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quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

OS DILEMAS DA FORMAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE


OS DILEMAS DA FORMAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE

Nildo Viana


Resumo:
O presente artigo discute a questão da formação na sociedade contemporânea, colocando em evidência os seus dilemas e impasses. O primeiro ponto de discussão é o dilema do alto grau de desenvolvimento tecnológico convivendo com um descompasso com a formação intelectual. Derivado disso, vários impasses são constituídos na contemporaneidade. Após uma expor o contexto geral da sociedade contemporânea e os seus dilemas e impasses, o artigo discute a possível solução para o atual estado de coisas. A autoformação individual e coletiva e a transformação social radical e total são as formas de superar os entraves para a formação e reprodução da humanidade no atual momento histórico.
Palavras-chave: Formação, Autoformação, Sociedade Contemporânea, Dilemas, Tecnologia, Capitalismo.

A sociedade contemporânea vive um dilema que perpassa o conjunto das relações sociais e coloca em risco a própria sobrevivência da humanidade: o processo de formação não acompanha o grau de desenvolvimento tecnológico e a superação que alguns apontam seria o uso da tecnologia e aprofundamento da situação problemática enquanto que outros simplesmente querem voltar no tempo e recuperar a educação tradicional. Em ambos os casos, não temos uma real solução. A superação desse dilema só é possível se superarmos o presentismo e o passadismo (BERGER, 2015). Essa superação, no entanto, requer uma reflexão sobre o problema da formação na contemporaneidade e contribuir com esse processo reflexivo é o objetivo do presente texto.
A relação entre indivíduo e sociedade é complexa e tem como elemento fundamental o processo de formação social do indivíduo. Esse processo é marcado pela socialização e pela individuação. A socialização é o processo pelo qual o indivíduo se torna um ser social e isso se realiza sob forma específica em cada sociedade específica, bem como é preparado para viver sob determinadas relações sociais, ou seja, tem um elemento universal e outro histórico-particular (VIANA, 2011). O aspecto universal é benéfico para a humanidade, pois é um processo de humanização, no qual o indivíduo se torna um ser humano. O aspecto histórico-particular é problemático no sentido de que é uma formação no interior de uma sociedade de classes. E, junto com isso, temos uma formação genérica e outra diferencial (por classe, sexo, etc.).
Esse processo de socialização é também um processo de individuação, ou seja, de formação da individualidade. O indivíduo é constituído socialmente, mas isso ocorre no conjunto complexo de relações sociais que são distintas. Essa distinção é derivada da inserção específica e única de cada indivíduo no interior da sociedade. O processo histórico de vida de um indivíduo é singular. E isso proporciona para tal indivíduo sua singularidade psíquica (VIANA, 2011), ou, em outras palavras, sua individualidade ou personalidade. O processo de formação social do indivíduo na sociedade moderna é marcado pela socialização (infância), ressocialização (juventude) e desenvolvimento (maturidade)[1].
Assim, o processo de formação é algo amplo e complexo, que remete para o processo de formação social do indivíduo e formação intelectual (mental), que são coisas inseparáveis. A formação social é totalizante: intelectual, ética/moral, sentimental, relacional (coletiva: civil, cívica, profissional). Esse processo complexo assume formas distintas em sociedades distintas e por isso é necessário entender que ela tem um duplo caráter: universal e histórico-particular.
Para entender o processo de formação na sociedade moderna, o que, por sua vez, é fundamental para compreender os dilemas da educação na contemporaneidade, é necessário compreender tal sociedade. Não poderemos, obviamente, desenvolver aqui uma análise da sociedade capitalista. A essência da sociedade capitalista, que é o modo de produção capitalista, já foi abordada por Marx (1988), bem como diversos pensadores ajudaram a compreender algumas de suas características. A sociedade capitalista tem como determinação fundamental o modo de produção capitalista, que caracterizada pela produção e apropriação de mais-valor, o que constitui as duas classes sociais fundamentais dessa sociedade, o proletariado e a burguesia. O proletariado produz mais-valor e a burguesia extrai mais-valor e assim acumula capital e acaba controlando o processo geral de produção e reprodução das riquezas. Ao lado dessas duas classes sociais fundamentais emergem diversas outras subsidiárias (burocracia, intelectualidade, subalternos, camponeses, etc.). A produção de mais-valor ocorre através da produção de mercadorias[2] e isso gera um processo de mercantilização das relações sociais (VIANA, 2016). Este processo contém diversos outros elementos e gera diversas consequências, o que não será possível abordar aqui, mas que é um pressuposto de toda análise que virá a seguir.
Um elemento da sociedade moderna, no entanto, é importante para analisar o processo de formação na contemporaneidade. Trata-se do conceito de sociedade civil. Esse termo já foi abordado por toda uma tradição filosófica, desde os contratualistas (HOBBES, 1983; LOCKE, 1978; ROUSSEAU, 1987) até Hegel (1990), e por outros pensadores, como Marx (1983) e Gramsci (1988). Por questão de espaço, não poderemos retomar tal discussão, mas tão-somente apresentar a nossa concepção de sociedade civil. Entendemos que uma sociedade é formada pelo modo de produção dominante e modos de produção subordinados (no caso do capitalismo, o modo de produção capitalista como dominante e alguns outros como subordinados, como o modo de produção camponês, artesão, cooperativo, latifundiário, etc.) e formas sociais, o que Marx denominou “formas jurídicas, políticas, ideológicas" e ficou popularizado como “superestrutura”. Essas formas sociais podem ser privadas ou estatais (VIANA, 2007). Denominamos “sociedade civil” as formas sociais privadas, ou seja, aquilo que engloba a família, as igrejas, os partidos, as formas de consciência dos indivíduos fora das relações de trabalho e aparato estatal, etc.
O indivíduo é formado no conjunto das relações sociais. Logo, o processo de formação individual se dá no conjunto da sociedade. Porém, a formação que ocorre no âmbito do trabalho, na nossa sociedade, é um processo geralmente secundário. A formação do indivíduo ocorre inicialmente na sociedade civil (família, por exemplo). A formação que ocorre no âmbito político também é posterior. Geralmente, o indivíduo passa pela socialização (família, escola, comunidade, etc.) e pela ressocialização (ensino técnico e superior, etc.), para depois adentrar ao mundo laboral e político.
Assim, a formação individual e mental ocorre no âmbito familiar e escolar (e vai se deslocando paulatinamente do familiar para o escolar, o que se percebe com a entrada cada vez mais cedo das crianças nas escolas). A família, como um espaço de educação inicial, cumpre uma função fundamental no sentido da humanização, através da educação sentimental e formação do ser social. A escola é outra instância fundamental e sua colaboração com a formação se dá através do saber básico, especializado, profissional, repassando os valores dominantes, a moral dominante. O seu significado é outro, pois a escola é voltada para a reprodução social, tal como vários autores apontaram (Bourdieu e outros), e como reproduz uma sociedade fundada na divisão de classes, então reproduz suas contradições e lutas.
No âmbito da sociedade civil há um elemento fundamental que ajuda a explicar o processo de formação: a sociabilidade capitalista. Essa é marcada pelo processo de mercantilização, burocratização e competição social (VIANA, 2008) e isso é um dos elementos básico da formação social dos indivíduos no capitalismo. É na sociedade civil que se reproduz a hegemonia (valores, ideias, etc.) e exigências sociais (trabalho e obrigações sociais). Portanto, a sociedade civil e a sociabilidade capitalista são fundamentais para explicar o processo de formação na sociedade moderna.
O Estado é outro elemento fundamental para explicar a formação na sociedade e moderna. Ele tem todo um aparato cultural, bem como aparato educacional, que interfere diretamente na formação dos indivíduos. Ele interfere indiretamente na sociedade civil através da legislação e outros processos. Assim, o Estado tem as instituições estatais de educação, o controle burocrático via ministérios da educação efetivada nas escolas particulares, tem uma política cultural determinada e que atinge a população, entre diversos outros elementos que o tornam um dos pilares da formação social dos indivíduos no capitalismo.
Assim, todo este processo de socialização, ressocialização e desenvolvimento na sociedade capitalista são marcados por um conjunto diversificado de instituições, relações, etc., que não pode ser separado de determinada hegemonia que se estabelece em determinado momento, impondo determinados valores, concepções, etc., que atinge distintamente as gerações. Contudo, há também um processo de conflito dentro da sociedade moderna. As duas classes sociais fundamentais geram dois campos antagônicos que vivem em luta e em certos momentos históricos revelam o antagonismo e nesse processo é outra fonte de formação social do indivíduo. Devido à questão de espaço não desenvolveremos isso aqui, mas é preciso alertar que, especialmente para o proletariado, a luta de classes é elemento fundamental para seu processo de formação.
Por fim, é importante destacar que a formação social do indivíduo tem uma forma e uma finalidade. A forma, no caso da sociedade moderna, é burocrática e ocorre em diversos lugares, tais como as escolas (instituições burocráticas), sociabilidade capitalista, etc. O controle é fundamental. E ele é fundamental por causa da finalidade dessa formação: a reprodução da sociedade capitalista. Para o indivíduo, isso aparece sob a forma de interesses pessoais (definidos por essa sociedade e que significa integração nessa sociedade, tal como mercado de trabalho, ganhar competição social, etc.) e que significa um processo de reforço da reprodução do capitalismo.
Uma coisa é o que é a formação no capitalismo, outra coisa é o que ela deveria ser. O que deveria ser depende dos valores e interesses de quem indica o dever-ser. Ela deveria ser uma autoformação individual e coletiva. Sem dúvida, isso aponta para a crítica da sociedade existente e o projeto de uma nova sociedade, pois esse processo é impossível no interior do capitalismo. Então a forma assumida pela formação deveria ser a autoformação. E sua finalidade deveria ser a emancipação (no capitalismo) e o desenvolvimento onilateral (na sociedade autogerida). Ou seja, a finalidade da formação no capitalismo deve apontar para a emancipação, sendo que esta luta já anuncia o desenvolvimento onilateral, mas parcialmente, e a finalidade da formação na futura sociedade pós-capitalista (autogestão social) é o desenvolvimento onilateral, ou seja, do conjunto das potencialidades humanas.
Após esta discussão mais geral para contextualizar a perspectiva da qual partimos, passamos agora a tratar da formação na contemporaneidade. Os elementos gerais apontados anteriormente continuam válidos e explicando o processo de formação na sociedade capitalista. Contudo, a sociedade capitalista não é estática, ele mantém sua essência, mas muda sua forma. Esse processo, numa perspectiva crítica, é explicado através da sucessão de regimes de acumulação (VIANA, 2009; VIANA, 2015; ORIO, 2014; BRAGA, 2013). Cada fase da sociedade capitalismo corresponde a um regime de acumulação[3] e este gera um processo de mutação cultural[4].
A sociedade contemporânea é caracterizada justamente por ter instaurado um novo regime de acumulação. O regime de acumulação integral (VIANA, 2009; VIANA, 2015; ORIO, 2014; BRAGA, 2013) é instaurado nos anos 1980 no capitalismo imperialista, mas alguns de seus elementos constitutivos começam a se esboçar antes. Esse processo teve na rebelião estudantil de maio de 1968 um ponto de partida, pois a derrota da luta de estudantes e trabalhadores franceses fez emergir uma contrarrevolução cultural preventiva (VIANA, 2009)[5]. Essa contrarrevolução cultural preventiva gerava ideologias que produziam uma despolitização das críticas realizadas no período anterior. Assim, a crítica do cotidiano capitalista e da razão instrumental, por exemplo, se tornaram a crítica do cotidiano e da razão fora da totalidade da sociedade capitalista, marcado pela recusa da totalidade. Essa recusa da totalidade significava, no fundo, uma reusa do marxismo que emerge nesse momento, que retoma a radicalidade do pensamento de Marx e outros. Ela assume a forma de “história em migalhas”, recusa das “metanarrativas” (LYOTARD, 1993) ou da teoria (FOUCAULT, 1989), etc.
É nesse contexto que vai emergir um novo paradigma hegemônico: o subjetivismo. Se durante o regime de acumulação conjugado o paradigma hegemônico era o reprodutivista, com seu caráter holista, objetivista, formalista, etc., expresso em ideologias como o estruturalismo, funcionalismo, “teoria” dos sistemas, etc., o novo paradigma enfatiza o subjetivismo, recusa a totalidade, etc. Emergem novas ideologias que reproduzem tal paradigma, como o pós-estruturalismo, multiculturalismo, estudos culturais, ideologia do gênero, etc.

É nesse contexto que emerge uma nova política cultural do Estado capitalista após 1980. A política cultural do Estado capitalista é um dos pilares para a constituição do novo paradigma, tal como se observa nos Estados Unidos e outros países. No entanto, organismos internacionais, como especial destaque para a UNESCO. Fundações (internacionais e nacionais), CIA (Central de Inteligência Americana), entre diversas outras, são fortes fontes de produção e reprodução dessa política cultural e renovação hegemônica. Assim, as políticas governamentais e, mais especialmente, o capital comunicacional inicia esse processo de reproduzir e popularizar o novo paradigma hegemônico.
Um elemento que ocorre junto com esse processo é o desenvolvimento tecnológico. O processo de desenvolvimento tecnológico gera uma mercantilização crescente da tecnologia, que se inicia com vídeos-games e outros aparelhos e ganha um salto com os computadores e celulares, com todos os acessórios. Nesse contexto, a internet é uma novidade que parece ser benéfica ao permitir o desenvolvimento da comunicação. No entanto, a internet oferece uma falsa democratização. A falsa democratização da internet se revela em diversos aspectos. O primeiro deles é que ela permite um acesso à informação como nunca antes visto na história da humanidade. Contudo, nem todos tem acesso à internet. Os mais pobres estão excluídos do acesso à internet ou possui um acesso precário (em alguns lugares públicos, no trabalho, etc.). Da mesma forma, nem todos tem a mesma qualidade de acesso à internet (pois ela é mercantilizada e depende de planos de conexão pagos que varia de acordo com o poder aquisitivo dos indivíduos, bem como com máquinas distintas – celulares/computadores mais potentes ou com mais recursos são mais caros e a população com menos recursos utilizará aparelhos mais velhos, usados, ou com menos potência e recursos).

Esses problemas remetem para a questão das classes sociais e suas formas diferentes de acesso à internet. No entanto, há um outro problema relativo à internet. É que o conjunto de informações disponíveis na internet não é acessado da mesma forma pelos indivíduos de diferentes classes sociais, entre outras divisões sociais. Há um acesso seletivo. E o processo de acesso relativo possui múltiplas determinações, tais como o poder aquisitivo. Mas mais do que o poder aquisitivo há outro grave problema: a falta de formação. A sociedade contemporânea é rica em distribuir informação, mas é pobre em fornecer formação. Num mundo de milhões de informações disponíveis, é necessária formação intelectual para escolher o que procurar, onde, como, com quais critérios. Os sites mais acessados são aqueles vinculados com o capital comunicacional (“indústria cultural”, tais como as redes de TV, grande jornais e revistas, etc.), grandes empresas, celebridades, etc. O grau de formação é tão precário na contemporaneidade que é possível ver professores doutores reproduzirem sites de notícias falsas (são sites de humor que noticiam coisas falsas, mas como se fosse algo sério e verdadeiro), demonstrando que a quantidade enorme de informação e a rapidez das “trocas informativas” são acompanhadas por formação precária, acriticidade, etc. Em outras palavras, de nada adianta ter em seu computador todo acervo da produção cultural da humanidade, se não tem formação para realizar as escolhas, separar o falso do verdadeiro, o que é de alta qualidade do que é de baixa qualidade, do que é justo ou injusto, do que é original e do que é cópia, etc.

E no interior das redes sociais temos um processo no qual todos podem manifestar suas opiniões, sejam sobre as coisas mais inúteis e corriqueiras, até as questões políticas, morais, sociais e financeiras da qual pouco se sabe, seguindo acriticamente correntes de opiniões vigentes ou a que é predominante. É nesse contexto que alguns autores vão colocar a questão da reprodução das opiniões problemáticas que qualquer um pode divulgar nas redes sociais (ECO, 2017). A internet reproduz a sociedade capitalista. Ela reproduz também suas divisões, contradições, lutas, etc., mas o predomínio é da hegemonia burguesa, seja sob uma ou outra forma (conservadora, progressista, etc.).

Da mesma forma, há um processo de manipulação nas redes sociais por parte de seus proprietários. O facebook, por exemplo, é um manipulador e influenciador de muitos usuários, sob várias formas. Além disso, a superficialidade, a rapidez, a pressa, são outros processos que acompanham o uso da internet e que vem dificultando o processo de formação. Assim, alguns críticos da internet colocam a questão da superficialidade e dos efeitos dela sobre os indivíduos (CARR, 2017).

Esse processo é reforçado, no entanto, por um outro fenômeno. O novo paradigma hegemônico, subjetivista, gera uma recusa da teoria, da razão, etc., o que cria um conjunto de concepções anti-intelectualistas, individualistas, irracionalistas, que servem de justificativa para a não-formação, a negação da leitura, etc. Ao lado disso, interesses e oportunismos reforçam discursos sobre “vivência” e “lugar de fala”, para citar apenas dois exemplos, que apontam para um fortalecimento da má formação sob a máscara da recusa da formação. O subjetivismo reinante aliado com as redes sociais e as novas possibilidades de trocas comunicativas gera um processo crescente de expansão de um certo “autismo intelectual”, seja individual ou coletivo, no qual a comunicação com os que pensam diferente se torna uma incomunicação.

É nesse contexto que temos os impasses contemporâneos no que se refere ao problema da formação. Os principais impasses da formação na contemporaneidade são os seguintes: a) Excesso de informação e precariedade na formação; b) Excesso de autoconfiança e precariedade em esforço e reflexão; c) Excesso de moralismo e precariedade de ética; d) Excesso de politização despolitizada e precariedade de politização real; e) Manutenção da hegemonia burguesa e lutas internas (conservadorismo versus progressismo) em detrimento de uma colaboração real no processo de formação e produção intelectual.
O primeiro desses impasses já foi discutido aqui, que é o excesso de informação em contraste com a precariedade da formação e por isso dispensa mais comentários. O excesso de autoconfiança e precariedade em esforço e reflexão é algo incentivado pelo paradigma subjetivista, mas também é reforçado pela educação burocrática e desinteressante e outros processo sociais. O excesso de moralismo é um desenvolvimento mais recente da sociedade capitalista, na qual via internet e redes sociais, as pessoas começaram a fazer o discurso de “politizar a vida privada” e, no fundo, o que fizeram foi a “moralizar”, pois isolam a vida privada da história e do conjunto de relações sociais que a explica, bem como troca a compreensão pelas “receitas” que são verdadeiras normas de conduta, desde o “politicamente correto” ao “politicamente incorreto”, duas faces da mesma moeda. O moralismo (e o pseudomoralismo, mais conhecido como “falso moralismo”, que o acompanha) é artificial e imposto socialmente, expressando determinados interesses de classe e outros derivados. A moral é distinta da ética (VIANA, 2000), pois esta apresenta coerência entre os valores fundamentais do indivíduo e suas ações reais, enquanto que a moral é um produto social e histórico que nem sempre se fundamenta na coerência entre discurso e prática.
O excesso de politização é expresso não somente por querer “politizar a vida privada”, retirando ela da totalidade e, por conseguinte, despolitizando-a, mas também por trazer um discurso político falso, frágil, sem fundamentação e desenvolvimento. Assim, tudo virou “comunista” (segundo os conservadores) ou “fascista” (segundo os progressistas), duas formas de despolitizar supostamente “politizando”. A manutenção da hegemonia burguesa e do paradigma subjetivista que lhe acompanha e suas lutas internas, especialmente entre progressistas e conservadores, tal como se vê nos partidários e críticos da “escola sem partido” é prejudicial ao processo de formação, pois apenas querem mudar ou manter as regras do jogo e não acabar com o jogo[6]. A questão é quem e como vai doutrinar ao invés de se repensar a educação escolar de forma ampla e discutir a questão fundamental da qualidade, do seu significado social, das contradições e desigualdades, etc. É outro processo de politização despolitizada.

Como resolver esses impasses? Como resolver o dilema do alto grau de desenvolvimento tecnológico e indivíduos cada vez mais infantilizados para utilizar tal tecnologia? A superação desses impasses e do dilema que está relacionado com eles é o abandono do passadismo e do presentismo. Esse processo vale para todos os processos sociais e deriva de um projeto de sociedade. Segundo Berger (2015, p. 218), “os projetos passadistas e presentistas são variados e possuem divisões internas (além da oposição entre eles), o que é comum na sociedade moderna”, um quer voltar ao passado e o outro quer manter o presente. No entanto, existe outro projeto, o futurista, pois este “rompe com as amarras do passado e do presente”. Assim, a solução dos dilemas e impasses da formação na contemporaneidade remete a uma formação para o futuro.
Uma formação para o futuro traz a necessidade de ampliar o processo de formação intelectual e revalorar a teoria, a autoformação (e não autodeformação)[7]. Uma nova sociedade só pode emergir através de um grau elevado de desenvolvimento cultural e a teoria é fundamental nesse processo. A razão, desde que não seja a instrumental (ligada ao processo de reprodução do poder e do capitalismo) deve ser revalorada, pois ela tem um significado fundamental para o desenvolvimento da humanidade, para a superação do obscurantismo. Além disso, a superação da incomunicação só pode ocorrer via razão. Da mesma forma, é preciso recuperar a necessidade de arte, teoria, produção intelectual significativa e não meramente mercantil, modismos, etc. A mercantilização da arte e sua decadência contemporânea (tal como se vê no caso exemplar da música), o controle burocrático e mercantilização da produção intelectual em geral, são processos que devem ser combatidos e formas alternativas de criação intelectual (teórica, artística, etc.) devem ser produzidas.
Esse processo todo deve ser realizado ao lado da autoformação. Em outras palavras, a revaloração da teoria, da arte, etc., tem que ser realizada via um processo de autoformação individual e coletiva, o que significa que não se trata de reproduzir os modismos e concepções hegemônicas e sim desenvolver um processo de pensamento crítico e produção intelectual engajada no sentido da transformação total das relações sociais existentes. Os obstáculos para essa mutação de valores e processo de autoformação são por demais evidentes, mas faz parte da luta cultural e é condição para redirecionar uma sociedade que caminha rumo ao barbarismo no sentido de ir para o caminho do futuro e da libertação humana.
Em síntese, é fundamental ampliar a autoformação individual e coletiva, no sentido de lutar pela transformação social, que, uma vez realizada, permite uma autoformação coletiva e individual plena numa sociedade autogerida. Esse é um meio de buscar superar os impasses e dilemas da formação contemporânea, mas deve ser num sentido crítico, rompendo com a hegemonia e ideias dominantes, o que significa uma luta do indivíduo contra ele mesmo (interesses pessoais, formação anterior, etc.), o que deve ser acompanhado pela necessidade de compreensão que isso só se mantém se o objetivo final, a transformação radical e total das relações sociais, for o fio condutor do processo de autoformação. Esse processo também deve ser coletivo, através da articulação de diversos indivíduos buscando sua autoformação individual e em colaboração com eles a autoformação coletiva. Ao lado disso, a luta pela transformação da escola e da educação escolar, no sentido de uma pedagogia autogestionária, de ampliação do pensamento crítico, etc., são outros elementos dessa luta mais ampla, que é a luta cultural pela constituição de uma nova sociedade.

Referências

AVANZINI, Guy. O Tempo da Adolescência. Lisboa, Edições 70, 1980.

BERGER, Patrick. Movimentos Sociais, Futuro e Utopia. Revista Marxismo e Autogestão. Ano 02, num. 03, jan./jun. 2015.

BRAGA, Lisandro. A Teoria do Regime de Acumulação Integral. Revista Conflicto Social. Ano 06, num. 10, Jul./Dez. 2013.

CARR, Nicholas. O Google Está nos Tornando mais Estúpidos? Disponível em: http://informecritica.blogspot.com.br/2008/01/o-google-esta-nos-tornando-estupidos.html  Acessado em 01/12/2017.


FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, A Política e o Estado Moderno. 6ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

HEGEL, G. W. Princípios da Filosofia do Direito. Lisboa: Guimarães, 1990.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. In: Col. Os Pensadores. 3ª edição, São Paulo, Abril Cultural, 1983.

LAPASSADE, Georges. A Entrada na Vida. Lisboa, Edições 70, 1975.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. 4ª edição, Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2a edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MARX, Karl. O Capital. 5 vols. 1, 3a Ed., São Paulo: Nova Cultural, 1988.

ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014.

RODRIGUEZ, Leon. Autogestão e Formação. Revista Marxismo e Autogestão. Ano 01, Num. 01, jan./jun. 2014. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/15rodriguez1/69 Acessado em 08/12/2014.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Col. Os Pensadores. 4ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1987.

VIANA, Nildo. A Consciência da História – Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007b.

VIANA, Nildo. A Dinâmica da Violência Juvenil. 2ª edição, São Paulo: Ar editora, 2014b.

VIANA, Nildo. A Filosofia e sua Sombra. Goiânia: Edições Germinal, 2000.

VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas. São Paulo: Ar Editora, 2016.

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. 2ª edição, Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.

VIANA, Nildo. Introdução à Sociologia. 2ª edição, Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.

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VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.

WILLIANS, Marc. Autogestão e Planificação. Revista Marxismo e Autogestão. Vol. 02, num. 04, jul./dez. de 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/8willians4/323 acessado em 28/12/2015.






[1] Esse é um processo típico da sociedade moderna, pois nas sociedades pré-capitalistas não existe o processo de ressocialização, ou seja, a juventude, que é uma criação do capitalismo devido o processo de formação da força de trabalho (VIANA, 2014; VIANA, 2015). Esse processo foi percebido por alguns autores, tal como a necessidade de “entrada na vida” para se tornar um “adulto-padrão” (LAPASSADE, 1975) ou como a escola é fundamental no processo de formação da juventude enquanto grupo social (AVANZINI, 1980).
[2] A produção de mercadorias existiu antes do capitalismo, mas não era produção de mais-valor. A produção de mais-valor é a forma especificamente capitalista de produção de mercadorias (VIANA, 2009).
[3] Um regime de acumulação é constituído por uma determinada forma assumida pelo processo de valorização (organização do trabalho), forma estatal e forma de exploração internacional. Assim, se tivemos o regime de acumulação conjugado de 1945 até o final dos anos 1970, ele foi caracterizado pelo fordismo (processo de valorização), Estado integracionista, mais conhecido como de “bem estar social” ou “keynesiano” (forma estatal) e expansão do capital oligopolista transnacional, mais conhecido como “multinacionais” (forma de exploração internacional). A partir dos anos 1980 há mudança nesses elementos, gerando um novo regime de acumulação, fundado no toyotismo (processo de valorização), neoliberalismo (forma estatal) e hiperimperialismo (forma de exploração internacional).
[4] Essa mutação cultural assume a forma de “renovação hegemônica”, instituindo um novo paradigma e novas ideologias filiadas a ele.
[5] Essa derrota ocorreu também em diversos outros países, como Itália e Alemanha, apesar de não ter atingido a força e a radicalidade que teve na França. A derrota, no entanto, não foi total, pois as lutas operárias na França e Itália continuaram com relativa força até início dos anos 1970.
[7] Sobre autoformação e sua relação com a transformação social e a instauração de uma nova sociedade, cf. Rodriguez (2014). O processo de formação e seu caráter fundamental para a constituição de uma nova sociedade é destacado nesse artigo. E isso é perceptível também quando se trata da questão da planificação na sociedade autogerida: “É por isso que, sem cair no utopismo, é preciso realizar reflexões hoje sobre a sociedade do futuro, pois permitirão aqueles que estiverem envolvidos, já possuir elementos, ferramentas mentais, para poder pensar o novo e realizá-lo com maior precisão e facilidade, além de contribuir para dificultar uma contrarrevolução por causa da presença dessas dificuldades. A formação intelectual é fundamental desde hoje para o sucesso da revolução autogestionária” (WILLIANS, 2015, p. 41). Uma sociedade superior pressupõe um desenvolvimento superior da consciência. Portanto, nada mais contraditório certas correntes políticas, devido influência do paradigma subjetivista, desvalorar a teoria e a formação intelectual e cair no pragmatismo e praticismo.

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