QUESTÃO INDÍGENA:
DA VISÃO “TRIBAL” À CONCEPÇÃO DIALÉTICA
Nildo Viana
A questão indígena no Brasil aparece sempre nas manchetes de jornais e noticiários quando ocorre mais algum massacre de tribos indígenas ou fortes conflitos com outros setores da sociedade, tal como no caso dos índios Ianomâmi em 1993. As reações ao massacre, naquela época, no Brasil e no exterior, demonstram uma certa “preocupação” com as populações indígenas. Podemos dizer, sem entrar na questão das “preocupações” casuísticas, eleitoreiras ou superficiais, que isto é benéfico, mas somente a partir do momento que se tem uma concepção da complexidade do assunto e não quando se possui uma percepção simplista das coisas.
Esta visão simplista é produto não só das representações cotidianas (o que alguns chamam de “senso comum”), mas também de uma certa “teoria” antropológica que vê as sociedades indígenas como se fossem isoladas da sociedade global que a envolve. Partiremos, ao contrário, da perspectiva marxista, dialética. Esta perspectiva se caracteriza por não isolar elementos da realidade para explicá-los a partir de si mesmos, pois ela reconhece a necessidade de ver a totalidade para compreender os elementos particulares que a compõe. Esta é a concepção que poderá nos esclarecer sobre a complexidade da questão indígena.
O postulado que afirma que as sociedades indígenas são autossuficientes e autônomas tem como consequência imediata a criação de um “problema do índio” separado e destacado dos demais “problemas sociais” [1] . A noção de uma cultura autônoma e independente dos índios é uma ideologia que fundamenta uma outra ideologia: a visão tribal da questão indígena. Toma-se, como ponto de partida, a tribo com seus problemas e necessidades e a partir daí se toma posições políticas a respeito do assunto. Que posições políticas podem resultar desta percepção equivocada do problema? A posição política que deriva, no que se refere ao massacre dos povos indígenas, daí apresenta três reivindicações principais: a) a imediata demarcação das terras indígenas; b) a proteção das terras indígenas; c) a punição dos culpados.
Todas estas reivindicações apresentam dois aspectos comuns: a) o problema do índio é um problema isolado dos demais problemas sociais e por isso pode ser resolvido isoladamente; b) o estado é visto como o árbitro supremo e neutro que poderá resolver a questão. As limitações dessa posição política é consequência das limitações da visão tribal da questão indígena.
Em primeiro lugar, a mera demarcação das terras indígenas não impedirá o desenvolvimento dos conflitos entre índios e garimpeiros (e não só com estes, mas também com grileiros, trabalhadores sem terra, etc.); em segundo lugar, a proteção das terras indígenas pelo estado não conteria os conflitos, mas apenas os tornariam mais complexos e até mesmo mais violentos, isto sem falar de que sob o pretexto de “proteção” se realizaria uma verdadeira “reclusão territorial” dos indígenas, caso fosse efetivado tal política. Em terceiro lugar, a punição dos “culpados” não acabará com o conflito, isto sem falar que querer “punir os culpados” é mera expressão de uma mentalidade arcaica, fundada no pensamento mítico que opõe o bem e o mal, que julga que os garimpeiros, constrangidos pelas suas necessidades e condições precárias de vida, são os “culpados” do massacre ocorrido; em quarto lugar, considerar o estado capitalista como “neutro” e como um possível agente da resolução do problema é mera ilusão; em quinto lugar, reivindicar do estado meras medidas legais e não mudanças sociais necessárias, é cair num legalismo ineficaz que não romperá com a reprodução dos conflitos.
Segundo José de Sousa Martins:
Há uma clara contradição no conjunto de indagações e sugestões relativas á questões da terra. Num momento fala-se na necessidade da demarcação urgente das terras indígenas e, até, na recuperação de territórios que foram perdidos para os não-índios. Noutro momento fala-se na omissão dos órgãos oficiais. A contradição está no fato de que a recuperação das terras perdidas pelos povos indígenas envolve de imediato o questionamento da expropriação sofrida, o questionamento da legitimidade e do poder dos expropriadores, dos seus interesses de classe e da dominação que exercem através do estado. Já a acusação de omissão não se situa na mesma linha de interpretação, pois representa, de certo modo, a absolvição do omisso. Estamos, provavelmente, supondo que tal omissão pode ser sanada mediante uma espécie de “conversão” da burocracia pública à causa do índio. Esquecemos que no Estado moderno, a ordenação burocrática é simples mandatária dos interesses expressos na aliança de classes que o configuram. Nesse caso, não há propriamente omissão, mas na omissão há uma intenção e uma ação (Martins, 1994, 53).
Passando da “visão tribal” para a concepção dialética da questão indígena, devemos abordar o processo histórico secular de destruição das sociedades indígenas. O genocídio das populações indígenas é apenas a realidade mais visível e cruel de um processo que começou com a expansão capitalista europeia que, por sua vez, para infelicidade dos índios, proporcionou a “descoberta” da América. Na verdade, é mais correto falar em etnocídio, ou seja, trata-se da destruição de grupos étnicos inteiros.
Nas últimas décadas, no Brasil, vem ocorrendo um processo de integração de grupos indígenas nas relações de produção capitalistas. Esta integração ocorre de forma subordinada e expressa a exploração capitalista indireta. Isto produz a dissolução da cultura e do modo de vida tradicional dos indígenas que somente antropólogos românticos ainda não perceberam. Aliás, estes mesmos antropólogos são responsáveis pela primeira etapa de etnocídio, tal como alguns antropólogos franceses denunciaram (Auzias, 1978; Copans, 1981; Leclerc, 1973), realizada com sua presença que possui efeitos descaracterizadores nas culturas indígenas e assim abre espaço para o contato com a civilização burguesa e com o estado capitalista.
A primeira etapa do etnocídio é tarefa do antropólogo (depois do jesuíta) e do seu famoso “trabalho de campo”, pois, sobre pretexto de relativismo e antietnocentrismo, este profissional da sociedade burguesa estuda a cultura (os costumes, o parentesco, a língua, etc.).dos povos indígenas e assim informa o estado capitalista como se deve fazer para entrar em contato com eles e inicia, com sua própria presença e manifestações culturais no interior da sociedade indígena, o processo de aculturação, ou seja, o antropólogo é o mensageiro do apocalipse da sociedade indígena que traz a mensagem do etnocídio.
A primeira etapa deste processo se inicia quando o antropólogo entra em contato com os indígenas, tal como, antigamente, o missioneiro o fazia. O antropólogo, missioneiro moderno, com sua ideologia (seja ela funcionalista, estruturalista ou qualquer outra), aparece como o estrangeiro que vai se tornando familiar, bem como sua cultura e costumes, abrindo espaço, com esta familiarização, para a penetração posterior de outros indivíduos e o processo de aculturação. O antropólogo busca falar o idioma nativo, mas já leva elementos do idioma dominante e abre caminho assim para a glotofagia, o primeiro passo do etnocídio (Viana, 2009). Assim, o antropólogo facilita um conjunto de contatos posteriores, com religiosos, comerciantes, etc., que concretizarão a etapa seguinte do processo de etnocídio. As próprias relações sociais e formas de produção começam a se alterar e o comércio é a ponta de lança deste processo que se segue a mutação cultural.
A subordinação de relações de produção não-capitalistas ao modo de produção capitalista é apenas o primeiro passo para sua transformação em relações de produção capitalistas. Isto significa que as sociedades indígenas estão sendo abolidas parcialmente (em alguns casos que são cada vez mais raros) ou totalmente pelo desenvolvimento capitalista e também que os índios de hoje serão os mendigos, alcoólatras ou os trabalhadores assalariados de amanhã [2].
Outra forma de destruição das sociedades indígenas é a destruição física direta. Esta é mais visível e chocante. Quando aparece nos noticiários cria uma avalanche de protestos e a indignação da população. Quando não aparece, mas ocorre, nada acontece. O genocídio dos índios vem ocorrendo a mais quinhentos anos. O que devemos compreender é porque ele continua ocorrendo até os dias de hoje. Quem são os agentes do genocídio e quais são as suas motivações? Os garimpeiros são alguns destes agentes em meio a muitos outros. As motivações podem ser condensadas em uma só: a luta pela terra. Segundo Martins:
A situação das terras indígenas pode ser definida, de modo geral, como situação que envolve três características: terras ameaçadas de invasão pelos brancos, sobretudo grandes fazendas e empresas; terras griladas, cuja posse pelo não-índio ainda depende de regularização; e terras expropriadas, cuja posse e domínio já estão legalmente nas mãos de brancos. Tais situações foram apontadas em várias manifestações da assembleia e dos grupos. Convêm notar que tais características não constituem, na verdade, alternativas entre si. Ao contrário, representam um movimento progressivo. As terras expropriadas foram citadas sobretudo nas áreas mais antigas de ocupação, como o Leste e o Nordeste. A grilagem de terras ocorre sobretudo nas regiões em que está havendo maciça entrada de fazendas, onde está chegando a chamada frente pioneira. Já a ameaça sobre terras indígenas se apresenta nas áreas de que se aproximam as vanguardas da frente pioneira, que provavelmente serão ocupadas mais intensivamente nos próximos anos (Martins, 1994, p. 53-54).
A questão indígena está intimamente vinculada à questão agrária. A luta pela terra envolve o estado, os latifundiários, os posseiros, os grileiros, os garimpeiros, os indígenas e muitos outros. Alguns lutam pela terra para aumentar suas riquezas e outros lutam para conquistar um “meio de sobrevivência”. Isto cria conflitos entre os próprios setores explorados da sociedade, tal como ocorreu no massacre dos índios Ianomâmi em 1994 e em várias outras oportunidades.
Entretanto, os índios são os mais prejudicados com esta situação, pois, por possuírem o direito reconhecido legalmente sobre as terras, entram em conflito com os demais setores explorados não só devido ao incentivo que os setores dominantes dão a estes últimos para que eles rompam com o domínio da legalidade burguesa abrindo o caminho para sua ação posterior. Depois resta a imagem de que tais massacres foram obras apenas de garimpeiros e outros setores das classes exploradas, descontextualizando o processo social mais amplo, o conjunto de interesses, o papel do estado e a luta de classes.
Portanto, o problema do índio é um problema nosso. A exploração e destruição das sociedades indígenas é apenas um aspecto da expropriação e pauperização das classes exploradas no Brasil. A solução do problema só pode ser conseguida através da transformação da estrutura agrária da sociedade brasileira. Somente uma revolução agrária que leve à coletivização das terras é que poderá restituir a dignidade das populações indígenas (ou o que sobrou delas), juntamente com a dos outros setores explorados no campo brasileiro. A substituição da grande produção capitalista, baseada na monocultura e voltada para a exportação e não para o mercado interno, pela autogestão coletiva dos produtores associados é a única solução para os conflitos no campo, para a questão da fome e da destruição ambiental. Neste sentido, cabe às classes exploradas e segmentos sociais oprimidos ou inconformados (camponeses, índios, ecologistas, desempregados, etc.), lutar pela instauração da autogestão coletiva no campo e na cidade.
Notas
[1] - “A invasão das terras indígenas é apenas um capítulo da história social da terra em nosso país. Assim como existe uma história do índio, existem também uma história da terra. Também neste caso, o elenco de problemas levantados pelos diferentes grupos não inclui uma referência a tal fato” (Martins, 1994, p. 54).
[2] - Conseguimos perceber que a invasão e expropriação de terras indígenas é um dos fatores fundamentais da sua descaracterização tribal. À medida que se deteriora a forma de ocupação e utilização da terra pelo índio, como consequência da sua invasão e incorporação por fazendas e empresas, também se deteriora a sua identidade tribal. A destruição do espaço do índio destrói também as condições de reprodução do seu modo de ser. O índio está ameaçado progressivamente de ser remetido do seu universo de não-propriedade para o universo da propriedade, com a sua divisão clássica em proprietários e não-proprietários – em proprietários dos meios de produção, de um lado, e proprietários unicamente da força de trabalho, de outro. A deterioração da identidade do índio é condição para destruí-lo como etnia, como grupo tribal com história, cultura, língua e futuro até certo ponto particulares (Martins, 1994, 54).
Referências
AUZIAS, Jean-Marie. A Antropologia Contemporânea. São Paulo, Cultrix, 1978.
COPANS, Jean. Críticas e Políticas da Antropologia. Lisboa, Edições 70, 1981.
LECLERC, Gerard. Crítica da Antropologia. Lisboa: Estampa, 1973.
MARTINS, José de Sousa. “A terra na realidade do índio e o índio na realidade da terra”. Revista Ruptura, ano 01, num. 02, Julho de 1994.
VIANA, Nildo. Linguagem, Discurso e Poder. Ensaios sobre Linguagem e Sociedade. Patos de Minas: Virtualbooks, 2009.
Muito bom o post Nildo! Sugiro que você libere para que apareça mais de uma psotagem por vez na página principal, ajuda a navegar as postagens anteriores
ResponderExcluirAchei de grande relevância este seu post explicativo sobre a questão indígena no país, ainda mais em uma época de tamanho alvoroço em relação a esta etnia aqui no Brasil.
ResponderExcluirAchei de grande importância um post seu explicando sobre a questão indígena no Brasil, ainda mais em uma época de tamanho acontecimentos sobre esta etnia.
ResponderExcluirGrato!!
ResponderExcluirBartolomeu, grato!
ResponderExcluirGostei!!! Obrigada!
ResponderExcluirQue bom que gostou, Hellen! Grato. abs.
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