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quinta-feira, 13 de outubro de 2016

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E MÉTODOS DE ANÁLISE

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E MÉTODOS DE ANÁLISE
COMICS AND ANALYSIS METHODS
Nildo Viana
Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília
Professor da Universidade Federal de Goiás
http://lattes.cnpq.br/3744231559402924


RESUMO
As histórias em quadrinhos são analisadas por distintos métodos. Alguns dos métodos mais utilizados são a semiótica e a análise circular. Em ambos os casos existem sugestões interessantes e pontos problemáticos. Uma terceira opção, entre outras, é a análise dialética. Este caminho metodológico possui alguns recursos interessantes e que se diferenciam dos dois anteriores, embora possa englobar alguns aspectos das demais formas de análise. Uma breve comparação entre as três formas de análise ajuda a compreender as semelhanças e diferenças entre elas. O uso do método dialético na análise das histórias em quadrinhos aponta para três aspectos essenciais: totalidade, historicidade, determinação fundamental. O corpus de estudo deve ser compreendido, nessa abordagem, como uma totalidade inserida em outra totalidade mais ampla. Também deve ser considerada uma totalidade constituída, por uma determinação fundamental e outras múltiplas determinações, o que também demonstra sua historicidade, sendo produto social e histórico. É nesse contexto que a diferença com as demais abordagens emerge, pois estes elementos ficam ausentes no processo analítico semiótico e circular. A análise circular trabalha com relações mecânicas de homologia e a análise semiótica fica no nível formal. A análise dialética, por conseguinte, pode integrar essas duas formas analíticas e propiciar um recurso metodológico mais amplo para o processo analítico das histórias em quadrinhos.
PALAVRAS-CHAVE: Histórias em quadrinhos; método; método dialético; semiótica; análise circular.

ABSTRACT
The comics are analyzed by different methods. Some of the most used methods are semiotics and circular analysis. In both cases there are interesting suggestions and trouble spots. A third option, among others, is the dialectic analysis. This methodological approach has some interesting features which differ from the previous two, although it may include some aspects of other forms of analysis. A brief comparison between the three forms of analysis helps you understand the similarities and differences between them. The use of the dialectical method in the analysis of comics points to three key aspects: totality, historicity, fundamental determination. The study corpus should be understood in this approach as a whole placed in another larger whole. It should also be considered a composed entirely of a fundamental determination and other multiple determinations, which also shows its historicity, and social and historical product. In this context, the difference with other approaches emerge as these elements are absent in the semiotic analytical process and circular. The circular analysis works with mechanical relationships homology and semiotic analysis is the formal level. The dialectical analysis therefore can integrate these two analytical forms and provide a broader methodological resource for the analytical process of comics. Our goal here is to briefly present the two methodological conceptions in order to present their analytical processes and in more detail the dialectical method and subsequently perform a brief comparison from an empirical case.
KEYWORDS: Comics; method; dialectical method; semiotics; circular analysis.


INTRODUÇÃO
A análise das histórias em quadrinhos pode ser realizada sob várias formas. Isso depende de algumas escolhas anteriores ao processo analítico, tais como abordagem teórica, opção metodológica, objetivos, disciplina de formação do analista, entre outras. Podemos citar como exemplos a análise semiótica, mais comum na linguística e comunicação social, e a análise circular, proposta pelo sociólogo Umberto Eco. Tanto no caso da análise semiótica quanto da análise circular, existem sugestões interessantes e pontos problemáticos. Uma terceira opção, entre outras, é a análise dialética. Este caminho metodológico possui alguns recursos interessantes e que se diferenciam dos dois anteriores, embora possa englobar alguns aspectos das demais formas de análise.
Uma breve comparação entre as três formas de análise ajuda a compreender as semelhanças e diferenças entre elas. O uso do método dialético na análise das histórias em quadrinhos aponta para três aspectos essenciais: totalidade, historicidade, determinação fundamental. O corpus de estudo deve ser compreendido, nessa abordagem, como uma totalidade inserida em outra totalidade mais ampla. Também deve ser considerada uma totalidade constituída, por uma determinação fundamental e outras múltiplas determinações, o que também demonstra sua historicidade, sendo produto social e histórico.
É nesse contexto que a diferença com as demais abordagens emerge, pois estes elementos ficam ausentes no processo analítico semiótico e circular. A análise circular trabalha com relações mecânicas de homologia e a análise semiótica fica no nível formal. A análise dialética, por conseguinte, pode integrar essas duas formas analíticas e propiciar um recurso metodológico mais amplo para o processo analítico das histórias em quadrinhos.
O nosso objetivo aqui é apresentar brevemente estas duas concepções metodológicas visando apresentar seus processos analíticos e mais detalhadamente o método dialético e, posteriormente, realizar uma breve comparação a partir de um caso concreto.
A ANÁLISE SEMIÓTICA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
A análise semiótica das histórias em quadrinhos pode assumir diversas formas, dependendo de qual concepção entre as tendências semióticas são utilizadas. As abordagens semióticas mais conhecidas e seus representantes são a americana (Charles Sanders Peirce), a francesa (Algirdas Julien Greimas) e russa (Iuri Lótman). Partiremos aqui da semiótica greimasiana, pois esta é uma das abordagens semióticas mais utilizadas para analisar as histórias em quadrinhos.
De acordo com essa concepção, o processo analítico pode ser dividido em plano da expressão e plano do conteúdo. O plano da expressão remete ao aspecto formal, trabalha com categorias topológicas (referentes ao espaço), categorias cromáticas (referentes às cores), categorias eidéticas (referentes às formas) (GREIMAS, 1984). Um exemplo de uma capa de histórias em quadrinhos pode facilitar a compreensão desse processo:
Fig. 1 – Capa da Revista em Quadrinhos Amazing Fantasy, 1962, da Marvel Comics, com a primeira aparição do Homem-Aranha.

(Disponível em http://marvel.com/comics/issue/16926/amazing_fantasy_1962_15 acessado em: 06/05/2015).
No plano topológico, temos no centro o Homem-Aranha e na periferia prédios e acima os dados da revista (título, número, preço). A centralidade do Homem-Aranha entra em contraste com a periferia, sendo ele o centro das atenções, afinal é o super-herói, que carrega um vilão pelas mãos em sua movimentação com uso de sua teia. No plano cromático, temos o azul e vermelho do uniforme do super-herói, com sombras escuras, e todo o resto em cores amarelas (letras e título), cinza (prédios e espaço vazio) e preto (fundo do título e letras). A cor vermelha é a mais expressiva, cercada por preto, cinza e amarelo. No plano eidético, temos formas arredondadas no super-herói e formas quadradas no resto. No plano da expressão, podemos perceber, então, a centralidade do Homem-Aranha.
Aqui encontramos um dos problemas da análise semiótica greimasiana, que retomaremos adiante. Trata-se do seu caráter formal e descritivo (o que abre espaço, na análise concreta, para extrapolações). Porém, isso será retomado adiante. Agora podemos passar para o plano do conteúdo, o que remete ao que Greimas (1973) denominou “percurso gerativo de sentido”. Este percurso tem as seguintes características:
a) o percurso gerativo do sentido vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto;
b) são estabelecidas três etapas no percurso, podendo cada uma delas ser descrita e explicada por uma gramática autônoma, muito embora o sentido do texto dependa da relação entre os níveis;
c) a primeira etapa do percurso, a mais simples e abstrata, recebe o nome de nível fundamental ou das estruturas fundamentais e nele surge a significação como uma oposição semântica mínima;
d) no segundo patamar, denominado nível narrativo ou das estruturas narrativas, organiza-se a narrativa, do ponto de vista de um sujeito;
e) o terceiro nível é o do discurso ou das estruturas discursivas em que a narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação (BARROS, 2005, p.9).
Nesse caso, o enunciador determina como o enunciatário deve interpretar o discurso[1]. Assim, o percurso gerativo possui três níveis: fundamental, narrativo e discursivo (GREIMAS, 1973; BARROS, 2005). O nível fundamental é marcado por uma contraposição formando um sistema de oposições. Esse sistema de oposições pode ser exemplificado pelos pares bem/mal; alto/baixo, ação/reação, etc. No nível narrativo, cuja origem se encontra na concepção de Propp (2001), temos os actantes da ação, sujeito/objeto, destinador e destinatário (GREIMAS, 1973; BARROS, 2005). Os actantes narrativos são os atores do processo envolvendo sujeito e objeto[2]. O destinador é o sujeito responsável pelas mudanças das qualidades do sujeito da ação, sendo o responsável pela competência e valores do mesmo. O destinatário é aquele que cumpre o papel de receptáculo da verdade do destinador, como o leitor o faz em relação ao autor de um texto.
É nesse nível que deve se realizar a identificação do sujeito (no caso das histórias em quadrinhos, o protagonista) no enredo, bem como a relação entre sujeito e objeto que ocorre via conjunção (união) e disjunção (afastamento) (GREIMAS, 1973; BARROS, 2005). Por exemplo, nas histórias em quadrinhos da Turma da Mônica, a relação entre Mônica e seu coelhinho é de conjunção, enquanto que a relação entre Cebolinha e o coelhinho da Mônica é de disjunção. Da mesma forma, é nesse nível que ocorre a identificação da relação entre sujeito e objeto, através dos valores modais e de disjunção e conjunção. Os valores modais rementem ao estado de fazer, dever, querer, poder, saber. Os objetos de valores apontam para a conjunção e disjunção.
O nível discursivo remete às categorias de pessoa, espaço e tempo (GREIMAS, 1973; BARROS, 2005). A pessoa se manifesta na figura do narrador, sendo meio do enunciador convencer o enunciatário da verdade. O espaço assume a forma de espaço físico ou simulacro (contextualização espacial) e o tempo assume a forma de concomitância (referente ao presente) ou não-concomitância (passado ou futuro, contextualização temporal). Os valores atribuídos ao sujeito podem ser através da tematização, ou seja, representações abstratas (felicidade, medo, etc.) ou figuratização, ou seja, expressando algo concreto, real, que pode ser sentido.
A análise semiótica greimasiana se revela formal e descritiva. A análise da capa de Amazing Fantasy demonstra isso no plano da expressão. No plano do conteúdo, também mantém caráter formal e descritivo, tal como no exemplo da relação entre os personagens da Turma da Mônica e o coelhinho da personagem principal. Não há nenhuma indicação metodológica mais profunda sobre a análise do universo ficcional e das mensagens repassadas por ele. Os criadores das histórias em quadrinhos praticamente desaparecem, assim como o processo histórico e social geral e da produção da mesma. No máximo se coloca a questão dos valores, simplificados e reduzidos a uma oposição binária, sem maior alcance explicativo. Nesse contexto, a arbitrariedade da interpretação substitui a análise rigorosa do universo ficcional e seu processo de constituição.  Voltaremos adiante com um exemplo de aplicação da análise semiótica no que se refere ao conteúdo em comparação com as duas outras formas de análise.
A ANÁLISE CIRCULAR DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
O sociólogo Umberto Eco aponta para uma outra forma de análise das histórias em quadrinhos, embora mantenha algumas semelhanças em alguns aspectos em relação à análise semiótica. A sua proposta analítica possui três ou quatro passos para a análise, a saber: a) descrição das estruturas do enredo; b) descrição do contexto social e histórico; c) busca paralelismos, homologia de estruturas. O autor coloca que, no decorrer da análise, é possível (ou seja, não é obrigatório) acrescentar análise da ideologia do autor.
Esse processo é assim descrito por Umberto Eco:
O método circular consiste: em elaborar descrições dos dois contextos segundo critérios homogêneos; focalizar homologias de estruturas entre o contexto estrutural da obra, o contexto histórico social e outros contextos. Percebemos assim como a obra reflete o contexto social podendo definir-se em termos estruturais pela elaboração de sistemas complementares (ECO, 2004, p. 183).
Desta forma, temos um procedimento analítico bastante simples. Em primeiro lugar, uma descrição do contexto social. Em segundo lugar, uma descrição do contexto estrutural da obra[3]. O processo descritivo é complementado pela busca de paralelismos, ou de “estruturas homólogas”, termos tomados emprestados do sociólogo francês Lucien Goldmann (1976).
Claro que é necessário enfatizar que a descrição que Umberto Eco propõe, pelo menos se seguirmos o seu exemplo da análise de Steve Canyon (ECO, 2004), é extremamente detalhada, “quadro por quadro” (no sentido de “quadrinho” mesmo). No entanto, não deixa de ser descrição. No caso da descrição da estrutura social, ele é bem mais breve e superficial. A sua busca de estruturas homólogas, por sua vez, é igualmente simples e superficial.
Isso pode ser complementado pela análise da “posição ideológica do autor”. Nesse aspecto, Eco pouco acrescenta, pois não indica procedimentos de análise, apenas faz considerações em casos concretos. Além de reduzir o “autor” ao caso de sua posição ideológica (política, na verdade, tal como no caso que ele analisa de Belinski), ao invés de um ser humano mais complexo, acaba não conseguindo aprofundar suas análises e cometendo diversos erros interpretativos, tal como no caso também do personagem Ferdinando[4].
O grande problema da análise circular se encontra na própria proposta de identificar “estruturas homólogas”, que não passam de relações mecânicas de homologia, bem como sua falta de maior rigor analítico e foco na especificidade das histórias em quadrinhos.
A ANÁLISE DIALÉTICA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
A análise dialética das histórias em quadrinhos possui alguns elementos semelhantes às duas formas de análise anterior, mas seu foco é outro, bem como tem inúmeros aspectos diferenciadores. Ela tem uma base metodológica muito mais ampla, o método dialético, desenvolvido por Marx (1983) e seus continuadores e recebeu diversas contribuições que o enriqueceram a partir de seu uso em casos concretos e específicos, tal como as histórias em quadrinhos (VIANA, 2013). Alguns pensaram que usavam o método dialético para analisar as histórias em quadrinhos, mas a formação deficiente ou uma concepção deformada de dialética lhes impediram de efetivar isso realmente. De qualquer forma, apresentaram alguns elementos de análise dialética das histórias em quadrinhos e também servem para apontar os equívocos que devem ser evitados.
A análise dialética das histórias em quadrinhos possui uma base teórica, que é o materialismo histórico e a teoria do capitalismo, ambas iniciadas de forma mais profunda por Marx e tendo diversos desdobramentos. Esse aspecto pode parecer de menor importância, mas não é, tendo em vista que a análise dialética das histórias em quadrinhos aponta para a reconstituição do processo de produção do universo ficcional e, portanto, coloca em evidência a primazia da história e sociedade no processo analítico mais global e sua importância para analisar universos ficcionais específicos e suas mudanças. Não poderemos resumir o materialismo histórico-dialético em poucas linhas e por isso a consulta da literatura fundamental sobre este tema é importante para compreender o seu significado e características (MARX, 1983; KORSCH, 1977; LUKÁCS, 1989; VIANA, 2007; VIANA, 2015a).
Dito isto, podemos ir mais diretamente ao processo de análise das histórias em quadrinhos da perspectiva dialética. O primeiro ponto é a definição de histórias em quadrinhos e sua especificidade. As histórias em quadrinhos são compreendidas aqui como uma forma de arte (VIANA, 2014). Arte aqui é entendida como uma expressão figurativa da realidade (VIANA, 2011). As histórias em quadrinhos expressam a realidade sob forma figurativa, ou seja, ficcional. Claro está que é uma expressão e, sendo assim, revela a forma como quem expressa compreende a realidade. A realidade, por sua vez, não deve ser entendida como a totalidade do mundo e nem como algo abstrato-metafísico. A realidade é qualquer elemento do mundo real: a sociedade, a natureza, um indivíduo, um sentimento, um fenômeno psíquico do próprio criador da história em quadrinhos, etc. Isso significa que o que é expresso pode ser algo geral, totalizante, ou particular, incluindo até o universo psíquico (ou elementos dele) do criador da história em quadrinhos.
No entanto, é preciso alertar que as histórias em quadrinhos são uma forma específica de expressão figurativa da realidade. Todas as formas de arte, tal como a pintura, o cinema, o teatro, etc., são uma expressão figurativa da realidade, mas cada uma com sua especificidade. A peculiaridade de cada uma delas reside em sua própria forma. As histórias em quadrinhos constituem, por conseguinte, uma forma peculiar de produção artística. Podemos dizer que: “as histórias em quadrinhos são um universo ficcional repassado através de um enredo organizado de forma sequencial e utilizando diversos recursos, sendo que o desenho (imagens) é o aspecto formal fundamental e os demais são complementares” (VIANA, 2013, p. 46). Os aspectos formais são as imagens, os quadrinhos, os filactérios, etc. que são a forma como o enredo se manifesta, gerando um universo ficcional.
A partir dessa definição de histórias em quadrinhos, podemos avançar no sentido de mostrar como se efetiva a análise dialética. O uso do método dialético na análise das histórias em quadrinhos aponta para três aspectos essenciais: totalidade, historicidade, especificidade. O corpus de estudo deve ser compreendido, nessa abordagem, como uma totalidade inserida em outra totalidade mais ampla. Por exemplo, se o tema do estudo é uma história dos personagens Mortadelo e Salaminho, então devemos abordá-la como uma totalidade, sendo o nosso foco analítico. No entanto, é um pressuposto do método reconhecer que tal totalidade está inserida em outra totalidade, mais ampla, que é o conjunto de histórias de tal personagem e esta, por sua vez, está inserida numa totalidade maior que envolve os seus produtores, sua cultura, país, etc., e sociedade (capitalista, com todas as consequências derivadas disso)[5]. Se o universo ficcional dessa história específica não apontar para uma análise conclusiva, os demais aspectos mais amplos ganham maior importância para conseguir realizar a explicação da mesma.
Também deve ser considerada uma totalidade constituída, por uma determinação fundamental e outras múltiplas determinações, o que também demonstra sua historicidade, sendo produto social e histórico. O universo ficcional de uma determinada história em quadrinhos não surgiu do nada, foi gerada a partir de diversas determinações, desde a imaginação do(s) criador(es), produzida socialmente, como também os elementos externos que atuam em sua materialização em uma revista em quadrinhos ou jornal.
Desta forma, é fundamental compreender a constituição social das histórias em quadrinhos para realizar a análise da mensagem, ou seja, do universo ficcional. A historicidade das histórias em quadrinhos é um elemento constitutivo delas, o que remete para a análise de suas determinações. É preciso levar em conta, além da totalidade e da historicidade, a questão da especificidade. Já aludimos ao caso da especificidade das histórias em quadrinhos em geral, mas é preciso observar a especificidade dos gêneros, criadores, contextos, entre inúmeros outros aspectos. Qual é a posição política dos produtores? Qual é a sua relação com o capital editorial?[6] Qual o contexto social, histórico, cultural? Quais são os valores, concepções, etc., dos produtores? Estas e outras questões contribuem para pensar a especificidade de cada história em quadrinhos específica.
O elemento fundamental da análise dialética dos quadrinhos é a análise da totalidade do universo ficcional. É possível realizar análises de histórias em quadrinhos sem analisar o universo ficcional, dependendo do objetivo da pesquisa. Se for analisar as mutações do público ou evolução dos gêneros, isso se torna secundário, embora ainda assim importante.
A análise da totalidade do universo ficcional precisa ser delimitada. Trata-se da história de um personagem? De uma revista em quadrinhos? De um conjunto de personagens? A totalidade do universo ficcional só pode ser delimitada a partir da delimitação anterior do tema da pesquisa. Uma coisa é analisar o Homem-Aranha, pois a totalidade do universo ficcional deste personagem são todas as histórias nas quais ele aparece[7]. Outra coisa é analisar apenas uma história do mesmo, o que pressupõe análise de outros, mas com o foco nela. Outras possibilidades, gerando outros procedimentos, existem: um período do personagem, uma época em que foi produzido por determinado argumentista e/ou desenhista, etc. Claro que também é possível, ainda, delimitar temas envolvendo o personagem (juventude, casamento, trabalho, ciência, heroísmo, valores, etc.), suas mudanças históricas, etc.
É um pressuposto do método dialético, no entanto, que essa delimitação do universo de pesquisa, que é uma totalidade, esteja inserida em outra totalidade mais ampla. Por exemplo, a pesquisa sobre o Homem-Aranha remete ao universo Marvel, às mudanças sociais e históricas, etc. Isso também vale para o universo ficcional delimitado, pois uma história do Homem-Aranha só pode ser compreendida adequadamente inserindo-a no universo ficcional total do personagem. Por exemplo, a relação do Homem-Aranha e do Duende Verde, seu arqui-inimigo, numa história em que este último aparece pela quinta vez, só pode ser adequadamente compreendida sabendo de sua relação no passado (ficcional).
Mas existem casos mais simples. Por exemplo, o universo de pesquisa pode ser uma tira de Dilbert. Aqui temos uma delimitação mais extrema e que por isso mesmo requer pesquisa complementar, tanto analisando outras tiras para conhecer melhor o personagem, quando os elementos extraficcionais (contexto social, histórico, processo de produção do criador, no caso, Scott Adams). Analisar apenas uma tira de Dilbert pode dar a impressão de que ele é um “esquerdista”, o que não é verdade e a análise do universo ficcional composto por diversas tiras e dos elementos extraficcionais deixa isso claro (VIANA, 2012).
A análise do universo ficcional, após sua delimitação, é realizada a partir da análise das unidades significativas, que podem ser tiras ou um ou mais quadrinhos, o que pode ser denominado “quadro”. A análise das unidades significativas tem o sentido de proporcionar uma reconstituição do universo ficcional como uma totalidade e permitir uma compreensão mais profunda do mesmo.
O processo analítico deve levar em consideração alguns aspectos básicos, entre eles a análise pormenorizada do universo ficcional, analisando suas unidades significativas e sua totalidade. Isso significa que é necessário compreender o quadro (tira) e sua sucessão que constroem uma narrativa ficcional e que ao terminar constitui uma totalidade. O quadro (alguns autores dizem “plano”, traduzindo um termo da produção fílmica para a quadrinística, o que é um elemento problemático) é uma unidade significativa que repassa uma determinada mensagem, composto pelos recursos típicos das histórias em quadrinhos: imagens (pessoas, objetos, etc.), filactérios, que podem ser divididos em filactério dialogal (chamado “balão de diálogo”) e monologal (chamado também de balão de “pensamento”), ícones (representação sob a forma de imagem de um sentimento, odor, temperatura, tal como corações podem expressar paixão e gotículas podem expressar espanto ou nervosismo ou, ainda, traços podem expressar movimento ou velocidade), onomatopeias (expressão escrita de um som). Este conjunto que forma o quadro, manifesta uma mensagem, profunda ou não, dependendo do caso, mas de qualquer forma componente de uma sucessão de quadros que em seu conjunto manifesta uma mensagem mais extensa (VIANA, 2013, p. 47-48).
O universo ficcional é compreendido, assim, como algo concreto, categoria do método dialético, que significa “real”, marcado pela historicidade, totalidade, especificidade e resultado de múltiplas determinações. Nesse processo é possível identificar a mensagem que o universo ficcional repassa, tais como valores, representações, concepções, ideologemas, teoremas, processos inconscientes, etc. Um dos elementos mais importantes na análise das histórias em quadrinhos é a descoberta de quais valores elas manifestam. Nesse contexto, é fundamental diferenciar os valores dos personagens dos valores dos produtores. A confusão, nesse caso, gera interpretações problemáticas. Por exemplo, um criador de uma história em quadrinhos sobre racismo pode apresentar personagens racistas, bem como outros de posição contrária. Se confundirmos os valores dos personagens com o dos produtores, podemos produzir um ato interpretativo condenatório que pode ser equivocado.
Nesse sentido, é necessário além de diferenciar os valores dos personagens dos valores dos produtores, compreender a identificação valorativa – o que significa identificar com qual ou quais personagem(ns) os produtores se identificam e portanto compartilham os mesmos valores – e a predominância valorativa – que é descobrir quais são os valores predominantes no universo ficcional (VIANA, 2016a; VIANA, 2016b).
O mesmo ocorre no caso das representações e concepções. O pensamento ou discurso de personagens e produtores não é necessariamente o mesmo. Isso depende inclusive da intencionalidade de quem produziu. Se se trata de um anti-herói, então certamente seus valores e representações tendem a ser distintos dos seus criadores[8]. O mesmo procedimento deve ser realizado em relação a outros aspectos, como sentimentos, ideologemas, teoremas, etc. No caso de um universo ficcional em que aparece um ideologema (fragmento de uma ideologia, entendida como sistema de pensamento ilusório, algo complexo que por isso mesmo não pode ser repassado em histórias em quadrinhos, sendo simplificada e manifesta em unidades fragmentadas), é preciso descobrir se ele aparece como predominante ou não no mesmo, pois pode emergir para ser refutado. Assim, a ideia hobbesiana de que os seres humanos são egoístas por natureza pode aparecer numa história em quadrinhos, mas se os produtores estão defendendo tal ideologema (se é a mensagem que quiseram repassar), é algo que somente a análise dialética concluída poderá responder (e algumas vezes ainda será necessário lançar mão de elementos extraficcionais para ter uma interpretação mais sólida).
Um último elemento é necessário destacar aqui: os procedimentos analíticos. Como se efetiva, concretamente, uma análise dialética de histórias em quadrinhos? Podemos elencar os passos da análise dialética das histórias em quadrinhos da seguinte forma: 1) leitura inicial; 2) constituição de um corpus para análise; 3) Análise rigorosa do universo ficcional; 4) análise narrativa, análise ideográfica e análise pictórica; 5) a análise dos elementos extraficcionais.
Esses cinco passos da análise dialética das histórias em quadrinhos podem ser assim sintetizados: a leitura inicial é o primeiro passo caracterizado por ser breve para conhecer o conjunto de material e definir o que será efetivamente pesquisado, delimitar o universo de pesquisa, o corpus de análise. Se pretendemos analisar o Homem-Aranha, nós temos que ler algumas histórias desse personagem e sobre ele para poder delimitar tal corpus de análise, tal como exemplificamos anteriormente. Ela é complementada pela leitura teórica e metodológica de base para a pesquisa. A extensão dessa parte varia de acordo com o pesquisador. Se este já dominar teoria e método, isso é dispensável e apenas aprofundamentos serão necessários. Isso pode ser feito no decorrer da análise para abordar questões e especificidades ainda não refletidas em outros lugares).
A constituição de um corpus de análise significa a seleção de exemplares, conteúdos, personagem, revista, etc. que serão analisados, ou seja, o tema da pesquisa. Se a intenção inicial (antes da leitura preliminar e da delimitação final) é analisar a axiologia (determinada configuração dos valores dominantes) no universo Disney, então tenho que criar mecanismos para efetivar a seleção e delimitação. A leitura inicial realizada serve para realizar tal seleção e delimitação. A intenção inicial poderia ser a escolha óbvia, tendo em vista o objetivo acima, de trabalhar com o Tio Patinhas, aparentemente mais axiológico. Esse é o momento em que se realiza a delimitação, escolhendo apenas este personagem ou decidindo que ele é insuficiente para se chegar a uma conclusão sobre o universo Disney, gerando a necessidade de acrescentar outros personagens, entre outras possibilidades. E, mesmo que seja apenas o Tio Patinhas, será necessário selecionar as histórias que serão analisadas, pois o universo ficcional deste personagem é muito extenso e não poderia ser abarcado.
A análise rigorosa do universo ficcional significa simplesmente decompor o corpus em suas unidades significativas e reconstituir o todo no final da análise. Assim, no caso de um personagem como o Tio Patinhas ou o Homem-Aranha, algumas histórias são consideradas significativas e serão analisadas mais pormenorizadamente e ou então é selecionada apenas uma história e seus quadros mais significativos é que são analisados mais profundamente. Isso significa que, ao contrário da leitura inicial, ela é mais profunda e detalhada, buscando focalizar os elementos importantes para os objetivos da pesquisa, a identificação dos aspectos problematizados (que podem ser valores e/ou representações, ou, ainda, posicionamento diante de algum fenômeno, etc.). A análise das unidades significativas é um momento desse processo, no qual os quadros que expressam uma sequência significativa são analisados de forma também rigorosa, e que uma vez terminado permite a reconstituição do enredo ou da estória[9], ou seja, da totalidade do universo ficcional.
O passo seguinte é complementar e oferece mais solidez ao processo interpretativo. É nesse momento que a análise rigorosa do universo ficcional é complementada com a análise narrativa, ou seja, a reconstituição da evolução dos acontecimentos ficcionais, no sentido de retomar a dinâmica do universo ficcional e seus desdobramentos, o que já está contida no processo anterior, mas que permite uma revisão da mesma. É o momento também que ocorre a análise ideográfica, que focaliza os recursos simbólicos e seu significado no universo ficcional, o que ocorre em certos casos e não adquire importância em outros. Por último, é o momento da análise pictórica, que focaliza o significado das imagens, o que elas simbolizam, o que implica analisar o modo de retratar dos produtores e criadores imagéticos[10].
O último passo é a análise dos elementos extraficcionais, que se volta para a compreensão do contexto social, histórico e cultural, a conjuntura, e o processo de produção da história em quadrinhos que está sendo analisada. Esse é o momento final da análise e no qual conseguimos ter uma percepção mais ampla do conjunto e do universo ficcional. Claro que em determinados casos concretos esses passos não são efetivados, por diversos motivos (o tema já estava previamente escolhido ou o pesquisador já tinha leitura prévia do que iria pesquisar, delimitou apenas o universo ficcional por dificuldade em ter acesso ao contexto, etc.).
O objetivo da análise dialética das histórias em quadrinhos é reconstituir os valores, representações, etc. presentes no universo ficcional. Ou seja, a análise dialética não é descritiva e nem técnica, embora englobe esses dois aspectos para concretizar seus objetivos. É claro que ela também pode focalizar sua análise em outras questões, com outros objetivos, como o processo social de produção das histórias em quadrinhos (focalizando não o universo ficcional e sim o sucesso das histórias ou a dinâmica do capital editorial, ou suas mutações, etc.) ou o público e a recepção, entre outras possibilidades. No entanto, aí existiriam diferenças no processo analítico. Aqui focalizamos a análise do universo ficcional e nesse caso o objetivo é analisar a mensagem, o conteúdo, repassado por determinada história em quadrinhos. O processo analítico busca descobrir as mensagens (intencional, inintencional, inconsciente) repassadas pelo universo ficcional.
Nesse processo ganha relevância a análise do processo de produção, englobando os elementos extraficcionais, pois assim permite compreender o universo ficcional como totalidade constituída por uma totalidade constituinte, que é a sociedade. Muitos elementos e aspectos de uma história em quadrinhos de difícil compreensão em sua dinâmica interna (universo ficcional) podem ser esclarecidos com a análise do seu processo de constituição, bem como interpretações prováveis, mas ainda assim sem grande solidez, podem se tornar mais sólidas e próximas de uma interpretação correta.
TÉCNICA COMPARATIVA E ANÁLISES SEMIÓTICA, CIRCULAR E DIALÉTICA
Podemos, após essa breve síntese da análise dialética das histórias em quadrinhos, retomar as outras duas formas de análise a partir de uma comparação e assim concluir nossa abordagem da questão metodológica na pesquisa com histórias em quadrinhos. A técnica comparativa visa comparar certos fenômenos para apresentar suas semelhanças e diferenças, bem como as vantagens e desvantagens, entre outras possibilidades. Aqui usamos a técnica comparativa para mostrar as diferenças no nível de profundidade e adequabilidade dos processos analíticos resumidos anteriormente diante de um caso concreto. Escolhemos uma tira da Mafalda para mostrar as três formas analíticas concretamente:
Fig. 2 – Tira de Mafalda.

Observando a tira acima, podemos mostrar como seriam os três tipos de análise. No caso da análise semiótica, identificaríamos no nível fundamental a contraposição entre Liberdade e a conclusão de Mafalda. No nível narrativo encontraríamos os actantes da ação (Mafalda e Liberdade) e o sujeito/protagonista (Liberdade), o objeto (conclusão de Mafalda e “todo o mundo”, havendo uma disjunção: “conclusão estúpida”). No nível discursivo identificaríamos a pessoa (“todo mundo”), o espaço (físico, praia) e o tempo (concomitância/presente). Também seria possível perceber os valores atribuídos ao sujeito, que seriam uma tematização: representações abstratas (no caso a irritação) e figuratização (no caso a vergonha de Mafalda). Poderíamos acrescentar mais alguns elementos, como o plano da expressão, mas julgamos que estes são suficientes para nossa demonstração.
Os problemas que já havíamos aludido ficam explícitos. O que temos é uma descrição e tal processo descritivo não acrescenta muito na compreensão da tira. O que se consegue é perceber o que já é perceptível sem método de análise. Há também uma classificação de elementos da tira, mas não explicação. Caso o pesquisador queira fornecer uma explicação, não encontra indicações para tal e, assim, a interpretação permite um elevado nível de arbitrariedade por parte do intérprete.
 No caso da análise circular proposta por Umberto Eco, teríamos o seguinte resultado: a estrutura do enredo aponta para a percepção de que “a liberdade é pequena”. Indo para o segundo passo percebemos que o contexto social da Argentina, na época em que é produzida a tira, é de um regime ditatorial. Através da análise circular então chegaríamos à conclusão de que a estrutura do enredo aponta para uma liberdade pequena e a estrutura social argentina para a ausência das liberdades democráticas. A conclusão seria a de que a tira apresenta uma crítica ao regime ditatorial. Se acrescentarmos, o que é opcional na análise circular, a posição “ideológica” (no sentido que Eco fornece a esta palavra, distinto do sentido que nós utilizamos) do autor, Quino, é de esquerda, então isso reforçaria a conclusão anterior. Em síntese, liberdade significaria democracia representativa e a tira expressaria uma crítica ao regime ditatorial argentino.
A análise circular avança em relação à análise semiótica por colocar o social em evidência, mesmo que sob a forma problemática com que faz isso. O problema básico se reproduz: as estruturas homólogas acabam gerando relações mecânicas de homologia entre tira e sociedade. O autor e sua forma específica de expressar a realidade ficam ausentes e mesmo quando aparece, através da “posição ideológica do autor”, acaba não acrescentando muito ao processo analítico.
Por fim, a análise dialética realiza um processo analítico muito mais complexo. Tendo em vista que o corpus de análise é apenas uma tira, então o processo analítico começa pelo universo ficcional, ou seja, da mensagem repassada por ele. Segundo a tira, há um diálogo que gira em torno do nome da personagem Liberdade. Liberdade é um nome que pode significar a liberdade real, e, sendo pequena, significa que a liberdade é pequena. Ao mesmo tempo, é a “conclusão estúpida” que todos chegam: a menina chamada Liberdade foi assim chamada porque é tão pequena quanto a liberdade real.
Isso é algo facilmente percebido. Mas para saber a mensagem real por detrás desta estória é preciso entender o que é menos claro. A relação entre a personagem Liberdade e a questão do tamanho é relativamente clara. O que não ficou claro é o significado de liberdade. A palavra liberdade possui diversos significados e o que interessa é o seu sentido nessa tira específica. Também é relativamente fácil perceber que liberdade é um valor para ambas as personagens. A conclusão que podemos tirar disso é que Quino, o produtor da tira, tinha a liberdade como valor e a falta de liberdade como desvalor. A mensagem aponta, portanto, para a liberdade como valor e seu tamanho reduzido na atualidade (que pode ser a da Argentina da época). No entanto, o significado da liberdade contínua ausente. Seria liberdade de escolha como na concepção liberal? Seria a liberdade como autorrealização humana como na concepção marxista? Seria liberdade democrática, como uma análise circular apontaria? A análise, nesse caso e contexto, seria inconclusiva. É possível dizer que se trata de liberdade em sentido amplo, mas seria apenas uma hipótese que necessitaria de mais informações para ser defendida.
Contudo, uma análise dialética não para aqui. A análise extraficcional é um momento necessário neste caso e através dele a hipótese apresentada ou as alternativas existentes podem ser confirmadas ou refutadas. O primeiro ponto a destacar para entender o significado de liberdade é entender que a personagem com o mesmo nome é mais radical que Mafalda. Em entrevista, Quino afirma que Liberdade é sua personagem preferida[11] e se diz de esquerda[12], fazendo inclusive referência ao caso da rebelião estudantil de maio de 1968 em Paris[13]. Assim, sendo Liberdade a personagem preferida, isso significa identificação do criador com a criatura. E qual é a característica dessa personagem? No site oficial de Quino, Liberdade é assim apresentada:
   
Fig. 3 – Características da Personagem “Libertad”.

(Disponível em: http://www.quino.com.ar/mafalda-50-anos/personajes/ acessado em: 06/05/2015)

A informação é que ela ama a “cultura”, a “revolução” e as “reinvindicações”. Ao amar a revolução se coloca numa perspectiva política para além da democracia representativa (que seria a mais provável interpretação numa análise circular). No entanto, o universo ficcional de Mafalda também vai além da tira apresentada anteriormente. Outras tiras de Mafalda negam a interpretação segundo a qual liberdade signifique, no contexto acima, “democracia representativa”:
Fig. 4 – Mafalda e a democracia

A tira acima expressa uma crítica da democracia (representativa). Nesse caso, a “liberdade pequena” não é a “liberdade política” ou as “liberdades democráticas”. Seria uma concepção de liberdade mais ampla, que iria além da democracia representativa e formal. Desta forma, indo para outras tiras que compõem o universo ficcional de Mafalda e analisando elementos extraficcionais (entrevistas do criador, Quino), percebemos os limites da análise semiótica, meramente descritiva e formal, bem como da análise circular, que apesar de inserir a sociedade na análise, o faz de forma superficial e por isso pode promover interpretações equivocadas. Em síntese, a comparação mostra que a análise dialética das histórias em quadrinhos é muito mais ampla e próxima de uma interpretação correta, pois é mais rigorosa e profunda.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realidade social é apenas uma, mas é expressa e concebida sob formas diferentes por indivíduos/grupos/classes diferentes a partir de sua forma específica de inserção na totalidade das relações sociais. O mesmo acontece com as interpretações dos fenômenos culturais, tais como as histórias em quadrinhos. Essa diferença está também nos quadrinistas, criadores de histórias em quadrinhos, e nos seus leitores. É nesse contexto que o método pode adquirir um papel importante no sentido de ajudar a superar o conflito de interpretações. Porém, a escolha metodológica depende de valores, sentimentos, concepções, interesses, etc. Por isso, tal escolha não é algo simples e também é permeada por conflitos. Contudo, a demonstração racional do mérito de um método pode ser uma das determinações para a escolha mais adequada. Este foi o objetivo do presente texto, esclarecer como ocorre o processo analítico dialético e o que ele possibilita.
A comparação com outras duas formas de análise das histórias em quadrinhos apenas mostrou outras possibilidades e seus limites, embora de forma muito sintética e sem trabalhar todos os elementos que eles permitiriam. A análise dialética engloba elementos da análise semiótica e circular e os supera, pois o coloca no interior de uma totalidade, o método dialético, com um conjunto de recursos teórico-metodológicos que apontam para uma maior profundidade e rigor analítico. Da mesma forma, graças aos seus recursos metodológicos, consegue abarcar a especificidade das histórias em quadrinhos, indo além de mera aplicação de modelos analíticos utilizados para diversos fenômenos diferenciados.
O aspecto formal e descritivo é apenas um momento no processo analítico, superado pela análise da mensagem e explicação da constituição do universo ficcional. A análise da relação entre sociedade e histórias em quadrinhos não ocorre via comparação entre ambas e sim através da reconstituição da totalidade do universo ficcional e mensagens repassadas e do processo social e histórico de produção das HQ, o que remete a quem produziu, portador de quais valores, interesses, etc., o que gera uma expressão específica da realidade.
Desta forma, o método dialético fornece uma contribuição para a análise das histórias em quadrinhos que merece aprofundamento através de seu uso que traz novos problemas e necessidades analíticas, possibilitando aprofundar ainda mais no processo de compreensão das especificidades desta forma de arte e suas manifestações concretas.
REFERÊNCIAS
BARROS, Diane. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Parma, 2005.
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
GOLDMANN, L. Sociologia do Romance. 3ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural. São Paulo, Cultrix/EDUSP, 1973.
KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. 2ª edição, Rio de Janeiro: Elfos, 1989.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.
PROPP, Wladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
RENARD, Jean-Bruno. A Banda Desenhada. Lisboa: Presença, 1981.
VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
VIANA, Nildo. A Crítica do Capitalismo e da Burocracia em Dilbert. Anais do EICS, Pelotas, 2012.
VIANA, Nildo. A Esfera Artística. 2ª edição, Porto Alegre: Zouk, 2011.
VIANA, Nildo. A Predominância Valorativa em O Racista, de Mortadelo e Salaminho. In: VIANA, Nildo (org.). Os Valores nas Histórias em Quadrinhos. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2016b.
VIANA, Nildo. Análise Pictórica, Modos de Ver e Modos de Retratar. Anais do ASPAS, Leopoldina, 2015b.
VIANA, Nildo. As histórias em quadrinhos como forma de arte. Revista Ciências Humanas, vol. 4, num. 11, 2014.
VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. 4ª edição, São Paulo: Zagodoni, 2015a.
VIANA, Nildo. Histórias em quadrinhos e Análise Valorativa. In: VIANA, Nildo (org.). Os Valores nas Histórias em Quadrinhos. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2016a.
VIANA, Nildo. Quadrinhos e Crítica Social. O Universo Ficcional de Ferdinando. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.
VIANA, Nildo. Tio Patinhas: A Saga de um Capitalista. Revista Nona Arte. Vol., 4, Num. 01, 2015c.



[1] “O enunciador determina como o enunciatário deve interpretar o discurso, deve ler ‘a verdade’. O enunciador constrói no discurso todo um dispositivo veridictório, espalha marcas que devem ser encontradas e interpretadas pelo enunciatário”. (BARROS, 2005, p. 57).
[2] “O sujeito é o actante que se relaciona transitivamente com o objeto, o objeto aquele que mantém laços com o sujeito” (BARROS, 2005, p. 20).
[3] Tal como colocamos acima, seria possível acrescentar outro elementos na análise, que, no entanto, não foram trabalhados pelo autor e sem referência a nenhum, a não ser da forma abstrata como na citação acima. É nesse “possível acréscimo” na análise que se incluiria a “ideologia do autor” (ECO, 2004).
[4] Eco não consegue perceber que Ferdinando não foi homogêneo durante toda sua produção dos anos 1930 até os anos 1970, pois seu criador, Al Capp, mudou, bem como a sociedade em que ele vivia (VIANA, 2013). A falta de historicidade é um dos problemas da análise circular.
[5] Tais personagens são uma produção de Francisco Ibañez, um quadrinista espanhol e que tem toda uma especificidade derivado disso. Se fosse uma história em quadrinhos de Tex Willer, produzidas por quadrinistas italianos, então teríamos outra situação bem distinta. Trata-se de gêneros diferentes, produtores diferentes, em contextos sociais, históricos distintos, etc.
[6] É produção independente ou produto de uma grande empresa como a Marvel Comics ou Disney? Se for produção independente, ela pode até ser individual (um indivíduo produz tudo sozinho) ou uma equipe/parceria, etc., que tem autonomia e/ou afinidade de mentalidade para poder realizar a produção ficcional. Logo, a análise aqui ganha certos contornos que não ganha no outro caso. No caso da produção submetida ao capital editorial (Marvel, DC, Disney, Maurício de Souza, etc.), o processo comercial, a reação do público, etc., possuem forte efeito no direcionamento das produções e gera distinções analíticas.

[7] Obviamente que, pela quantidade enorme nesse caso, se seleciona as mais significativas. O processo de seleção, nesse caso, é realizado após uma leitura inicial de diversas histórias do personagem e deve incluir as primeiras histórias, a narração de sua origem, as mudanças mais marcantes, as histórias mais famosas, pois são importantes para compreendê-lo, além de análises e comentários de outros pesquisadores, etc.
[8] É uma tendência, pois somente com a análise dialética terminada é que se pode ter uma conclusão sobre isso. Geralmente é o que ocorre, mas existem exceções, como, por exemplo, Badger, personagem violento e semifascista que o criador, Mike Baron, se identifica e justifica dizendo que é a forma como ele pode dar voz ao fascista e psicopata que existe dentro dele (VIANA, 2013).
[9] A “estória” é quando se trata de tiras ou histórias em quadrinhos simples e “enredo” quando se trata de universo ficcional mais complexo (VIANA, 2013).
[10] Esses elementos analíticos são desenvolvidos em algumas obras (VIANA, 2013; VIANA, 2015b; VIANA, 2015c) e encontra alguns aspectos, com certas diferenças, em Renard (1981).
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Histórias em Quadrinhos e métodos de análise. Revista Temporis [Ação] Anápolis. V. 16, n. 02, p. 41-60 de 469, número especial., 2016. Disponível em:
<http://www.revista.ueg.br/index.php/temporisacao/article/view/4620 Acesso em: < inserir aqui a data em que você acessou o artigo >

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