Rádio Germinal

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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Ano Novo Significa Vida Nova?


Ano Novo significa vida nova?



NILDO VIANA


"Desejar feliz Ano Novo é algo vazio se não tivermos feito nada para que o futuro seja melhor. A melhor forma de desejar um feliz Ano Novo é fazer algo no presente para que isto se concretize no futuro".

Final de ano. No meio das festas de Natal e Ano Novo surge a expectativa do recomeço e da mudança. Cartomantes, astrólogos, entre outros, são consultados pelos meios de comunicação e pela população para saber como será o ano que está chegando. As pessoas desejam feliz Ano Novo umas para as outras. Todo final de ano é marcado por essa expectativa de que o ano que se iniciará será melhor. Mas de onde vem essa expectativa e essas previsões? Qual é a base real dessa expectativa? O que significa a passagem de um ano para outro? Tais questões são raramente colocadas, pois as pessoas dificilmente questionam o ar que respiram, e isto vale para o “ar cultural”, isto é, o mundo das tradições e concepções que permeiam a vida cotidiana.

As expectativas são produto do desejo de uma vida melhor, de um futuro mais feliz. A origem dessas expectativas está em dois elementos: descontentamento e desejo. O descontentamento com a vida atual (em sua totalidade ou em vários de seus aspectos, que, caso da sociedade moderna, remetem à vida profissional, afetiva, financeira, política) traz o desejo da mudança, a esperança de que dias melhores chegarão, sonhos serão realizados.

O descontentamento e o desejo criam a expectativa e a crença na mudança, bem como uma pseudestesia (falsa sensação) coletiva de renovação. As previsões das pessoas não possuem, na maioria dos casos, uma base concreta. Isso faz das previsões místicas um forte atrativo, pois reforçam a esperança e crença na mudança.

A maioria percebe esse processo como sendo individual: descontentamento, objeto do desejo, expectativa, crença em mudanças para o indivíduo. Embora possam ocorrer mudanças individuais, elas são limitadas caso não ocorram mudanças sociais. Daí o eterno descontentamento e desejo de mudança, pois, mesmo aqueles que sobem um degrau na ascensão social, enriquecem e realizam desejos que, no fundo, não significam realização pessoal, já que eles continuam presos em uma sociedade mercantil, burocrática e competitiva, continuam sentindo o descontentamento e a necessidade de nova mudança. A mudança no sentido coletivo era mais comum em sociedades “primitivas”, não marcadas pelo individualismo e pela competição, embora não tenha sido abolida, mas apenas marginalizada, na sociedade moderna.

Porém, a passagem para o Ano Novo não significa nenhuma mudança em si. O ano é um período de tempo construído por meio de um processo classificatório, utilizando como critério o tempo que o planeta Terra gasta para dar a volta em torno do Sol. No mundo contemporâneo, é o que se chama “ano solar”, cuja origem é egípcia. O que ocorre é um movimento físico de um planeta em torno de uma estrela, marcando determinado período de tempo. Esse período de tempo também expressa mudanças biológicas nos seres vivos, entre outros, mas não apresentando nenhum salto ou mudança radical.

A expectativa de mudança que ocorre neste período do ano é direcionada para a esfera das relações sociais, que não sofrem nenhuma grande influência deste movimento físico que serve de critério classificatório para a duração do ano. Além disso, a demarcação de quando é o fim do ano e início do seguinte é arbitrária, um produto social. Poderia ser, ao invés do dia 1º de janeiro, em agosto, desde que o calendário tivesse sido produzido sob outra forma, com outra marcação das datas. E era assim, por exemplo, no antigo Egito, onde o ano iniciava em 19 de julho. Em outros casos, o início do ano ocorre em outras datas, tal como março, setembro, dezembro. Isto sem falar dos calendários nos quais o ano tem mais de 12 meses.

Algumas mudanças superficiais reforçam essa pseudestesia coletiva de renovação. Como várias relações sociais se organizam a partir da demarcação temporal do calendário anual, isto reforça a percepção de uma mudança. O calendário escolar, por exemplo, se organiza principalmente de forma anual, o que significa que o indivíduo fica na expectativa de encontrar novas pessoas, viver novas relações. Mesmo sendo um calendário semestral, a sensação de renovação ocorre, reforçada pelo clima geral anunciado pelo Ano Novo e bastante amplificada pelos meios de comunicação, pelo misticismo e pelas religiões. No Ano Novo também há o recomeço do campeonato de futebol e outras competições esportivas, as promessas de novos programas na TV e mais algumas mudanças que, no fundo, nada mudam ou mudam superficialmente, ou localizadamente, atingindo apenas alguns indivíduos ou grupos sociais, o que é pouco mais do que a mudança individual acima aludida. Porquanto, não há mudança na totalidade das relações sociais. Em alguns casos individuais, as mudanças são um pouco mais profundas, tal como para quem passou no vestibular ou acertou um novo contrato de trabalho.

No que se refere às relações sociais, as mudanças não caem do céu, nem ocorre nenhum acontecimento mágico no 1º de janeiro que provoque qualquer alteração que não seja um processo de continuidade em relação ao(s) ano(s) anterior(es). A Segunda Guerra Mundial, deflagrada em 1939, não nasceu neste ano, pois foi produto de um longo processo histórico que gerou sua razão de ser e existência. Assim, se alguém quer acontecimentos novos no ano seguinte, tem que perceber que existe um processo que traz um conjunto de tendências e que a pura vontade, a fé ou o misticismo nada poderão fazer nesse sentido, já que são as ações anteriores que irão promover as possíveis mudanças. Embora a vontade e a fé sejam elementos que podem influenciar os acontecimentos, a preparação e a ação presente são mais importantes para se alterar o futuro. Isto nada tem a ver com a passagem para o Ano Novo. Um dia mágico no qual as coisas mudam sem nenhuma ação nesse sentido é impossível. A ruptura entre o presente e o futuro não ocorre, pois o futuro é construído no presente — carregando as influências do passado —, inclusive a ruptura. Nada acontecerá no ano que vem que já não esteja preparado, ou em forma embrionária, neste ano e nos anos anteriores. Por conseguinte, desejar feliz Ano Novo é algo vazio se não tivermos feito nada para que o futuro seja melhor. A melhor forma de desejar um feliz Ano Novo é fazer algo no presente para que isto se concretize no futuro.



NILDO VIANA é escritor e sociólogo.
 
http://api.ning.com/files/pnEzRtg3r1SgsN4afEqBR3DJFT7sulbVrAnSBjZDlbLZl5DgDV4OxfeNXw85NBQy5mAxxAczeMvmk0g0LycR7fte3SmWPIDT/AnoNovoSignificaVidaNovaNildoViana.pdf

Feliz Ano Novo numa Perspectiva Autogestionária

Abaixo vídeo sobre o ano novo numa perspectiva autogestionária:

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Vídeo sobre natal

O Significado do Natal

O Significado do Natal



Nildo Viana


Se olharmos no dicionário, veremos que o natal é uma festa cristã realizada no dia 25 de dezembro, cujo objetivo é comemorar o nascimento de Jesus Cristo. Logo, o significado do natal é puramente religioso, cristão. No entanto, uma análise histórica e crítica nos revela que as coisas não são bem assim. O natal sofreu mudanças de significado no decorrer da história da humanidade e é isto que iremos colocar no presente texto.

O natal foi, em sua origem, uma festa pagã. Como sabemos, o paganismo é uma doutrina religiosa politeísta que era predominante antes da era cristã. As festas pagãs de Saturnália (17 a 24 de dezembro) e Brumália (25 de dezembro) faziam parte da cultura popular na Roma Antiga (e na região da Pérsia) e foram substituídas pelo natal cristão. Na Brumália, o nascimento de Júpiter (também chamado Mitra), o Deus-Sol, era comemorado no dia 25 de dezembro e se chamava Mitraica. Apesar disto, a festa em si não tinha caráter religioso e sim “mundano”.

A maioria dos símbolos do natal também possui origem pagã. A origem da árvore de natal possui duas hipóteses: para uns, ela foi introduzida como símbolo da festa por Martinho Lutero, um dos principais arquitetos da reforma protestante (Século 16); para outros, sua origem se encontra na mitologia babilônica, segunda a qual Ninrode (filho de Cam, neto de Noé), depois de morto, gostava de receber presentes debaixo de uma árvore, no dia do seu aniversário, dia 25 de dezembro. Se a hipótese verdadeira for a segunda, a árvore de natal também teria origem pagã.

As velas constituíam uma tradição pagã, pois eram acesas durante o crepúsculo para homenagear o Deus romano Júpiter. A guirlanda, coroa verde com fitas e bolas coloridas, fazia parte dos costumes populares para decorar edifícios.

O Papai Noel tem sua origem na lenda de Nicolau, Bispo de Mira, Século 5. A lenda diz que ele presenteava, em segredo, três crianças de uma família pobre, todos os anos, no dia 06 de dezembro. No entanto, a mitologia babilônica de Ninrode, citada anteriormente, já colocava a oferta de presentes, mas que era feita para a “divindade” e não para crianças pobres. Outras versões do Papai Noel existiram, tal como a expressa no conto popular russo Babushka. O conto relata a história de Babuskha, uma velhinha que foi convidada pelos três reis magos para ir à Belém ver o Menino Jesus que havia acabado de nascer e que recusou o convite devido ao frio intenso que fazia naquela noite. No dia seguinte, ela juntou presentes para o Menino Jesus, mas como não sabia o caminho e os três anciãos já haviam partido, partiu procurando-o sem nunca encontrá-lo, mas deixando para todos os meninos que encontrava um brinquedo como presente de natal. O Papai Noel tem diversos nomes (e formas) em países diferentes. Na Alemanha, é Kriss Kringle (“criança de cristo”); na França, é Pere Noel; Nos Estados Unidos e Canadá é Santa Claus (devido à origem lingüística holandesa, derivada de São Nicolau); na Inglaterra é Father Christmas; na Costa Rica, Colômbia, algumas partes do México, é El Niño Jesus; em Porto Rico ele é substituído pelos Três Reis Magos (Melchior, Baltazar e Gaspar); na Suécia é Jultomten; na Holanda, Kerstman; na Finlândia, Joulupukki; na Rússia, é Grandfather Frost ou Babushka; na Itália é Befana ou Babbo Natal; em Portugal é Papai Natal (Noel é o mesmo que natal); no Japão é Jizo e na Dinamarca é Juliman. O Papai Noel recebe nomes diferentes em países diferentes, mas em alguns recebe “formas” e origens diferentes, tal como em Porto Rico (três reis magos), na Rússia (Babushka) e na Itália (Befana, uma bruxa que desce pela chaminé e entrega presentes).

A questão do presente é mais complexa. Na verdade, o natal se apresenta, na atualidade, como uma troca de presentes entre adultos e no ato de presentear crianças. No mito babilônico há oferta de presente para a divindade; enquanto que na lenda de São Nicolau e Babushka, há oferta de presentes para crianças. Mas sua origem parece estar ligada à cultura popular pagã, pois a troca de presentes era um costume tanto na Mitraica quanto na Saturnália.

De tudo isto que vimos, podemos dizer que o natal tem sua origem numa festa pagã. Esta festa pagã se converteu em festa cristã a partir do século 4, quando Constantino, Imperador Romano convertido ao cristianismo, transformou o dia do Deus-Sol em dia do nascimento de Cristo (cuja data exata é desconhecida). Tal como coloca o historiador das religiões Mircea Eliade, “desde o princípio, o cristianismo sofreu influências múltiplas e contraditórias, sobretudo as do gnosticismo, do judaísmo e do ‘paganismo’”. Ele acrescenta que os padres da Igreja “cristianizaram os símbolos, ritos e os mitos asiáticos e mediterrânicos ligando-os a uma história santa” .

A Igreja Romana introduziu o natal como festa cristã, pois a hegemonia do cristianismo surgiu num terreno dominado por uma cultura popular, de forte influência pagã, que ela não podia simplesmente descartar, já que isto provocaria resistência à doutrina cristã. Desta forma, a Igreja Romana buscou assimilar a cultura popular e cristianizá-la, fornecendo, assim, um significado cristão a uma festa pagã, mas, ao mesmo tempo, mantinha grande parte de suas características e assim fazia uma concessão necessária para facilitar sua aceitação.

Desta forma, o significado original do natal era mundano, de caráter pagão, ou seja, orientado para os prazeres da alimentação farta, alegria, etc. A Igreja Romana forneceu uma ressignificação do natal, dando-lhe um significado religioso. Este significado predominou durante toda a Idade Média, período em que a religião cristã dominou absoluta no mundo feudal ocidental, embora tenham sobrevivido alguns resquícios da influência pagã na cultura popular.

No entanto, um novo significado passaria a ser atribuído ao natal na Idade Moderna, ou seja, na sociedade capitalista. O significado religioso permanece, mas é, em alguns aspectos, relegado a segundo plano, e, em outros, é assimilado pelo novo significado que adquire.

Qual é este novo significado do natal? É o significado mercantil. O natal se torna uma grande festa consumista, amplamente explorada pela publicidade. O significado mercantil assimila o significado religioso e transforma o sentido dos símbolos natalinos. O fundamental passa a ser o presente e a figura preponderante passa a ser o Papai Noel, um velhinho que distribui presentes para todas as crianças (e não apenas para as pobres, como originalmente) sem nenhuma justificação. Este personagem vem apenas para apresentar como natural e universal algo que é constituído histórica e socialmente e que serve a interesses “ocultos”.

A troca de presentes se torna generalizada e tem atrás de si um conjunto de interesses: oferece-se um presente em troca de outro presente ou então de um favor, ou, ainda, de algo que revela um interesse oculto. Uma pessoa pode dar um presente para outra visando receber outro presente em troca e tal troca pode representar uma posição social ou status (o valor financeiro do presente varia com a posição do indivíduo na hierarquia social). Um presente pode ser oferecido a um subalterno esperando que ele retribua não com outro presente, mas sim com gratidão, trabalho, dedicação (é o caso, por exemplo, das empresas que fornecem “cestas de natal” aos funcionários).

O presente pode ser oferecido pelo subalterno ao seu superior, esperando, em troca, um presente melhor (devido suas “posses”), benevolência ou qualquer outra vantagem (devido seu “poder”). O bajulador é o principal distribuidor de presentes.

Por fim, o presente pode ser expressão de afetividade: presenteia-se a quem se gosta e, se ele for um “igual” (adulto), espera-se que ele retribua sob a mesma forma, e, se for uma criança, espera-se a retribuição em forma de afetividade ou gratidão. O problema aparece, neste último caso, devido ao fato de que o processo de mercantilização das relações sociais cria em muitas pessoas a idéia de que o presente é equivalente ao amor e não apenas uma forma, entre inúmeras outras, sob a qual ele se manifesta. Realiza-se, assim, uma inversão entre o símbolo (presente) e o simbolizado (amor), no qual a primazia passa a pertencer ao primeiro em detrimento do segundo. Desta forma, não receber um presente aparece como o mesmo que não ser amado. Cria-se, assim, o fetichismo do presente.

As crianças são treinadas para viver nesse mundo mercantil desde cedo: em uma idade em que não possuem recursos financeiros para dar presente, um adulto lhe fornece dinheiro para comprá-lo e entregá-lo, principalmente no Dias das Mães e dos Pais, mas também no natal (há casos em que os pais dão dinheiro para os filhos comprar presentes para eles mesmos ou para o outro – o pai para a mãe ou vice-versa...). A publicidade, os costumes, cria na criança uma expectativa de ganhar presente. No natal, para o imaginário infantil, é um dia para se ganhar presente.

O processo de troca de presentes na sociedade capitalista existe durante o ano inteiro (aniversário, dia da criança, dias dos namorados, dia dos pais, dia das mães, etc.) mas se intensifica no natal. No dia do aniversário, apenas o aniversariante ganha presente; no dia das crianças, apenas as crianças e assim por diante. No natal, a troca de presentes (mercadorias) se torna generalizada.

Os meios de comunicação e a publicidade se encarregam de inculcar nas pessoas a necessidade de receber e dar presentes. O desejo de receber presente tem sua fonte na idéia transmitida pela publicidade e pelos meios de comunicação de que ele é um equivalente do amor ou então devido a interesses de aquisição de bens e vantagens. O desejo de dar presentes é produto tanto da publicidade quanto da pressão social (aquele que não dá presente não ama...) que, caso não seja efetivado, produz remorso (sentimento de culpa) no indivíduo.

Assim, o capitalismo manipula sentimentos e produz valores visando aumentar o mercado consumidor. Todos sabem que no fim de ano, devido ao natal e ao ano novo, há um aquecimento nas vendas e no processo de produção em alguns setores, nos quais alguns setores do comércio e indústria são extremamente beneficiados (indústria e lojas de brinquedos, por exemplo). Outros costumes e desejos são fabricados, como a “ceia de natal”, decoração, determinados alimentos, etc. Numa sociedade onde houve a “mercantilização de tudo” , isto tudo se torna mercadoria (presente, alimento, decoração, roupa, etc.) e se tornam necessidades fabricadas pelo capitalismo visando a reprodução ampliada do mercado consumidor. Isto recebe incentivo através do 13o salário e dos empregos temporários da época. Resta, para aqueles que não possuem dinheiro para realizar o ato fundamental do natal atual – comprar –, a insatisfação manifestada sob as mais variadas formas (tristeza, conflitos familiares, etc.).

O natal também possui um significado de produzir uma pseudestesia coletiva de alegria. O clima de festividade, mesclado com o consumismo e mensagens religiosas de harmonia e paz, provoca uma falsa sensação de alegria – para aqueles que se inserem no mercado consumidor – que logo se dissipa e é substituído pela dura realidade da vida cotidiana, com todos os seus conflitos e dilemas.

Desta forma, o natal ganha um significado predominantemente mercantil na sociedade contemporânea e os apelos para a recuperação de seu sentido religioso só possuem ecos em círculos restritos, nos quais a religiosidade ainda é importante. Assim, o natal revela ser aquilo que Marx afirmou ser a religião, pois ele revela ser a expressão e, ao mesmo tempo, a “dignidade espiritualista”, a “sanção moral”, o “complemento solene”, o “consolo” e a “justificação” deste mundo mercantil e coisificado. A superação da pseudestesia coletiva de alegria que é o natal, a falsa alegria, deve, pois, ser substituída pela verdadeira alegria, que vai muito além da coleção de mercadorias e presentes ou de apelos hipócritas a uma religiosidade silenciada pelo reino da mercadoria. O natal é expressão deste mundo e a superação deste é o meio necessário para a superação da pseudestesia natalina. Desta maneira, as flores imaginárias que enfeitam nossa prisão e nos consolam para continuar nela, uma vez descobertas, deverão ser arrancadas para que no lugar delas possam brotar flores verdadeiras, pois somente assim a alegria imaginária será substituída pela alegria real.



Artigo publicado no livro: VIANA, Nildo (org.). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002.



Sobre o autor:

Nildo Viana – Graduado em Ciências Sociais, Especialista e Mestre em Filosofia, Mestre em Sociologia/UnB; Doutor em Sociologia/UnB. Professor da Universidade Estadual de Goiás e autor de diversos artigos e livros, entre os quais Escritos Metodológicos de Marx (Goiânia, Edições Germinal, 1998/2001); A Questão da Causalidade nas Ciências Sociais (Goiânia, Edições Germinal, 2001); A Filosofia e Sua Sombra (Goiânia, Edições Germinal, 2000); Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico (Goiânia, Edições Germinal, 2002); Violência Urbana: A Cidade Como Espaço Gerador de Violência (Goiânia, Edições Germinal, 2002); Universo Psíquico e Reprodução do Capital – Ensaios Freudo-Marxistas (São Paulo, Escuta, 2008); O Capitalismo na Era da Acumulação Integral (São Paulo, Idéias e Letras, 2009); A Concepção Materialista da História do Cinema (Porto Alegre, Asterisco, 2009).
 
http://sociologiaemrede.ning.com/profiles/blogs/o-significado-do-natal

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

domingo, 7 de novembro de 2010

Ser, Ter ou Aparecer?


SER, TER OU APARECER?



Nildo Viana*


O que as pessoas mais valorizam em suas vidas? Cada indivíduo possui sua escala de valores, porém existem valores que são dominantes em determinada sociedade e determinada época. Na sociedade escravista da Idade Antiga ou na sociedade feudal, da Idade Média, valores radicalmente diferentes dos nossos eram dominantes, isto sem falar nas sociedades indígenas. Assim, os indivíduos formam seus valores no processo das relações sociais e por isso eles são constituídos socialmente. O que resta saber é quais são os valores dominantes na nossa sociedade, sociedade capitalista, em seu estágio atual.

O valor dominante hoje é o ter e o aparecer. As pessoas não se preocupam fundamentalmente com o que são e sim com o que possuem e o que aparentam. O ter é fundamentalmente propriedades, posses, mercadorias, dinheiro, status, poder, etc. Ter um carro do ano, ter uma roupa de grife, ter uma mesa sofisticada, etc., é mais importante do que ser uma pessoa que trabalha com o que gosta, pois, se fizesse, não poderia ter o que tem. É preciso o trabalho que dá mais dinheiro e pode deixar o indivíduo ter. Porém, o ter é vazio, a única satisfação real é a percepção que os outros têm da pessoa. Como no livro de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe, nunca se pergunta se a pessoa é feliz, etc., e sim o que ela tem, qual seu status na sociedade. Aqueles que não têm, querem parecer que tem. Assim, a sociedade moderna é marcada pelo reino do ter e das aparências.

Na sociedade moderna tudo vira mercadoria, tudo passa a ser objeto de compra e venda. Ao comprar a mercadoria, a pessoa passa a tê-la, a possuí-la. Antes do capitalismo, na sociedade feudal, assim como nas sociedades indígenas, as pessoas produzem não mercadorias e sim valores de uso, produtos para satisfazer suas necessidades. Na nossa sociedade, não se produz para consumir e sim para trocar, vender, e assim adquirir dinheiro e também comprar. O capitalismo se sustenta através da exploração do trabalhador, que produz o suficiente para pagar o seu salário e custos de produção e cria um mais-valor, um excedente, que é apropriado pelo capitalista. Este só realiza o processo de produção devido a isso, a esse excedente que vai lhe permitir o lucro. Com o passar do tempo, tudo vai sendo transformado em mercadoria, até o corpo humano.

Essa situação tem solução? Sim, porém, isto depende do indivíduo e da sociedade em seu conjunto. O indivíduo pode lutar contra si mesmo e superar os valores dominantes do ter e do aparecer, passar a valorizar não a competição, o sucesso, a riqueza, e sim as pessoas, as atividades prazerosas, o desenvolvimento de suas potencialidades físicas e mentais, o que, sem dúvida, é extremamente difícil nessa sociedade, que produz inúmeros obstáculos para tal. Assim, este mesmo indivíduo deve buscar também e fundamentalmente a transformação social para romper com estes obstáculos e com as bases desta sociedade produtivista e consumista. Ajudar a constituição de uma nova sociedade, fundada na igualdade e liberdade, a autogestão social, é o caminho para superar as bases da supervalorização do ter e do aparecer e revalorização do ser.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A Minoria Elege Dilma Roussef e a Ilegitimidade Continua

A Minoria Elege Dilma Roussef e a Ilegitimidade Continua

Nildo Viana

Ao terminar a eleição presidencial, temos Dilma Roussef eleita para o cargo de presidente do Brasil. Ela ficou com 56,05% dos votos e ganhou, segundo a imprensa e programas televisivos, grande popularidade, sua primeira força política para governar o país. Porém, as coisas não são bem assim. Os números são como as aparências: eles enganam.

Dilma Roussef foi eleita por uma minoria. O resultado colocado nos meios oligopolistas de comunicação é que ela ficou com 56,04% e José Serra com 43,95%. Porém, isso se refere apenas aos votos válidos. O percentual cai drasticamente se somar-mos os votos nulos e brancos. Os votos nulos foram 4,40%, um total de 4 milhões e 689 mil votos e um pouco mais. Os votos em branco foram 2 milhões 452 mil e mais alguns, sendo 2,30%. Somados dariam 6,7%. Parece pouco percentualmente, mas somados dá mais de 7 milhões de votos, que seria maior do que a população inteira de um grande cidade, perdendo apenas para São Paulo e Rio de Janeiro. Porém, os números enganam quando a profundidade da análise não vai mais longe. É preciso somar a isto as abstenções, que chegaram a 29 milhões e 194 mil e mais alguns poucos e nenhuma cidade tem essa população no Brasil. Isso significa 21,50% de abstenções. Somando-se esse número expressivo com votos nulos e brancos, temos um total de mais de 36 milhões que não votaram em Dilma e Serra, o que significa 30,5%, ou seja, aproximadamente um terço. Assim, no site do TSE, cuidadosamente temos esses números mas separados. Há um quadro onde tem o total de votos, mas sem o percentual dos candidatos e outro no qual há o número de votos e o percentual dos candidatos, mas contando apenas os votos válidos.




Eis o caso do primeiro turno:



Eis a mágica estatística. Dilma conseguiu 55 milhões de votos, Serra 43 milhões, não votaram ou votaram nulo e branco 29 milhões. Dilma ficou com 56% dos votos válidos, mas do total do eleitorado, que é 135.804.433, seria aproximadamente 40%. É por isso que para ser eleito o percentual que vale é dos votos válidos, ou seja, excluindo abstenções, nulos e brancos. Se isso contasse, nenhum presidente se elegeria no Brasil. A questão não para aí, pois o que se conta nesse caso não é a população brasileira, mas apenas o eleitorado. Caso se contasse a população brasileira em geral, que é de mais de 190 milhões (o atual senso, ainda não encerrado, aponta para que seja aproximadamente 192 milhões). O número de eleitores de Dilma cairia drásticamente, para pouco mais de 20% da população brasileira. Sem dúvida, recém-nascidos e crianças entram nessa conta, porém, na conta oficial não entram não só esses como milhões de outros e no resultado percentual final, somente os votos válidos, um pouco mais de 99 milhões. Os votos válidos é aproximadamente a metade da população brasileira. Porém, em termos de voto, Dilma conseguiu 20% da população, 40% do eleitorado e 56% dos votos válidos. O que é muito pouco nos dois primeiros casos, e só no resultado maqueado apenas pelos votos válidos a votação seria relativamente expressiva.




Os meios oligopolistas de comunicação convidaram especialistas e emitiram comentários os mais variados, mas todos apontando para a grande vitória e popularidade da candidata, sua força para iniciar o novo governo. Isso é mera ilusão. Os números mostram que a minoria eleitoral escolheu Dilma, apenas 20% da população e considerando os aptos a votar, apenas 40%. Ora, a coisa fica ainda pior se considerarmos que muitos que votaram em Dilma não foi por apoio, convicção, etc. Muitos votaram por ser contra o Serra, outros por não ter candidato e achar, devido a propaganda e pressão de certos setores, que teriam que votar em alguém, e não é fantástico pensar que pessoas votaram por “sorteio” (para quem vai nas seções eleitorais e observa, vê, por exemplo, pessoas procurando santinhos no chão para escolher em quem vai votar...) ou por mera sugestão, ou seja, votos que não significam apoio efetivo. Mesmo os que votaram com um pouco mais de solidez na escolha, analisando os discursos e propagandas, etc., isso não significa nenhum apoio político e convicto. Assim, se Dilma tiver apoio de 10% da população ou 20% do eleitorado, isso é o máximo que consegue.



Em síntese, Dilma foi eleita por uma ínfima minoria da população brasileira, e pela minoria do eleitorado. Só conseguiu maioria no mundo ilusório e fabricado dos “votos válidos”. Assim, se a grande força de Dilma para iniciar o seu governo é a popularidade, então a situação não está nada boa para o lado dela. Transformaram a fraqueza em força. Assim, aumentam o número do eleitorado porque o voto é obrigatório, aumentam o número de votos da candidata por que tem segundo turno (no primeiro turno, ela teve pouco mais de 47 milhões e 46,91 dos votos válidos, o que significava aproximadamente 13% da população brasileira e 35% do eleitorado), aumentam o percentual da candidata por excluir as abstenções, votos nulos e brancos. A lógica é aumentar sempre, pois, caso contrário, o apoio diminuto, mesmo no frágil mundo eleitoral, mostraria a ilegitimidade da candidata eleita. Porém, a luta de classes continua junto com a ilegitimidade e quanto mais a população se auto-organiza e auto-educa, mais ilegítimos são os governos.


quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Os Intelectuais e o Voto Nulo




OS INTELECTUAIS E O VOTO NULO


Nildo Viana


Não deixa de ser curioso como uma grande parcela da intelectualidade resolve abrir mão de sua mesquinha “neutralidade de valores” em época de eleições. Mais curioso ainda são as afirmações e posicionamentos contra o voto nulo. Afinal de contas, qual é o problema de certos intelectuais que não só se posicionam a favor de determinados candidatos como ainda criticam outros candidatos e até voto nulo?

A intelectualidade é uma classe social que tem várias subdivisões e expressa diversas concepções políticas no seu interior. Uma forte tendência é ela ser “progressista”, embora isso não signifique muita coisa. Alguém progressista é que apóia mudanças, vota nos partidos ditos de esquerda, etc. Essa parcela, no caso brasileiro, apóia Dilma Roussef no segundo turno. Sem dúvida, muitos apóiam a candidata petista por interesse próprio ou por ser governista, ao invés de ser realmente progressista. O interesse próprio pode ser a política do governo para as universidades, incluindo o Reuni, que aumenta verbas para a universidade e, ao mesmo tempo, diminui a qualidade e precariza o trabalho docente (concurso para aulistas de 20 horas, por exemplo). É uma versão neopopulista do neoliberalismo. Talvez seja “menos ruim”, o que significa que é ruim e ao invés de escolher o menos ruim, a população e os intelectuais necessitam se organizar e arrancar pela sua própria força as mudanças e não depositar um voto numa urna para um governo que vai seguir os ditames do grande capital, de forma mais ou menos autoritária.

O PT há muito tempo é uma versão do neoliberalismo. É a sua versão mais populista e que faz algumas políticas sociais paliativas e apresenta pseudo-soluções para questões sociais como a fome, etc., sem nada, no fundo, resolver. Inclusive faz o jogo das estatísticas, que iludem os ingênuos, com um suposto progresso que na realidade concreta não aparece. Os intelectuais possuem interesses próprios, além dos pessoais, o interesse de classe. E esse interesse é conservador e por isso a intelectualidade, mesmo a progressista, é conservadora, no sentido de que não rompem com as relações sociais que lhe constitui como classe e reproduzem a sociedade capitalista, aliás, é para isto que ela existe: produzir ideologias, legitimar o capitalismo, justificar a sociedade existente, além de produzir técnicas, tecnologias, etc., para reproduzir o que existe. Sem dúvida, nem todos os intelectuais fazem isso, mas é a classe que realiza isso e as exceções são justamente daqueles que não se identificam com sua classe e seus interesses, ou seja, não são aqueles que supervalorizam a ciência e o saber, base de legitimação da intelectualidade. Assim como também existem aqueles que realmente votam e defendem determinadas posições político-partidárias com boa intenção e por opção política, mas é uma parte minoritária da classe. Trata-se de uma parte iludida da intelectualidade, cuja desilusão poderá significar adesão à nova ilusão (um “novo partido”), ou recusa do sistema partidário e eleitoral, a ruptura com as ilusões.

Os manifestos de apoio à Dilma Roussef e os atos mostram apenas a debilidade de grande parte da intelectualidade brasileira. O PT foi formado com participação de diversos intelectuais, um de seus setores mais fortes, embora muitos tenha se tornado políticos profissionais ou burocratas. As saídas e rachas do PT foram apenas expressão do caminho crescentemente conservador desse partido. Porém, isso se deu mais com agrupamentos políticos e jovens do que com os intelectuais, a não ser alguns que foram para outros partidos supostamente de esquerda. O problema fundamental se encontra nos compromissos de setores da intelectualidade que provocam a perda da razão na defesa dos seus candidatos. O exemplo clássico aqui é Marilena Chauí, uma das mais renomadas intelectuais do Brasil, e que produziu obras que, por mais que consideremos problemáticas e com equívocos, tem (teve, para ser mais exato) determinado valor e repercussão. Porém, a Marilena Chauí que foi das origens do PT, que escrevia na revista dos “autonomistas” do partido, a Revista Desvios, e que escreveu obras sobre cultura e ideologia, foi sendo substituída por outra Marilena Chauí. Em seu lugar apareceu a Secretária de Cultura do Município de São Paulo, durante a prefeitura de Luiza Erundina (1990-1993), passando a querer ser respeitada pelos colegas e temida pelos inimigos, como disse certa vez em entrevista. A filósofa saiu e em seu lugar apareceu a secretária, política, governante, propagandista. Porém, depois disso, as temáticas e livros da filósofa assumiram outro tom e agora aparece a apologista do governo petista e da candidatura Dilma Roussef. A decadência se manifesta no vídeo onde afirma que Serra seria uma ameaça à democracia. A filósofa usa toda sua capacidade retórica para repetir o discurso do horário eleitoral, emprestando seu nome e fama para a propaganda política. Os exageros e alarmismos aparecem para manipular os eleitores. A conquista de eleitores é o grande objetivo, e aí os “públicos-alvo” da filósofa são os ambientalistas, as mulheres e outros segmentos (cada argumento é para um público-alvo específico). A “Marina tem o PT no coração”... Isso quer dizer que os ambientalistas e eleitores de Marina devem votar no PT, apesar da própria Marina não ter dito isso em lugar algum e optado por não apoiar nenhum dos candidatos. Mais um jogo retórico que convence os incautos.

A filósofa crítica passa a ceder para as pesquisas de opinião pública que mostram uma boa avaliação do governo Lula e cita um jornal conservador que não respeita tal opinião. Ao mesmo tempo, havia defendido a liberdade de opinião e expressão. O referido jornal não teria tal liberdade, pois estaria contra a opinião pública. Liberdade de opinião! Por isso quem é contra Serra (Maria Rita Kehl), não poderia ser demitida! E o jornal ousa ter “liberdade de opinião”. Conclusão: liberdade de opinião sim, mas apenas para quem concorda com a minha...

Também diz que o Serra venceu nas regiões “ruralistas”, de “desmatamento”, etc. e desqualifica os votos desta região, caindo novamente em contradição com sua defesa da liberdade de opinião e respeito pela opinião pública. Essa é a máxima petista: defendemos a liberdade de opinião, dos que concordam conosco! Defendemos o respeito pela opinião pública, quando ela está a nosso favor! A filósofa que em seus escritos antes de seu partido chegar ao poder, denunciava a ideologia, mostrava que pretensos discursos contra a sociedade burguesa no fundo não apontavam para uma crítica de seus fundamentos, agora reproduz o que criticava. Chauí exemplificava essa questão, em seus textos antigos, com a discussão sobre feminismo e crítica do poder burguês, já que relaciona opressão da mulher e capitalismo. Daí o exemplo de ideias defendidas por determinados concepções feministas:

“1) a de que as mulheres não devem se sujeitar à ideologia da inferioridade nem à ideologia dos papéis sociais, mas devem lutar por igual direito ao trabalho;
2) a de que as mulheres não devem continuar se submetendo ao poderio masculino e devem defender a liberdade do uso do corpo, porque este é propriedade delas e não dos homens (maridos, filhos, chefes, etc.).
Aparentemente, tais movimentos parecem estar lutando contra o poder burguês, pelo menos no seu aspecto discriminatório. Porém, se analisarmos as duas ideias defendidas, o que veremos? Defender a igualdade no mercado de trabalho não é criticar a exploração capitalista do trabalho, mas é mantê-la, fazendo com que as mulheres tenham igual direito de serem exploradas e de realizarem trabalhos alienados. Seria preciso que as mulheres, como movimento social, pudessem levar a cabo a crítica do próprio trabalho no modo de produção capitalista, em vez de desejarem virar força de trabalho. Por outro lado, defender a liberdade de usar o corpo porque este é propriedade privada da própria mulher e afirmar que tal direito define a mulher como pessoa autônoma, é esquecer de que um dos pilares da ideologia burguesa, na sua forma liberal, é justamente a definição dos seres humanos por algo chamado de “direito natural” e que seria o direito à posse e ao uso do próprio corpo, posse que nos torna livres, liberdade que é necessária para formular a ideia burguesa de contrato (...). Ora, vimos como Marx descreve o surgimento do trabalhador “livre” necessário ao capital: o homem que tendo apenas a posse de seu corpo, que estando despojado (“liberado”) dos meios e instrumentos do trabalho, tem o “livre” direito ao uso de seu corpo, vendendo-o no mercado da compra e venda da força de trabalho. E vimos, com Hegel, como a definição burguesa de pessoa é sinônima ou a versão jurídica do proprietário privado. Assim, a luta feminista pode realizar-se sem por em questão a hegemonia burguesa (Chauí, 1984, p. 112).

Essa era a Marilena Chauí. O que ela virou hoje? Virou uma ideóloga, tal como ela usa o conceito em seu livrinho, a serviço do poder e reproduzindo ideologias conservadoras. Ela termina sua exposição, no vídeo do youtube (abaixo) dizendo que teremos uma “mulher na presidência”. Ela viu um negro na presidência dos EUA (Obama), um operário na presidência do Brasil (Lula) e agora uma mulher, Dilma. A ideologia é tão explícita que nem necessitaria comentário. Lula chegou à presidência, mas ser operário é pertencimento de classe que ele não tinha mais, já havia se tornado um burocrata de partido a décadas e nunca um operário será presidente, pois sendo presidente deixará de ser operário. Um negro na presidência ou uma mulher, o que quer dizer? Apenas manipulação retórica para conseguir votos dos negros e das mulheres. Porém, nada vai mudar para os negros e as mulheres. Dilma é uma mulher e, caso seja eleita, isso nada significará ou apenas revela que ela será governante, servindo para reproduzir as relações de produção capitalistas e as bases que geram a opressão da mulher. Chauí faz a operação ideológica de transformar Dilma em representante das mulheres por ser mulher, abstraindo, ideologicamente, que ela expressa determinadas concepções políticas, interesses, que não são os da emancipação da mulher e da transformação social e que o cargo de presidente tem o papel de reproduzir as relações de produção capitalistas, ou seja, conservar. Um lugar no mercado de trabalho para as mulheres é um equívoco – afirmação correta da filósofa em sua obra dos anos 1980 – e uma mulher na presidência da república deveria ser entendido como um equívoco muito maior. Até para alguém que é conservador e não quer a superação do capitalismo, a grande questão não é o sexo da candidata e sim o que ela propõe efetivamente para colaborar com uma mudança na situação das mulheres na sociedade capitalista. Da mesma forma, Obama é negro e presidente, e nada mudou na vida dos negros norte-americanos. A base social do racismo, da exploração, etc., continua e um negro na presidência não é nada mais do que um indivíduo que exercerá o poder e este existe para reproduzir o capitalismo, a base social do racismo, da opressão da mulher, etc., e, logo, nada adiantará. Claro que para os petistas adiantará muito, afinal, quantos cargos para homens, mulheres, negros, brancos, etc., não estarão disponíveis, claro, para os petistas e seus aliados.






(A continuação pode ser vista em três outros vídeos disponíveis no Youtube, clique aqui)


A filósofa chega a denunciar que dia 29 no comício do Serra ocorrerá um ato de violência feita pelos partidários deste com camisas do PT para incriminá-lo. A fonte de tal informação teria sido uma “conversa no bar” de duas pessoas... Isso é a decadência de qualquer raciocínio mesmo não filosófico. Condena-se Serra por um ato que não aconteceu e que seria grave e a única fonte é uma conversa de bar de duas pessoas não identificadas. Mas se não ocorrer, para quem acreditar nisso, Serra já está condenado (inclusive se pode dizer depois: nós denunciamos e eles voltaram atrás...) e o reino da boataria vai se tornar mais importante do que os atos reais dos indivíduos.

A questão fundamental é que o discurso a favor da democracia (e que afirma que Serra é uma ameaça a ela) é feito de forma não-democrática. O ataque constante ao voto nulo e aos seus defensores, mostra o seu caráter autoritário e antidemocrático (mesmo no sentido restrito e burguês do termo). A opinião pública só vale para os que pensam igual. Isso ocorre justamente porque o problema da democracia é seu caráter burguês e que ocorre no conjunto das relações sociais da sociedade burguesa. Os anarquistas, autogestionários e outros não podem existir, pois votam nulo e a democracia constrange os indivíduos a aceitá-la tal como existe, e a autogestão social, o fim da falsa democracia onde a população é manipulada pela pseudoesquerda e pela direita, é algo impensável e inaceitável. É possível disputar o poder, mas não negar o poder. A única opção eleitoral válida hoje é o voto nulo, pois a pseudoesquerda representada pelo PT nada constitui de benéfico para a população e para os explorados e oprimidos. As razões do voto nulo já foram bastante discutidas em uma publicação voltada para isso (clique aqui para acessá-la).

Antes de terminar, é necessário, para agradar aos petistas e antecipar críticas desonestas que alguns fazem, que não se trata de defesa de José Serra, que é, realmente, um representante da classe dominante em sua ala mais conservadora neste segundo turno. Porém, Dilma também é representante da classe dominante. As diferenças são poucas. Por exemplo, quem ficará com os cargos, o PSDB e seus aliados, ou o PT e seus aliados? Claro que outras diferenças nas ações políticas, questões pontuais, etc., também existem, mas é superestimada. Não existem, nem da perspectiva burguesa e conservadora, projetos políticos distintos, o que existe são algumas propostas pontuais diferenciadas. José Serra é tão pouco democrático quanto Dilma, e o confronto com estudantes que pregavam voto nulo em local que este faria entrevista coletiva (clique aqui para acessar esta notícia) demonstra isso. A questão é que quem tem o poder o exerce e quem luta pelo poder tem que silenciar o outro. Tanto Serra quanto Dilma querem silenciar o voto nulo, e por isso alguns filósofos e intelectuais na USP enfatizaram isso. Sim, é preciso silenciar toda oposição que questiona as bases da sociedade capitalista. Os petistas são mais ofensivos nesse caso por uma mera questão eleitoral, pois avançou o número de pessoas intelectualizadas que apóiam o voto nulo, que é um lugar onde os votos são majoritariamente da pseudoesquerda, inclusive composta por intelectuais.

Assim, podemos encerrar voltando ao caso dos intelectuais. Figuras que supervalorizam sua própria prática e profissão, os intelectuais são, no fundo, grandes conservadores, que vão desde os extremos autoritários/meritocráticos aos pseudodemocratas da pseudoesquerda. Obviamente, e felizmente, existem exceções e estas aumentam em determinados contextos e situações. A “traição dos intelectuais”, denunciada por Julien Benda (2007), é uma ideologia dos intelectuais, que querem dizer que são neutros. Essa traição seria aqueles intelectuais que defende nação, raça, classe ou partido. É um discurso conservador e que apenas reproduz interesses de classe da intelectualidade. Porém, se fosse possível falar em “traição dos intelectuais”, poderíamos dizer que tal traição é quando se agride e subestima a inteligência alheia.

Este é o exemplo do vídeo de Marilena Chauí, e que demonstra que, apesar do seu passado e seus méritos (o que não significa passar por cima dos seus equívocos), o que a corrupção política não faz com os indivíduos: faz ele fazer tudo que criticava, faz usar sua capacidade intelectual não para esclarecer, que seria o ideal da ação do intelectual, e sim para obscurecer. O intelectual pode usar, assim, o “discurso competente”, termo usado pela própria Marilena Chauí (1989), para causas muito pouco nobres. E esse é o caso dos intelectuais uspianos preocupados com o voto nulo através de discursos simplistas fazendo de conta que não conhecem ou sabem as razões e fundamentação de quem defende o voto nulo (para ver notícia sobre isso, clique aqui). Os intelectuais são traidores não de sua classe, mas de sua humanidade quando substituem o compromisso com a verdade pelo compromisso com o poder ou com benefícios pessoais ou de classe, com tudo que é derivado disso. Assim, os vendilhões do templo da academia vendem sua alma ao diabo, seja da direita ou da pseudoesquerda. Parece um leilão, onde “quem dá mais” acaba vencendo a competição, e depois de “dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três”, resta a palavra: “vendido!

Os intelectuais devem abandonar sua identificação com a intelectualidade como classe e suas históricas justificativas ideológicas (neutralidade, autonomia dos intelectuais, vocação pseudouniversalista, etc.) e se tornarem engajados, como propunha Sartre (1994). Não se trata do “engajamento” em partido político, algo que entra em contradição com a luta pela emancipação humana. Trata-se de um engajamento que aponta para a crítica das ideologias, a autocrítica perpétua, associação sem reservas com as classes exploradas. E isto leva a um processo de luta contra a reprodução da ideologia nas classes exploradas, tal como o culto da autoridade, usar o saber acumulado para contribuir com o desenvolvimento cultural das classes exploradas, incentivar a produção de cultura e saber por indivíduos do proletariado, recuperar a finalidade do intelectual: liberdade de pensamento, busca da universalidade do saber e da verdade, lutar contra todo tipo de poder, inclusive de partidos que dizem representar a classe operária, sendo guardião dos objetivos históricos e da unidade entre meios e fins. Isso tudo não é o que vem sendo feito pelos intelectuais que acriticamente defendem candidatos ao invés de questioná-los, que ficam do lado do poder ao invés do lado dos explorados e oprimidos. Porém, muitos deles podem desenvolver a consciência disso e mudar de rumo e assim trocariam sua causa pobre por uma causa nobre e ao invés de apoiar candidatos, apoiariam as classes exploradas e a auto-organização destas, e assim lutariam pelo voto nulo como primeiro passo para a desmistificação da pseudoliberdade eleitoral e para superar ações ilusórias por luta concreta pela emancipação humana.

Referências

Benda, Julien. A Traição dos Intelectuais. São Paulo, Peixoto Neto, 2007.
Chauí, Marilena. Cultura e Democracia. São Paulo, Cortez, 1989.
Chauí, Marilena. O Que é Ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1984.
Sartre, Jean-Paul. Em Defesa dos Intelectuais. São Paulo, Ática, 1994.
Viana, Nildo. A Intelectualidade como Classe Social. Revista Espaço Acadêmico, Ano VI, num. 63. Agosto de 2006. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/063/63esp_viana.htm acessado em: 01/06/2010.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Reformismo de Gramsci

O Reformismo de Gramsci
(Notas Sobre Gramsci, 06)

Nildo Viana

A obra de Gramsci possui várias interpretações e a cada uma delas temos uma determinada apropriação de sua obra, direcionando-a para as concepções de quem faz a apropriação. Assim, temos Gramsci revolucionário, leninista, social-democrata, idealista, materialista, etc. A posição política de Gramsci é, no fundo, ofuscada por este conjunto de interpretações/apropriações. Somando a isso o caráter fragmentário e contraditório de suas colocações, há uma dificuldade de identificar qual é sua verdadeira posição política. Porém, saindo do pântano das interpretações e uma leitura rigorosa de sua obra, apesar de seu caráter fragmentário, é possível reconstituir a posição política de Gramsci. É o que buscamos fazer aqui.

A questão fundamental que perpassa a obra de Gramsci é a conquista da hegemonia pelo Partido-Príncipe, o partido maquiavélico-gramsciano. A hegemonia é a direção moral e intelectual e ela pertence à classe dominante, a burguesia. A missão do partido maquiavélico-gramsciano é realizar uma reforma intelectual e moral visando conquistar a hegemonia e produzir um novo Estado. Assim, é preciso ultrapassar a fase econômico-corporativa (sindical), chegando à fase da hegemonia na sociedade civil e, finalmente, a fase estatal (Gramsci, 1987). Apesar de algumas alterações nesta abordagem geral, essa é a estratégia gramsciana.

Porém, esta estratégia tem uma variação, que se revela na diferença entre oriente e ocidente. Para o oriente, a estratégia de conquista do poder estatal é diferente, é a guerra de movimento, tal como efetivada por Lênin. No caso do ocidente, se aplica a guerra de posição, na qual o partido maquiavélico-gramsciano vai cercando o Estado (sociedade política) através da sociedade civil e conquistando a hegemonia, para depois se apoderar do aparato estatal (Gramsci, 1988).

Aqui reside a chave para a compreensão da concepção política de Gramsci, o reformismo. Segundo Perry Anderson:

“No caso de Gramsci, as inadequações da fórmula da ‘guerra de posição’ tinham uma clara relação com as ambigüidades de sua análise do poder de classe da burguesia. Gramsci, como vimos, igualava a ‘guerra de posição’ à ‘hegemonia civil’. Assim, exatamente como a sua utilização da hegemonia tendia a implicar sobre a cultura e o consentimento, a ideia de uma guerra de posição tendia a implicar que o trabalho revolucionário de um sentido marxista era essencialmente o da conversão ideológica da classe operária – daí a sua identificação com a frente única, cujo objetivo era ganhar a maioria do proletariado ocidental para a Terceira Internacional. Nos dois casos, o papel da coerção – repressão da parte do Estado burguês e da insurreição da parte da classe operária – tendem a desaparecer. A fraqueza da estratégia de Gramsci é simétrica à de sua sociologia” (Anderson, 1986, p. 72).

Deixando de lado os equívocos costumeiros de Perry Anderson (expresso, neste caso, seu leninismo insurrecionalista), ele acerta ao colocar que, para Gramsci, a revolução não está presente em sua concepção (não se trata de insurreição, a proposta de Lênin, e sim de revolução, a proposta de Marx e Gramsci não propõe nenhuma das duas coisas).

Porém, Gramsci teve um antecessor bastante ilustre: nada mais nada menos que Karl Kautsky, o maior ideólogo da social-democracia da primeira metade do século 20. Segundo Perry Anderson, este havia proposto a “estratégia do esgotamento”, palavra retirada da doutrina militar de Delbrück, em oposição à “estratégia da derrocada”, que seriam termos equivalentes à “guerra de posição” e “guerra de movimento”. Anderson complementa colocando o contexto do debate com Rosa Luxemburgo no qual Kautsky utiliza e justifica tal concepção de guerra de esgotamento:

“Foi Kautsky quem deu o próximo passo no sentido de introduzir os conceitos militares de Delbrück – sem precisar suas fontes – em um debate político sobre as perspectivas estratégicas da luta proletária contra o capitalismo. O momento mesmo de sua intervenção foi muito importante. Pois foi no sentido de refutar a exigência de Rosa Luxemburgo para a adoção de greves militantes de massa, durante a campanha do SPD pela democratização do sistema eleitoral neofeudal prussiano, que Kautsky contrapôs a necessidade de uma ‘guerra de esgotamento’ mais prudente pelo proletariado alemão contra o seu inimigo de classe, sem incorrer nos riscos inerentes às greves de massa. A introdução da teoria das duas estratégias – de esgotamento e de derrocada – foi assim o que cristalizou as razões da cisão decisiva no seio do marxismo ortodoxo na Alemanha antes da Primeira Guerra Mundial” (Anderson, 1986, p. 89).


Anderson acrescenta que isto não é apenas semelhança formal, pois Kautsky também justifica sua posição através de uma diferença regional, equivalente a de Gramsci sobre oriente e ocidente, e pensava que, por estar na Europa ocidental, a sua estratégia seria conquistar a maioria no parlamento através de uma série de campanhas eleitorais, o que não poderia ocorrer na Rússia Czarista por não haver regime democrático. O debate chegou até a Rússia e Lênin, um kautskista, tomou partido da posição de Kautsky.

Em síntese, apesar de algumas imprecisões e contradições aparentes, Gramsci concebe uma concepção política essencialmente reformista, o que é reforçado por suas considerações sobre eleições, governo, direito, ou seja, em nenhum momento se coloca a questão da ruptura revolucionária e em todo o momento o que se vê são considerações sobre organizações, ações, práticas, voltadas para a sociedade capitalista, para a conquista da hegemonia, sem ruptura. Assim, apesar das interpretações que buscam unir o “jovem Gramsci” e o “Gramsci da maturidade” para lhe dar maior radicalidade e um caráter revolucionário (inclusive se esquecendo que o “jovem Gramsci” não era tão revolucionário assim) para sua obra, o que é uma deformação muito mais do que uma interpretação correta, o maquiavélico pensador italiano era um reformista.

Referências:

ANDERSON, Perry. As Antinomias de Gramsci. In: ANDERSON, Perry. A Estratégia Revolucionária na Atualidade. São Paulo, Joruês, 1986.

GRAMSCI, Antonio. A Concepção Dialética da História. 6ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, A Política e o Estado Moderno. 6ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988.

sábado, 2 de outubro de 2010

O Voto Como Mercadoria - Quanto vale o seu?


O VOTO COMO MERCADORIA - QUANTO VALE O SEU?

Nildo Viana

[...]

Por fim, temos o processo de cooptação e corrupção que sempre ocorre nos processos eleitorais. Além da prática cotidiana de cooptação e corrupção realizada por governos e partidos políticos, através de cargos, favores, etc., temos também a corrupção eleitoral, tanto financeira, quanto as promessas de cargos, favores e benefícios. Os alvos principais são os indivíduos que potencialmente podem angariar mais votos, devido sua posição junto a setores da população. É isso que torna militantes estudantis, ativistas comunitários e de movimentos sociais, sindicalistas e membros de associação de bairros, entre outros, o alvo principal dos partidos e candidatos. Da mesma forma, os cooptados e corrompidos são futuros reprodutores do processo de cooptação e corrupção. O processo eleitoral é uma verdadeira escola de manipulação e corrupção e uma fábrica de políticos profissionais, quando o demônio compra sua alma com seu dinheiro sujo.


[...]

A mercantilização das relações sociais está presente nas eleições e na corrupção eleitoral. A venda do voto pode ser considerada uma “corrupção do eleitor”. A corrupção é uma relação social na qual há o corruptor e o corrompido. O corruptor é o que corrompe, suborna, oferece dinheiro em troca de algo, que, no caso, é o voto. Do lado do corruptor, há o dinheiro e o desejo de consumo da mercadoria chamada voto e do lado do corrompido, há o desejo de algo em troca, que é uma mercadoria ou a possibilidade de aquisição de mercadorias. Só existe a venda do voto por existir a oferta e a procura e, no caso, a procura precede a oferta, pois só havendo procura poderá haver oferta.



Do lado do corruptor, isso ocorre devido sua ambição e ânsia pelo poder e tudo que está relacionado a isso. Do lado do corrompido, isso ocorre por vários motivos. O eleitor corrompido entende o ato eleitoral como sem sentido, como algo que não envolve sua vida cotidiana, que não produz mudanças. A percepção disso ocorre pela experiência cotidiana do votante, pois entra ano e sai ano, entra governo e sai governo e nada em sua vida muda. Assim, o não-significado do voto é razão para sua desvaloração cultural e que deve passar a ter alguma utilidade. Tendo em vista que vivemos numa sociedade que realiza a mercantilização das relações sociais em todos os níveis e tudo é transformado em mercadoria, o eleitor vê na proposta de venda, a efetiva oportunidade de venda, a possibilidade de ter algum retorno com o voto. Ele pode ser útil e qualquer coisa que se consiga por ele é “lucro”.



Um terceiro elemento que ajuda a explicar a venda do voto é o processo de corrupção existente na sociedade e política brasileira, desde o genérico “jeitinho brasileiro” até as diversas denúncias de corrupção tanto no poder executivo quanto no legislativo, a percepção dos políticos profissionais no Brasil é bastante negativa e muitas vezes eles são vistos como sinônimo de corruptos. Sendo a política um festival de corrupção, então vender o voto é algo dentro da normalidade política brasileira. A desilusão eleitoral é reforçada pela corrupção estatal existente.



Porém, como o voto é secreto, o que se vende, no fundo, não é o voto, mas a promessa do voto, que nem sempre se cumpre por ele ser secreto e por que alguns eleitores entendem que tal venda é um motivo para não se votar no candidato comprador de votos. Assim como o candidato corrupto promete e não cumpre, o eleitor corrompido também o faz. Porém, o elemento ativo nesse processo é o corruptor, aquele que quer comprar o voto, sem o qual a transação não ocorreria.



No entanto, o processo eleitoral não ocorre apenas através da relação entre eleitores e candidatos, ou seja, entre indivíduos, pois estes são seres humanos concretos, e por isso não é possível deixar de lado a luta de classes nesse contexto. Grande parte da população apresenta uma desilusão com as eleições e a democracia representativa, outra parte é cética, e isto é derivado, em parte, das experiências eleitorais passadas e das desilusões que lhes acompanham, e, em parte, do descontentamento oriundo de uma ampla insatisfação, inclusive de necessidades básicas, e da falta de atendimento destas necessidades, o que atinge mais o lumpemproletariado, o campesinato, o proletariado e algumas outras classes desprivilegiadas.



É por isso que o discurso eleitoral tem que produzir promessas irrealizáveis e oferecer migalhas atrativas para a parte mais descontente da população. Trata-se de uma estratégia da classe dominante ou de suas classes auxiliares para buscar atrair para seu partido a camada enorme de pessoas descontentes e desiludidas, o que é complementado com a busca de corrupção eleitoral, através de oferecimento de benefícios pessoais em troca do voto. Aqui, os elementos da sociabilidade capitalista, como a competição, mercantilização e burocratização das relações sociais (Viana, 2008), são elementos fundamentais para o sucesso da corrupção e cooptação eleitoral. A competição em torno do sucesso, status, poder, riqueza, numa sociedade mercantil, promove a facilidade no processo de corrupção e coloca o processo eleitoral como meio de ascensão social. Alguns indivíduos bem intencionados acabam, devido à predominância da mentalidade burocrática, aderindo aos partidos e muitos se corrompem nesse processo, outros realizam uma ruptura que pode desembocar no imobilismo ou no ativismo antipartidário. Outros são cooptados através do emprego como cabos eleitoras e promessas de emprego permanente após as eleições, caso seu candidato ganhe, além do sonho de alguns em se tornar candidatos.



Porém, os partidos expressam as classes sociais privilegiadas e disputam entre si os cargos e a posição de governo, querendo integrar o bloco dominante. Nesse contexto, o discurso eleitoral tem o objetivo de buscar, a qualquer custo, a vitória. E para isso é preciso atingir o maior número de pessoas e interesses. Os velhos discursos sobre saúde, educação, segurança, etc., apenas revelam essa tentativa de atingir uma grande parte da população, pois essas demandas são visíveis e acessíveis pelas pesquisas de opinião. Daí também o discurso policlassista, onde a classe ou grupos específicos com interesses específicos são substituídos pelo “povo”. Daí vem outra conseqüência, que é a necessidade de propaganda generalizada, atingindo o maior número de pessoas e sob variadas formas, desde a propaganda eleitoral gratuita nos meios oligopolistas de comunicação até a distribuição de panfletos, santinhos, bandeiras, adesivos, e diversas outras formas. Isso tudo produz um discurso despolitizado e despolitizador, que reforça a mistificação eleitoral.

Para acessar o texto completo, clique aqui.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O POSITIVISMO DE GRAMSCI

O Positivismo de Gramsci
(Notas Sobre Gramsci 05)


Nildo Viana


Certa vez, um professor que leu meu livro Estado, Democracia e Cidadania (Viana, 2003), e disse, rindo, “chamar Gramsci de positivista é, no mínimo, uma provocação”. A afirmação, sem dúvida, é provocativa, tendo em vista a proeminência de Gramsci e o quase consenso segundo o qual ele seria um dos grandes representantes do marxismo. Porém, não é apenas provocação, pois Gramsci não é marxista e sim positivista, o que muitos não entendem, pois não ultrapassam o nível da provocação. Eis o que vamos tratar aqui.

Sem dúvida, quando se diz que alguém é positivista, não é, a não ser nos debates empobrecidos entre pseudomarxistas (tal como um entre um intelectual carioca e outro paulista, no qual o lugar de colocar a vírgula se tornou palco de disputa ao invés de questões fundamentais), apenas um adjetivo pejorativo. É preciso, quando alguém faz uma afirmação destas, ou buscar entender o significado do termo positivismo tem para o autor que o utilizou ou simplesmente se omitir na discussão.



Obviamente que existem várias definições de positivismo. Entre elas, destaca-se a de Michel Löwy (1991), segundo a qual seria a concepção que considera que existem leis na sociedade tal como as leis da natureza, que os métodos das ciências humanas devem ser os mesmos das ciências naturais e de que é necessária a neutralidade do cientista. Outra concepção é a de que o positivismo é o empiricismo e há ainda a definição segundo a qual o positivismo é o uso dos métodos das ciências naturais, entre outras. Gramsci não se encaixa na definição de Löwy e nem na última, embora tenha laços de ligação com a definição que remete ao empiricismo.

Porém, minha concepção de positivismo é outra. O positivismo é toda concepção que parte de uma determinada concepção de neutralidade ou objetividade do pensamento científico (Viana, 2007a). Ou seja, toda concepção que desconsidera que o pensamento científico é produto de seres humanos históricos, concretos, que é expressão de interesses de classes sociais, é positivista.



Eis que Gramsci então revela-se um grande positivista. Isto é tanto verdadeiro que basta olhar a sua abordagem do que chamou “filosofia da práxis”. Esta não é uma expressão dos interesses de classe do proletariado e sim produto da ciência, do saber. Ao definir a objetividade como “universal subjetivo” e considerar que esse é produto da “luta pela objetividade”, coloca, nas mãos dos intelectuais, o papel de agente do processo evolutivo da humanidade. Aqui a semelhança com Comte e sua Igreja Positivista e com Lênin e seu partido de vanguarda não é mera coincidência, pois atrás dela se vê um culto da ciência e a ligação entre pseudomarxismo e positivismo. Segundo Gramsci, o saber é independente do “ponto de vista”: “Objetivo significa precisamente, e tão somente, o seguinte: que se afirma ser objetivo, realidade objetiva, aquela realidade que é verificada por todos os homens, que é independente de todo ponto de vista que seja puramente particular ou de grupo” (Gramsci, 1988, p. 69).



Sendo assim, Gramsci demonstra um total desconhecimento da teoria de Marx sobre a consciência e sobre a possibilidade de uma consciência correta da realidade, que tem como condição de possibilidade partir da perspectiva do proletariado (Viana, 2007b; Marx, 1988). Gramsci, apesar de se dizer “marxista”, no fundo se revela um grande positivista, mais próximo de Comte, Durkheim e outros positivistas clássicos, do que de Marx.



Por fim, a expressão “o famoso positivista italiano”, em Estado, Democracia e Cidadania, não era mera provocação, era a constatação de um “fato”, para usar termo que os positivistas gostam e que agradaria um de seus representantes mais ilustres: Gramsci.


Referências

GRAMSCI, Antonio. A Concepção Dialética da História. 6ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988.



LÖWY, Michael. Ideologias e Ciência Social. 7a edição, São Paulo, Cortêz, 1991.



MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.



VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios Sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro, Achiamé, 2007.



VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia, Alternativa, 2007b.



VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.

sábado, 25 de setembro de 2010

Gramsci, Leninista? Notas Sobre Gramsci - 04

Gramsci, Leninista?
(Notas Sobre Gramsci 04)

Nildo Viana

As relações entre o pensamento gramsciano e o leninismo ainda estão por ser esclarecidas. Alguns tentam vincular Gramsci e Lênin entendendo que isso seria bom e daria um caráter revolucionário à obra do primeiro; outros, no entanto, já pensam o bolchevismo (leninismo, stalinismo) como vinculado ao pensamento gramsciano, o que significaria demérito para o pensador italiano. Porém, alguns pensam que os dois pensadores são distintos e distantes e esse é o caso dos reformistas assumidos.

Dentre estas três linhas interpretativas, simpatizamos mais com a que aproxima Gramsci do leninismo, o que significaria um demérito deste autor. Porém, o compromisso do marxismo é com a verdade, com a consciência correta da realidade, e, por isso, temos que dar a Gramsci o que é de Gramsci, e a Lênin o que é de Lênin. Neste sentido, nossa interpretação do pensamento de Gramsci se diferencia de todas as três interpretações acima aludidas (Viana, 2010). Não é possível aceitar a tese dos reformistas assumidos de que Gramsci não tem nada a ver com Lênin, assim como não se pode pensar que ele é simplesmente um leninista. Assim, julgamos que o mais correto é pensar que Gramsci tem fortes traços de leninismo, mas rompe com este numa questão fundamental e por isso pode ser considerado um semileninista

O que significa semileninista e qual a fundamentação dessa interpretação? Semileninista quer dizer em parte leninista, em parte não-leninista. A fundamentação desta tese é parcialmente a mesma que Garcia (1980) e Mondolfo (1967) encontraram em Gramsci e sua relação com o leninismo: a concepção de partido como “moderno príncipe” (Gramsci, 1988), o processo de direção do proletariado pelo partido, que, com algumas diferenças, é a tese leninista. Gramsci, diferente de Marx e tal como Lênin, defende o substitucionismo, e o partido acaba sendo o sujeito político em substituição à classe. O maquiavelismo de Gramsci o aproxima radicalmente de Lênin. No que se refere ao papel do partido, a posição de Gramsci é a mesma de Lênin, apesar de existirem diferenças na concepção de partido [1], sua forma organizacional e de ação. Porém, em ambos os casos, o partido é o “sujeito revolucionário” em substituição à classe.

Porém, Gramsci não compartilha com Lênin a concepção insurrecionalista (em termos gramscianos, seria “guerra de movimento”). A sua separação entre “guerra de movimento” e “guerra de posição” é outra face de seu semileninismo. Lênin, Segundo Gramsci, estava certo ao pensar uma estratégia de guerra de movimento no caso russo, onde a sociedade civil é fraca e o Estado é forte. Porém, na Europa Ocidental, a sociedade civil é forte e o Estado é o democrático, não sendo autoritário como na Rússia. A guerra de posição prioriza a sociedade civil, a luta pela hegemonia, para depois, se pensar na conquista do poder estatal. Aqui reside uma diferença fundamental entre leninismo e gramscismo [2]. Gramsci discorda de Lênin de tal forma que diz que ele está certo, mas para outro contexto.

Desta forma, Gramsci não pode ser considerado um leninista ortodoxo, mas também não pode ser considerado como não tendo nenhuma ligação com Lênin. A ideia de partido, as constantes referências ao ideólogo da burocracia bolchevique, são evidências que mostram a ligação entre Gramsci e Lênin, entre o gramscismo e o leninismo. A estratégia da guerra de posição é o que diferencia Gramsci de Lênin, o que para o primeiro não era problema, já que ele queria ser o representante do leninismo da Europa Ocidental. É por isso que Gramsci pode ser facilmente apropriado pelos reformistas assumidos e pelos leninistas, pois ele tem uma parte de sua alma presa ao leninismo, e outra presa à social-democracia. Uma alma presa entre dois diabos, cujos tridentes pressionam seu cérebro para unir dois setores da burocracia partidária. Em síntese, Gramsci é um semileninista torturado por dois demônios que pressionam seu cérebro e que por isso pode ser apropriado por várias tendências burocráticas.

[1] - Tais diferenças não podem ser superestimadas, mesmo porque seria necessário saber até que ponto Gramsci conhecia a concepção leninista de partido. O que muito consideram que Gramsci buscou uma “refundação do pensamento marxista” (Cerroni, 1982) é um grande exagero, pois grande da sua suposta “originalidade” é derivado de sua falta de contato com as ideias e tendências do movimento socialista estar fora dos embates da época, pois caso contrário, certamente, como mostra sua posição favorável a Stálin no confronto com Trotsky, ele seria mais próximo do leninismo. Uma comparação, embora superficial, entre a concepção de partido em Lênin e Gramsci pode ser vista em Cerroni (1982).

[2] - Sem dúvida, outras diferenças são perceptíveis, entre elas as de caráter metodológico, bem como algumas outras semelhanças, mas essas diferenças e semelhanças não são as essenciais e apenas reafirmam o semileninismo de Gramsci.

Referências

CERRONI, Umberto. Teoria do Partido Político. São Paulo, Lech, 1982.

GARCIA, Fernando Coutinho. A Teoria da Organização e o Centralismo. Os Limites do Ortodoxo. Revista Educação e Sociedade. Revista Quadrimestral de Ciências da Educação. Ano II, Num. 05, janeiro de 1980.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, A Política e o Estado Moderno. 6 edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988a.

MONDOLFO, Rodolfo. Estudos Sobre Marx. São Paulo, Mestre Jou, 1967.

VIANA, Nildo. Introdução à Crítica da Ideologia Gramsciana. Mimeo. 2010.

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