lo por
isso, esquecendo-se que ele mesmo (aquele que acusa) também já teve períodos de
inatividade, expressa ou moralismo ou exigência de perfectibilidade, mas sempre
para os outros e nunca para si mesmo.
Na sociedade
contemporânea, sob o impacto das ideologias pós-estruturalistas, muitos pensam
em “revolução individual”, “revolução no cotidiano”, no interior da sociedade
capitalista, o que é um reforço tanto para o moralismo quanto para exigências
de perfectibilidade. Essa é outra fonte de brigas pessoais, pois além de que
muito do que vem sendo posto como “ideal” de militância ou “ideal” de
comportamento cotidiano é muitas vezes conservador e que revela a ideologia
neoliberal (e parte do pós-estruturalismo) de responsabilização do indivíduo,
como se ele fosse totalmente livre e fosse tão fácil ele mudar como se troca de
roupa. Mesmo não sendo algo conservador, é algo exagerado e que precisa ser
contextualizado. Isso, sem dúvida, tende a gerar conflitos, pois algumas
exigências estão de acordo com o movimento revolucionário e outras não e os
indivíduos que são acusados de não atender tais exigências, tanto em um caso
quanto em outro (o que significa que em determinados casos têm razão e em
outros não), tendem a ir para o confronto (ou se afastar, o que não é objeto de
nossa análise aqui, cujo foco é as brigas entre indivíduos revolucionários).
Assim, certos
comportamentos podem ser questionáveis do ponto de vista X, mas não do Y e quem
tem o primeiro ponto de vista pode ter um comportamento, em outro aspecto da
vida, questionado por um terceiro ponto de vista. Se o indivíduo X maltrata
animais e isso é reprovável por outro militante, que, por sua vez, é um membro
de torcida organizada de futebol, o que é condenado por diversos outros, que
por sua vez, fazem ou possuem ideias criticadas por outros, são questões da vida
cotidiana que podem e merecem discussões coletivas, mas sob outras formas, não
querendo criar uma padronização de comportamento e nem discussões políticas,
mas através de conversas amistosas, palestras, textos genéricos para
compartilhar, entre outras, pois não são questões fundamentais e chegar a tal
nível de cobrança pessoal significa aproximar o movimento revolucionário e/ou
os grupos revolucionários a um sistema totalitário, com direito a “polícia do
pensamento” e do comportamento cotidiano.
Outra fonte de
conflitos no interior do movimento revolucionário é o dogmatismo. Alguns
indivíduos no interior do movimento revolucionário tornam-se dogmáticos. Alguns
porque leram apenas um livro e o toma como a “bíblia sagrada” e tudo que está
fora dele deve ser condenado, outros porque se espelham no exemplo de um
teórico ou militante revolucionário e acaba querendo reproduzir suas práticas
e/ou ideias exatamente como foi no passado, desconsiderando as mudanças
históricas, os possíveis equívocos (mesmo o melhor dos revolucionários cometem
equívocos e nenhum é “perfeito”), evitando o diálogo com que pensa diferente,
mesmo tendo perspectiva revolucionária, etc. O dogmatismo tem seu efeito mais
nefasto não é na defesa de teóricos, escritos e militantes, e sim na absolutização
destes sem fundamentação e no ataque sistemático a outras posições semelhantes,
sem nenhum processo de reconhecimento e abertura para diálogo.
É o caso de certos
anarquistas que querem descartar a totalidade da obra de Kropotkin, outro
anarquista, ao invés de observar seus pontos problemáticos e suas
contribuições. Claro que não é necessário concordar ou evitar críticas aos
autores de outras posições, mas a forma dogmática remete para a impossibilidade
de análise fundamentada, ela simplesmente nega, sem se dar ao luxo de conhecer
melhor o que está criticando. Muitos anarquistas só leem os textos de
anarquistas sobre Marx e pensam que isso é suficiente para uma tomada de
posição. Ora, é fundamental ler a versão do outro para inclusive entender o debate
estabelecido, bem como analisar o contexto histórico e tudo o mais que estava
envolvido nisso (inclusive outras pessoas e intrigas que estas promoveram, no
caso de Marx e Bakunin, para citar apenas um exemplo). Da mesma forma, alguns
“marxistas” só leem os textos de Marx sobre Bakunin, e nunca os escritos deste.
Esse fato é mais comum no caso dos pseudomarxistas aglutinados em partidos
políticos ou da academia, reprodutores das intepretações dominantes do
pensamento de Marx. Os marxistas libertários, por não terem preconceitos contra
os anarquistas, geralmente fazem leituras dos mesmos, em maior ou menor grau,
dependendo de cada caso individual, e não ficam “raivosos” contra Bakunin ou
outros que fazem críticas a Marx, desde que sejam honestos e com fundamentação,
ou seja, no nível da ética e da racionalidade, pois alguns exageram
dogmaticamente, inclusive faltando com a verdade.
Contudo, se existem
indivíduos revolucionários dogmáticos, isso não é motivo para descartá-los,
pois isso seria exigência de perfectibilidade. Obviamente que, como seus
debatedores também não são perfeitos, podem se irritar e perder a paciência, então
pode haver debates permeados por exageros de ambos os lados e desentendimentos
e agressões verbais nos dois sentidos. Alguns, principalmente nos meios
virtuais, exageram nesse processo, descartam ideias, livros, textos, etc.,
apenas olhando o nome de quem postou ou o título, algumas vezes com comentários
totalmente deslocados e sem relação com o que foi efetivamente publicado. Porém,
o elemento detonador, nesse caso, é o dogmatismo e este é um problema que deve
ser superado no movimento revolucionário, mesmo porque ele é contrário ao
espírito libertário, revolucionário.
Além desses, existem
outras fontes de brigas pessoais derivadas da força de ideologias, valores,
representações, da sociedade capitalista na mente dos indivíduos. É comum ver
nos meios virtuais indivíduos que se dizem “libertários”, defendendo nação,
partidos, redução da maioridade penal, entre outras coisas bem distantes de uma
posição revolucionária. Claro que geralmente são iniciantes e ingênuos, tal
como no caso de um anarquista que defendia o nazismo dizendo que ele era contra
o capitalismo e os Estados Unidos e depois do debate e de algumas informações
reconheceu que precisava estudar mais sobre esse movimento político. De
qualquer forma, é outra fonte de conflitos e brigas pessoais.
Há, ainda, outra
motivação para brigas pessoais no interior do movimento revolucionário: os
interesses pessoais. Obviamente que todo indivíduo possui interesses próprios.
Todos possuem certas necessidades que precisam ser atendidas, influência de
pressões familiares, pressão de consumo, valores dominantes introjetados,
desejos de reconhecimento social, carências financeiras próprias ou para ajudar
outros, exigências institucionais que precisam ser atendidas para continuar
estudos ou trabalho, entre inúmeras outras. Algumas são menos questionáveis,
outras mais, bem como a forma como o indivíduo trabalha isso e sua
concretização, inclusive se transforma isso em prioridade acima de outros
aspectos da vida. Independentemente disso, todos possuem interesses pessoais,
que muitas vezes expressa interesses de classe e está envolvido na luta de
classes. Um estudante revolucionário que tem necessidade de dinheiro para
adquirir obras críticas para sua autoformação e outras para continuidade de
seus estudos, tem um interesse pessoal que é autoformação e educação formal que
gera outros interesses pessoais, tal como dinheiro, algo que deve ser abolido e
não valorado, mas que é necessário na sociedade capitalista. Isso é diferente
do apego exagerado ao mesmo.
Esse interesse pessoal
só se torna problemático quando ele passa por cima dos interesses coletivos,
seja do movimento revolucionário em geral, seja de grupos dos quais participa.
Assim, se tal estudante pega livros emprestados com outros militantes, e não
devolve, isso é problemático, pois o outro também necessita de material de
formação e não doou, emprestou, o que gera a necessidade de devolução. Se outro
para ganhar dinheiro pega contribuições coletivas para uso pessoal sem intenção
de repor, então falta não só com a ética como também coloca o interesse pessoal
acima do coletivo, mostrando que, no fundo, está muito mais vinculado com a
sociedade capitalista do que com o movimento revolucionário. Da mesma forma,
criticar um companheiro de luta por razões pessoais mais do que coletivas,
devido a alguma competição social no qual o crítico foi derrotado, ou por
vaidade ferida, etc., é algo problemático. Obviamente que também, se isso for
reavaliado, houver autocrítica e superação desse comportamento e valores, então
a situação fica resolvida. Claro que também depende do tipo de interesse
pessoal, pois se o equívoco for derivado de uma necessidade vital para alguém
do seu círculo afetivo, de sua família, etc. e isso o faz atentar contra algum
interesse coletivo, é mais compreensível e perdoável. Os revolucionários devem
ser radicais, mas não devem abandonar o humanismo. Da mesma forma, devem ser
humanistas, mas não devem abandonar a radicalidade.
Estes seriam alguns dos
elementos geradores de conflitos no interior do movimento revolucionário, que
desembocam, na maioria dos casos, em brigas pessoais. Não existe solução ideal
para todos estes variados casos. Alguns elementos são mais gerais e atingem
diversos destes problemas: uma intensa luta cultural contra as ideologias,
representações e valores dominantes; uma busca incessante de auto-organização e
decisão coletiva e reflexão crítica e autocrítica; um processo constante de
busca de autoformação e de associação revolucionária sob princípios humanistas
(concretos e não abstratos); aprendizados dos processos históricos e busca de
compreensão dos casos concretos, são alguns destes elementos.
Outros aspectos, que
deveriam fazer parte do processo de formação cultural e política dos
revolucionários é a prática da tolerância com os iniciantes, com aqueles que
têm posições semelhantes, revolucionários/libertários. A tolerância com as
classes privilegiadas e suas expressões políticas (partidos, organizações
burocráticas em geral, etc.) é equivocada, a não ser quando se trata de
indivíduos, o que não significa poupar críticas e combate, mas no caso de
indivíduos e grupos libertários, a situação é diferente, pois as divergências
podem ter diversas fontes como as já aludidas e por isso não devem ser
sobrevaloradas. Nesse mesmo processo, é fundamental não cair no moralismo e
observar a situação concreta dos indivíduos. Os julgamentos e condenações
rápidas, sem analisar mais cuidadosamente a situação e contexto dos indivíduos,
devem ser evitados. Além da situação concreta dos indivíduos, a sua história de
vida e posicionamentos não podem ser simplesmente descartados para se evitar
injustiças. O respeito à liberdade individual em sua vida privada é
fundamental, pois mesmo que se discorde de determinados comportamentos, gostos,
modo de vestir, ideias, etc. isso não é um problema do coletivo ou do movimento
revolucionário, a não ser em determinados comportamentos e quando se tornam
casos extremos que atinjam estes. Da mesma forma, não sobrevalorar ou enfatizar
questões limitadas, detalhes, pequenas falhas, também ajudam a evitar conflitos
desnecessários.
Em termos mais amplos,
a formação teórica ajuda a superar parte desses problemas e por isso deve ser
valorada e não descartada, tal como em certas tendências anti-intelectualistas.
Da mesma forma, a discussão sobre estratégia revolucionária é fundamental para
não se perder o foco no objetivo final e meios correspondentes e desviar para
questões secundárias ou de identificação formal como prioridade. Por último, um
humanismo concreto, no qual se supere tanto o humanismo abstrato que pensa que
a “bondade natural do homem” sobrevive no capitalismo de forma indiferenciada,
passando por cima das classes sociais e suas lutas, das singularidades
psíquicas, quanto o anti-humanismo que concebe o ser humano como “egoísta por
natureza”, tomando a deformação capitalista do ser humano como sua essência. O
humanismo concreto reconhece que a natureza humana aponta para a solidariedade
por ser uma necessidade dos seres humanos, social e psíquica, e se isto não se
concretiza praticamente nas relações sociais existentes, é devido ao fato de
que o capitalismo criou um processo de generalização da alienação, negação da
essência humana, e através da mercantilização, burocratização e competição
social, promove o individualismo e os conflitos fundados nos valores burgueses
da ascensão social, ânsia de poder e riqueza, entre outros aspectos, que são
dominantes mas não únicos e que as classes exploradas, bem como determinados
indivíduos que rompem com grande parte destes valores, são distintos e devem
ser percebidos sob outra forma. Da mesma forma, existem indivíduos
contraditórios e estes valores podem ser alterados e superados em inúmeros
casos.
Nesse processo, é
fundamental a luta pela transformação social radical, que atinge valores,
sentimentos, representações, teorias, no sentido de contribuir com sua
realização. E superar o anti-humanismo e o humanismo abstrato é uma condição
para uma luta mais eficaz e que aponte para a concretização do objetivo final,
a autogestão social, ao invés de reproduzir as revoluções trágicas do passado,
que diziam apontar para a emancipação humana e, na verdade, reproduziram o seu
processo de encarceramento, criando uma nova prisão cuja mudança foi apenas em
quem era o carcereiro.
Estes apontamentos não
são receitas que resolvem as questões, pois devido sua complexidade, que
envolve indivíduos e suas idiossincrasias e complexidades próprias, processos
sociais mais amplos e luta de classes, aspectos específicos envolvendo casos
concretos, cada caso deve ser analisado em sua concreticidade. No entanto, é um
momento de reflexão que aponta para a superação de alguns dos obstáculos para
os avanços da luta pela emancipação humana. É mais um momento da luta, entre
outros, que somados podem contribuir com a mesma.
Referências:
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. São Paulo: Nova Fronteira, 1980.
FROMM, Erich. O
Dogma de Cristo. 5ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1986.
MARX, K. e Engels, Manifesto
do Partido Comunista. 6ª edição, São Paulo, Global, 1987.
MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª Edição, São Paulo, Global, 1989.
PANNEKOEK, Anton. A Revolução dos Trabalhadores. Florianópolis, Barba Ruiva, 2007.
VIANA,
Nildo. Crítica ao Moralismo. In: http://informecritica.blogspot.com.br/2011/01/critica-ao-moralismo.html acessado em
27/07/2013.
VIANA, Nildo. Universo
Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo,
Escuta, 2008.
[1] Sobre isso, cf. Viana (2008).
[2] Outra distinção útil aqui é a
estabelecida por Erich Fromm (1986) entre pessoa de “caráter rebelde” e pessoa
de “caráter revolucionário”, mas, no entanto, não trabalharemos com o primeiro
caso, embora possa se manifestar inclusive nos meios libertários. Contudo, é
extremamente difícil identificar isso, a não ser quando isso fica muito evidente.
[3] As idiossincrasias remete ao que
é específico nos indivíduos e envolve questão de mentalidade e possíveis
processos de desequilíbrios psíquicos, entre diversos outros aspectos
peculiares de origem social e histórica do indivíduo. Assim, neurose, psicose,
autoritarismo, timidez, rispidez, rigidez ou volubilidade, entre milhares de outras
peculiaridades individuais, são elementos que tornam o individuo algo complexo
e quem nem sempre é compreensível, bem como determinadas atitudes e
comportamentos consideradas “não-racionais”.
[4] Sobre isso, cf. Viana (2013).
[5] Claro que isto varia de acordo
com o contexto histórico e social. Se existem outras opções políticas não
partidárias, como coletivos políticos anarquistas, autogestionários, etc.,
então não somente estes indivíduos poderão, via propaganda ou contato direto,
conhecer tais possibilidades (e crítica aos partidos) e evitar esse erro, o que
para outros, em outros contextos, marcados pela inexistência de tais
possibilidades, será impossível e a passagem por tais organizações é bem mais
provável.
[6] Para citar um exemplo, Daniel
Cohn-Bendit, um dos mais ativos estudantes durante o Maio de 1968 em Paris,
que, posteriormente escreveu obras relativamente críticas como O Grande Bazar e O Esquerdismo, Remédio para a Doença Senil do Comunismo, e aderiu
ao Partido Verde, sendo hoje deputado por tal partido. Este foi o destino de
vários outros, não somente nesse acontecimento histórico, como em diversas
outras experiências revolucionárias após a contrarrevolução e recuo do
movimento operário.
[7] Obviamente que alguns deles,
depois da repressão e proibição das frações internas, se acomodaram ao partido
e outros fundaram outros grupos ou fizeram oposição individual e foram parar
nas prisões da Sibéria.