A Origem da Dominação
Como surgiu o poder? Esta é uma pergunta que já recebeu muitas respostas. Hoje, esta resposta possui uma versão bastante difundida, que é defendida por diversas pessoas, principalmente ligadas à teoria antropológica. Segundo esta abordagem, a dominação do sexo feminino precedeu a dominação de classe e por conseguinte é aí que reside a origem do poder. A versão marxista apresenta sua tese de que é com o surgimento das classes sociais que aparece o poder.
É daí que surgem as duas visões sobre a opressão da mulher: o marxismo –com raras exceções influenciadas pela antropologia)–, defende a tese da existência do matriarcado, e as antropólogas “feministas” e os antropólogos em geral, com poucas exceções (sendo que na maioria destas há a influência do marxismo), defendem a tese da subordinação universal da mulher. São duas posições que se apresentam como duas teorias do surgimento do poder. Ambas, entretanto, apresentam problemas, como veremos a seguir. Mas elas deixam claro uma coisa e tal coisa será o ponto de partida do nosso estudo: a questão da origem da dominação da mulher é um elemento na história da humanidade que poderá contribuir com a resposta sobre a questão da origem do poder.
A tese do matriarcado teve como primeiros defensores as figuras de Bachofen e Morgam. Estes dois “precursores da antropologia”, como se costuma dizer, ao analisarem os mitos das sociedades antigas ou então as sociedades indígenas, observaram o considerável poder que as mulheres possuíam diante dos homens. Aperfeiçoando e se baseando no material recolhido por estes dois pesquisadores, Marx e principalmente Engels lançariam a idéia de que existiu um matriarcado antes do surgimento da sociedade de classes e que o aparecimento das classes sociais seria o fator que teria provocado a dominação masculina sobre a mulher. Alguns poucos antropólogos e outros cientistas sociais aceitam ainda hoje, se baseando em novos dados, esta tese.
Entretanto, a partir do surgimento da obra de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, e, posteriormente, de Claude Lévi-Strauss, Estruturas Elementares do Parentesco, tornou-se comum refutar a idéia de que tenha existido um matriarcado e a se defender a tese de que a subordinação da mulher é universal. Tal idéia ganhou penetração no movimento feminista graças a obra de Beauvoir e na antropologia graças ao livro de Lévi-Strauss. Antropólogos, antropólogas, antropólogas feministas, feministas culturalistas, passaram a fazer parte daqueles que postulam a existência da subordinação universal da mulher. As raras exceções se deviam a influência do marxismo.
Ocorre, porém, que desde a obra de Simone de Beauvoir existe uma ambigüidade não resolvida. Para esta representante do existencialismo, não se nasce mulher, mas torna-se mulher e sempre houve a subordinação da mulher, pois esta é uma “condição natural”. Entretanto, ela pergunta a si mesma sobre o início da subordinação da mulher:
“mas uma questão imediatamente se apresenta: como tudo isso começou? Compreende-se que a dualidade dos sexos, como toda dualidade, se tenha traduzido num conflito. Compreende-se que, se um dos dois conseguisse impor sua superioridade, esta deveria estabelecer-se como absoluta. Resta explicar por que o homem venceu desde o início” (Beauvoir, 1978, p. 19).
Ora, se é universal, então não surgiu, sempre existiu. Neste sentido, a formulação é contraditória. O natural não teve começo, pois a naturalidade de algo vem do desenvolvimento espontâneo. É somente quando o ser humano interfere através da cultura é que se rompe com a natureza. Sendo assim, não há sentido em dizer que é natural e simultaneamente perguntar pelo começo. De onde vem esta ambigüidade?
Ela vem da ambigüidade comum daqueles que são oprimidos e buscam sua libertação, mas não conseguem fazê-lo de forma autônoma. Em outras palavras, devido a esta falta de autonomia os oprimidos utilizam as concepções, linguagem e ideologia dos dominantes para se efetivar uma crítica da dominação, mas tal crítica é limitada justamente pelo motivo de que estes oprimidos não conseguiram se libertar totalmente dos dominantes. Por isto, apenas podem postular uma libertação parcial, utilizando-se de uma concepção parcialmente liberada da ideologia dominante.
A tese da subordinação universal da mulher possui outros defensores nos dias de hoje. Este é o caso de antropólogas que buscam refutar Bachofen. É isto que tentou fazer a antropóloga Joan Bamberger. Segundo ela, Bachofen teria analisado os mitos das sociedades primitivas e uma análise dos mitos pode revelar que quando eles falam de um “governo feminino” é para justificar e demonstrar que tal governo é indesejável e que as mulheres perderam-no por que não sabiam utilizá-lo (Bamberger, 1978). Pois bem, tal tese seria até certo ponto aceitável se ela tivesse analisado os mesmos mitos que Bachofen.
Ocorre, porém, que ela analisou mitos do continente americano e, assim, sua refutação de Bachofen é apenas uma comparação entre dois temas de estudo diferentes. Sociedades e mitos diferentes. Uma análise desmistificadora deveria ter analisado o mesmo tema. Além disso, o fato de que os mitos descritos por Bamberger retratarem um período de “governo feminino” significa que elas tiveram o poder de fato ou então que podem conquistá-lo, pois, caso contrário, qual seria o motivo de se criar tais representações sobre o mal que é o governo feminino? Esta interpretação dos mitos retira o contexto social no qual eles foram produzidos e desconhece o seu caráter simbólico. Na verdade, no mito não se fala de “governo feminino” e o que ele retrata só pode ser compreendido levando-se em conta não só a relação mulheres-homens, mas também todas as demais relações sociais.
Além disso, não se entende como os homens, superiores naturais e universais, segundo este tipo de abordagem, poderiam perder tempo criando fabulosas estórias sobre o “desgoverno feminino”, se as pobres e universalmente subordinadas mulheres não tivessem nenhuma condição de implantar o seu domínio. Aliás, esta postura reflete bem a visão de vítima daqueles oprimidos que não possuem um projeto de libertação. Eternas vítimas da história, da natureza, do dominante.
Na verdade, não se pode provar a existência de uma subordinação universal da mulher. Isto se deve ao fato de que a própria noção de subordinação (tal como muitas outras noções correlatas ou não, tal como “governo”, hierarquia, etc.) apresenta dificuldades quando aplicada às sociedades primitivas ou indígenas. O que é a subordinação? O uso desta palavra, neste caso, tem um sentido claramente não-marxista. Subordinação, Sub-ordem, Hierarquia, Estratificação. Tais são as palavras que vêem para substituir a teoria marxista das classes sociais. A mulher subordinada significa que ela constitui uma sub-ordem. Assim, existem ordens a, b, c, d, e assim por diante, sendo que as primeiras possuem, no que diz respeito às sociedades, mais poder, prestigio, autoridade, ou seja, estão no cume da pirâmide da hierarquia social, da estratificação. Desta forma, se destrói a visão da totalidade e se isola relações (que passam a ser, na ideologia feminista mais recente, de “gêneros”...), criando mais uma ideologia, inversão da realidade.
Neste sentido, existia subordinação da mulher? Bom, seria muito difícil falar em ordens numa sociedade que os próprios antropólogos chamam de “holistas”. Além disso, todas as categorias utilizadas para retratar isto, seriam deslocadas em tais sociedades, pois poder, prestigio, hierarquia, estratificação, etc., são expressões ilusórias das relações sociais em nossa sociedade. Aliás, é o estruturalismo que utiliza a expressão subordinação no estudo das relações de parentesco nas sociedades simples. A concepção estruturalista reproduz uma posição que é hegemônica na concepção positivista: busca criar um modelo para encaixar a realidade. A matemática e a lingüística, podem muito bem falar em subordinação, seja de números ou de orações. A ideologia das ordens vem para justificar a sociedade existente, pois diz que a divisão da sociedade em ordens (ao invés de classes e mesmo quando se utiliza esta expressão é no interior de uma concepção de hierarquia e estratificação) sempre existiu e por isso irá continuar existindo. Podemos dizer que existem, factualmente, ordens, mas na ideologia tais ordens são apresentadas como dados naturais (o que torna possível sua universalização) e a-históricos (logo, universais), pois se omite o seu processo de formação, reprodução, os seus fundamentos sócio-históricos. Assim, existe subordinação na sociedade capitalista, mas sua gênese e reprodução é omitida e só resta os dados naturais, comprovados por fatos transformados em fetiches.
Assim, o que se vê é que são duas posições antagônicas a respeito da “dominação masculina” e que este antagonismo não é resultado da visão das sociedades primitivas ou indígenas e sim das contradições da nossa sociedade, que é onde se produzem as categorias, ideologias, visões de mundo, “métodos”, com os quais se analisa ao outras sociedades. O antagonismo está em nossa sociedade. A tese da subordinação universal da mulher é uma ideologia burguesa e nada mais do que isto. Ela projeta e assim naturaliza e universaliza uma forma de opressão desta sociedade, e assim contribuiu com sua reprodução.
E a tese do matriarcado? Já se disse que ela foi aceita tanto pelos adeptos do socialismo quanto por extremistas de direita (Fromm, 1977). Na verdade, o que se pode perguntar é se é possível ter existido um “governo feminino” numa sociedade simples. É difícil comprovar tal tese, mas independente dos fatos que podem elucidar a questão, é preciso dizer que não se trata de “governo feminino”, pois não há governo em tais sociedades. Trata-se de uma utilização indevida de uma noção que se aplica apenas às sociedades de classes. Neste sentido, nunca houve matriarcado. Mas se observarmos o que disse Engels (1988), veremos que ele utilizou a palavra “matriarcado” apenas 5 vezes, sendo que utilizava de preferência a expressão “direito materno” (considerando mesmo esta expressão, utilizada originalmente por Bachofen, inexata, pois não existia “direito” nas sociedades primitivas, e isto revela que Engels era muito mais cuidadoso do que muitos antropólogos de hoje, que falam, de forma ideológica, sobre “governo” e outras expressões inaplicáveis nas sociedades simples).
O que significava matriarcado na concepção de Engels? Para ele, o matriarcado representava o fato de que a mulher possuía um “prestígio” e uma posição muito superior a que a mulher encontra nos dias de hoje. Significava também que a descendência era definida pela linha materna (Engels, 1988). Portanto, Engels nunca falou de algo como um “governo feminino”, embora por vezes ele colocava a opinião, retirada dos dados que lhe eram disponíveis na época, de que elas detinham a decisão sobre as questões mais importantes das sociedades primitivas. No sentido restrito apresentado por Engels, não há nenhuma prova de que o “matriarcado” não tenha existido.
O problema, entretanto, está não na discussão da existência de um matriarcado ou não e sim na da existência da subordinação universal da mulher ou não. No primeiro caso, temos uma idéia de que o poder sempre existiu, ou seja, que ele é constitutivo do social. Assim, a abolição do poder seria impossível, pois seria anti-social.
Na verdade, como já colocamos anteriormente, a tese da subordinação universal da mulher não tem uma fundamentação convincente. As pesquisas das sociedades simples são feitas com esquemas analíticos deficientes (que são produtos da mentalidade da sociedade contemporânea, capitalista, e, portanto, estão carregados de preconceito étnico) e uma ideologia típica da sociedade existente (expressa pelos métodos utilizados: estruturalismo, funcionalismo, etc.). É bastante difícil para um ser humano criado em nossa sociedade imaginar uma outra sociedade sem hierarquia, sem poder, sem divisão, etc., e significa uma limitação na apreensão da especificidade das demais sociedades. A linguagem, os métodos, as hipóteses, etc., são produzidas na sociedade capitalista contemporânea e são, na verdade, na grande maioria dos casos, uma projeção desta sobre as sociedades simples. Aliás, tal visão se projeta não só sobre as sociedades simples mas até mesmo sobre as “sociedades animais”, onde se vê, entre outras coisas, hierarquia, que passa, assim, a ser considerada universal (Moscovici, 1977).
A idéia da subordinação da mulher é fundamentada na sua situação inferior nas sociedades simples ou então numa nova interpretação dos mitos indígenas. Novos dados colhidos, entretanto, refutam a fundamentação que se baseia na situação inferior da mulher (Sacks, 1980; Moore, 1991). Resta, então, a fundamentação baseada nos mitos. Esta é muito mais questionável, pois os mitos podem ser interpretados de mil e uma maneiras, inclusive sobre formas extremamente arbitrárias e deslocadas da realidade no qual eles são produzidos.
Apresentar uma interpretação diferente sobre os mitos que colocam a mulher numa posição inferior, por exemplo, pode ilustrar a limitação deste tipo de análise e também observar a flexibilidade com que um mito ou qualquer outra representação cultural oferece para sua interpretação. Uma interpretação alternativa é a de que os mitos quando colocam a mulher como perigosa, feiticeira, etc., não expressa a visão da mulher em si e sim algo que ela representa. Isto é perfeitamente aceitável tendo-se em vista que o mito se manifesta sob uma linguagem simbólica. Nas sociedades simples as relações de parentesco são marcadas pela regra da exogamia, onde um homem de um clã não pode se casar com uma mulher do mesmo clã e vice-versa. Assim, ele irá se casar com uma mulher do outro clã. As relações entre os clãs que compõem uma tribo são marcadas pela necessidade de retribuição, tanto de pessoas (casamento) quanto de bens (presentes, alimentos, etc.). Assim, podemos interpretar estes mitos como sendo expressão não da visão da mulher em geral ou de todas as mulheres e sim uma utilização da mulher para simbolizar o outro clã, o que reflete uma oposição entre clãs e não entre homens e mulheres. Aliás, segundo alguns antropólogos, a mãe não se inclui nunca entre as mulheres dos quais se desconfia.
Também seria útil analisar a interpretação de Lévi-Strauss sobre a “troca de mulheres”. Ele diz que, de acordo com as regras de exogamia, são os homens que trocam as mulheres e não vice-versa (Lévi-Strauss, 1982). Ora, tal interpretação pode ser questionada, pois o que garante que são as mulheres que são trocadas e não os homens? O simples fato da mulher ir para o clã do homem não é suficiente para provar isto, pois o que é a troca? Uma troca ocorre quando alguém oferece algo em retribuição à outra coisa, ou seja, X oferece um bracelete em troca de um colar que recebe de Y. Portanto, há aqui uma relação social entre dois indivíduos (X e Y) e uma transação de dois objetos (bracelete e colar). Esta relação ocorre no contexto das regras de exogamia? É muito difícil alguém dizer isto, pois se persiste uma relação social não entre indivíduos e sim entre grupos de indivíduos (clãs), não há entretanto a transação entre dois objetos, pois se o que se troca são as mulheres, elas são trocadas pelo quê?
Sem dúvida, Lévi-Strauss e seus discípulos poderiam dizer que as mulheres são trocadas por outras mulheres, pois um homem ao adquirir uma mulher de um clã aceita doar todas as mulheres do seu clã a outro clã. Os objetos da transação seriam as mulheres. Esta concepção retoma o velho individualismo de nossa sociedade e o projeta sobre as sociedades simples, pois na verdade a troca ocorre entre clãs e não entre indivíduos, ou seja, não são os homens enquanto indivíduos e sim os clãs que realizam a troca. Em outras palavras, se o clã X oferece uma mulher, resta saber o que ele recebe em retribuição. Dizer que é outra mulher só faria sentido se esta relação ocorresse entre apenas dois clãs, o que não ocorre na maioria dos casos, que envolvem 4 ou 8 clãs e as regras de exogamia diz que o clã X deve buscar parceiros no clã Y, mas este deve buscá-los no clã Z e este, por sua vez, no R e (no caso de quatro clãs) este no X. Desta forma, o clã X ofereceu uma mulher para o clã Y não este não lhe retribuiu com nada. Assim, vê-se que não há troca nenhuma. Se deixarmos de lado quem vai residir no clã de quem, poderíamos aplicar este esquema defeituoso de análise para dizer que o que existe é uma troca de homens. Para se utilizar a idéia de troca teria que se dizer que o que se troca é mulheres por homens ou homens por mulheres e neste sentido não há troca de mulheres e sim troca de homens por mulheres ou vice-versa. Mas como esta relação ocorre entre clãs, então o mais correto é se afirmar que não existe troca nesta relação. O que existe é uma relação social e a idéia de troca não passa de um reflexo da mentalidade da sociedade capitalista que se projeta sobre as sociedades indígenas, onde não há troca de mulheres.
Outra resposta é a de que em troca das mulheres se recebe pequenos objetos (facas, por exemplo) ou animais (porco, por exemplo). Mas aí não se poderia falar em troca de mulheres e sim em troca de mulheres por objetos. A troca mercantil é uma troca de coisas que se apresentam como equivalentes (mercadoria por mercadoria, que podem sem dúvida ter valores diferentes). A troca não-mercantil é uma troca que não precisa possuir elementos materiais para se manifestar e não possui a necessidade de retribuição imediata. A questão dos presentes relacionados com os “casamentos” significa não uma troca e sim um sinal de amizade e nada mais do que isso.
Mesmo se houvesse tal troca, deveria-se reconhecer que quem a realiza são os clãs e não os homens e isto significa que não há subordinação das mulheres. O próprio Lévi-Strauss, que fala que são os homens que trocam as mulheres, apresenta afirmações, quando se refere ao pedido de casamento entre os bosquímanos da África do Sul, que refutam tal idéia:
“Os pais da moça, solicitados por um intermediário, respondem: somos pobres, não podemos nos permitir entregar nossa filha. O pretendente visita então sua futura sogra e diz: vim falar com a senhora; se morrer, eu a enterrarei, se seu marido morrer, eu o enterrarei. A isso se segue imediatamente os presentes” (Lévi-Strauss, 1982, p. 105).
Os itálicos não são de Lévi-Strauss, pois isto significaria reconhecer que se há uma troca de mulheres, o pretendente deveria se dirigir ao pai e não a mãe da pretendida. Isto revela antes de tudo a visão sexista e carregada de preconceito étnico que este antropólogo possui das sociedades simples. Para ele, como é comum em nossa sociedade, o homem é o sujeito e a mulher é o objeto e o primeiro controla o segundo. Visão, portanto, sexista.
Se não há troca de mulheres, então não há necessidade de refutar as teses que buscam explicá-las, tal como a de Godelier, que afirma que a troca de mulheres ocorre pela necessidade dos “indígenas” controlarem as “produtoras de força de trabalho” (Godelier, 1980).
O que resta explicar é a origem da dominação. A origem da dominação masculina não precede a dominação de classes pelo simples fato de que nas sociedades primitivas, assim como nas sociedades indígenas, não existe dominação da mulher. Por isso, a questão a ser respondida não é sobre a origem da dominação da mulher e sim a origem da dominação de classe.
O processo histórico que culminou com a formação das sociedades de classes se caracterizou por ser longo. Não cabe aqui remontar o processo de transição da animalidade para a humanidade, que foi extremamente longa, tal como vários pesquisadores reconhecem (Geertz, 1980; Moscovici, 1977; Leontiev, 1980; Engels, 1980). Mas é necessário colocar em evidencia a existência dessa transição. Sem dúvida, o ser humano foi o resultado de um longo processo histórico, ao contrário do que pensam aqueles que consideram que ele surgiu de repente, em um momento que seria um “ponto crítico”.
A vida animal é uma vida comunitária e não é desprovida de laços entre os seres que compõem uma determinada população animal. A teoria de Mendel segundo a qual a vida animal não deve ser estudada a partir de indivíduos e sim a partir de uma população é extremamente correta. Os macacos de várias espécies (rhesus, chimpanzés, gorilas, etc.) vivem em bandos (Moscovici, 1977). As primeiras sociedades humanas compartilham as mesmas características das populações animais. As sociedades de caçadores-coletores também viviam em bandos (Service, 1971; Moscovici, 1977).
O interessante é descobrir alguma hipótese sobre a origem do poder a partir da transformação da sociedade. Podemos reconhecer que as sociedades de caçadores-coletores eram bastante dependentes dos recursos existentes no meio ambiente. A relação que esta sociedade mantinha com o meio ambiente é fundamental para se compreender as suas relações internas. Isto se deve ao fato de que as sociedades primitivas não possuírem as condições de produzirem seus meios de existência, mas apenas de colher ou caçar o que existe de disponível no meio ambiente.
O desenvolvimento das forças produtivas marca a origem das sociedades de classes. Tal desenvolvimento significou o desenvolvimento da “principal força produtiva”, a força de trabalho. Os seres humanos desenvolveram suas habilidades tanto manuais quanto intelectuais através destas mesmas atividades. Eles também criaram meios exteriores que permitiam-lhes enfrentar os obstáculos do meio ambiente. Tais meios foram armas, técnicas, consciência de aspectos do meio ambiente (tanto do mundo animal quanto vegetal), etc.
Isto já vinha ocorrendo desde a época das sociedades de caçadores-coletores, nas quais se utilizavam armas, tais como arcos e flechas, machados de pedra, etc., e também se desenvolvia a consciência relacionada com o processo da caça, onde se buscava descobrir as formas mais adequadas de encontrar e submeter a caça.
Este desenvolvimento produziu um aumento populacional, pois desta forma cai o índice de mortalidade infantil e aumenta-se a idade média de vida das pessoas, já que há o crescimento da produção, a criação de formas de defesa de outros animais mais eficientes, elevava-se a quantidade de alimentação adquirida, etc. Este crescimento populacional, por sua vez, provocou a criação de diversas regras sociais para controlá-lo. Podemos dizer, que uma das principais características deste tipo de sociedade é a busca incessante do controle sobre o aumento populacional. As regras de exogamia têm como principal objetivo controlar este crescimento. O mesmo acontece com as guerras e é este também o motivo do infanticídio realizado por algumas sociedades primitivas.
O desenvolvimento posterior se caracterizou pela aprendizagem da domesticação dos animais e da agricultura. Daí surge a transição do nomadismo ao sedentarismo. Isto tem várias conseqüências para a sociedade primitiva. Uma delas se encontra no fato de que pela primeira vez se podia falar em propriedade do solo. A agricultura abriu caminho para o domínio sobre territórios e o pastoreio abriu caminho para a propriedade de animais. Entretanto, o aparecimento da propriedade não aparece imediatamente com tal transição. Apenas a sua possibilidade está dada. Cabe lembrar que daí surge a propriedade coletiva. Há assim um crescimento da produção, o que provoca o crescimento populacional. Este crescimento já não era controlado pelas comunidades devido ao fato da produção ter aumentado. Mas aí também se revela um crescimento da divisão do trabalho. Surge a especialização do trabalho. Isto é reforçado com o desenvolvimento da cerâmica e da metalurgia. Pastores, agricultores, ferreiros, etc., componham o novo quadro de divisão do trabalho, que se limitava, na comunidade primitiva, à divisão sexual e etária do trabalho. Também surgem os sacerdotes e como veremos adiante, os guerreiros especializados.
A expansão da divisão social do trabalho não constitui ainda as classes sociais devido ao fato de sua interdependência e a existência de uma unidade social que produzia a cooperação sem haver exploração. A divisão existia mas não produzia classes justamente porque a divisão estava submersa na homogeneidade da comunidade. Entretanto, não só a possibilidade estava dada como a tendência ao surgimento das classes já existia e se manifestava. O crescimento da divisão social do trabalho provocou alterações no conjunto das relações sociais, tal como nas relações de parentesco, nas relações intertribais, no novo papel atribuído às crianças, etc.
O aumento da produção não só proporcionou um crescimento populacional como também possibilitou o surgimento da produção mercantil simples, a troca mercantil simples, o sedentarismo, a expansão territorial, etc. A guerra também se tornou mais intensa. Isto ocorreu devido a diversos motivos, sendo que três se destacavam: a) a utilização de metais como o cobre, que não é encontrado com a mesma facilidade que a pedra e que se encontra principalmente em regiões montanhosas, produziu a necessidade de expedições para tais regiões, o que certamente provocava confrontos entre tribos diferentes (sem dúvida, ao lado das tribos de agricultores e pastores continuavam existindo outras tribos, tanto de caçadores-coletores, quanto de outros tipos que poderíamos chamar de “mistos” ou “intermediários”); b) o aumento populacional que produzia “aldeias-filhas” (Gordon Childe, 1988) e, conseqüentemente, a expansão territorial; e c) o esgotamento do solo pelo seu uso sem utilização de técnicas de restauração, o que tornava necessário a mudança de território.
Esta guerra teve como principal conseqüência a formação de uma casta nova: a casta dos guerreiros. Estes se especializaram na guerra e na proteção de suas aldeias. A produção de um excedente visando a manutenção da comunidade em tempos de entre safra acabou sendo utilizada em parte para sustentar esta casta, que buscava cada vez mais se autonomizar. Os inimigos eram mortos e a descoberta da possibilidade de “domesticar” os seres humanos abriu caminho para a instituição da escravidão. Podemos colocar a hipótese de que foram os guerreiros que se tornaram os primeiros senhores de escravos e formaram uma união para manter o seu domínio sobre os escravos e posteriormente sobre toda a comunidade. Nasce, assim, a sociedade de classes. Esta união de guerreiros para manter o controle dos escravos e posteriormente de toda sociedade é o que chamamos de estado (que devido ao fetichismo da linguagem sua inicial é escrita geralmente com letra maiúscula e aqui rompemos com tal idolatria). Desta forma, as sociedades de classes e o estado surgem simultaneamente, ou seja, a propriedade privada não antecede a existência do estado e o estado não antecede a existência da propriedade privada e, neste sentido, tanto alguns “anarquistas” quanto alguns “marxistas” estão equivocados. Esta é a origem da dominação, do poder. O estado surge com o surgimento da dominação de classe na produção.
O modo de produção escravista se expande e demonstra o seu potencial econômico subjugando todas as outras formas de produção e o desenvolvimento da troca mercantil simples acabou proporcionando o comércio de escravos e o surgimento de uma nova forma de transformar os homens e mulheres livres em escravos: através da dívida. A moeda, já em uso nesta forma de sociedade, e a troca mercantil simples marcariam um meio adicional de se conseguir escravos, a principal fonte de riquezas do escravismo antigo.
É assim que surge a sociedade de classes. A opressão da mulher, no verdadeiro sentido do termo e não no sentido fantasioso que se vê em certas concepções, surge a partir daí, embora as relações sociais entre os sexos já tivesse começado a alterar-se durante o período de transição. A mulher livre passava a ter uma posição inferior no interior da unidade de produção e a escravização das mulheres se tornou comum na sociedade escravista. As mulheres foram transformadas, ideologicamente, em seres inferiores e equivalentes aos escravos e estrangeiros, ou seja, possuindo um estatuto social e político inferior. No plano social, o trabalho das mulheres livres não era compensado, pois era revertido para o marido, devido à instauração da monogamia e assim se pode instaurar o processo de herança da propriedade e a opressão da mulher pelo homem.
Em outros lugares, em especial na Ásia, houve uma forma diferente de transição para a sociedade de classes. Trata-se do surgimento não do modo de produção escravista e sim do modo de produção tributário, também chamado de modo de produção asiático. Este se caracterizava pelo surgimento de um grupo de pessoas que controlava as diversas comunidades produtoras através de um poder centralizado e realizava a exploração através da cobrança de tributos justificada pela realização de tarefas coletivas de grande envergadura, tal como a irrigação de terras não aptas para a produção. Aqui também o estado surge junto com as classes sociais. A burocracia tributária domina os aldeões e lhes explora, ou seja, a classe proprietária é ao mesmo tempo a classe dirigente.
No modo de produção escravista, os senhores de escravos dominam estes nas unidades de produção e o controle sobre eles e demais classes e frações de classes é realizado pelo poder coletivo desta classe, o estado. Surge uma divisão no interior da classe dominante entre os que se voltam apenas para a exploração na unidade de produção e aqueles que cuidam da manutenção destas relações, ou seja, se aquartelam no estado. No modo de produção tributário, esta divisão não ocorre e esta é uma das principais diferenças entre estes dois modos de produção. Nesta forma de dominação, marcada pelo conflito entre dominantes e dominados, ou seja, pela luta de classes, surge momentos de crise e de decadência. Abre-se espaço para a formação de novas formas de sociedade. Na Europa ocidental, ocorreu a transição para o modo de produção feudal, o que significou a transição da exploração do escravo pela exploração do servo. Posteriormente, neste mesmo continente, surgiria o modo de produção capitalista, uma nova forma de exploração de classe, marcada pela dominação da classe capitalista sobre a classe operária. Este, com sua tendência expansionista, tomou conta do mundo ou, segundo a expressão de Marx, criou “um mundo a sua imagem”.
Enfim, podemos dizer que a origem do poder significa a origem do estado, das classes sociais, da propriedade privada, etc. Isto tudo significa apenas modos de ver a mesma coisa, são aspectos indissoluvelmente ligados. Neste sentido, o poder, isto é, a relação de dominação, surge com as classes sociais e o seu par inseparável, o estado.
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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo . A Origem da Dominação. Revista Possibilidades, Goiânia, v. 04, 26 ago. 2004.
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