OS INTELECTUAIS E O VOTO NULO
Nildo Viana
Não deixa de
ser curioso como uma grande parcela da intelectualidade resolve abrir mão de
sua mesquinha “neutralidade de valores” em época de eleições. Mais curioso
ainda são as afirmações e posicionamentos contra o voto nulo. Afinal de contas,
qual é o problema de certos intelectuais que não só se posicionam a favor de
determinados candidatos como ainda criticam outros candidatos e até voto nulo?
A
intelectualidade é uma classe social que tem várias subdivisões e expressa
diversas concepções políticas no seu interior. Uma forte tendência é ela ser
“progressista”, embora isso não signifique muita coisa. Alguém progressista é
que apóia mudanças, vota nos partidos ditos de esquerda, etc. Essa parcela, no
caso brasileiro, apóia Dilma Roussef no segundo turno. Sem dúvida, muitos
apóiam a candidata petista por interesse próprio ou por ser governista, ao
invés de ser realmente progressista. O interesse próprio pode ser a política do
governo para as universidades, incluindo o Reuni, que aumenta verbas para a
universidade e, ao mesmo tempo, diminui a qualidade e precariza o trabalho
docente (concurso para aulistas de 20 horas, por exemplo). É uma versão
neopopulista do neoliberalismo. Talvez seja “menos ruim”, o que significa que é
ruim e ao invés de escolher o menos ruim, a população e os intelectuais
necessitam se organizar e arrancar pela sua própria força as mudanças e não
depositar um voto numa urna para um governo que vai seguir os ditames do grande
capital, de forma mais ou menos autoritária.
O PT há muito
tempo é uma versão do neoliberalismo. É a sua versão mais populista e que faz
algumas políticas sociais paliativas e apresenta pseudo-soluções para questões
sociais como a fome, etc., sem nada, no fundo, resolver. Inclusive faz o jogo
das estatísticas, que iludem os ingênuos, com um suposto progresso que na
realidade concreta não aparece. Os intelectuais possuem interesses próprios,
além dos pessoais, o interesse de classe. E esse interesse é conservador e por
isso a intelectualidade, mesmo a progressista, é conservadora, no sentido de
que não rompem com as relações sociais que lhe constitui como classe e reproduzem
a sociedade capitalista, aliás, é para isto que ela existe: produzir
ideologias, legitimar o capitalismo, justificar a sociedade existente, além de
produzir técnicas, tecnologias, etc., para reproduzir o que existe. Sem dúvida,
nem todos os intelectuais fazem isso, mas é a classe que realiza isso e as
exceções são justamente daqueles que não se identificam com sua classe e seus
interesses, ou seja, não são aqueles que supervalorizam a ciência e o saber,
base de legitimação da intelectualidade. Assim como também existem aqueles que
realmente votam e defendem determinadas posições político-partidárias com boa
intenção e por opção política, mas é uma parte minoritária da classe. Trata-se
de uma parte iludida da intelectualidade, cuja desilusão poderá significar adesão
à nova ilusão (um “novo partido”), ou recusa do sistema partidário e eleitoral,
a ruptura com as ilusões.
Os manifestos
de apoio à Dilma Roussef e os atos mostram apenas a debilidade de grande parte
da intelectualidade brasileira. O PT foi formado com participação de diversos
intelectuais, um de seus setores mais fortes, embora muitos tenha se tornado
políticos profissionais ou burocratas. As saídas e rachas do PT foram apenas
expressão do caminho crescentemente conservador desse partido. Porém, isso se
deu mais com agrupamentos políticos e jovens do que com os intelectuais, a não
ser alguns que foram para outros partidos supostamente de esquerda. O problema
fundamental se encontra nos compromissos de setores da intelectualidade que
provocam a perda da razão na defesa dos seus candidatos. O exemplo clássico
aqui é Marilena Chauí, uma das mais renomadas intelectuais do Brasil, e que
produziu obras que, por mais que consideremos problemáticas e com equívocos, tem
(teve, para ser mais exato) determinado valor e repercussão. Porém, a Marilena
Chauí que foi das origens do PT, que escrevia na revista dos “autonomistas” do
partido, a Revista Desvios, e que escreveu obras sobre cultura e ideologia, foi
sendo substituída por outra Marilena Chauí. Em seu lugar apareceu a Secretária
de Cultura do Município de São Paulo, durante a prefeitura de Luiza Erundina
(1990-1993), passando a querer ser respeitada
pelos colegas e temida pelos inimigos, como disse certa vez em entrevista.
A filósofa saiu e em seu lugar apareceu a secretária, política, governante,
propagandista. Porém, depois disso, as temáticas e livros da filósofa assumiram
outro tom e agora aparece a apologista do
governo petista e da candidatura Dilma Roussef. A decadência se manifesta
no vídeo onde afirma que Serra seria uma ameaça à democracia. A filósofa usa
toda sua capacidade retórica para repetir o discurso do horário eleitoral, emprestando seu nome e fama para a
propaganda política. Os exageros e alarmismos aparecem para manipular os
eleitores. A conquista de eleitores é o grande objetivo, e aí os
“públicos-alvo” da filósofa são os ambientalistas, as mulheres e outros
segmentos (cada argumento é para um público-alvo específico). A “Marina tem o
PT no coração”... Isso quer dizer que os ambientalistas e eleitores de Marina
devem votar no PT, apesar da própria Marina não ter dito isso em lugar algum e
optado por não apoiar nenhum dos candidatos. Mais um jogo retórico que convence
os incautos.
A filósofa
crítica passa a ceder para as pesquisas de opinião pública que mostram uma boa
avaliação do governo Lula e cita um jornal conservador que não respeita tal
opinião. Ao mesmo tempo, havia defendido a liberdade de opinião e expressão. O
referido jornal não teria tal liberdade, pois estaria contra a opinião pública.
Liberdade de opinião! Por isso quem é contra Serra (Maria Rita Kehl), não
poderia ser demitida! E o jornal ousa ter “liberdade de opinião”. Conclusão: liberdade de opinião sim, mas apenas para
quem concorda com a minha...
Também diz que
o Serra venceu nas regiões “ruralistas”, de “desmatamento”, etc. e desqualifica
os votos desta região, caindo novamente em contradição com sua defesa da
liberdade de opinião e respeito pela opinião pública. Essa é a máxima petista:
defendemos a liberdade de opinião, dos
que concordam conosco! Defendemos o respeito pela opinião pública, quando ela está a nosso favor! A
filósofa que em seus escritos antes de seu partido chegar ao poder, denunciava
a ideologia, mostrava que pretensos discursos contra a sociedade burguesa no
fundo não apontavam para uma crítica de seus fundamentos, agora reproduz o que criticava. Chauí exemplificava
essa questão, em seus textos antigos, com a discussão sobre feminismo e crítica
do poder burguês, já que relaciona opressão da mulher e capitalismo. Daí o
exemplo de ideias defendidas por determinados concepções feministas:
“1)
a de que as mulheres não devem se sujeitar à ideologia da inferioridade nem à
ideologia dos papéis sociais, mas devem lutar por igual direito ao trabalho;
2)
a de que as mulheres não devem continuar se submetendo ao poderio masculino e
devem defender a liberdade do uso do corpo, porque este é propriedade delas e
não dos homens (maridos, filhos, chefes, etc.).
Aparentemente,
tais movimentos parecem estar lutando contra o poder burguês, pelo menos no seu
aspecto discriminatório. Porém, se analisarmos as duas ideias defendidas, o que
veremos? Defender a igualdade no mercado de trabalho não é criticar a
exploração capitalista do trabalho, mas é mantê-la, fazendo com que as mulheres
tenham igual direito de serem exploradas e de realizarem trabalhos alienados.
Seria preciso que as mulheres, como movimento social, pudessem levar a cabo a
crítica do próprio trabalho no modo de produção capitalista, em vez de
desejarem virar força de trabalho. Por outro lado, defender a liberdade de usar
o corpo porque este é propriedade privada da própria mulher e afirmar que tal
direito define a mulher como pessoa autônoma, é esquecer de que um dos pilares
da ideologia burguesa, na sua forma liberal, é justamente a definição dos
seres humanos por algo chamado de “direito natural” e que seria o direito à
posse e ao uso do próprio corpo, posse que nos torna livres, liberdade que é
necessária para formular a ideia burguesa de contrato (...). Ora, vimos como
Marx descreve o surgimento do trabalhador “livre” necessário ao capital: o
homem que tendo apenas a posse de seu corpo, que estando despojado (“liberado”)
dos meios e instrumentos do trabalho, tem o “livre” direito ao uso de
seu corpo, vendendo-o no mercado da compra e venda da força de trabalho. E
vimos, com Hegel, como a definição burguesa de pessoa é sinônima ou a versão
jurídica do proprietário privado. Assim, a luta feminista pode realizar-se sem
por em questão a hegemonia burguesa (Chauí, 1984, p. 112).
Essa era a Marilena
Chauí. O que ela virou hoje? Virou uma ideóloga, tal como ela usa o conceito em
seu livrinho, a serviço do poder e reproduzindo ideologias conservadoras. Ela
termina sua exposição, no vídeo do youtube (abaixo) dizendo que teremos uma
“mulher na presidência”. Ela viu um negro na presidência dos EUA (Obama), um
operário na presidência do Brasil (Lula) e agora uma mulher, Dilma. A ideologia
é tão explícita que nem necessitaria comentário. Lula chegou à presidência, mas
ser operário é pertencimento de classe que ele não tinha mais, já havia se
tornado um burocrata de partido a décadas e nunca um operário será presidente,
pois sendo presidente deixará de ser operário. Um negro na presidência ou uma
mulher, o que quer dizer? Apenas manipulação retórica para conseguir votos dos
negros e das mulheres. Porém, nada vai mudar para os negros e as mulheres.
Dilma é uma mulher e, caso seja eleita, isso nada significará ou apenas revela que
ela será governante, servindo para reproduzir as relações de produção
capitalistas e as bases que geram a opressão da mulher. Chauí faz a operação
ideológica de transformar Dilma em representante das mulheres por ser mulher,
abstraindo, ideologicamente, que ela expressa determinadas concepções
políticas, interesses, que não são os da emancipação da mulher e da
transformação social e que o cargo de presidente tem o papel de reproduzir as
relações de produção capitalistas, ou seja, conservar. Um lugar no mercado de
trabalho para as mulheres é um equívoco – afirmação correta da filósofa em sua
obra dos anos 1980 – e uma mulher na presidência da república deveria ser
entendido como um equívoco muito maior. Até para alguém que é conservador e não
quer a superação do capitalismo, a grande questão não é o sexo da candidata e
sim o que ela propõe efetivamente para colaborar com uma mudança na situação
das mulheres na sociedade capitalista. Da mesma forma, Obama é negro e
presidente, e nada mudou na vida dos negros norte-americanos. A base social do
racismo, da exploração, etc., continua e um negro na presidência não é nada
mais do que um indivíduo que exercerá o poder e este existe para reproduzir o
capitalismo, a base social do racismo, da opressão da mulher, etc., e, logo,
nada adiantará. Claro que para os petistas adiantará muito, afinal, quantos
cargos para homens, mulheres, negros, brancos, etc., não estarão disponíveis,
claro, para os petistas e seus aliados.
(A continuação pode ser vista em três outros vídeos disponíveis no Youtube, clique aqui)
A filósofa chega a denunciar que dia 29 no comício do Serra ocorrerá um ato de violência feita pelos partidários deste com camisas do PT para incriminá-lo. A fonte de tal informação teria sido uma “conversa no bar” de duas pessoas... Isso é a decadência de qualquer raciocínio mesmo não filosófico. Condena-se Serra por um ato que não aconteceu e que seria grave e a única fonte é uma conversa de bar de duas pessoas não identificadas. Mas se não ocorrer, para quem acreditar nisso, Serra já está condenado (inclusive se pode dizer depois: nós denunciamos e eles voltaram atrás...) e o reino da boataria vai se tornar mais importante do que os atos reais dos indivíduos.
A questão fundamental é que o discurso a favor da democracia (e que afirma que Serra é uma ameaça a ela) é feito de forma não-democrática. O ataque constante ao voto nulo e aos seus defensores, mostra o seu caráter autoritário e antidemocrático (mesmo no sentido restrito e burguês do termo). A opinião pública só vale para os que pensam igual. Isso ocorre justamente porque o problema da democracia é seu caráter burguês e que ocorre no conjunto das relações sociais da sociedade burguesa. Os anarquistas, autogestionários e outros não podem existir, pois votam nulo e a democracia constrange os indivíduos a aceitá-la tal como existe, e a autogestão social, o fim da falsa democracia onde a população é manipulada pela pseudoesquerda e pela direita, é algo impensável e inaceitável. É possível disputar o poder, mas não negar o poder. A única opção eleitoral válida hoje é o voto nulo, pois a pseudoesquerda representada pelo PT nada constitui de benéfico para a população e para os explorados e oprimidos. As razões do voto nulo já foram bastante discutidas em uma publicação voltada para isso (clique aqui para acessá-la).
Antes de terminar, é necessário, para agradar aos petistas e antecipar críticas desonestas que alguns fazem, que não se trata de defesa de José Serra, que é, realmente, um representante da classe dominante em sua ala mais conservadora neste segundo turno. Porém, Dilma também é representante da classe dominante. As diferenças são poucas. Por exemplo, quem ficará com os cargos, o PSDB e seus aliados, ou o PT e seus aliados? Claro que outras diferenças nas ações políticas, questões pontuais, etc., também existem, mas é superestimada. Não existem, nem da perspectiva burguesa e conservadora, projetos políticos distintos, o que existe são algumas propostas pontuais diferenciadas. José Serra é tão pouco democrático quanto Dilma, e o confronto com estudantes que pregavam voto nulo em local que este faria entrevista coletiva (clique aqui para acessar esta notícia) demonstra isso. A questão é que quem tem o poder o exerce e quem luta pelo poder tem que silenciar o outro. Tanto Serra quanto Dilma querem silenciar o voto nulo, e por isso alguns filósofos e intelectuais na USP enfatizaram isso. Sim, é preciso silenciar toda oposição que questiona as bases da sociedade capitalista. Os petistas são mais ofensivos nesse caso por uma mera questão eleitoral, pois avançou o número de pessoas intelectualizadas que apóiam o voto nulo, que é um lugar onde os votos são majoritariamente da pseudoesquerda, inclusive composta por intelectuais.
Assim, podemos encerrar voltando ao caso dos intelectuais. Figuras que supervalorizam sua própria prática e profissão, os intelectuais são, no fundo, grandes conservadores, que vão desde os extremos autoritários/meritocráticos aos pseudodemocratas da pseudoesquerda. Obviamente, e felizmente, existem exceções e estas aumentam em determinados contextos e situações. A “traição dos intelectuais”, denunciada por Julien Benda (2007), é uma ideologia dos intelectuais, que querem dizer que são neutros. Essa traição seria aqueles intelectuais que defende nação, raça, classe ou partido. É um discurso conservador e que apenas reproduz interesses de classe da intelectualidade. Porém, se fosse possível falar em “traição dos intelectuais”, poderíamos dizer que tal traição é quando se agride e subestima a inteligência alheia.
Este é o exemplo do vídeo de Marilena Chauí, e que demonstra que, apesar do seu passado e seus méritos (o que não significa passar por cima dos seus equívocos), o que a corrupção política não faz com os indivíduos: faz ele fazer tudo que criticava, faz usar sua capacidade intelectual não para esclarecer, que seria o ideal da ação do intelectual, e sim para obscurecer. O intelectual pode usar, assim, o “discurso competente”, termo usado pela própria Marilena Chauí (1989), para causas muito pouco nobres. E esse é o caso dos intelectuais uspianos preocupados com o voto nulo através de discursos simplistas fazendo de conta que não conhecem ou sabem as razões e fundamentação de quem defende o voto nulo (para ver notícia sobre isso, clique aqui). Os intelectuais são traidores não de sua classe, mas de sua humanidade quando substituem o compromisso com a verdade pelo compromisso com o poder ou com benefícios pessoais ou de classe, com tudo que é derivado disso. Assim, os vendilhões do templo da academia vendem sua alma ao diabo, seja da direita ou da pseudoesquerda. Parece um leilão, onde “quem dá mais” acaba vencendo a competição, e depois de “dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três”, resta a palavra: “vendido!”
Os intelectuais devem abandonar sua identificação com a intelectualidade como classe e suas históricas justificativas ideológicas (neutralidade, autonomia dos intelectuais, vocação pseudouniversalista, etc.) e se tornarem engajados, como propunha Sartre (1994). Não se trata do “engajamento” em partido político, algo que entra em contradição com a luta pela emancipação humana. Trata-se de um engajamento que aponta para a crítica das ideologias, a autocrítica perpétua, associação sem reservas com as classes exploradas. E isto leva a um processo de luta contra a reprodução da ideologia nas classes exploradas, tal como o culto da autoridade, usar o saber acumulado para contribuir com o desenvolvimento cultural das classes exploradas, incentivar a produção de cultura e saber por indivíduos do proletariado, recuperar a finalidade do intelectual: liberdade de pensamento, busca da universalidade do saber e da verdade, lutar contra todo tipo de poder, inclusive de partidos que dizem representar a classe operária, sendo guardião dos objetivos históricos e da unidade entre meios e fins. Isso tudo não é o que vem sendo feito pelos intelectuais que acriticamente defendem candidatos ao invés de questioná-los, que ficam do lado do poder ao invés do lado dos explorados e oprimidos. Porém, muitos deles podem desenvolver a consciência disso e mudar de rumo e assim trocariam sua causa pobre por uma causa nobre e ao invés de apoiar candidatos, apoiariam as classes exploradas e a auto-organização destas, e assim lutariam pelo voto nulo como primeiro passo para a desmistificação da pseudoliberdade eleitoral e para superar ações ilusórias por luta concreta pela emancipação humana.
Referências
Benda, Julien. A Traição dos Intelectuais. São Paulo, Peixoto Neto, 2007.
Chauí, Marilena. Cultura e Democracia. São Paulo, Cortez, 1989.
Chauí, Marilena. O Que é Ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1984.
Sartre, Jean-Paul. Em Defesa dos Intelectuais. São Paulo, Ática, 1994.
Viana, Nildo. A Intelectualidade como Classe Social. Revista Espaço Acadêmico, Ano VI, num. 63. Agosto de 2006. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/063/63esp_viana.htm acessado em: 01/06/2010.