"Ronda Noturna", Rembrandt |
Arte, Especialização e Engajamento
Nildo Viana
A arte é envolta em mistério. Ela parece envolta em um segredo que somente os iniciados podem dominar. Sem a mistagogia artística, não se entende a arte. A obra de arte possui uma “aura”, e somente a iniciação no mundo dos seres humanos cultos e refinados permite a sua compreensão. A arte e a religião possuem elementos em comum e o caráter misterioso de ambas é que nos permite compreender este aspecto semelhante. Mas esta é a concepção transmitida pelos iniciados. Os não-iniciados não transmitem concepção sobre arte ou se ousam entrar neste mundo nebuloso, são taxados de ignorantes, insensíveis, ou qualquer outra palavra que revela que são inaptos para entender algo tão misterioso e sublime. Nossas considerações a seguir são as do não-iniciado, pois partem de uma perspectiva crítica. A crítica é um momento necessário para a superação da ilusão e a criação de um mundo sem ilusões, mesmo que estas apareçam como algo sublime, pois somente assim o ser humano pode reencontrar-se depois de ter se perdido.
A arte é alvo de polêmica e de várias definições, análises, reflexões, tanto da filosofia quanto das ciências humanas e, ainda, dos próprios artistas. A tendência geral é considerar a arte algo sublime e nós vemos isto nos mais variados pensadores, de várias épocas. Até mesmo Karl Marx, um autor crítico em tempo integral, se refere às “leis do belo” (Marx, 1983) e apresenta como exemplo de atividade humana criadora a obra de arte, o oposto do trabalho alienado. É claro que é preciso contextualizar as afirmações de um autor. Inclusive suas contradições. Bourdieu (1996) critica Marx equivocadamente quando este se refere às leis do belo (Viana, 2007a). É preciso perceber que Marx escreveu coisas contraditórias sobre arte e isto apenas mostra que seu pensamento, assim como o pensamento de qualquer outro indivíduo, não nasce acabado, mas vai se formando e se consolidando, e este processo não é isento de contradições.
Mas a referência à Marx tem apenas a intenção de iniciar uma discussão sobre a natureza da arte e seu caráter misterioso. O próprio Marx, que fez afirmações que parecem contribuir com uma certa concepção fetichista da arte, revelou o seu “segredo”: a arte, “propriamente dita”, surge na sociedade moderna (Marx e Engels, 1996). Ela está ligada com a divisão social do trabalho e a formação de especialistas no trabalho artístico, tal como também notaram os sociólogos Max Weber e Pierre Bourdieu (Viana, 2007a; Weber, 1995; Bourdieu, 1996). Assim, a arte é produto do processo de divisão social do trabalho e é obra de uma categoria social específica, formada pelos artistas, embora possam existir muitos “diletantes”.
E é esta categoria social específica que irá considerar a arte algo sublime. O processo de racionalização apontado por Weber expressa a constituição de uma categoria social e um saber próprio, que vai se desenvolvendo e se consolidando, criando uma lógica própria. É justamente isto que irá permitir o surgimento do que Bourdieu irá denominar “illusio” ou o “fetichismo da arte”. A expressão fetichismo recorda Marx é o fetichismo da mercadoria, que ele produz através da comparação com a religião. Aqui encontramos a origem do mistério da arte. A especialização provoca um processo de formação fundado na especialização e não só isso, pois também produz valores próprios, criando um processo de auto-valoração da atividade especializada por parte dos especialistas (Viana, 2007b). Os iniciados valoram o que é fundamental para eles, sua própria atividade. Assim se cria a “aura”, para utilizar expressão benjaminiana, ou o illusio, para utilizar expressão de Bourdieu[1].
Mas a grande questão talvez seja explicar por qual motivo aqueles que não são iniciados, isto é, aqueles que não são artistas, também valoram a obra de arte e atribuem a ela um caráter misterioso e sublime. O caráter misterioso é até certo ponto de fácil entendimento, pois os não-produtores das obras de arte, por não dominarem seu processo de produção, acabam vendo mistério onde só existe desconhecimento. Isto é reforçado pelo efeito sentimental que a obra artística pode exercer sobre os não iniciados (e não só estes). Uma música, um filme, um quadro, pode despertar sentimentos no indivíduo. Quando este não percebe que o sentimento é, na verdade, um encontro entre ele e o mundo que desperta algo interior, é possível atribuir tal sentimento à própria obra de arte e assim ela se torna algo sublime. Uma música pode fazer alguém chorar, tal como outras obras de arte, e o choro, tal como o sentimento que o gerou, é atribuído ao que é exterior e nunca ao ser humano que chora. “O filme é belo, pois me fez chorar” é uma frase possível, ao contrário de “eu tenho sentimentos, por isso eu choro e considero este filme como sendo belo, por expressar tais sentimentos”[2], pois no mundo capitalista, marcado pela frieza e pela coisificação, o passivo se torna ativo e o ativo se torna passivo, ou, em linguagem positivista, o sujeito se torna objeto e o objeto se torna sujeito. Ou, ainda, uma frase mais “marxista”: os seres humanos são coisificados e as coisas são “humanizadas”. Em poucas palavras, não existe nenhuma beleza nas coisas, sejam elas naturais ou produtos humanos, tal como na distinção hegeliana entre “belo natural” e “belo artístico”. A beleza é uma atribuição que os seres humanos fornecem às coisas e não um atributo delas. Uma paisagem só é bela por esse motivo.
Mas de onde vem tal atribuição? Fundamentalmente dos valores dos indivíduos que fazem tal atribuição. Se um indivíduo considera a paisagem X algo belo, ou se outro indivíduo a considera feia, ou se ambos consideram Mozart um gênio da música, isto se deve ao processo de formação deste indivíduo e dos valores que ele desenvolveu em sua vida. Os valores vão se formando desde a infância e estão ligados também à divisão social do trabalho. As classes sociais possuem um processo de vida diferenciado, e devido a isto possuem valores também diferenciados. Estes valores diferenciados, no entanto, convivem com valores comuns, pois os valores dominantes são os valores da classe dominante, para parafrasear Marx. Mas além da divisão de classes existem outras divisões sociais e neste contexto temos uma produção de valores diversificados. O ser humano vive numa sociedade dividida e subdividida e acaba entrando em contato com valores diferentes dos seus e do seu círculo mais próximo (família, comunidade, etc.) e podem ir alterando, mesclando, adaptando. É por isso que todo indivíduo possui uma escala de valores e no seu interior existem valores contraditórios, bem como alguns valores que são fundamentais e estes são os mais importantes para se compreender o indivíduo. Quando um indivíduo passa de uma classe social para outra, isto se complexifica, pois ao lado de valores que permanecem e outros que são paulatinamente abandonados ou escondidos, temos os novos valores, muitas vezes incorporados tranqüilamente, pois já existem de forma embrionária no indivíduo, pelo menos enquanto forma de desejo, e em vários casos de forma ambígua e contraditória (Viana, 2007b).
Mas o que nos interessa aqui é que os valores são constituídos socialmente. Nenhum indivíduo nasce gostando de ópera, mas é possível que alguém que goste e a considere “sublime”, queira que as demais pessoas gostem e até mesmo impor tal gosto aos demais. De qualquer forma, os gostos são produtos sociais e não existe nenhum critério na obra de arte que escape ao processo valorativo. Por exemplo, muitos dizem que o critério para definir se obra de arte X é melhor que Y é o critério técnico. No entanto, não percebe que a técnica também precisa de justificativa para ser o critério. A valoração de determinada obra de arte acaba remetendo à técnica, que, por sua vez, não recebe nenhuma justificativa. A técnica só é critério a partir de determinados valores. E não deixa de ser curioso lembrar que quem domina as técnicas são os especialistas, os artistas.
Esta posição não é relativista? Aparentemente sim, mas, no fundo, não. Os valores são constituídos socialmente e a avaliação das obras de arte é derivada deles, mas isto não quer dizer que eles sejam equivalentes. Obviamente que tal colocação pode ser considerada uma valoração, mas isto não muda nada no argumento. Os valores não são equivalentes pelo motivo de que eles estão ligados a determinados grupos sociais e interesses e, dependendo de quais são estes, podem ser compatíveis com o interesse da emancipação humana ou antagônico a ele (Viana, 2007b). Isto perpassa não somente a avaliação da obra de arte como também o seu processo de produção. A produção de uma obra artística é feita tendo por base determinados valores, que são dos seus produtores. É neste contexto que podemos compreender a divisão de concepção dos objetivos da produção artística e, por conseguinte, a questão da arte engajada.
Podemos utilizar a distinção mais simples e que é a das duas tendências que historicamente foram mais significativas: a “arte pela arte” e a “arte engajada”. Claro que poderíamos falar da “arte burguesa” ou “arte pelo dinheiro”, amplamente desenvolvida pela indústria cultural, ou da divisão no interior do que se chama “arte engajada”. A “arte pelo dinheiro” é um subproduto artístico orientado pela cultura mercantil e por isso é dominada pelos valores dominantes e desligada dos valores da categoria social dos artistas, ou melhor, ligado aos artistas venais. Daí estes mesmos fazerem a sua crítica (basta ver as expressões “brega”, “trash”, etc., para se perceber isto). A “arte pela arte” é a posição que explicita de forma cristalina os valores da categoria profissional dos artistas, que tendem a torná-la um valor fundamental, o que está de acordo com o processo de especialização e criação de interesses e valores próprios.
Assim, resta a arte engajada. A arte engajada pode se transformar em arte para determinado grupo, expressando interesse de determinada classe social, cujo objetivo pode ser a dominação, ao invés de ser arte emancipatória. A arte fascista e a arte bolchevista se enquadram aí. No entanto, esta arte engajada não ultrapassa certos limites e por isso mantém muitas coisas em comum com a “arte pela arte”. A arte engajada ligada aos interesses da emancipação humana é aquela que rompe tanto com o que Marx denominou “idiotismo da especialização”, expresso na defesa da “arte pela arte”, quanto na submissão da arte a interesses vulgares, de grupos ou da dominação (“arte pelo dinheiro”, ou a serviço do Estado, do partido, etc.).
Que engajamento é este então? O que ele significa? Em primeiro lugar, devemos dizer, como Sartre, o que ela não é:
Se você quer se engajar, escreve um jovem imbecil, ‘o que está esperando para se alistar no PC [Partido Comunista – NV]? Um grande escritor, que se engajou muitas vezes e se desengajou mais vezes ainda, mas já se esqueceu disso, me diz: ‘os piores artistas são os mais engajados: veja os pintores soviéticos’. Um velho crítico se queixa discretamente: ‘você quer assassinar a literatura; o desdém pelas Belas-Letras se manifesta com insolência na sua revista’. Um espírito tacanho me chama de rebelde, o que para ele, evidentemente, é a pior das ofensas. Um escritor que a custo conseguiu arrastar-se entre as duas guerras, e cujo nome por vezes desperta lânguidas reminiscências nos anciãos, me recrimina a ausência de preocupação com a imortalidade: ele conhece, graças a Deus, inúmeras pessoas de bem para quem a imortalidade é a grande esperança. Na opinião de um foliculário americano, o meu erro é nunca ter lido Bergson e Freud; quanto a Flaubert, que jamais se engajou, acha que ele me obsedia como um remorso. Os espertos piscam o olho: ‘E a poesia? E a pintura? E a música? Pretende engajá-las também? Logo perguntam os espíritos marciais: ‘Do que se trata? Literatura engajada? Ora, é o velho realismo socialista, a menos que seja uma nova versão do populismo, mais agressiva’ (Sartre, 1989, p.7).
Sem dúvida, não concordamos com todas as teses de Sartre e isto se aplica à sua concepção de literatura. Mas o parágrafo citado mostra bem a oposição à arte engajada (no caso, Sartre aborda a literatura) e uma determinada concepção vulgar do que ela é. A verdadeira arte engajada não é a do Partido Comunista, a do realismo soviético e coisas do gênero e sim aquela que não se faz por dinheiro ou “por si mesma” (o que, no fundo, quer dizer pelos artistas enquanto grupo social especializado e com interesses próprios). É a arte a favor da liberdade humana autêntica, da libertação humana. Neste sentido, muitas obras ou artistas poderiam ser citados, tais como Franz Kafka, Lima Barreto, Michael Ende, George Grosz, René Clair, entre inúmeros outros.
Assim, é preciso entender o que significa arte engajada. A arte engajada é aquela arte que mostra um engajamento do artista, que mostra seu compromisso com a emancipação humana, isto é, com a libertação humana de toda forma de exploração, dominação, opressão. O artista engajado não é o artista que é filiado a algum partido político ou que faz obra para este, nem é o que o faz para o Estado, a Igreja, ou qualquer outra instituição reprodutora da sociedade burguesa. O artista engajado é o que luta pela libertação humana, o que significa que manifesta uma posição crítica tanto diante da sociedade burguesa em sua totalidade quanto da própria esfera artística, sendo um antagonista dela, mesmo atuando em seu interior, como ocorre em alguns casos. Ao negar a esfera artística, é marginalizado no seu interior e considerado como um não-artista e se isso não é explicitado por tal artista, sua posição diante da sociedade capitalista é motivo suficiente para ser repreendido pelos artistas integrados no capitalismo que defendem a ideologia da “autonomia da arte”[3].
Assim, o engajamento significa superação intelectual da especialização e dos valores, sentimentos, concepções produzidas pela esfera artística, por um lado, e crítica e recusa da sociedade burguesa, por outro, produzindo uma arte crítica e revolucionária, utópica. É somente a partir de uma posição utópica, ligado a um processo de luta contra a sociedade burguesa e a esfera artística, que é possível expressar artisticamente o proletariado, a classe social que carrega em si a potencialidade revolucionária. Neste sentido, a superação do fetichismo da arte é uma característica da arte engajada, pois não se defende a arte pela arte e sim a arte emancipadora e que permite o desenvolvimento das múltiplas potencialidades humanas em seu fazer. Da mesma forma, as produções artísticas de qualidade maior são justamente as da arte engajada, pois são as que revelam os valores, sentimentos e concepções mais importantes e que apontam para a emancipação humana, pois revelam valores autênticos, sentimentos e concepções que expressam o que de melhor a humanidade produziu. A arte não engajada, seja ela comercial ou elitista, apenas enfeita a prisão humana existente, ou, no máximo, denuncia o enferrujamento das grades ou reivindica que os prisioneiros devam se dirigir autonomamente para as celas. Assim, a opção é: arte engajada ou barbárie artística. E isto não é um problema só dos artistas e sim de todo ser humano, inclusive dos ideólogos que querem defender a autonomia da arte, contribuindo assim com a reprodução do fetichismo da arte. Esses, inclusive os mais avançados e de “esquerda”, são bárbaros que mesclam valores axionômicos com axiológicos e por isso podem recusar ambiguamente a sociedade burguesa e reproduzir aspectos dela, tal como a ideologia da autonomia da arte. Para os artistas engajados e para os engajados que atuam em outras esferas da sociedade, a recusa da especialização (logo, com a defesa da esfera artística) e da sociedade capitalista em sua totalidade é o diferencial e, ao mesmo tempo, a mudança na concepção de arte e artista é o caminho para contribuir com a libertação humana e realizar uma produção artística axionômica, libertária. Isso significa a superação da arte especializada e profissional, contribuindo com a superação da sociedade atual, e, simultaneamente, a produção de uma arte engajada, libertária, uma arte que expressa a práxis e não reproduz o fetichismo. A arte engajada é uma exigência da ética libertária e da necessidade de libertação humana, o resto é ideologia, fetichismo, axiologia, elitismo, reprodutivismo.
Notas
Notas
[1] Isso vai interferir na definição do que é arte e de sua qualidade. Segundo nossa definição, toda “expressão figurativa da realidade” é arte (Viana, 2007a). Assim, se os elitistas quiseram questionar se o filme é uma obra de arte, a partir desta definição não há dúvida possível sobre isso e o mesmo ocorre com as histórias em quadrinhos, ainda hoje vistas com preconceito.
[2] Isto quer dizer, eu tenho determinados sentimentos e o filme apenas os despertam e ao fazê-lo, mostra uma qualidade que, no fundo, depende do assistente, que, sendo insensível para certas coisas, não irá sentir nada. É por isso que um filme pode buscar despertar sentimentos nos assistentes e nem sempre consegue. Porém, como nem sempre o sentimento é controlado racionalmente, muitas vezes consegue, a contragosto de determinados assistentes devido a valores axiológicos e concepções coisificadas. Em síntese, o filme repassa determinados sentimentos, mas não os cria, tal como a música, etc. Obviamente que um filme (ou música, etc.) desperta bons sentimentos, é um mérito seu e daí sua qualidade, mas que não é algo intrínseco a toda obra de arte, pois muitas são coisificadas e repassam apenas insensibilidade ou sentimentos destrutivos.
[3] Obviamente que existem artistas engajados que possuem certas imprecisões, ambigüidades, etc., que é derivado, principalmente, de um problema de formação teórica limitada ou, em alguns casos, de valores contraditórios ou pressões sociais, etc. Porém, aqui colocamos o artista engajado que é livre destas contradições.
Referências Bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
MARX, Karl & Engels, Friedrich. Sobre Literatura e Arte. 4a edição, São Paulo, Global, 1986.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo, Martins Fontes, 1983.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a Literatura? São Paulo, Ática, 1989.
VIANA, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre, Zouk, 2007a.
VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília, Thesaurus, 2007b.
WEBER, Max. Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música. São Paulo, Unesp, 1995.
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