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terça-feira, 19 de dezembro de 2017

SOCIOLOGIA CRÍTICA E ESFERA CIENTÍFICA


SOCIOLOGIA CRÍTICA E ESFERA CIENTÍFICA

Nildo Viana


A dinâmica das esferas sociais se reproduz no interior das subesferas. A esfera científica possui uma dinâmica própria e específica ao lado da reprodução de elementos gerais comuns a todas as esferas sociais. Esse processo ocorre também no caso da subesfera sociológica. A chamada “sociologia crítica” pode ser melhor compreendida através da análise da dinâmica interna da subesfera sociológica e da dinâmica externa, através da análise da produção sociológica e suas determinações sociais.
O termo “sociologia crítica” é de uso tradicional no interior do pensamento sociológico. Ele marca um campo que aglutina determinadas tendências no interior da sociologia e marca uma oposição entre duas formas de conceber e praticar a sociologia: uma que seria eminentemente “crítica” e outra que não possuiria tal caráter. Esta oposição, no fundo, está presente na esfera científica em geral, especialmente nas ciências humanas, apesar de nem sempre se manifestar através destes termos, o que ocorre na subesferas sociológica e geográfica, mas não em outros casos.
O termo crítica é usado em vários sentidos. Para qualificar o que se convencionou denominar sociologia crítica é preciso entender esta expressão nos próprios termos desta tendência. Segundo Martins, “a formação e o desenvolvimento do conhecimento sociológico crítico e negador da sociedade capitalista sem dúvida liga-se à tradição do pensamento socialista, que encontra em Marx (1818-1883) e Engels (1820-1903) a sua elaboração mais expressiva” (MARTINS, 1998, p. 52). Assim, tal como no caso da geografia crítica, a sociologia crítica se confunde com o marxismo, pelo menos num primeiro momento e de forma mais permanente.
Qual o significado do conceito de crítica no pensamento marxista? Não buscaremos reconstituir a gênese deste conceito em Marx, tal como alguns fizeram (ASSOUN e RAULET, 1981) e sim apresentar sinteticamente o seu significado. Para Marx, a crítica não é um objetivo em si mesmo, ela é o pressuposto de algo, não é um fim, mas um meio. Para descobrir a função da crítica é preciso compreender sua estrutura e seu fundamento. A sua estrutura é a superação, seja da inversão da realidade (ideologia, entendida como sistema de pensamento ilusório), seja da realidade que produz esta inversão (modo de produção fundado na divisão de classes e exploração). Essa superação revela o seu objetivo: a transformação social. Porém, como a crítica não é um objetivo em si mesmo, ela também não pode surgir do nada, ela deve ser expressão de algo que seja a superação prática da realidade existente e seu prolongamento ilusório. A superação prática do capitalismo se materializa no proletariado, tal como Marx afirmará em suas obras (MARX, 1988). Em síntese, a crítica é um projeto de superação das ideologias e ilusões e da realidade social que as produz cujo objetivo é expressar a perspectiva do proletariado e contribuir com a transformação social (MARX, 1978).
Neste sentido, Martins está correto em dizer que Marx e Engels, “não estavam preocupados em fundar a sociologia como disciplina científica” (MARTINS, 1998, p. 52). Eles buscavam uma concepção crítica e totalizante da realidade social e por isso não dividiam o saber em compartimentos e nem a realidade e assim não trabalhavam com “disciplinas específicas”. Marx, diferentemente de Durkheim e Weber, não pretendia constituir a sociologia como ciência e sim levar a cabo o seu projeto crítico (VIANA, 2006). Assim, o que Marx elabora é uma teoria social, que engloba uma teoria da história e do capitalismo, que, no entanto, devido seu domínio temático se confundir com a da sociologia e sua influência na subesfera sociológica, ele se tornará um clássico da sociologia e considerado fundador da “sociologia crítica”. A teoria social de Marx, confundida com uma “sociologia crítica”, nasce, então, como um projeto de superação visando à transformação social, cujo objeto é simultaneamente a realidade social existente e suas manifestações intelectuais ilusórias, expressando a classe revolucionária de nossa época, o proletariado. E o caráter crítico do marxismo permitiu a sua influência em diversas outras subesferas científicas, sendo considerado sua “tendência crítica”.
Contudo, o termo “sociologia crítica” não é utilizado apenas no sentido marxista de “crítica”, que é o de uma crítica radical e totalizante que tem como finalidade a superação do capitalismo e a instauração da autogestão social ou comunismo. Desta forma, surgiram outras produções sociológicas que passaram a serem consideradas “sociologias críticas” e isso permite uma certa confusão. O nosso objetivo é observar a gênese e significado da sociologia crítica no interior da subesfera sociológica.
A ORIGEM DA SOCIOLOGIA CRÍTICA
O surgimento da sociologia crítica ocorreu, como o surgimento das ciências humanas em geral, no século XIX, sendo o resultado da constituição e expansão das relações de produção capitalistas (revolução industrial) e da conquista do poder político pela burguesia (revoluções burguesas) que produzem novas questões e conflitos sociais, gerando tanto concepções conservadoras (Malthus, por exemplo, e o positivismo em geral) quanto filantrópicas e reformistas (socialismo utópico). Nesse contexto, também emerge o projeto de criação de uma “ciência positiva da sociedade” (Comte e, posteriormente, Durkheim) e a obra de Marx, que surge no bojo de novas tendências de pensamento da época, chamadas de “comunistas” e “anarquistas”.
Marx, partindo de uma síntese original e crítica da filosofia alemã, da economia política inglesa e do socialismo francês, elabora uma teoria da sociedade capitalista que terá grande influência na produção sociológica posterior. A obra de Marx não se limita a uma análise da sociedade capitalista, já que ele também desenvolveu, de forma menos aprofundada, uma teoria da evolução das sociedades humanas (entendida como sucessão de modos de produção) e vários estudos sobre as sociedades pré-capitalistas. Também desenvolveu o método dialético e diversas teses que seriam hoje chamadas “epistemológicas”, além de produzir diversas teses políticas em íntima relação com os demais aspectos de seu pensamento e com o desenvolvimento do movimento operário.
Não apresentaremos o conjunto da obra de Marx, o que demandaria um espaço enorme, mas apenas destacaremos os principais aspectos de seu projeto crítico, o que permite entender suas contribuições e sua influência posterior, bem como sua diferença em relação às demais tendências críticas no interior da sociologia. O primeiro ponto do projeto crítico de Marx é a crítica das ideologias e das representações ilusórias. A base desta crítica é a ideia da unidade entre ser e consciência (Marx não trabalhava com os termos abstratos, e que se tornaram hegemônicos posteriormente, de “sujeito” e “objeto”). A consciência nada mais é do que o ser consciente (MARX e ENGELS, 2002). Este ser consciente é histórico, concreto, social. Por isso, “não é a consciência que determina da vida, mas, ao contrário, é a vida que determina a consciência” (MARX, 1983), porquanto não existe uma consciência separada do ser humano. Este é um ser social e, por conseguinte, sua consciência também é social.
O ser humano só pode sobreviver e satisfazer suas necessidades básicas (comer, beber, habitar, reproduzir, etc.) através do trabalho e da cooperação (associação) com outros seres humanos, que se tornam, posteriormente, necessidades humanas. Com a emergência da sociedade de classes e ampliação da divisão social do trabalho, os seres humanos passam a desenvolver atividades limitadas, bem como relações entre si e com a natureza também limitadas. O trabalho deixa de ser uma necessidade humana e passa a ser apenas um meio, transforma-se em trabalho alienado. Derivado dessa divisão social do trabalho, emergem interesses, valores, concepções, que geram representações limitadas, ilusórias.
Aqui temos a base para o surgimento da falsa consciência e da ideologia. A divisão social do trabalho e a posição dos indivíduos nessa divisão expressam relações sociais limitadas e interesses antagônicos, sendo que “as ideias dominantes são as ideias da classe dominante” (MARX e ENGELS, 1988). Isto ocorre pelo fato de que a classe dominante possui os meios de produção intelectuais e confirma, através da naturalização, as relações sociais existentes, ao mesmo que tempo que suas ideias são confirmadas por estas mesmas relações. Esta é uma parte importante da “sociologia do conhecimento” de Marx (LEFEBVRE, 1979). Isto revela um dos aspectos principais do projeto crítico de Marx: a crítica das representações ilusórias e da ideologia, que será completada com seu estudo posterior do “fetichismo da mercadoria”.
A partir do momento do surgimento das classes sociais, a história da humanidade passa a ser a “história das lutas de classes” (MARX e ENGELS, 1988). A luta de classes tem como fundamento o processo de exploração que a classe dominante realiza sobre a classe dominada no processo de produção material, ou seja, no modo de produção e reprodução da vida material. Este aspecto coloca em evidência outro elemento importante do projeto crítico de Marx: a crítica da exploração e suas consequências, que gera uma crítica global do conjunto das relações sociais, especialmente na sociedade capitalista.
Na sociedade capitalista, o processo de exploração assume a forma de extração de mais-valor, ou seja, através da execução de um sobretrabalho pelo proletário que proporciona um trabalho excedente apropriado pelo capitalista. Isto produz as duas classes sociais fundamentais do capitalismo e suas lutas que revelam a tendência de sua dissolução e a possibilidade da transformação social via revolução proletária (MARX, 1988). O projeto crítico de Marx recebe aqui mais uma de suas características: a necessidade da transformação social via ação revolucionária do proletariado, o que gera a emancipação humana em geral, já que significa a dissolução geral das classes sociais.
Obviamente que estes aspectos envolvem diversas outras questões e foram aqui extremamente resumidos. Esta exposição esquemática teve o objetivo apenas de levantar alguns aspectos básicos do projeto crítico de Marx, que são importantes para compreender os seus desdobramentos metodológicos.
A teoria social de Marx, essencialmente crítica, surgiu na época de nascimento das ciências humanas, período marcado pelo cientificismo e proliferação de novas “ciências”, desde a “ideologia” (ciência das ideias) de Cabanis e Destutt de Tracy, até a “polemologia” (ciência da guerra), para citar apenas duas tentativas natimortas. A sociologia emerge nesse momento histórico através de Comte e com o objetivo claro de manifestar no caso específico do “estudo da sociedade” a função das esferas sociais: a reprodução do capitalismo.
A sociologia nasce conservadora e como expressão da burguesia vitoriosa (após as revoluções burguesas), se inspirando nas ciências naturais e se legitimando através da imitação delas (marcadas pela credibilidade e status de saber superior, suplantando a teologia e a filosofia). Esse duplo processo, marcado pela formação da apologia do capitalismo expresso pela sociologia (de Comte, Durkheim, Tarde, etc.), produção ideológica, e da crítica do capitalismo, que marca a emergência da teoria como “utopia concreta”, ou seja, o marxismo. Desta forma, a crítica da sociedade capitalista, acaba sendo entendida como “sociologia crítica”, apesar de ser muito mais uma crítica da sociologia (e da ciência em geral). As raízes da teoria social de Marx, supostamente uma “sociologia crítica”, deriva da emergência do proletariado e suas lutas, bem como a emergência da subesfera sociológica é derivada das necessidades da burguesia como nova classe dominante aquartelada no aparato estatal. Ou seja, tanto a sociologia quanto a crítica da sociologia são produtos derivados da luta de classes. O desenvolvimento da utopia e da ideologia é expressão desse processo e contexto. Marx não era um integrante da subesfera sociológica, mas os sociólogos conservadores sim, já que a grande ambição dos pioneiros (desde Comte) é a produção de uma nova ciência, o que foi sistematizado e consolidado por Durkheim e Weber.
O DESENVOLVIMENTO DA SOCIOLOGIA CRÍTICA
Após a obra original de Marx e seu impacto sobre as lutas sociais e subesfera sociológica, emerge a chamada sociologia crítica. Essa é uma verdadeira “sociologia crítica”, pois emergiu no interior da subesfera sociológica. Segundo Martins,
pensadores como Korsch, Lukács e os pesquisadores do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, como Adorno, Horkheimer, Marcuse, forneceram uma importante contribuição ao estudo crítico da sociologia e da sociedade capitalista. Em geral, estes pensadores rejeitaram a ideia do marxismo como ciência positiva da sociedade, ou seja, como “Sociologia”, tal como esta ciência fora imaginada pelo positivismo. Lukács, em seu trabalho ‘História e Consciência de Classe’, concebeu o marxismo como uma ‘filosofia crítica’ que expressava a visão de mundo do proletariado revolucionário. Os pensadores da ‘Escola de Frankfurt’ também desenvolveram uma concepção do marxismo como ‘filosofia crítica’, bastante diferenciada, segundo eles, do positivismo sociológico. O marxismo, nas mãos dos membros da Escola de Frankfurt’, foi colocado fora da política partidária, assumindo um caráter de crítica geral da cultura burguesa, dirigida principalmente a um público constituído em sua grande maioria por estudantes e intelectuais (MARTINS, 1998, p. 91-92).
Assim, a sociologia crítica após Marx manteve-se viva graças à sua influência e depois da Segunda Guerra Mundial recebeu várias contribuições, tal como a da Escola de Frankfurt, mas também de sociólogos como Henri Lefebvre, Lucien Goldmann, Zygmunt Bauman (em seu período “marxista”), entre outros. Essa sociologia crítica genérica, pois mais global e influenciada pela concepção marxista da totalidade, possui uma tendência de influência marxista mais “pura” (Lefebvre, Goldmann, Bauman) e outra mais eclética (Escola de Frankfurt, Análise Institucional). Porém, além desta sociologia crítica genérica, surgiu outra tendência que também foi rotulada ou se auto-intitulou de “crítica”[1], tal como Birbaun, Habermas, Wright Mills, Bottomore, Bourdieu, entre outros. Assim, poderíamos distinguir uma sociologia crítica genérica, de influência marxista, e uma de orientação contestadora de origem variada, constituindo uma sociologia crítica moderada.
Esta sociologia crítica produziu várias teses e análises que se tornaram “patrimônio sociológico” e que mantêm sua influência até hoje e outras ainda são produzidas atualmente. A Escola de Frankfurt produziu diversos estudos e teses fundamentais, cabendo destaque para a teoria da indústria cultural de Adorno e Horkheimer (1985), na qual realizam uma crítica aos meios de comunicação que transformam a cultura em mercadoria e promovem sua massificação e estandardização e a crítica da razão instrumental, expressa nas obras de Horkheimer (1976) e Marcuse (1988), que revela o processo de absorção e instrumentalização da razão no sentido de reproduzir a dominação capitalista. A sociologia de Henri Lefebvre, por sua vez, irá destacar, entre outros elementos, uma crítica total da “modernidade”, “última estratégia da contrarrevolução burguesa” (FAVRE e FAVRE, 1991), e da vida cotidiana na “sociedade burocrática de consumo dirigido” (LEFEBVRE, 1991) e do urbanismo como forma de dominação. Lucien Goldmann, além de discussões sobre sociologia e epistemologia (1978), desenvolverá análises sobre a consciência e estudos sobre cultura e sociologia da literatura. Bauman realizará uma forte crítica à própria sociologia, incluindo Durkheim, Weber e a sociologia fenomenológica, opondo “razão técnica” e “razão emancipadora” (BAUMAN, 1977).
A análise institucional, tendência que fica na fronteira entre subesfera sociológica e subesfera psicológica, representada por Georges Lapassade, René Lourau e outros, iniciam sua produção nos anos 1960 e no final dessa década e início da posterior apontam para uma concepção crítica da sociedade e propostas alternativas, como a autogestão pedagógica. No entanto, uma parte dos representantes dessa tendência era mais moderada e a microssociologia acabou se enfraquecendo por falta de uma presença mais forte da macrossociologia. Georges Lapassade (1989; 1975) e René Lourau (1975) realizaram análises interessantes sobre a burocracia e a autogestão, entre outros temas, bem como apontaram para uma concepção diferenciada da sociologia (1978) que era a dominante na época. O impacto da rebelião estudantil de Maio de 1968 aproximou esses autores da ideia de autogestão pedagógica e outros elementos interessantes de crítica da burocracia e retomada do pensamento de Marx e outros pensadores (Lukács, Sartre, Hegel, Freud, etc.).
Já a outra forma de sociologia crítica, que, apesar de ter semelhanças é bastante heterogênea, apresenta várias contribuições para a produção sociológica e por isso destacaremos Wright Mills e Pierre Bourdieu. Wright Mills realiza uma crítica da própria sociologia (mais especificamente a americana) ao criticar a “grande teoria” (funcionalismo) e o empirismo abstrato (quantitativismo) e prega o retorno ao “método artesanal” dos clássicos, especialmente Marx e Weber. Ressalta a importância da “imaginação sociológica”, termo impreciso segundo Moya (1970).
Bourdieu, representante da sociologia contemporânea, já produz uma sociologia bem mais ampla e complexa, possuindo uma base interpretativa da realidade contemporânea a partir de sua “teoria dos campos”, no qual, utilizando um conjunto de noções complementares e recebendo a influência dos clássicos da sociologia (Marx, Weber e Durkheim), acaba fazendo uma análise crítica da sociedade moderna, com destaque para seus estudos sobre a reprodução no campo educacional e sua crítica do fetichismo da arte oriundo do campo artístico, além de suas contribuições ao estudo do campo político, jurídico, científico, entre outros (PINTO, 2000). Devido ao fato de ter produzido uma sociologia sistematizada trabalhando análise da sociedade moderna e questões metodológicas, adentrando também para questões de técnica de pesquisa, tal como sua crítica à pretensa neutralidade das técnicas de pesquisa, conseguiu exercer uma enorme influência na sociologia contemporânea e até mesmo em outras ciências humanas.
Sem dúvida, outros nomes e contribuições poderiam ser citadas, tal como Giddens em sua obra introdutória à sociologia (GIDDENS, 1984), e diversos sociólogos influenciados pelo marxismo ou declaradamente marxistas, mas seria uma lista enorme e que demandaria muito tempo e espaço para apresentar. Neste sentido, consideramos que este breve resumo oferece um pequeno apanhado geral do desenvolvimento da sociologia crítica.
OS LIMITES DA SOCIOLOGIA CRÍTICA
Resta, após essa breve descrição da sociologia crítica, a análise de suas determinações e relação com a subesfera sociológica. A sociologia crítica emergente após a Segunda Guerra Mundial traz a marca da nova fase do capitalismo, comandado pelo regime de acumulação conjugado. Esse novo regime de acumulação gera a tentativa de integração do proletariado no capitalismo, tendo em vista as tentativas de revoluções no período anterior. O estado integracionista (chamado de “bem estar social”) cumpre um papel fundamental nesse processo e, ao lado do fordismo e da exploração internacional via capital oligopolista transnacional, realiza um processo de cooptação dos partidos social-democratas e comunistas, bem como de sindicatos, que, ao lado da estabilidade política e financeira e da emergência da “sociedade de consumo”, amortece as lutas de classes e diminui a possibilidade de radicalização proletária. A teoria social de Marx expressava o proletariado que realizava uma ampla luta que assustava a burguesia. A chamada “sociologia crítica” que emerge no regime de acumulação conjugado já não tem essa base revolucionária, o que explica o pessimismo de uns (Adorno, Marcuse, etc.) e a moderação de outros (Wright Mills, Birbaun, etc.).
No entanto, existem elementos internos da própria subesfera sociológica que ajuda a explicar esse processo. A sociologia nasceu durante o regime de acumulação intensivo, mas foi progressivamente se institucionalizando e especializando, inicialmente e principalmente nos Estados Unidos (VIANA, 2006). Isso garantiu o seu processo de crescente conservadorismo e a estabilidade do capitalismo oligopolista transnacional garantiu as condições para que a tendência hegemônica conservadora reinasse absoluta na sociologia. A sociologia crítica continuou existindo, mas com cada vez menos criticidade. A classe intelectual, da qual os sociólogos fazem parte, traz no seu interior alguns descontentes, por razões variadas, e estes realizam uma certa crítica, que, no entanto, fica muito aquém da crítica radical e totalizante que Marx efetivou. Essa sociologia crítica genérica encontrou um forte obstáculo para o seu desenvolvimento, que foi a deformação do pensamento de Marx pelo leninismo e semelhantes. Assim, Marx visto pela ótica leninista acaba se tornando uma caricatura. A influência leninista é perceptível em Lucien Goldmann e Henri Lefebvre, inclusive na interpretação deformada do pensamento de Marx.
A existência da sociologia crítica genérica representada pela Escola de Frankfurt é derivada da forte influência marxista na época de fundação do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, que contava como Karl Korsch, Georg Lukács, Erich Fromm, etc. e do impacto da ascensão do nazifascismo. Essa é a raiz da oposição entre a sociologia crítica frankfurtiana e a sociologia positivista norte-americana. A produção de Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros é marcada por um certo pessimismo, oriundo da suposta integração da classe operária no capitalismo e ascensão de uma sociedade marcada pelo integracionismo, enfraquecendo as formas de oposição[2]. Os frankfurtianos eram de uma geração anterior, cujos valores e concepções não se encaixavam no capitalismo oligopolista transnacional. Além disso, os frankfurtianos já possuíam, na esfera científica, um espaço reservado e um reconhecimento, o que lhes permitia maior autonomia. Assim, eles poderiam ser considerados intelectuais dissidentes cuja criticidade não estava vinculada à uma perspectiva proletária.
A outra ala da sociologia crítica genérica se encontrava em outra situação. Henri Lefebvre era um caso exemplar, pois o seu reconhecimento foi muito limitado. Ele num primeiro momento se aliou ao existencialismo hegemônico, mas logo se deslocou para o leninismo e se integrou no Partido Comunista Francês, até sua expulsão. Isso lhe gerou um isolamento, pois permanecia tendo Marx como principal referência e a hegemonia existencialista foi substituída pela estruturalista. Assim, Lefebvre foi um dos críticos do estruturalismo e assim permaneceu. A sua crítica da sociedade capitalista aparentemente é marxista, mas acaba demonstrando uma incompreensão parcial tanto do capitalismo quanto da teoria do capitalismo de Marx (LEFEBVRE, 1979; LEFEBVRE, 1977). É por isso que Lefebvre pode ser considerado um intelectual engajado, mas que devido seu processo histórico de vida e formação intelectual, não conseguiu superar certos limites de uma posição rebelde e semiproletária.
Esse é o caso semelhante dos integrantes da chamada “análise institucional” (Georges Lapassade, René Lourau, Michel Lobrot, etc.). Estes avançaram no sentido do rompimento com o pseudomarxismo dos partidos políticos e a recuperação do pensamento de Marx, mas as suas soluções ainda eram problemáticas, pois focalizaram mais a via educacional e institucional. Contudo, foram os que mais desenvolveram uma sociologia crítica que inovou e ampliou o espaço analítico para novas áreas. Assim, essa sociologia crítica genérica é realizada por intelectuais engajados que não ultrapassaram o nível da rebeldia[3].
A sociologia crítica moderada, por sua vez, é produto do isolamento e hegemonia no interior da subesfera sociológica. Um testemunho magistral desse processo é a obra de Wright Mills, A Imaginação Sociológica. Wright Mills era um intelectual dissidente e marginalizado na subesfera sociológica, apesar de todo o espaço que conseguiu, mas com o passar do tempo e sem se tornar um hegemônico consagrado como Talcott Parsons e Robert Merton. A sua obra é uma crítica tanto ao que ele denominou “grande teoria” quanto ao “empirismo abstrato”, as duas tendências hegemônicas na sociologia norte-americana na época em que escreveu sua obra. Como um intelectual dissidente, ele se aproximou de outros dissidentes, engajados e ambíguos, realizando uma crítica dos hegemônicos na subesfera sociológica e apresentando elementos críticos (moderados) da sociedade moderna e norte-americana.
Um caso semelhante é o de Pierre Bourdieu. Este surge como uma intelectual dissidente, e ao lado de alguns ambíguos e engajados, realiza a crítica do estruturalismo hegemônico, no caso francês, e lança as bases de sua proposta sociológica, o seu “projeto original”. Com a crise do estruturalismo após o Maio de 1968, Bourdieu conseguiu passar de dissidente para hegemônico e se tornou uma das grandes referências da sociologia francesa e mundial.
No entanto, o seu reinado durou pouco. A crise do regime de acumulação conjugado no final dos anos 1960 abriu uma brecha representada pela crise do estruturalismo e outras ideologias influentes, e isso permitiu um período de incertezas e processos de busca de alternativas, o que permitiu a emergência de novas ideologias (pós-estruturalismo), novas análises críticas (tal como a análise institucional de Lapassade e Lourau) e retomada do marxismo autêntico, bem como do leninismo. Bourdieu ganhou espaço graças a essa brecha e ao fato de que sua sociologia crítica era reprodutivista e, por conseguinte, mais aceitável, o que permitiu ele se tornar hegemônico.
Assim, tal como ele mesmo afirmava em sua sociologia dos campos, os dominados usam a estratégia da crítica (e Bourdieu realizou a crítica do estruturalismo) e os dominantes a estratégia da conservação. Ao se tornar hegemônico, a crítica da subesfera sociológica e da esfera científica é minimizada[4]. Tão logo ele vai perdendo espaço para a nova hegemonia pós-estruturalista, expressão do regime de acumulação integral, ele retorna à sua estratégia da crítica, buscando inclusive se aliar com ambíguos e outros[5].
Assim, a sociologia crítica moderada era realizada geralmente por sociólogos dissidentes em sua competição com os hegemônicos. Esse processo explica a moderação da crítica em diversos intelectuais dissidentes, tais como Bourdieu, Wright Mills, etc. A sociologia crítica genérica se mantinha ao lado da moderada, às vezes se unindo no combate aos hegemônicos, às vezes se criticando mutuamente. O que explica essa sociologia crítica durante o regime de acumulação conjugado e a transição para o regime de acumulação integral é a dinâmica da luta de classes e a dinâmica interna das próprias esferas sociais, intimamente relacionadas. A consolidação do regime de acumulação conjugado na França gerou a hegemonia estruturalista e esta foi alvo de crítica tanto de dissidentes (Bourdieu), ambíguos (Garaudy) e engajados (Lefebvre). Uma vez que tal regime de acumulação entra em crise, o estruturalismo é suplantado por novas correntes hegemônicas, sendo o pós-estruturalismo a grande alternativa que, no entanto, só se tornará efetivamente hegemônico com a emergência do regime de acumulação integral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da sociologia crítica aqui desenvolvida aponta para a conclusão que sua explicação parte da análise das mudanças sociais em geral, da luta de classes, e da dinâmica interna da subesfera sociológica. Assim, a compreensão fundada apenas no processo global de luta de classes pode gerar incompreensão, tal como a análise localizada apenas na subesfera. Há um entrelaçamento entre luta de classes e disputa subesférica e nesse processo um nível de compreensão mais profundo e concreto é conquistado pela análise que leva isso em consideração. O que realizamos aqui foi um esboço de tal processo analítico, no caso específico da subesfera sociológica, visando explicar a emergência de uma crítica radical e totalizadora, com a obra de Marx, e sua substituição por algumas sociologias críticas bem mais limitadas e como isso é explicado pela dinâmica da luta de classes e da disputa subesférica.

REFERÊNCIAS

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5zR2ZL49




[1] Aqui deixaremos de lado outra tendência, que Swingewood (1978) denominou “radical” (Szymanski, Gouldner), pois esta se diferenciaria, segundo este autor, tanto da sociologia “marxista”, quanto da nova sociologia crítica emergente e representada por Birbaun, entre outros.
[2] Essa ideia foi exposta de forma mais cristalina por Herbert Marcuse (1986), com sua tese da “sociedade unidimensional”, bem como pelo seu complemento, o “pensamento unidimensional”.
[3] O caso de Lucien Goldmann é um pouco diferenciado, bem como o de Roger Garaudy e diversos outros (tanto sociólogos quanto de outras subesferas). Nesse caso, trata-se de intelectuais ambíguos e que por isso realizavam um tipo de crítica conciliadora da esfera científica e subesfera sociológica.
[4] A crítica que realizou nesse período é devido à competição no interior da subesfera sociológica e esfera científica, tal como sua oposição a Alain Touraine, um de seus grandes rivais, e o filósofo Sartre, que apesar de não ser da subesfera sociológica, tinha influência no seu interior e defendia a figura do intelectual engajado e oferecia uma concepção crítica e influenciada pelo marxismo.
[5] Isso pode ser vista em seus textos de crítica ao neoliberalismo, multiculturalismo, imperialismo, etc. (BOURDIEU, 1998; BOURDIEU e WACQUANT, 2001).
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Publicado originalmente em:
XXII SIMPÓSIO DE ESTUDOS E PESQUISAS DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Ciencia e Formação: Utopias e Desencantosl
ST 22- Utopia e ideologia na dinâmica da esfera científica

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