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terça-feira, 30 de janeiro de 2018

ESTADO E ACUMULAÇÃO DE CAPITAL


ESTADO E ACUMULAÇÃO DE CAPITAL

Nildo Viana

No mudo das aparências os fenômenos sociais são vistos de forma invertida, tal como se tivessem de cabeça para baixo. É por isso que para alguns o Estado é “um órgão público”, “expressão da soberania popular”, ou, ainda, o “reino do antivalor”. O mundo real é diferente do mundo ilusório do imaginário ou do mundo ideológico, no qual os intelectuais sistematizam tais representações cotidianas ilusórias transformando-as em ciência ou filosofia.
O que é o Estado? Não é possível compreender o Estado isoladamente e sem entender sua formação e essência. É por isso que a compreensão do Estado pressupõe compreensão do capital. Em termos gerais, o Estado é um aparato do capital que, por sua vez, gera diversos outros aparatos (jurídico, repressivo, educacional, comunicacional, cultural, etc.). Quando Marx colocou que o Estado é uma “associação da classe dominante” para fazer valer seus interesses (MARX e ENGELS, 1982) estava revelando a essência de toda organização estatal, bem como seu vínculo inseparável com as sociedades de classes e com a classe que domina em determinada sociedade. Quando Marx afirmou que “o governo” (no caso o termo mais adequado seria Estado, embora o governo seja uma manifestação do aparato estatal), no capitalismo, “é um comitê para gerir os interesses da classe capitalista” (MARX e ENGELS, 1988) apenas mostrava que o aparato estatal no capitalismo é a associação desta classe para manter sua dominação.
O Estado capitalista pode ser definido então com uma relação de dominação na qual a classe capitalista domina o proletariado e outras classes sociais através da burocracia (VIANA, 2015). Assim, há um vínculo inquebrantável entre Estado e capital, sendo que o primeiro é representado, geralmente, pela burocracia estatal, e o segundo pela classe capitalista. A sua função é exercer o controle social sobre o conjunto da sociedade e garantir a reprodução das relações de produção capitalistas. Para garantir essa reprodução do capitalismo precisa realizar a repressão do movimento operário e todos que ameacem a sua permanência ou cria problemas para a classe capitalista e a acumulação de capital.
É nesse contexto que surge uma nova percepção equivocada do Estado ao ficar no nível da aparência. Aparentemente, o Estado possui uma relação indissolúvel com o capital, pois está ao seu serviço. Mas ele aparece como sendo “externo” ao movimento do capital e assim alguns ideólogos podem colocá-lo como representante de uma outra instância, a do político. Essa concepção politicista do Estado gera até mesmo a ideologia que ele seria espaço de manifestação do “antivalor”:
Em termos marxistas [sic], a função do fundo público tende a desfazer os conceitos e realidades do capital e da força de trabalho, esta última enquanto mercadoria, ou nos termos de Sraffa a mercadoria-padrão, que determina o valor e o preço de qualquer outra (relevados os problemas da conversão de valor em preços, que aliás com o fundo público tornam-se praticamente intraduzíveis). A equação original de Marx é a de D-M-D' no que se refere ao circuito do capital-dinheiro. O fundo público funcionando como pressuposto geral de cada capital em particular transforma essa equação em Anti-D-D-M-D’(-D), sendo que o último termo volta a repor-se no início da equação como Anti-D, isto é, uma quantidade de moeda que não se põe como valor. O último termo é uma quantidade de moeda que tem como oposição interna a fração do fundo público presente nos resultados da produção social, que se expressa em moeda mas não é dinheiro. Do ponto de vista do circuito da mercadoria, a equação original de Marx era a de M-D-M’, e o fundo público como estrutura imbricante transforma a equação para Anti-M-M-D-M’(-Anti-M), na qual os dois primeiros termos significam as antimercadorias e as mercadorias propriamente ditas, e os dois últimos significam a produção de mercadorias e a produção de antimercadorias. No fundo, a segunda equação fica subsumida na primeira. As consequências teóricas dessa transformação vão se expressar na composição do capital e na taxa de exploração. A composição do produto, na equação C+V+M, sofre a seguinte transformação: -C + C+V(-V) + M, na qual a taxa de mais-valia se reduz pela presença, na equação, das antimercadorias sociais que funcionam como um ersatz do capital variável. Isto quer dizer que na equação geral do produto a taxa de mais-valia cai, enquanto na equação de cada capital particular ela pode, e geralmente deve, se elevar (OLIVEIRA, 1988, p. 17-18).
Curiosa conclusão e mais ainda por se dizer “marxista” (apesar das referências serem outras, não-marxistas). O Estado não é “externo” ao capital, nem uma instância separada e autônoma, a do “político”, muito menos espaço de “antivalor” ou o “público”. Na concepção marxista, o Estado é externo ao capital apenas em sua origem, pois ele surge antes do modo de produção capitalista se tornar dominante e é envolvido, posteriormente, pelo movimento do capital. Marx explicitou isso claramente: “a velha nobreza feudal fora devorada pelas grandes guerras feudais; a nova era uma filha de seu tempo, para a qual o dinheiro era o poder dos poderes” (MARX, 1988a, p. 343). O absolutismo financiou o capital manufatureiro e promoveu a acumulação primitiva de capital.
As revoluções burguesas modernizaram o Estado e o colocaram a serviço do capital sob forma burocrática e racional. A partir desse momento, o Estado se torna um derivado do capital (MATHIAS e SALAMA, 1983). O modo de produção capitalista e o Estado assumem a forma moderna, que permanece até hoje, de relação entra aparato estatal e relações de produção capitalistas. O movimento do capital engloba e determina o aparato estatal (o que difere da ação direta da classe capitalista, ou de setores dela, sobre os governos). O que interessa saber é como o capital envolve o aparato estatal. Isso remete a uma discussão sobre o processo de mercantilização e a acumulação de capital.
O modo de produção capitalista se fundamenta nas relações de produção capitalistas, caracterizadas pelo processo de produção de mais-valor, a forma especificamente capitalista de produção de mercadorias (MARX, 1988b). A produção de mais-valor significa uma relação de classes sociais, na qual o proletariado produz mais-valor e a burguesia se apropria desse mais-valor produzido. Isso, aparentemente, é realizado através de uma troca justa entre força de trabalho por determinado período de tempo (jornada de trabalho) cedido pelos proletários e salários cedidos pelos capitalistas. No entanto, os trabalhadores recebem apenas uma parte do que produzirem, sendo que a outra parte é apropriada pelo capital e é justamente o mais-valor. O mais-valor expressa que o valor do salário é um “valor inequivalente” ao real valor que o proletariado produziu (VIANA, 2016), sendo, pois, exploração.
Esse processo de exploração, no entanto, não esgota o processo analítico do modo de produção capitalista e, muito menos, da sociedade capitalista[1]. A produção do mais-valor é o momento da exploração, mas é necessário o momento seguinte, que é o da realização. A realização do mais-valor ocorre nas relações de distribuição (“mercado”) e significa um processo de repartição do mais-valor. A maior parte do mais-valor fica com o capitalista (ou o conjunto de capitalistas, pois a propriedade pode ser individual ou coletiva, tal como no caso da sociedade por ações) e ele converte parte dela em renda (consumo pessoal/familiar) e outra parte em capital (reinvestimento). O capital reinvestido é que move o processo da acumulação de capital. O capitalista é constrangido a reinvestir por causa das necessidades da reprodução da produção (ele precisa comprar matérias-primas, pagar salários, etc., para manter a empresa funcionando e produzindo) e por causa da competição com os demais capitais, gerando a reprodução ampliada do capital. Sem dúvida, a mentalidade do capitalista é uma mentalidade burguesa[2] e, assim, independente do constrangimento das relações sociais, ele tenderia a sempre reinvestir para ganhar a competição com os demais capitalistas.
O capitalista deve, no entanto, pagar impostos e outros gastos, que significa transferência de parte do mais-valor para outros setores da sociedade. Os impostos significam transferência de mais-valor para o aparato estatal; as despesas bancárias para o capital bancário; as despesas de distribuição para o capital comercial; os falsos custos de produção com os trabalhadores assalariados improdutivos (burocratas, intelectuais, subalternos). É assim que ocorre a repartição do mais-valor na sociedade. O conjunto de tudo que foi produzido pela totalidade da classe proletária em determinada sociedade é o mais-valor global, que após ser reproduzido, é repartido na sociedade[3].
O desenvolvimento capitalista promove um processo de mercantilização das relações sociais e de todos os bens produzidos. Os bens materiais são paulatinamente transformados em mercadorias e os bens culturais e coletivos são transformados em mercancias (VIANA, 2016). Esse processo coloca todos os indivíduos, empresas, instituições, dependentes do dinheiro. O dinheiro é o meio de troca universal e é a forma de se adquirir mercadorias e mercancias. Como tudo se torna mercadoria/mercancia, então não há como o indivíduo sobreviver sem dinheiro, nem as instituições, etc. O indivíduo precisa de alimento, habitação, vestimenta e tudo o mais e só possuindo dinheiro poderá adquiri-los (a não ser que outra pessoa lhe sustente, o que significa que ela tem que ter dinheiro para si e para quem sustenta).
Isso que é válido para o indivíduo também se aplica ao aparato estatal. Se o Estado quer construir uma ponte, fundar uma escola, pagar seus funcionários, financiar uma ONG, etc., ele precisa de dinheiro. Isso ocorre através da arrecadação. O forte da arrecadação é através de impostos (e eles são complementados por taxas, lucro – de empresas estatais – multas, etc.). Os impostos (e as demais formas de arrecadação) são oriundos do mais-valor global drenados pelo aparato estatal. O conjunto do que é arrecadado é a renda estatal.
O Estado é, portanto, dependente da renda estatal. Ele se subordina ao cálculo mercantil[4], pois precisa manter o equilíbrio orçamentário, ou seja, não gastar mais do que arrecada. Se ele gastar mais do que arrecada, estará se endividando, emergindo a famosa “dívida pública” (interna ou externa). Assim, o aparato estatal deve garantir sua arrecadação e também que os gastos não superem o que foi arrecadado. Quando ocorre o desequilíbrio orçamentário, a solução é aumentar a arrecadação (impostos, principalmente) ou diminuir os gastos estatais.
Aqui temos a chave explicativa da relação entre Estado e acumulação de capital. Uma das funções do Estado é garantir a reprodução ampliada do capital, ou seja, o processo de acumulação cada vez mais amplo. Para fazer isso, ele precisa combater a tendência declinante da taxa de lucro, criar infraestrutura para o desenvolvimento capitalista, etc. (MATHIAS e SALAMA, 1983; VIANA, 2015). A questão é que isso pressupõe gastos e significa uma parte da renda estatal. Ou seja, parte da renda estatal é reinvestida no circuito de reprodução da acumulação capitalista. Porém, a renda estatal não advém apenas da parte do mais-valor global drenada do processo de produção capitalista, pois grande parte dela é valor estacionário[5], ou seja, não é mais-valor, novo valor criado, mas apenas circulação (e desgaste) de valor já existente.
Assim, quando o aparato estatal funda uma nova escola, ele paga uma empreiteira para construir o prédio e a construção desse prédio é um valor novo que a renda estatal financia e permite, com isso, a extração de mais-valor de seus operários da construção civil, mas a obra pronta torna-se, depois de paga, valor estacionário[6]. O prédio não produzirá nenhuma nova riqueza e vai se desgastar com o tempo, gerando os gastos de manutenção. O mesmo vale para as carteiras adquiridas, etc. Essa é a parte do consumo produtivo direto do aparato estatal, que quanto maior, mais beneficia a reprodução ampliada do capital, e, quanto menor, mais gira em torno do valor estacionário, do trabalho morto, o que pode gerar desequilíbrios dependendo da situação.
O aparato estatal também interfere no processo de acumulação de capital através da regularização que é efetivada através de suas políticas pecuniárias (“econômicas”), tais como a política monetária, política fiscal e a política salarial. Assim, um conjunto complexo de leis, incentivos, ações, que atuam sobre a taxa de juros, a moeda, etc., interferem no processo de acumulação de capital, gerando resultados positivos ou negativos, dependendo das decisões tomadas, que, por sua vez, possuem múltiplas determinações[7], tal como as demais ações estatais.
Um outro aspecto nessa relação entre Estado e acumulação de capital é a de que há uma dependência entre ambos. O aparato estatal depende da acumulação de capital. No entanto, há uma interdependência, a acumulação de capital depende do aparato estatal, pois este pode efetivar políticas pecuniárias que incentivam e promovem uma maior acumulação de capital. Uma desaceleração da acumulação de capital significa um crescimento mais lento na produção de mais-valor (abstraindo as contratendências, que, concretamente, muitas vezes não se efetivam ou são pouco eficazes) e, portanto, o seu decréscimo proporcional em relação ao valor estacionário. Nesse caso, há uma diminuição da geração de riqueza e mesmo que o processo de redistribuição produza a ilusão do crescimento através do aumento do consumo, que pode ser gerado via uso de poupança, venda de mercadorias anteriormente produzidas e estocadas, etc., isso não corresponde à realidade. Devemos ultrapassar da ilusão sobre a realidade para entender a realidade da ilusão. A desaceleração da acumulação de capital acaba atingindo o conjunto da sociedade. O aparato estatal perde parte de sua arrecadação, tanto a direta quanto tendencialmente a indireta. Essa desaceleração, caso se prolongue por muito tempo, acaba, inevitavelmente, atingindo o processo de reprodução e promove uma diminuição geral da arrecadação estatal.
Assim, as políticas estatais em geral e as políticas pecuniárias, em particular, assumem uma determinada modalidade em cada fase do capitalismo, ou seja, em cada regime de acumulação. Podemos citar dois exemplos de políticas pecuniárias, a keynesiana, marcada pelo intervencionismo pecuniário, determinadas políticas salariais, fiscais e monetárias, típicas do regime de acumulação conjugado, e a política neoliberal, caracterizada pelo não-intervencionismo direto e determinadas políticas fiscais, monetárias, etc. Essas duas formas de políticas pecuniárias são derivadas do regime de acumulação e expressam a resposta do capital para determinada situação da luta de classes e das necessidades do processo de acumulação de capital.
No entanto, é preciso alertar que tais políticas pecuniárias não se instalam imediatamente em todos os países e nem da mesma forma, pois existem diferenças nacionais, lutas de classes internas, etc., que formam uma especificidade nacional. Além da diferença enorme entre o capitalismo imperialista e o capitalismo subordinado, há também outras determinações que atuam sobre as políticas pecuniárias. Entre elas, cabe destaque ao bloco dominante, com sua força maior ou menor em determinado momento, suas contradições internas, suas divisões, etc.[8] No caso brasileiro, havia uma determinada um governo neopopulista, possível por correlação de forças que permitiu o desenvolvimento de determinadas políticas pecuniárias. Enquanto estas conviviam com a manutenção do ritmo de acumulação de capital, e, por conseguinte, estabilidade financeira e política, poucos se opunham a tal governo. Quando tais políticas pecuniárias, devido sua indefinição, junto com incompetência e limites impostos pelo neopopulismo, começam a entravar a acumulação de capital por não promover mudanças necessárias, então altera-se a correlação de forças, o que somado à insatisfação de parte da população (e alguns setores começaram a sentir na carne as consequências da desaceleração da acumulação de capital), o governo se torna um obstáculo a ser removido.
As políticas pecuniárias são o resultado de múltiplas determinações e, nesse sentido, é preciso entender que sua dinâmica está diretamente envolvida nas lutas de classes e outros processos sociais. Um dos elementos mais importantes nas políticas pecuniárias é a repartição da renda estatal. A renda estatal é dividida em suas despesas autógenas (os salários, desde os mais altos aos mais baixos, do conjunto de empregados estatais, os recursos utilizadas em suas autarquias, fundações, etc., as despesas de manutenção, entre diversas outras, visando sustentar a imensa máquina estatal), as políticas de assistência social, a prevaricação, etc. Uma parte da renda estatal deve ser investida para subsidiar o capital produtivo, pois se não o fizer, estará criando um ponto de estrangulamento. Isso é ainda mais importante em determinados contextos, que podem exigir, inclusive, um crescimento nos gastos estatais voltados para esse setor[9]. Porém, se a máquina estatal gera despesas endógenas altas, isso limita a capacidade estatal de repartir parte da renda estatal com o capital produtivo e por isso surgem propostas de limitar os gastos estatais. Quanto maior a máquina estatal, maior suas despesas e maior é o quantum da renda estatal gasta endogenamente.
O mesmo vale para as políticas de assistência social (educação, saúde, etc.). No entanto, os gastos com tais políticas já são bem limitados, apesar do crescimento populacional gerar mais demandas e gastos, só que é a parte da renda estatal que há a menor pressão para sua manutenção. A prevaricação, as despesas autógenas, as despesas com o capital, tem forte pressão e interesses[10], enquanto que as políticas de assistência social não possuem a mesma força, pois ela depende das classes desprivilegiadas e do bloco revolucionário (e setores do bloco progressista menos aliados ao governo), que são relativamente fracos em seu poder de pressão. O combate à corrupção (parte da prevaricação) e a diminuição dos gastos com as políticas de assistência social são as duas formas mais adequadas para redirecionar os gastos estatais, ou seja, a repartição da renda estatal.
Assim, o aparato estatal depende da acumulação de capital e é peça importante para a continuidade do seu ritmo e, caso não faça isso, ameaça a governabilidade e pode decretar seu próprio fim. Desta forma, para compreender a dinâmica das políticas estatais, lutas internas, etc., é fundamental entender a dinâmica da acumulação capitalista, os regime de acumulação e suas mutações. Os ciclos dos regimes de acumulação ajudam a compreender esse processo, inclusive como as ideologias parecem verdadeiras e exatas nos momentos de estabilidade, mas mostram suas falhas nos momentos de crise, embora o aparato estatal e o capital tendem, geralmente, a tentar resolvê-la se movendo ainda no interior da ideologia hegemônica. É por isso que a desestabilização do regime de acumulação integral vem sendo enfrentada por vários governos com mais neoliberalismo (gerando um neoliberalismo discricionário marcado pelas políticas de austeridade), que não resolvem o problema, apenas possuem um impacto temporário benéfico para certos setores, mas que não se sustenta a longo prazo e cria novos problemas para o capital (a diminuição do consumo, por exemplo, o que gera novo impacto negativo no processo de produção de mais-valor, ou seja, de riqueza real)[11].
Toda essa análise teve o objetivo de analisar a relação entre Estado e acumulação de capital. Ao contrário das ideologias, desde as fetichistas que acham que o Estado tem vida própria e autônoma, passando pelas voluntaristas e outras, até chegar às pseudomarxistas, aqui o Estado é compreendido como um aparato, uma enorme máquina burocrática constituída por seres humanos reais, perpassado por um conjunto de interesses[12], que vive em função da renda estatal. A compreensão da relação entre aparato estatal e acumulação de capital remete, necessariamente, para a questão da renda estatal. Sem renda estatal, não há a imensa máquina burocrática que dá vida ao Estado, não há políticas de assistência social, não há corrupção, não há repressão estatal, não há ação estatal pecuniária para reprodução do capital.
A renda estatal é, por conseguinte, um conceito fundamental para compreender a relação entre Estado e acumulação de capital. Isso mostra um elemento que geralmente fica ausente nas análises politicistas do Estado e das políticas estatais. Essas análises, reducionistas, não compreendem que as lutas políticas são inseparáveis das lutas pecuniárias e das demais lutas e que o aparato estatal, mesmo em sua autonomia relativa, não está separado da sociedade, sob inúmeros aspectos (acumulação, ideologias, etc.). É fundamental, portanto, a análise da renda estatal para compreensão do Estado e de sua relação com a acumulação de capital. Da mesma forma, a análise da acumulação de capital é fundamental para compreender a renda estatal. Sem entender os regimes de acumulação, os seus ciclos, a sua manifestação concreta em cada país, momento, etc., fica difícil uma compreensão mais profunda do que ocorre em casos concretos, nas conjunturas, etc.
Por fim, uma última observação a se fazer é que há uma unidade entre acumulação de capital e interesses gerais da população. A desaceleração do ritmo de acumulação de capital atinge a renda estatal, o que significa diminuição da alocação de uma parte dessa para as políticas de assistência social. Também significa aumento de desemprego (e maior incapacidade do Estado minimizar o seu impacto), diminuição do consumo (que por sua vez reforça a pressão negativa sobre a acumulação), aumento da pobreza, etc. Logo, a desaceleração do ritmo de acumulação de capital prejudica a todos, não apenas ao capital produtivo. Quais as soluções? Aumentar a taxa de exploração, diminuir os gastos estatais com políticas de assistência social, diminuir a corrupção, etc.
Isso significa que cabe aos trabalhadores aceitarem o aumento da exploração, a diminuição de sua renda e nível de vida, o empobrecimento. Só assim ele pode ajudar ao capital e ao aparato estatal no processo de recuperação da acumulação. Isso pressupõe, também, o aumento do consumo, da destruição ambiental, etc. Essa comunidade de interesses, no entanto, significa uma vida cada mais degradante para os trabalhadores e uma riqueza cada vez maior para a classe capitalista. Depois do proletariado (alguns juntos com ele, como o lumpemproletariado) vem outros trabalhadores e depois setores da intelectualidade e burocracia, até chegar aos extratos superiores. Assim, os trabalhadores devem lutar para aumentar a sua exploração, pois somente assim se sustenta a acumulação de capital e é possível a reprodução da sociedade capitalista.
Isso pode parecer um mal necessário para alguns progressistas e uma “heresia” para os demais tipos de progressistas. Os trabalhadores possuem os mesmos interesses que os capitalistas? Eles devem aceitar a intensificação da exploração? Eles devem se unir ao capital? Essas são as questões que certos progressistas formulariam. E a resposta é sim, é exatamente isso. Ou é isso, ou é aumento de pobreza, desemprego, etc. e de exploração, mas agora contra a vontade dos próprios trabalhadores, pois excederia o limite do suportável. A solução, assim, parece uma não-solução.
Essa é a solução capitalista, pensada no interior da sociedade capitalista com suas contradições e processo crescente de deterioração e barbarização crescente. O que pode variar aí é o grau e a forma, um pouco mais ou um pouco menos, da forma democrática ou autocrática, etc. Dentro do capitalismo, só é possível pensar falsas soluções. Para encontrar uma real solução é preciso pensar para além da sociedade capitalista. Nesse caso, os trabalhadores possuem alternativa: a superação do capitalismo, o que significa não uma diminuição da exploração e sim sua abolição. E para isso é preciso um projeto de uma nova sociedade, que já foi esboçado em várias experiências revolucionárias e obteve várias contribuições teóricas sobre suas tendências, possibilidades e características. Isso significa que a única alternativa real para o proletariado e o conjunto das classes desprivilegiadas é a superação do capitalismo e instauração da autogestão social. O resto é apenas paliativo que apenas expressam uma maior degradação da humanidade.
Na primeira alternativa, a falsa solução, proletariado e burguesia devem ficar unidos. Na segunda e real alternativa, o proletariado se une contra a burguesia. A escolha é entre aumentar a própria exploração ou abolir a mesma. Os demais trabalhadores e classes sociais podem escolher entre uma vida medíocre, fútil e cada vez mais pobre, ou então lutar junto com o proletariado pela transformação radical e total das relações sociais. Daí termos que escolher entre duas opções antagônicas: autogestão ou barbárie.

Referências

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

MARX, Karl. O Capital. 3ª edição, Vol. 01, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 02. 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988a.

MATHIAS, Gilbert e SALAMA, Pierre. O Estado Superdesenvolvido. São Paulo: Brasiliense, 1983.

OLIVEIRA, Francisco. O Surgimento do Antivalor. Capital, Força de Trabalho e Fundo Público. Novos Estudos/Ceprap. Outubro de 1988.

VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas. Rio de Janeiro: Ar Editora, 2016.

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. 2ª edição, Rio de Janeiro: Rizoma, 2015b.

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Estado e Acumulação de Capital. Revista Enfrentamento. Ano 12, Num. 21, jan/jun. 2017.



[1] É sempre útil recordar algumas obviedades da teoria do capitalismo, tal como a distinção entre modo de produção capitalista, uma parte da sociedade, e a sociedade capitalista, a totalidade. A sociedade capitalista é composta pelo modo de produção capitalista, modos de produção subordinados e formas sociais burguesas. Logo, o conceito de modo de produção capitalista remete a uma parte da sociedade capitalista e este último conceito expressa a totalidade das relações sociais na modernidade.
[2] A mentalidade burguesa reproduz os elementos fundamentais da sociabilidade capitalista: competição, mercantilização e burocratização (VIANA, 2008).
[3] Esse processo é bem mais complexo e tem diversos desdobramentos que não poderemos abordar aqui, mas podem ser vistos em outra obra (VIANA, 2016).
[4] O cálculo mercantil é o processo de calcular o montante de dinheiro que possui ou recebe e o total de gastos que pode ter. Isto está presente no orçamento doméstico ou até mesmo quando um indivíduo vai numa feira fazer compra com 100 reais, pois ele sabe que não poderá gastar mais do que possui (a não se que se endivide). Obviamente que o cálculo mercantil do aparato estatal difere do realizado pelos indivíduos e famílias, pois ele é muito mais complexo do que alguns economistas pensam e por isso não é possível uma transposição mecânica da análise de um para outro (VIANA, 2016).
[5] Sobre isso, cf. Viana (2016). Esse é um dos problemas das estatísticas governamentais e outras, bem como de seus medidores, como o PIB (Produto Interno Bruto), pois não se verifica e não se diferencia entre o valor novo criado (geração de riqueza efetiva) e valor estacionário (distribuição e redistribuição do valor já criado). Além de problemas meramente estatísticos, isso gera o problema do crescimento ilusório do PIB, pois tal crescimento pode ser mera circulação do que já foi produzido e consumido. Diminuir a taxa de juros, por exemplo, tende a aumentar a circulação geral, mas não necessariamente a produção, e não ocorrendo isto, pode haver aumento do PIB que não se reverte em aumento real da produção de mais-valor e o valor estacionário vai apenas se desgastar e se esgotar, gerando mais problemas no processo de acumulação em médio prazo, que é quando a ilusão estatística cai por terra.
[6] Se há corrupção no processo, isso significa prevaricação, ou seja, “apropriação privada da renda estatal” (VIANA, 2016). A prevaricação, nesse caso, ocorre sob a forma da corrupção.
[7] Não poderemos desenvolver isso aqui, mas entre as determinações das políticas pecuniárias há a correlação de forças entre os setores do capital, bem como, em menor grau, da pressão popular. Outra determinação, ligada à primeira, está na ideologia dos economistas e demais responsáveis pela explicação e elaboração de políticas estatais. As ideologias podem provocar políticas equivocadas e gerar dificuldades crescentes, por ter uma percepção falsa da realidade e buscar falsas soluções. As disputas ideológicas (por exemplo, monetaristas versus estruturalistas) expressam distintos interesses, percepções, forças políticas, mas sempre com o predomínio de uma, que remete a determinado paradigma hegemônico.
[8] É o caso, por exemplo, do impeachment de Dilma Roussef, pois suas políticas pecuniárias neoliberais neopopulistas (que limitavam determinadas ações) eram inapropriadas para um aceleramento da acumulação de capital. Esse foi o motivo pelo qual o capital produtivo, que é o primeiro e diretamente atingido pela desaceleração da acumulação de capital, foi também o primeiro setor do capital a apoiar ativamente o impeachment (a FIESP foi a sua face mais visível). A consciência da burguesia (em suas várias frações e outras divisões) é precária, seja pela influência das ideologias (sistemas de pensamento ilusório, que traz momentos de verdade a partir das necessidades da burguesia, mas que tem limites intransponíveis), seja por sua representações cotidianas, e por isso muitas vezes demora para compreender as relações e tendências em determinado momento.
[9] Os gastos estatais para o capital produtivo podem ser repassados sob as formas mais variadas, inclusive através de subsídios, isenção de impostos, etc. Nesse último caso, o aparato estatal não arrecada e não reparte posteriormente. O problema desses processos é que eles são geralmente seletivos, ou seja, atendem apenas alguns setores do capital.
[10] Os diversos setores do capital pressionam a seu favor, a burocracia estatal (que inclui setores importantes para a reprodução do capitalismo, como o aparato repressivo – forças militares – e o aparato jurídico) pressiona para a manutenção das despesas endógenas (embora algumas delas sejam desconsideradas), e setores do capital e do aparato estatal pressionam a partir de seus interesses pela prevaricação. Quando a situação se torna insustentável, esses setores podem entrar em conflito, cada um querendo representar seus interesses, criando um movimento autofágico.
[11] Claro que os governos tentam contrabalançar isso com outras políticas, tais como redução de juros, etc., mas que não resolvem o problema e gera novas contradições.
[12] Esse não foi o foco de nossa análise, embora tenhamos colocado, em certo momento, a questão da burocracia estatal e seus interesses e do bloco dominante. Uma análise mais ampla desse processo pode ser visto em outra obra (VIANA, 2015). Aqui o foco foi a relação do aparato estatal e da acumulação de capital.

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