SOCIOLOGIA
CRÍTICA E ESFERA CIENTÍFICA
Nildo Viana
A dinâmica das esferas
sociais se reproduz no interior das subesferas. A esfera científica possui uma
dinâmica própria e específica ao lado da reprodução de elementos gerais comuns
a todas as esferas sociais. Esse processo ocorre também no caso da subesfera
sociológica. A chamada “sociologia crítica” pode ser melhor compreendida
através da análise da dinâmica interna da subesfera sociológica e da dinâmica
externa, através da análise da produção sociológica e suas determinações
sociais.
O termo “sociologia
crítica” é de uso tradicional no interior do pensamento sociológico. Ele marca
um campo que aglutina determinadas tendências no interior da sociologia e marca
uma oposição entre duas formas de conceber e praticar a sociologia: uma que
seria eminentemente “crítica” e outra que não possuiria tal caráter. Esta
oposição, no fundo, está presente na esfera científica em geral, especialmente
nas ciências humanas, apesar de nem sempre se manifestar através destes termos,
o que ocorre na subesferas sociológica e geográfica, mas não em outros casos.
O termo crítica é usado
em vários sentidos. Para qualificar o que se convencionou denominar sociologia
crítica é preciso entender esta expressão nos próprios termos desta tendência.
Segundo Martins, “a formação e o desenvolvimento do conhecimento sociológico
crítico e negador da sociedade capitalista sem dúvida liga-se à tradição do
pensamento socialista, que encontra em Marx (1818-1883) e Engels (1820-1903) a
sua elaboração mais expressiva” (MARTINS, 1998, p. 52). Assim, tal como no caso
da geografia crítica, a sociologia crítica se confunde com o marxismo, pelo
menos num primeiro momento e de forma mais permanente.
Qual o significado do
conceito de crítica no pensamento marxista? Não buscaremos reconstituir a
gênese deste conceito em Marx, tal como alguns fizeram (ASSOUN e RAULET, 1981)
e sim apresentar sinteticamente o seu significado. Para Marx, a crítica não é
um objetivo em si mesmo, ela é o pressuposto de algo, não é um fim, mas um
meio. Para descobrir a função da crítica é preciso compreender sua estrutura e
seu fundamento. A sua estrutura é a superação, seja da inversão da realidade
(ideologia, entendida como sistema de pensamento ilusório), seja da realidade
que produz esta inversão (modo de produção fundado na divisão de classes e
exploração). Essa superação revela o seu objetivo: a transformação social.
Porém, como a crítica não é um objetivo em si mesmo, ela também não pode surgir
do nada, ela deve ser expressão de algo que seja a superação prática da
realidade existente e seu prolongamento ilusório. A superação prática do
capitalismo se materializa no proletariado, tal como Marx afirmará em suas
obras (MARX, 1988). Em síntese, a crítica é um projeto de superação das
ideologias e ilusões e da realidade social que as produz cujo objetivo é
expressar a perspectiva do proletariado e contribuir com a transformação social
(MARX, 1978).
Neste sentido, Martins
está correto em dizer que Marx e Engels, “não estavam preocupados em fundar a
sociologia como disciplina científica” (MARTINS, 1998, p. 52). Eles buscavam
uma concepção crítica e totalizante da realidade social e por isso não dividiam
o saber em compartimentos e nem a realidade e assim não trabalhavam com
“disciplinas específicas”. Marx, diferentemente de Durkheim e Weber, não
pretendia constituir a sociologia como ciência e sim levar a cabo o seu projeto
crítico (VIANA, 2006). Assim, o que Marx elabora é uma teoria social, que
engloba uma teoria da história e do capitalismo, que, no entanto, devido seu
domínio temático se confundir com a da sociologia e sua influência na subesfera
sociológica, ele se tornará um clássico da sociologia e considerado fundador da
“sociologia crítica”. A teoria social de Marx, confundida com uma “sociologia
crítica”, nasce, então, como um projeto de superação visando à transformação
social, cujo objeto é simultaneamente a realidade social existente e suas
manifestações intelectuais ilusórias, expressando a classe revolucionária de
nossa época, o proletariado. E o caráter crítico do marxismo permitiu a sua
influência em diversas outras subesferas científicas, sendo considerado sua
“tendência crítica”.
Contudo, o termo
“sociologia crítica” não é utilizado apenas no sentido marxista de “crítica”,
que é o de uma crítica radical e totalizante que tem como finalidade a
superação do capitalismo e a instauração da autogestão social ou comunismo. Desta
forma, surgiram outras produções sociológicas que passaram a serem consideradas
“sociologias críticas” e isso permite uma certa confusão. O nosso objetivo é
observar a gênese e significado da sociologia crítica no interior da subesfera sociológica.
A ORIGEM DA SOCIOLOGIA CRÍTICA
O surgimento da
sociologia crítica ocorreu, como o surgimento das ciências humanas em geral, no
século XIX, sendo o resultado da constituição e expansão das relações de
produção capitalistas (revolução industrial) e da conquista do poder político
pela burguesia (revoluções burguesas) que produzem novas questões e conflitos
sociais, gerando tanto concepções conservadoras (Malthus, por exemplo, e o
positivismo em geral) quanto filantrópicas e reformistas (socialismo utópico).
Nesse contexto, também emerge o projeto de criação de uma “ciência positiva da
sociedade” (Comte e, posteriormente, Durkheim) e a obra de Marx, que surge no
bojo de novas tendências de pensamento da época, chamadas de “comunistas” e
“anarquistas”.
Marx, partindo de uma
síntese original e crítica da filosofia alemã, da economia política inglesa e
do socialismo francês, elabora uma teoria da sociedade capitalista que terá
grande influência na produção sociológica posterior. A obra de Marx não se limita
a uma análise da sociedade capitalista, já que ele também desenvolveu, de forma
menos aprofundada, uma teoria da evolução das sociedades humanas (entendida
como sucessão de modos de produção) e vários estudos sobre as sociedades
pré-capitalistas. Também desenvolveu o método dialético e diversas teses que
seriam hoje chamadas “epistemológicas”, além de produzir diversas teses
políticas em íntima relação com os demais aspectos de seu pensamento e com o
desenvolvimento do movimento operário.
Não apresentaremos o
conjunto da obra de Marx, o que demandaria um espaço enorme, mas apenas
destacaremos os principais aspectos de seu projeto crítico, o que permite
entender suas contribuições e sua influência posterior, bem como sua diferença
em relação às demais tendências críticas no interior da sociologia. O primeiro
ponto do projeto crítico de Marx é a crítica das ideologias e das
representações ilusórias. A base desta crítica é a ideia da unidade entre ser e
consciência (Marx não trabalhava com os termos abstratos, e que se tornaram
hegemônicos posteriormente, de “sujeito” e “objeto”). A consciência nada mais é
do que o ser consciente (MARX e ENGELS, 2002). Este ser consciente é histórico,
concreto, social. Por isso, “não é a consciência que determina da vida, mas, ao
contrário, é a vida que determina a consciência” (MARX, 1983), porquanto não
existe uma consciência separada do ser humano. Este é um ser social e, por
conseguinte, sua consciência também é social.
O ser humano só pode
sobreviver e satisfazer suas necessidades básicas (comer, beber, habitar,
reproduzir, etc.) através do trabalho e da cooperação (associação) com outros
seres humanos, que se tornam, posteriormente, necessidades humanas. Com a
emergência da sociedade de classes e ampliação da divisão social do trabalho,
os seres humanos passam a desenvolver atividades limitadas, bem como relações
entre si e com a natureza também limitadas. O trabalho deixa de ser uma
necessidade humana e passa a ser apenas um meio, transforma-se em trabalho
alienado. Derivado dessa divisão social do trabalho, emergem interesses,
valores, concepções, que geram representações limitadas, ilusórias.
Aqui temos a base para
o surgimento da falsa consciência e da ideologia. A divisão social do trabalho
e a posição dos indivíduos nessa divisão expressam relações sociais limitadas e
interesses antagônicos, sendo que “as ideias dominantes são as ideias da classe
dominante” (MARX e ENGELS, 1988). Isto ocorre pelo fato de que a classe
dominante possui os meios de produção intelectuais e confirma, através da
naturalização, as relações sociais existentes, ao mesmo que tempo que suas ideias
são confirmadas por estas mesmas relações. Esta é uma parte importante da
“sociologia do conhecimento” de Marx (LEFEBVRE, 1979). Isto revela um dos aspectos
principais do projeto crítico de Marx: a crítica das representações ilusórias e
da ideologia, que será completada com seu estudo posterior do “fetichismo da
mercadoria”.
A partir do momento do
surgimento das classes sociais, a história da humanidade passa a ser a
“história das lutas de classes” (MARX e ENGELS, 1988). A luta de classes tem
como fundamento o processo de exploração que a classe dominante realiza sobre a
classe dominada no processo de produção material, ou seja, no modo de produção
e reprodução da vida material. Este aspecto coloca em evidência outro elemento
importante do projeto crítico de Marx: a crítica da exploração e suas consequências,
que gera uma crítica global do conjunto das relações sociais, especialmente na
sociedade capitalista.
Na sociedade
capitalista, o processo de exploração assume a forma de extração de mais-valor,
ou seja, através da execução de um sobretrabalho pelo proletário que
proporciona um trabalho excedente apropriado pelo capitalista. Isto produz as
duas classes sociais fundamentais do capitalismo e suas lutas que revelam a
tendência de sua dissolução e a possibilidade da transformação social via
revolução proletária (MARX, 1988). O projeto crítico de Marx recebe aqui mais
uma de suas características: a necessidade da transformação social via ação
revolucionária do proletariado, o que gera a emancipação humana em geral, já
que significa a dissolução geral das classes sociais.
Obviamente que estes
aspectos envolvem diversas outras questões e foram aqui extremamente resumidos.
Esta exposição esquemática teve o objetivo apenas de levantar alguns aspectos
básicos do projeto crítico de Marx, que são importantes para compreender os
seus desdobramentos metodológicos.
A teoria social de
Marx, essencialmente crítica, surgiu na época de nascimento das ciências humanas,
período marcado pelo cientificismo e proliferação de novas “ciências”, desde a
“ideologia” (ciência das ideias) de Cabanis e Destutt de Tracy, até a
“polemologia” (ciência da guerra), para citar apenas duas tentativas
natimortas. A sociologia emerge nesse momento histórico através de Comte e com
o objetivo claro de manifestar no caso específico do “estudo da sociedade” a
função das esferas sociais: a reprodução do capitalismo.
A sociologia nasce
conservadora e como expressão da burguesia vitoriosa (após as revoluções
burguesas), se inspirando nas ciências naturais e se legitimando através da
imitação delas (marcadas pela credibilidade e status de saber superior,
suplantando a teologia e a filosofia). Esse duplo processo, marcado pela
formação da apologia do capitalismo expresso pela sociologia (de Comte,
Durkheim, Tarde, etc.), produção ideológica, e da crítica do capitalismo, que
marca a emergência da teoria como “utopia concreta”, ou seja, o marxismo. Desta
forma, a crítica da sociedade capitalista, acaba sendo entendida como
“sociologia crítica”, apesar de ser muito mais uma crítica da sociologia (e da
ciência em geral). As raízes da teoria social de Marx, supostamente uma
“sociologia crítica”, deriva da emergência do proletariado e suas lutas, bem
como a emergência da subesfera sociológica é derivada das necessidades da
burguesia como nova classe dominante aquartelada no aparato estatal. Ou seja,
tanto a sociologia quanto a crítica da sociologia são produtos derivados da
luta de classes. O desenvolvimento da utopia e da ideologia é expressão desse
processo e contexto. Marx não era um integrante da subesfera sociológica, mas
os sociólogos conservadores sim, já que a grande ambição dos pioneiros (desde
Comte) é a produção de uma nova ciência, o que foi sistematizado e consolidado
por Durkheim e Weber.
O DESENVOLVIMENTO DA SOCIOLOGIA
CRÍTICA
Após a obra original de
Marx e seu impacto sobre as lutas sociais e subesfera sociológica, emerge a
chamada sociologia crítica. Essa é uma verdadeira “sociologia crítica”, pois
emergiu no interior da subesfera sociológica. Segundo Martins,
pensadores como
Korsch, Lukács e os pesquisadores do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt,
como Adorno, Horkheimer, Marcuse, forneceram uma importante contribuição ao
estudo crítico da sociologia e da sociedade capitalista. Em geral, estes
pensadores rejeitaram a ideia do marxismo como ciência positiva da sociedade,
ou seja, como “Sociologia”, tal como esta ciência fora imaginada pelo positivismo.
Lukács, em seu trabalho ‘História e Consciência de Classe’, concebeu o marxismo
como uma ‘filosofia crítica’ que expressava a visão de mundo do proletariado
revolucionário. Os pensadores da ‘Escola de Frankfurt’ também desenvolveram uma
concepção do marxismo como ‘filosofia crítica’, bastante diferenciada, segundo
eles, do positivismo sociológico. O marxismo, nas mãos dos membros da Escola de
Frankfurt’, foi colocado fora da política partidária, assumindo um caráter de
crítica geral da cultura burguesa, dirigida principalmente a um público
constituído em sua grande maioria por estudantes e intelectuais (MARTINS, 1998,
p. 91-92).
Assim, a sociologia
crítica após Marx manteve-se viva graças à sua influência e depois da Segunda
Guerra Mundial recebeu várias contribuições, tal como a da Escola de Frankfurt,
mas também de sociólogos como Henri Lefebvre, Lucien Goldmann, Zygmunt Bauman
(em seu período “marxista”), entre outros. Essa sociologia crítica genérica,
pois mais global e influenciada pela concepção marxista da totalidade, possui
uma tendência de influência marxista mais “pura” (Lefebvre, Goldmann, Bauman) e
outra mais eclética (Escola de Frankfurt, Análise Institucional). Porém, além
desta sociologia crítica genérica, surgiu outra tendência que também foi
rotulada ou se auto-intitulou de “crítica”,
tal como Birbaun, Habermas, Wright Mills, Bottomore, Bourdieu, entre outros.
Assim, poderíamos distinguir uma sociologia crítica genérica, de influência
marxista, e uma de orientação contestadora de origem variada, constituindo uma
sociologia crítica moderada.
Esta sociologia crítica
produziu várias teses e análises que se tornaram “patrimônio sociológico” e que
mantêm sua influência até hoje e outras ainda são produzidas atualmente. A
Escola de Frankfurt produziu diversos estudos e teses fundamentais, cabendo
destaque para a teoria da indústria cultural de Adorno e Horkheimer (1985), na
qual realizam uma crítica aos meios de comunicação que transformam a cultura em
mercadoria e promovem sua massificação e estandardização e a crítica da razão
instrumental, expressa nas obras de Horkheimer (1976) e Marcuse (1988), que
revela o processo de absorção e instrumentalização da razão no sentido de
reproduzir a dominação capitalista. A sociologia de Henri Lefebvre, por sua
vez, irá destacar, entre outros elementos, uma crítica total da “modernidade”,
“última estratégia da contrarrevolução burguesa” (FAVRE e FAVRE, 1991), e da
vida cotidiana na “sociedade burocrática de consumo dirigido” (LEFEBVRE, 1991) e
do urbanismo como forma de dominação. Lucien Goldmann, além de discussões sobre
sociologia e epistemologia (1978), desenvolverá análises sobre a consciência e
estudos sobre cultura e sociologia da literatura. Bauman realizará uma forte
crítica à própria sociologia, incluindo Durkheim, Weber e a sociologia
fenomenológica, opondo “razão técnica” e “razão emancipadora” (BAUMAN, 1977).
A análise
institucional, tendência que fica na fronteira entre subesfera sociológica e
subesfera psicológica, representada por Georges Lapassade, René Lourau e
outros, iniciam sua produção nos anos 1960 e no final dessa década e início da
posterior apontam para uma concepção crítica da sociedade e propostas
alternativas, como a autogestão pedagógica. No entanto, uma parte dos
representantes dessa tendência era mais moderada e a microssociologia acabou se
enfraquecendo por falta de uma presença mais forte da macrossociologia. Georges
Lapassade (1989; 1975) e René Lourau (1975) realizaram análises interessantes
sobre a burocracia e a autogestão, entre outros temas, bem como apontaram para
uma concepção diferenciada da sociologia (1978) que era a dominante na época. O
impacto da rebelião estudantil de Maio de 1968 aproximou esses autores da ideia
de autogestão pedagógica e outros elementos interessantes de crítica da
burocracia e retomada do pensamento de Marx e outros pensadores (Lukács,
Sartre, Hegel, Freud, etc.).
Já a outra forma de
sociologia crítica, que, apesar de ter semelhanças é bastante heterogênea,
apresenta várias contribuições para a produção sociológica e por isso
destacaremos Wright Mills e Pierre Bourdieu. Wright Mills realiza uma crítica
da própria sociologia (mais especificamente a americana) ao criticar a “grande
teoria” (funcionalismo) e o empirismo abstrato (quantitativismo) e prega o
retorno ao “método artesanal” dos clássicos, especialmente Marx e Weber.
Ressalta a importância da “imaginação sociológica”, termo impreciso segundo
Moya (1970).
Bourdieu, representante
da sociologia contemporânea, já produz uma sociologia bem mais ampla e
complexa, possuindo uma base interpretativa da realidade contemporânea a partir
de sua “teoria dos campos”, no qual, utilizando um conjunto de noções
complementares e recebendo a influência dos clássicos da sociologia (Marx,
Weber e Durkheim), acaba fazendo uma análise crítica da sociedade moderna, com
destaque para seus estudos sobre a reprodução no campo educacional e sua
crítica do fetichismo da arte oriundo do campo artístico, além de suas
contribuições ao estudo do campo político, jurídico, científico, entre outros (PINTO,
2000). Devido ao fato de ter produzido uma sociologia sistematizada trabalhando
análise da sociedade moderna e questões metodológicas, adentrando também para
questões de técnica de pesquisa, tal como sua crítica à pretensa neutralidade
das técnicas de pesquisa, conseguiu exercer uma enorme influência na sociologia
contemporânea e até mesmo em outras ciências humanas.
Sem dúvida, outros
nomes e contribuições poderiam ser citadas, tal como Giddens em sua obra
introdutória à sociologia (GIDDENS, 1984), e diversos sociólogos influenciados
pelo marxismo ou declaradamente marxistas, mas seria uma lista enorme e que
demandaria muito tempo e espaço para apresentar. Neste sentido, consideramos
que este breve resumo oferece um pequeno apanhado geral do desenvolvimento da
sociologia crítica.
OS LIMITES DA SOCIOLOGIA CRÍTICA
Resta, após essa breve
descrição da sociologia crítica, a análise de suas determinações e relação com
a subesfera sociológica. A sociologia crítica emergente após a Segunda Guerra
Mundial traz a marca da nova fase do capitalismo, comandado pelo regime de
acumulação conjugado. Esse novo regime de acumulação gera a tentativa de integração
do proletariado no capitalismo, tendo em vista as tentativas de revoluções no
período anterior. O estado integracionista (chamado de “bem estar social”)
cumpre um papel fundamental nesse processo e, ao lado do fordismo e da exploração
internacional via capital oligopolista transnacional, realiza um processo de
cooptação dos partidos social-democratas e comunistas, bem como de sindicatos,
que, ao lado da estabilidade política e financeira e da emergência da
“sociedade de consumo”, amortece as lutas de classes e diminui a possibilidade
de radicalização proletária. A teoria social de Marx expressava o proletariado
que realizava uma ampla luta que assustava a burguesia. A chamada “sociologia
crítica” que emerge no regime de acumulação conjugado já não tem essa base
revolucionária, o que explica o pessimismo de uns (Adorno, Marcuse, etc.) e a
moderação de outros (Wright Mills, Birbaun, etc.).
No entanto, existem
elementos internos da própria subesfera sociológica que ajuda a explicar esse
processo. A sociologia nasceu durante o regime de acumulação intensivo, mas foi
progressivamente se institucionalizando e especializando, inicialmente e
principalmente nos Estados Unidos (VIANA, 2006). Isso garantiu o seu processo
de crescente conservadorismo e a estabilidade do capitalismo oligopolista
transnacional garantiu as condições para que a tendência hegemônica
conservadora reinasse absoluta na sociologia. A sociologia crítica continuou
existindo, mas com cada vez menos criticidade. A classe intelectual, da qual os
sociólogos fazem parte, traz no seu interior alguns descontentes, por razões
variadas, e estes realizam uma certa crítica, que, no entanto, fica muito aquém
da crítica radical e totalizante que Marx efetivou. Essa sociologia crítica genérica
encontrou um forte obstáculo para o seu desenvolvimento, que foi a deformação
do pensamento de Marx pelo leninismo e semelhantes. Assim, Marx visto pela
ótica leninista acaba se tornando uma caricatura. A influência leninista é
perceptível em Lucien Goldmann e Henri Lefebvre, inclusive na interpretação
deformada do pensamento de Marx.
A existência da sociologia
crítica genérica representada pela Escola de Frankfurt é derivada da forte
influência marxista na época de fundação do Instituto de Pesquisa Social de
Frankfurt, que contava como Karl Korsch, Georg Lukács, Erich Fromm, etc. e do
impacto da ascensão do nazifascismo. Essa é a raiz da oposição entre a
sociologia crítica frankfurtiana e a sociologia positivista norte-americana. A
produção de Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros é marcada por um certo
pessimismo, oriundo da suposta integração da classe operária no capitalismo e
ascensão de uma sociedade marcada pelo integracionismo, enfraquecendo as formas
de oposição.
Os frankfurtianos eram de uma geração anterior, cujos valores e concepções não
se encaixavam no capitalismo oligopolista transnacional. Além disso, os
frankfurtianos já possuíam, na esfera científica, um espaço reservado e um
reconhecimento, o que lhes permitia maior autonomia. Assim, eles poderiam ser
considerados intelectuais dissidentes cuja criticidade não estava vinculada à
uma perspectiva proletária.
A outra ala da
sociologia crítica genérica se encontrava em outra situação. Henri Lefebvre era
um caso exemplar, pois o seu reconhecimento foi muito limitado. Ele num
primeiro momento se aliou ao existencialismo hegemônico, mas logo se deslocou
para o leninismo e se integrou no Partido Comunista Francês, até sua expulsão.
Isso lhe gerou um isolamento, pois permanecia tendo Marx como principal
referência e a hegemonia existencialista foi substituída pela estruturalista.
Assim, Lefebvre foi um dos críticos do estruturalismo e assim permaneceu. A sua
crítica da sociedade capitalista aparentemente é marxista, mas acaba
demonstrando uma incompreensão parcial tanto do capitalismo quanto da teoria do
capitalismo de Marx (LEFEBVRE, 1979; LEFEBVRE, 1977). É por isso que Lefebvre
pode ser considerado um intelectual engajado, mas que devido seu processo
histórico de vida e formação intelectual, não conseguiu superar certos limites
de uma posição rebelde e semiproletária.
Esse é o caso
semelhante dos integrantes da chamada “análise institucional” (Georges
Lapassade, René Lourau, Michel Lobrot, etc.). Estes avançaram no sentido do
rompimento com o pseudomarxismo dos partidos políticos e a recuperação do
pensamento de Marx, mas as suas soluções ainda eram problemáticas, pois
focalizaram mais a via educacional e institucional. Contudo, foram os que mais
desenvolveram uma sociologia crítica que inovou e ampliou o espaço analítico
para novas áreas. Assim, essa sociologia crítica genérica é realizada por
intelectuais engajados que não ultrapassaram o nível da rebeldia.
A sociologia crítica
moderada, por sua vez, é produto do isolamento e hegemonia no interior da
subesfera sociológica. Um testemunho magistral desse processo é a obra de Wright
Mills, A Imaginação Sociológica.
Wright Mills era um intelectual dissidente e marginalizado na subesfera
sociológica, apesar de todo o espaço que conseguiu, mas com o passar do tempo e
sem se tornar um hegemônico consagrado como Talcott Parsons e Robert Merton. A
sua obra é uma crítica tanto ao que ele denominou “grande teoria” quanto ao
“empirismo abstrato”, as duas tendências hegemônicas na sociologia
norte-americana na época em que escreveu sua obra. Como um intelectual
dissidente, ele se aproximou de outros dissidentes, engajados e ambíguos,
realizando uma crítica dos hegemônicos na subesfera sociológica e apresentando
elementos críticos (moderados) da sociedade moderna e norte-americana.
Um caso semelhante é o
de Pierre Bourdieu. Este surge como uma intelectual dissidente, e ao lado de
alguns ambíguos e engajados, realiza a crítica do estruturalismo hegemônico, no
caso francês, e lança as bases de sua proposta sociológica, o seu “projeto
original”. Com a crise do estruturalismo após o Maio de 1968, Bourdieu
conseguiu passar de dissidente para hegemônico e se tornou uma das grandes
referências da sociologia francesa e mundial.
No entanto, o seu
reinado durou pouco. A crise do regime de acumulação conjugado no final dos
anos 1960 abriu uma brecha representada pela crise do estruturalismo e outras
ideologias influentes, e isso permitiu um período de incertezas e processos de
busca de alternativas, o que permitiu a emergência de novas ideologias
(pós-estruturalismo), novas análises críticas (tal como a análise institucional
de Lapassade e Lourau) e retomada do marxismo autêntico, bem como do leninismo.
Bourdieu ganhou espaço graças a essa brecha e ao fato de que sua sociologia
crítica era reprodutivista e, por conseguinte, mais aceitável, o que permitiu
ele se tornar hegemônico.
Assim, tal como ele
mesmo afirmava em sua sociologia dos campos, os dominados usam a estratégia da
crítica (e Bourdieu realizou a crítica do estruturalismo) e os dominantes a
estratégia da conservação. Ao se tornar hegemônico, a crítica da subesfera sociológica
e da esfera científica é minimizada.
Tão logo ele vai perdendo espaço para a nova hegemonia pós-estruturalista,
expressão do regime de acumulação integral, ele retorna à sua estratégia da
crítica, buscando inclusive se aliar com ambíguos e outros.
Assim, a sociologia
crítica moderada era realizada geralmente por sociólogos dissidentes em sua
competição com os hegemônicos. Esse processo explica a moderação da crítica em
diversos intelectuais dissidentes, tais como Bourdieu, Wright Mills, etc. A sociologia
crítica genérica se mantinha ao lado da moderada, às vezes se unindo no combate
aos hegemônicos, às vezes se criticando mutuamente. O que explica essa
sociologia crítica durante o regime de acumulação conjugado e a transição para
o regime de acumulação integral é a dinâmica da luta de classes e a dinâmica
interna das próprias esferas sociais, intimamente relacionadas. A consolidação
do regime de acumulação conjugado na França gerou a hegemonia estruturalista e
esta foi alvo de crítica tanto de dissidentes (Bourdieu), ambíguos (Garaudy) e
engajados (Lefebvre). Uma vez que tal regime de acumulação entra em crise, o
estruturalismo é suplantado por novas correntes hegemônicas, sendo o
pós-estruturalismo a grande alternativa que, no entanto, só se tornará
efetivamente hegemônico com a emergência do regime de acumulação integral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da sociologia
crítica aqui desenvolvida aponta para a conclusão que sua explicação parte da
análise das mudanças sociais em geral, da luta de classes, e da dinâmica
interna da subesfera sociológica. Assim, a compreensão fundada apenas no
processo global de luta de classes pode gerar incompreensão, tal como a análise
localizada apenas na subesfera. Há um entrelaçamento entre luta de classes e
disputa subesférica e nesse processo um nível de compreensão mais profundo e
concreto é conquistado pela análise que leva isso em consideração. O que
realizamos aqui foi um esboço de tal processo analítico, no caso específico da
subesfera sociológica, visando explicar a emergência de uma crítica radical e
totalizadora, com a obra de Marx, e sua substituição por algumas sociologias
críticas bem mais limitadas e como isso é explicado pela dinâmica da luta de
classes e da disputa subesférica.
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