O Nemos realiza o seminário "Movimentos Sociais e Sociedade Moderna" em novembro desse ano.
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https://www.even3.com.br/movsoc2020/
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Programa Mundo UFG - TV UFG
O QUE
FOI OCULTADO EM “O DILEMA DAS REDES”
Nildo
Viana
O documentário O Dilema das Redes vem ganhando destaque nos
meios intelectualizados da sociedade brasileira. Dirigido por Jeff Orlowski
(EUA, 2020), é uma “produção original” Netflix. O documentário vem sendo
recebido como algo esclarecedor e importante e, mais ainda, sendo indicado para
todos compreenderem os dilemas das redes sociais virtuais. O documentário, em
si, traz muitas informações interessantes, embora a maioria não fosse novidade
para quem é bem informado a esse respeito. Assim, além de algumas informações a
mais do que as já conhecidas, o melodrama por detrás da narrativa informativa,
que se manifesta via “paradas para pensar” de alguns entrevistados, gestos e
principalmente na história ficcional inserida no documentário), revelam a intenção
do documentário, que não foi, no entanto, revelada em nenhum momento. A intenção
original ficou oculta. É isso que vamos abordar, o lado oculto do documentário,
aquilo que ele não quis revelar.
Depois dessa síntese, podemos focalizar o que foi ocultado.
O documentário ocultou a realidade concreta, a sociedade, as determinações que
geram e reproduzem as redes sociais. Mas não foi só isso. Ocultou a razão do
remorso dos ex-funcionários das megaempresas da internet. E não fica apenas
nisso, pois também ocultou quem são os responsáveis pelo documentário e o que
eles representam. Por fim, o ocultaram que quem produziu e divulgou o
documentário realiza a mesma manipulação denunciada por ele. Então vamos
analisar cada um desses ocultamentos.
O primeiro ocultamento é a sociedade, pois ela não aparece.
Não é de se estranhar vendo milhares de sociólogos assistindo o documentário e
em nenhum momento se perguntar: cadê a sociedade? Assim, parece que os
sociólogos – não todos, obviamente, mas nenhum se manifestou sobre isso até
agora, pelo que sabemos – acreditaram no discurso inicial do documentário. O discurso
inicial é simplesmente mágico, ou, em termos marxistas, fetichista. Um funcionário
afirma: “fomos ingênuos” diante do “outro lado da moeda” (na legenda) ou em relação
aos “efeitos colaterais” (dublagem, embora a legenda seja mais fiel aos termos
usados). Ou seja, tudo parece que ia muito bem, pois essas ferramentas criaram
coisas boas, como se coloca em várias oportunidades. Mas o fetichismo ocorre
quando o entrevistado diz que “essas coisas ganham vida própria quando são libertas”,
ou então quando outro questiona se isso é normal “ou será que estamos sob algum
tipo de feitiço? (ex-designer “ético” do Google).
O que fica oculto é a sociedade, as determinações desse
processo. Fica ausente o desenvolvimento tecnológico e seu vínculo com a mercantilização
das relações sociais, bem como a emergência de uma nova fase do capitalismo e
sua mutação cultural, com a instauração de um paradigma subjetivista. Ora, sem
dúvida, seria pedir muito para eles colocarem isso. Há até um momento em que o
funcionário que fala do “outro lado da moeda” afirmando que ocorreram mudanças
no mundo (e atribuindo elas às redes sociais, tais como a Primavera Árabe). Porém,
a junção de um amplo desenvolvimento tecnológico mercantilizado (os computadores
e os celulares, condições de possibilidade das redes sociais, só são popularizados
e se tornam consumo compulsório por
serem mercadorias e servem de impulso para mais uma onda de acumulação capitalista)
e o subjetivismo reinante acontece com a expansão do neoliberalismo que, nos
Estados Unidos, surgiu em sua forma inflexível como Ronald Reagan, mas logo
assumiu ares mais “democráticos” como que Nancy Fraser denominou “neoliberalismo
progressista”.
Assim, quem está por detrás das redes sociais, das plataformas,
da tecnologia, das empresas que dão vida a isso tudo, são grandes empresas capitalistas.
E a força disso tudo emerge, fundamentalmente, no Vale do Silício. Nancy Fraser
novamente é útil nesse momento:
Nos EUA, o neoliberalismo progressista é uma aliança entre, de um lado, correntes majoritárias dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBT) e, do outro lado, um setor de negócios baseado em serviços com alto poder “simbólico” (Wall Street, o Vale do Silício e Hollywood). Nesta aliança, as forças progressistas se unem às forças do capitalismo cognitivo, especialmente à “financeirização”. Embora involuntariamente, o primeiro oferece ao segundo o carisma que lhe falta. Ideais como diversidade e empoderamento, que poderiam em princípio servir a diferentes fins, hoje dão brilho a políticas que destruíram a indústria e tudo aquilo que antes fazia parte da vida da classe média[1].
Apesar da terminologia problemática, Fraser coloca
claramente o significado do Vale do Silício e suas alianças. Essa vertente do
neoliberalismo, progressista burguesa, conseguiu dominar e hegemonizar o bloco
progressista (que nos EUA sempre foi fraco e nunca disputou efetivamente o
poder, mas no Brasil e outros países é mais forte, mas que também tiveram um
processo semelhante, tal como se vê no que já foi denominada “americanização das
esquerdas brasileiras”)[2].
Então por qual motivo o remorso? É preciso entender que o
remorso não é por causa da manipulação. O remorso é pelo motivo de que o
processo de manipulação “ganhou vida própria”, ou, “o feitiço virou contra o feiticeiro”.
As redes sociais não são autônomas e independentes, como querem nos fazer crer.
Elas reproduzem a sociedade capitalista[3].
E como a sociedade capitalista é dividida em classes, existem distintos
interesses, subdivisões (frações de classes, partidos, países, grupos sociais, etc.),
então seria de se esperar que outros também usassem a manipulação. O remorso,
portanto, não é em relação à manipulação, mas por ela não ser controlada totalmente
pelos seus idealizadores e praticantes, deixando que outros, como Putin, Trump
e Bolsonaro, possam utilizá-la, inclusive contra o neoliberalismo progressista.
Outra coisa que ficou oculta foi quem são os responsáveis e
produtores do documentário? O que eles representam? Já dissemos isso ao falar
dos entrevistados, mas não custa retomar e apontar o nome, pois poucas pessoas
se preocupam em saber que é o diretor do documentário e quem é o financiador. O
diretor é Jeff Orlowski. Ele trabalhou com a Apple, National Geographic,
Stanford University e o Jane Goodall Institute, entre muitos outros. Seus trabalhos
foram transmitidos pela Netflix, National Geographic Channel, CNN e NBC e foi
apresentado no The New York Times, The Wall Street Journal, revista Time, NPR e
Popular Mechanics. Ele viajou em turnê representando o Instituto Sundance,
Comitê do Presidente Obama para as Artes e Humanidades e o National Endowment
of the Arts. Essas informações, acessíveis no Wikipédia dos Estados Unidos,
mostram seus vínculos com o Vale do Silício e com o neoliberalismo progressista,
vinculado, fundamentalmente, ao Partido Democrata. A referência a Obama,
Netflix, Wall Street Journal, não é gratuita.
E quem financiou a produção? Ora, todos que são mais atentos
perceberam que é uma “produção original Netflix”. E as pessoas bem informadas
sabem que a Netflix é parte do neoliberalismo progressista ao lado de Hollywood
e do que é hegemônico no capital cinematográfico contemporâneo. A Netflix
representa o neoliberalismo progressista, o subjetivismo e suas ideologias
correspondentes, etc. Basta ver o outro lançamento da Netflix, Enola Holmes, no
qual a irmã de Sherlock Holmes é a protagonista, cuja mãe é feminista e possui
obras de autoras feministas. As referências ao feminismo nas produções da
Netflix é abundante[4],
bem como as outras temáticas que são o foco do neoliberalismo progressista e
sua ideia de diversidade, inclusão, que, no fundo, é a ideia de cooptação,
divisionismo, entre outros elementos que visam conter as contradições da
sociedade capitalista, especialmente as de classe. E conseguiram adestrar o
bloco progressista, que ficou – com raríssimas exceções – a reboque do
neoliberalismo progressista e suas pautas, mas não conseguiram abafar o “outro
lado da moeda”, para recordar a expressão de um dos entrevistados, os
conservantistas e outros reacionários. Inclusive, ao enfraquecer o bloco
progressista anexando-o e também o bloco revolucionário, deixou que a insatisfação
acabasse sendo canalizada pelos reacionários. Aqui, o feitiço foi uma
estratégia que virou contra o estrategista.
E o último ocultamento é o que se refere ao fato de quem
produziu e financiou o documentário que denuncia a manipulação também efetiva
um processo manipulatório tão intenso quanto o denunciado. A carreira de Jeff Orlowski
demonstra isso, mas o leitor pode perceber isso mais facilmente na empresa
capitalista financiadora do documentário, a Netflix. Ela usa os mesmos
procedimentos acusados no filme. Afinal, qualquer assinante sabe dos seus e-mails
para atrair ou retomar o público, as suas indicações baseadas nas preferências
e assistências anteriores, as notas dos filmes (que agora é só um curtir, mas
era antes um nota de zero a cinco), as indicações na própria plataforma, os
destaques apresentados, etc. Porém, a manipulação está no próprio documentário
e para isso o melodrama e a ficção inserida no seu interior, a música de fundo,
a narrativa, etc. tudo é um processo de manipulação. Inclusive a maior
manipulação se revela ao mostrar o que é realmente ruim: os reacionários também
manipularem as redes sociais.
Os entrevistados parecem bem intencionados e ingênuos. Isso
ajuda a se tornar mais convincente. Quem cria fake News são os reacionários, não
os neoliberais progressistas. Ora, isso nada tem a ver com a verdade. Quem
criou as ferramentas e iniciou o processo foram os neoliberais progressistas. Pode
até ser que um ou outro é “ingênuo”. Os técnicos responsáveis pelo Google,
Facebook, Youtube, não se diferenciam muito dos intelectuais “ingênuos” a
serviço do poder. Servem ao capital e ao poder e não possuem muita consciência
disso e quando começam a ter consciência, perguntam pateticamente: “meu Deus, o
que que eu fiz?” E aí se “esquecem” que vários já haviam alertado sobre o que
eles faziam. Muitos estão lendo esse texto agora e vão negar sua veracidade e
depois vão “esquecer” que alguém já tinha avisado. Mas isso é apenas naqueles
supostos “ingênuos”, mas a princípio nenhum dos entrevistados parecem estar
nessa situação. Inclusive as suas performances melodramáticas – um misto de preocupação
real com os reacionários e o governo Trump e de uma dramatização para ter maior
eficácia simbólica, apontam para mais uma manipulação. Eles são especialistas
nisso. Assim, um afirma que redes sociais não são uma ferramenta, está “te
seduzindo, manipulando, pedindo que você faça algo”, abstraindo que, desde o
início, elas sempre foram ferramentas, mas dominadas pelo capital, visando
despertar consumo e gerar lucro, e, secundariamente, influenciar politica e culturalmente.
Todo o problema do documentário expressa que a manipulação em seu aspecto
secundário, expressão do subjetivismo e neoliberalismo progressista, acabou
sendo desviado pelo reacionarismo.
Essa é a maior manipulação e ocultamento do documentário. É
também o que é mais comum no capitalismo. Um dos lados em disputas faz todo um
discurso mostrando os perigos, os problemas, a manipulação, como se fosse um
lado “neutro”, como se não expressasse interesses, valores, concepções, etc. É
como um sociólogo fazendo um discurso moralista a partir de uma determinada
perspectiva para outro sociólogo, que seria parcial por ter posições revolucionárias,
ou então os pândegos do “Escola sem Partido” denunciando a doutrinação dos “esquerdistas”
como se não quisessem apenas ser os “novos” doutrinadores (e esquecendo quem eram
os doutrinadores da época do regime militar com sua “Educação Moral e Cívica”).
O ocultamento dos interesses e posição de classe de quem faz o discurso e seus
interesses mais delimitados no âmbito da luta política institucional e cultural
é o principal elemento do documentário. O documentário é, no fundo, apenas mais
um capítulo da manipulação, que, curiosamente, tematiza a manipulação, mas
sempre a atribui ao erro, quando é realizada por eles mesmos, ou ao “mal”,
quando é realizada pelos outros.
Como já dizia Sartre, “nem uma pedra é neutra”[5],
e a Netflix não tem nada de neutra, ela tem uma orientação cultural e efetiva a
política cultural burguesa hegemônica, que sofreu algumas derrotas para os
reacionários e agora está numa situação difícil e que poderá sofrer uma reorientação
(e isso vai depender do desdobramento da desestabilização do regime de
acumulação integral, da força do reacionarismo, das consequências da pandemia
do coronavírus, das lutas sociais, etc.). Um assistente atento das séries da
Netflix pode ver a manipulação apenas assistindo e observando algo que é
constante geralmente no terceiro capítulo da primeira temporada. Ao assistir algumas
séries e observar o que emerge nesse momento, saberá que é muita coincidência
para não ser manipulação. Deixarei aos curiosos essa descoberta, mas o processo
manipulatório é simples: se apresenta os personagens, cria-se familiaridade do
assistente com eles e uma certa simpatia em relação a alguns deles, e depois se
apresenta uma nova faceta dos mesmos, e com isso uma maior aceitação de suas características
reveladas, bem como gerando uma dificuldade para que alguns assistentes deixem
de assistir a série, pois já se vincularam a ela.
Da mesma forma, os assistentes atentos saberão que a série Casa
de Papel teve uma mudança cultural na sua terceira temporada, ao passar a ser
uma produção Netflix. Um especial sobre essa série, disponibilizada nesse mesmo
serviço de streaming, coloca que as duas primeiras temporadas foram produções espanholas
independentes e depois passa a ser produzida pela empresa capitalista
norte-americana. É nesse momento que ocorre a mutação discursiva, ou seja, a
partir da terceira temporada, e o novo discurso – sem muita relação com a trama
e com as temporadas anteriores - se torna tão perceptível que basta ver os
discursos repetitivos e enfadonhos sobre machismo, misoginia e outros pulando como
grilos desesperados das telas para as cabeças dos assistentes em seus sofás).
A manipuladora Netflix faz um documentário sobre (e aparentemente
contra) a manipulação. E aí voltamos ao mesmo discurso de sempre: quem manipula
são apenas os outros. A ideia do enunciador do discurso, sobre sua suposta
neutralidade ou inocência, é acompanhada pela acusação ao outro de fazer o que
é condenado. A Netflix, uma grande manipuladora, que tem mais de 160 milhões de
assinantes, tem um forte impacto na sociedade. As pesquisas no Google sobre “excluir
o facebook” aumentou em 260%, bem como houve “uma queda de 50 milhões de horas
por dia na plataforma”, o que gerou a resposta do Facebook[6].
Mas o Facebook não faz parte do mesmo campo político e cultural? Sim, faz, mas
o lucro é o fundamental e a Netflix está atrapalhando os lucros da famosa rede
social. Conflitos no paraíso do dinheiro e do neoliberalismo progressista. Mas
a Netflix está lucrando com o documentário. Nem todos podem ganhar ao mesmo
tempo.
O problema é que a maioria da população nunca ganha e só
quando avançar na consciência e autoformação poderão enxergar os processos
manipulatórios, tanto dos acusados quanto dos acusadores, e criar mecanismos
distintos. Ao invés de sair do facebook, criar uma rede no interior da rede que
fuja da polarização entre reacionários e neoliberais progressistas (apoiados pelos
progressistas de esquerda) seria uma ação possível. Os reacionários conseguiram romper com o domínio absoluto
dos neoliberais progressistas, mas eles possuem muito dinheiro, tal como seus
concorrentes. A população só tem o seu número ao seu favor, mas a desunião
retira sua eficácia e, por conseguinte, é preciso superar o divisionismo partidário,
cultural, entre outros, para poder enfrentar os donos do capital e do poder. A formação
e autoformação e a união são as únicas formas de escapar e combater a
manipulação.
[2]
LINDGEN ALVES, J. A. Excessos do Culturalismo: Pós-Modernidade ou
Americanização da Esquerda? Disponível em: https://revolucio2080.blogspot.com/2019/06/excessos-do-culturalismo-pos.html
acesso em: 28/06/2019.
[3]
Cf. VIANA, Nildo. Os Movimentos Sociais e a Internet. In: https://informecritica.blogspot.com/2019/04/movimentos-sociais-e-internet.html
[4]
Curioso é que muitas feministas que se colocam do lado do bloco progressista não
se perguntarem por qual motivo as poderosas empresas capitalistas viraram
partidárias do feminismo.
[5]
SARTRE, Jean-Paul. Em Defesa dos Intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.