A Intelectualidade como Classe Social
Nildo Viana
Os termos “intelectuais”, “intelectualidade”, “intelligentsia” são bastante ambíguos e recebem as mais variadas definições e abordagens. Nas representações cotidianas, um intelectual é alguém “inteligente”. O termo intelligentsia é, formalmente mais próximo deste sentido, mas mais distante em seu conteúdo, já que não é uma referência positiva e sim negativa em relação ao coletivo dos intelectuais. Do ponto de vista teórico, indo além das representações cotidianas, os intelectuais não se caracterizam por sua elevada “inteligência” e sim por sua posição no conjunto das relações sociais. Por conseguinte, é através do seu papel na divisão social do trabalho que podemos entender quem são os intelectuais. Podemos, a partir desta visão, definir os intelectuais como uma classe social composta pelos indivíduos dedicados exclusivamente ao trabalho intelectual. Tal classe social assume formas diferentes em sociedades diferentes. Os intelectuais sempre tiveram uma posição privilegiada no interior da divisão social do trabalho. Historicamente, os intelectuais, ou “ideólogos”, segundo expressão de Marx e Engels (2002), surgiram a partir da expansão da divisão social do trabalho e sempre estiveram ao lado da classe dominante.
Na sociedade escravista, os intelectuais eram fundamentalmente e/ou majoritariamente os filósofos; na sociedade feudal, os teólogos e, na sociedade moderna, os cientistas. A forma de remuneração ou os meios de sobrevivência variam de acordo com o modo de produção, mas sempre possuem rendimentos superiores aos das classes exploradas. Portanto, trata-se de uma classe social que ocupa determinado papel no processo de reprodução da sociedade e privilégios derivados disto. A sua constituição e dinâmica depende da totalidade das relações sociais e do modo de produção que está na base de uma determinada sociedade. Isto quer dizer que existem semelhanças entre os intelectuais nos diversos modos de produção mas também diferenças. Obviamente que o papel e características da intelectualidade enquanto classe social poderia, devido a diferença, gerar uma distinção na terminologia. Sem dúvida, assim como se pode utilizar a expressão “trabalhadores” para se referir tanto aos escravos da sociedade antiga quanto aos proletários da sociedade moderna ou a expressão genérica de “classe dominante” para variadas classes que sucederam uma à outra no poder, o mesmo se poderia fazer com a intelectualidade. Isto é derivado de um nível de generalidade maior da expressão, que deve, a cada forma de sociedade existente, receber um tratamento diferenciado, pois ao lado da semelhança existe a diferença. Para nossa definição, que possui maior grau de generalidade, os intelectuais, em todas as sociedades, fazem parte das classes sociais privilegiadas, sendo sempre uma classe auxiliar da classe dominante e que se dedicam exclusivamente ao trabalho intelectual.
No capitalismo, os intelectuais são trabalhadores assalariados improdutivos, no sentido marxista do termo, isto é, trabalhadores que vendem sua força de trabalho em troca de um salário mas não produzem mais-valor. Os salários dos intelectuais são muito maiores do que dos trabalhadores produtivos (proletários) e de outras setores da sociedade. A definição do salário dos intelectuais está ligada, por um lado, ao custo de reprodução desta força de trabalho específica e, por outro, às suas ligações com o Estado capitalista e demais instituições da sociedade burguesa, isto é, por sua utilidade para os interesses da classe dominante. É claro que juntamente com isto está o poder de pressão dos intelectuais, isto é, a luta de classes, bem como a hierarquia no interior desta classe social, já que no capitalismo a complexificação da divisão social do trabalho cria inúmeras subdivisões no interior das classes sociais. A função dos intelectuais é produzir e/ou reproduzir determinados saberes que são de interesse daqueles que detém o poder.
O surgimento dos intelectuais ocorre com a separação entre trabalho intelectual e manual. Os intelectuais passam a se dedicar ao trabalho intelectual e o produto do seu trabalho é a ideologia (Marx e Engels, 2002). A ideologia é uma expressão sistemática da falsa consciência da realidade. A falsa consciência existe e é produzida e reproduzida por todas as classes sociais, o que significa que não é produção dos intelectuais. O que estes produzem é um processo de sistematização desta falsa consciência, transformando as representações ilusórias existentes em saber sistemático, como filosofia, teologia, ciência. Este processo pode ser exemplificado pela crítica que Marx fez aos economistas: eles traduzem para a linguagem da ciência econômica as representações cotidianas – e ilusórias – dos agentes do processo econômico (Marx, 1988). Uma ideologia, uma vez produzida, passa a legitimar as relações sociais existentes, cumpre o papel de naturalizá-la e universalizá-la, sob uma forma também considerada legítima, a forma científica, filosófica, teológica. Assim, um saber legítimo realiza a legitimação das relações sociais existentes. O discurso dos intelectuais possui uma legitimidade devido ao fato de ser considerado verdadeiro, superior. A legitimidade do discurso do intelectual se encontra na sua auto-declarada capacidade de monopolizar a veiculação da verdade, através da razão, da interpretação da palavra de Deus, da pesquisa empírica, ou qualquer outra justificativa, ela mesma ideológica, mas aceita socialmente. Os intelectuais estão sempre ligados à burocracia e a passagem de um intelectual para a burocracia (estatal, privada, etc.) é bastante corriqueira, tendo em vista que o “capital cultural”, para utilizar expressão dos sociólogos Bourdieu e Passeron (1982), é um meio de se conquistar cargos de direção no Estado ou nas instituições da sociedade burguesa.
Posto isto, fica claro o papel conservador dos intelectuais numa determinada sociedade concreta. A produção intelectual é subordinada aos interesses da classe dominante e por isso não tem o menor sentido a ficção segundo a qual os intelectuais seriam um setor progressista da sociedade, ou então a de que a educação, a produção científica, etc., seriam elementos que contribuiriam com a emancipação humana. Os intelectuais, por sua posição social e os interesses e valores derivados dela, são agentes da conservação e não da transformação.
A suposta “liberdade” ou “autonomia” dos intelectuais também é outra ficção. Na verdade, os intelectuais são tão condicionados e determinados quanto qualquer outra classe social. O sociólogo Karl Mannheim defendeu a tese da autonomia dos intelectuais e de que eles teriam a possibilidade de produzir um saber superior ao das demais classes sociais (Mannheim, 1986). Os intelectuais possuem seus interesses próprios, particulares, ligados aos interesses da classe dominante. Os interesses dos intelectuais são manter uma posição privilegiada na sociedade, altos salários, status, etc. A própria existência dos intelectuais e de seus privilégios depende da conservação da sociedade atual, o que significa que os intelectuais estão indissoluvelmente ligados ao poder. A sua autonomia, por conseguinte, é fictícia. No entanto, faz parte da lógica dos seus interesses produzir o discurso de sua autonomia, pois assim escamoteia sua ligação com o poder e ganha legitimidade. A idéia da autonomia dos intelectuais é uma ideologia produzida pelos intelectuais e para os intelectuais, o que também é interesse da classe dominante. Assim, os intelectuais são uma classe auxiliar da burguesia mas deve ocultar esta relação. A idéia de autonomia dos intelectuais é exemplificada magistralmente na ideologia produzida por eles a respeito da “neutralidade de valores” na ciência.
A tese da autonomia dos intelectuais já foi defendida inúmeras vezes e sob as mais variadas formas. Realmente, os intelectuais possuem uma autonomia relativa, como todos os indivíduos, grupos e classes sociais em nossa sociedade. No entanto, também como todas as demais classes sociais, a intelectualidade visa se autonomizar, seja aumentando sua renda e privilégios, seja querendo se tornar uma nova classe dominante. É por isso que surgem ideologias que afirmam que os intelectuais devem ser os dirigentes da sociedade, desde Platão e sua A República (1974), na sociedade escravista, até Lênin e sua obra O Que Fazer? (1978), no início do século 20. Em outras palavras, os intelectuais possuem o desejo de se tornar burocratas (dirigentes) ou nova classe dominante e os burocratas buscam legitimar sua dominação através do discurso sobre o saber. Aqueles que sabem devem dirigir, ou, como já dizia Bacon, “saber é poder”. Daí a eterna aliança entre burocratas e intelectuais.
Poucos são os intelectuais que denunciam a si mesmos. Geralmente a crítica aos intelectuais é proveniente de não-intelectuais. Obviamente que estamos nos referindo aos intelectuais enquanto classe social, isto é, aqueles que, segundo Gramsci (1977), exercem a função de intelectuais, e não qualquer pessoa que realiza uma produção intelectual, pois nesta acepção mais ampla, como bem colocou Gramsci, todos são intelectuais. Uma das críticas mais fortes aos intelectuais (intelectualidade ou intelligentsia) enquanto grupo social foi a realizada por Jan Wanclaw Makhaïsky (1981). Ele realizou uma análise marxista dos intelectuais, observando os seus altos rendimentos e a fonte de tais rendimentos: a renda nacional e esta, por sua vez, é oriunda da exploração capitalista, isto é, da extração de mais-valor da classe operária. O nível de vida quase burguês dos intelectuais é derivado de sua apropriação de parte do lucro patronal, de parte do mais-valor global. Se esta intelectualidade se diz “socialista”, ela visa concentrar os meios de produção nas mãos do Estado, para assim garantir a apropriação de uma parte maior do mais-valor global.
Makhaïsky anunciou profeticamente o destino da Rússia ao criticar o bolchevismo e ser perseguido pelo Partido Bolchevique. A Revolução Bolchevique e a burocratização que lhe acompanhou gerou diversos estudos sobre a “nova classe” e sobre a burocracia e a intelectualidade. Em 1973/1974, o sociólogo Ivan Szelenyi e o romancista George Konrád escreveram Os Intelectuais e o Poder, expressando a tese de que a intelligentsia se torna uma classe que cada vez mais reduz sua distinção com a burocracia no “socialismo real” do Leste Europeu (Konrád e Szelenyi, 1981). Estes e muitos outros estudos tematizaram a intelectualidade e revelaram, com maior ou menor exatidão, as relações entre esta classe social e o poder.
Porém, é preciso deixar claro que existe uma distinção entre indivíduo e classe social. A intelectualidade, enquanto classe social, é conservadora, o que não quer dizer que todos os intelectuais, ou seja, todos os indivíduos pertencentes a esta classe, sejam conservadores. O indivíduo possui uma autonomia relativa e, dependendo do desenvolvimento de sua consciência, valores, interesses, pode, mesmo pertencendo a uma classe social conservadora, romper com a reprodução das concepções desta. Obviamente que apenas uma minoria poderia realizar tal processo, pois a posição social (o seu modo de vida e todos os valores, interesses, etc., derivados dele) da intelectualidade predispõe todos os indivíduos que a compõe ao conservadorismo.
No entanto, vários indivíduos podem romper com isso, devido ao seu processo histórico de vida, desde a origem de classe, relações familiares, desenvolvimento da consciência, ligações com pessoas, a percepção de que apesar dos privilégios também está submetido à alienação, ao modo de vida degradado do mundo contemporâneo e ao processo de desumanização, entre outros fatores, podem contribuir com isso. Segundo Marx, todas as classes sociais produzem seus representantes intelectuais (que podem ou não exercer a função de intelectual), isto é, indivíduos que produzem concepções que são de seu interesse (Marx, 1986).
A intelectualidade é uma classe auxiliar da burguesia e por isso produz ideologias que expressam seus interesses, embora alguns intelectuais (indivíduos) podem romper com este processo e representar intelectualmente outra classe social. Esta ruptura pode ser parcial ou total. Um intelectual profissional, por pertencer aos extratos mais baixos desta classe social, pode se revoltar contra sua condição e assim assumir um discurso crítico e até se aliar a setores que pregam a transformação social, o que não significa que tenha se tornado autenticamente um intelectual revolucionário, pois sua produção intelectual ainda fica limitada por não realizar uma superação completa, já que o seu posicionamento não é derivado de uma identificação dos seus interesses com os da classe explorada e sim um descontentamento individual que proporciona uma revolta individual sem grande alcance e que, se for compensado, pode “mudar de lado”. Este é o caso de diversos intelectuais ligados a partidos de “esquerda”, e é isso que possibilita a idéia da o caráter corruptível dos intelectuais de esquerda, embora existam aqueles que são dissimulados, que tão logo assumam a direção do partido mostram sua verdadeira face (Michels, 1982) e os iludidos, que são sinceros mas que não conseguem ultrapassar determinadas concepções – não se aliando com a direção e nem rompendo com o partido – e geralmente ficam à margem do partido, principalmente quando este se fortalece através das vitórias eleitorais. Tal como colocou Nietzsche quando se referia aos “que são perigosos entre os espíritos subversivos”:
“Dividam-se aqueles que pensam em uma subversão da sociedade naqueles que querem alcançar algo para si mesmos e naqueles que querem alcançar algo para seus filhos e netos. Estes últimos são os mais perigosos; pois têm a crença e a boa consciência do não-egoísmo. Aos outros pode-se satisfazer; para isso a sociedade dominante é ainda rica e esperta o bastante. O perigo começa quando os alvos se tornam impessoais; os que são revolucionários por interesse impessoal podem considerar todos os defensores do que existe como pessoalmente interessados e por isso sentir-se superiores a eles” (Nietzsche, 1991, p. 69).
A observação de Nietzsche serve para distinguirmos entre o intelectual engajado por interesse pessoal e o por interesse de classe, isto é, identificação com as classes exploradas. O interesse pessoal, neste contexto, é o interesse imediato e constituído socialmente, de acordo com os valores dominantes. O interesse de classe não é o interesse de classe da intelectualidade e sim o interesse da classe social revolucionária, que aponta para a abolição das classes sociais em geral e a emancipação humana.
E o que podem fazer os intelectuais que rompem com o conservadorismo de sua classe? Não se trata de abandonar o próprio pertencimento de classe, pois não é esta a questão. O intelectual, neste caso, deve realizar um engajamento na luta pela transformação social e abolição das classes em geral, inclusive da sua própria classe social. Isto pode ser feito sob as mais variadas formas, desde a ação política concreta até a própria atividade profissional, direcionada para a crítica das ideologias, da burocracia e do próprio papel do intelectual na sociedade moderna. A articulação do intelectual com o movimento operário, os movimentos sociais, as lutas políticas concretas também assume importância neste contexto. Além disso, é fundamental a contribuição com o desenvolvimento do pensamento complexo no sentido de desvendar as diversas formas de dominação e reprodução da exploração e opressão. Assim, os intelectuais passam de serviçais do poder para críticos do poder e este é o papel do intelectual que supera os seus interesses imediatos e egoístas e passa a defender os interesses gerais da humanidade, que são também seus interesses, contribuindo, assim, com a emancipação humana.
Referências Bibliográficas
Bourdieu, P. e Passeron, J-C. A Reprodução. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982.
Gramsci, A. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.
Konrad, George e Szelenyi, Ivan. Los Intelectuales y el Poder. “Intelligentsia” y Poder de Clase em los Países Socialistas Europeos. Barcelona, Ediciones Península, 1981.
Lênin, W. Que Fazer? São Paulo, Hucitec, 1978.
Makhaïsky, J. W. O Socialismo de Estado. in: Tragtenberg, M. (org.). Marxismo Heterodoxo. São Paulo, Brasiliense, 1981.
Mannheim, Karl. Ideologia e Utopia. 4ª edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
Marx, K. e Engels, F. A Ideologia Alemã. 3ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2002.
Marx, Karl. O Capital. 3ª edição, 5 vols. São Paulo, Nova Cultural, 1988.
Marx , Karl. O Dezoito Brumário e Cartas A Kugelman . 5ª Edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
Michels, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília, UnB, 1982.
Nietzsche, F. Obras Incompletas. Vol. 1. São Paulo, Nova Cultural, 1991.
Platão. A República. São Paulo, Hemus, 1974.
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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Intelectualidade e Classe Social. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, Maringá/PR, v. 65, p. 10-16, 2006.
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