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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A Origem da Dominação

A Origem da Dominação


Como surgiu o poder? Esta é uma pergunta que já recebeu muitas respostas. Hoje, esta resposta possui uma versão bastante difundida, que é defendida por diversas pessoas, principalmente ligadas à teoria antropológica. Segundo esta abordagem, a dominação do sexo feminino precedeu a dominação de classe e por conseguinte é aí que reside a origem do poder. A versão marxista apresenta sua tese de que é com o surgimento das classes sociais que aparece o poder.


É daí que surgem as duas visões sobre a opressão da mulher: o marxismo –com raras exceções influenciadas pela antropologia)–, defende a tese da existência do matriarcado, e as antropólogas “feministas” e os antropólogos em geral, com poucas exceções (sendo que na maioria destas há a influência do marxismo), defendem a tese da subordinação universal da mulher. São duas posições que se apresentam como duas teorias do surgimento do poder. Ambas, entretanto, apresentam problemas, como veremos a seguir. Mas elas deixam claro uma coisa e tal coisa será o ponto de partida do nosso estudo: a questão da origem da dominação da mulher é um elemento na história da humanidade que poderá contribuir com a resposta sobre a questão da origem do poder.

A tese do matriarcado teve como primeiros defensores as figuras de Bachofen e Morgam. Estes dois “precursores da antropologia”, como se costuma dizer, ao analisarem os mitos das sociedades antigas ou então as sociedades indígenas, observaram o considerável poder que as mulheres possuíam diante dos homens. Aperfeiçoando e se baseando no material recolhido por estes dois pesquisadores, Marx e principalmente Engels lançariam a idéia de que existiu um matriarcado antes do surgimento da sociedade de classes e que o aparecimento das classes sociais seria o fator que teria provocado a dominação masculina sobre a mulher. Alguns poucos antropólogos e outros cientistas sociais aceitam ainda hoje, se baseando em novos dados, esta tese.

Entretanto, a partir do surgimento da obra de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, e, posteriormente, de Claude Lévi-Strauss, Estruturas Elementares do Parentesco, tornou-se comum refutar a idéia de que tenha existido um matriarcado e a se defender a tese de que a subordinação da mulher é universal. Tal idéia ganhou penetração no movimento feminista graças a obra de Beauvoir e na antropologia graças ao livro de Lévi-Strauss. Antropólogos, antropólogas, antropólogas feministas, feministas culturalistas, passaram a fazer parte daqueles que postulam a existência da subordinação universal da mulher. As raras exceções se deviam a influência do marxismo.

Ocorre, porém, que desde a obra de Simone de Beauvoir existe uma ambigüidade não resolvida. Para esta representante do existencialismo, não se nasce mulher, mas torna-se mulher e sempre houve a subordinação da mulher, pois esta é uma “condição natural”. Entretanto, ela pergunta a si mesma sobre o início da subordinação da mulher:

mas uma questão imediatamente se apresenta: como tudo isso começou? Compreende-se que a dualidade dos sexos, como toda dualidade, se tenha traduzido num conflito. Compreende-se que, se um dos dois conseguisse impor sua superioridade, esta deveria estabelecer-se como absoluta. Resta explicar por que o homem venceu desde o início” (Beauvoir, 1978, p. 19).

Ora, se é universal, então não surgiu, sempre existiu. Neste sentido, a formulação é contraditória. O natural não teve começo, pois a naturalidade de algo vem do desenvolvimento espontâneo. É somente quando o ser humano interfere através da cultura é que se rompe com a natureza. Sendo assim, não há sentido em dizer que é natural e simultaneamente perguntar pelo começo. De onde vem esta ambigüidade?

Ela vem da ambigüidade comum daqueles que são oprimidos e buscam sua libertação, mas não conseguem fazê-lo de forma autônoma. Em outras palavras, devido a esta falta de autonomia os oprimidos utilizam as concepções, linguagem e ideologia dos dominantes para se efetivar uma crítica da dominação, mas tal crítica é limitada justamente pelo motivo de que estes oprimidos não conseguiram se libertar totalmente dos dominantes. Por isto, apenas podem postular uma libertação parcial, utilizando-se de uma concepção parcialmente liberada da ideologia dominante.

A tese da subordinação universal da mulher possui outros defensores nos dias de hoje. Este é o caso de antropólogas que buscam refutar Bachofen. É isto que tentou fazer a antropóloga Joan Bamberger. Segundo ela, Bachofen teria analisado os mitos das sociedades primitivas e uma análise dos mitos pode revelar que quando eles falam de um “governo feminino” é para justificar e demonstrar que tal governo é indesejável e que as mulheres perderam-no por que não sabiam utilizá-lo (Bamberger, 1978). Pois bem, tal tese seria até certo ponto aceitável se ela tivesse analisado os mesmos mitos que Bachofen.

Ocorre, porém, que ela analisou mitos do continente americano e, assim, sua refutação de Bachofen é apenas uma comparação entre dois temas de estudo diferentes. Sociedades e mitos diferentes. Uma análise desmistificadora deveria ter analisado o mesmo tema. Além disso, o fato de que os mitos descritos por Bamberger retratarem um período de “governo feminino” significa que elas tiveram o poder de fato ou então que podem conquistá-lo, pois, caso contrário, qual seria o motivo de se criar tais representações sobre o mal que é o governo feminino? Esta interpretação dos mitos retira o contexto social no qual eles foram produzidos e desconhece o seu caráter simbólico. Na verdade, no mito não se fala de “governo feminino” e o que ele retrata só pode ser compreendido levando-se em conta não só a relação mulheres-homens, mas também todas as demais relações sociais.

Além disso, não se entende como os homens, superiores naturais e universais, segundo este tipo de abordagem, poderiam perder tempo criando fabulosas estórias sobre o “desgoverno feminino”, se as pobres e universalmente subordinadas mulheres não tivessem nenhuma condição de implantar o seu domínio. Aliás, esta postura reflete bem a visão de vítima daqueles oprimidos que não possuem um projeto de libertação. Eternas vítimas da história, da natureza, do dominante.

Na verdade, não se pode provar a existência de uma subordinação universal da mulher. Isto se deve ao fato de que a própria noção de subordinação (tal como muitas outras noções correlatas ou não, tal como “governo”, hierarquia, etc.) apresenta dificuldades quando aplicada às sociedades primitivas ou indígenas. O que é a subordinação? O uso desta palavra, neste caso, tem um sentido claramente não-marxista. Subordinação, Sub-ordem, Hierarquia, Estratificação. Tais são as palavras que vêem para substituir a teoria marxista das classes sociais. A mulher subordinada significa que ela constitui uma sub-ordem. Assim, existem ordens a, b, c, d, e assim por diante, sendo que as primeiras possuem, no que diz respeito às sociedades, mais poder, prestigio, autoridade, ou seja, estão no cume da pirâmide da hierarquia social, da estratificação. Desta forma, se destrói a visão da totalidade e se isola relações (que passam a ser, na ideologia feminista mais recente, de “gêneros”...), criando mais uma ideologia, inversão da realidade.

Neste sentido, existia subordinação da mulher? Bom, seria muito difícil falar em ordens numa sociedade que os próprios antropólogos chamam de “holistas”. Além disso, todas as categorias utilizadas para retratar isto, seriam deslocadas em tais sociedades, pois poder, prestigio, hierarquia, estratificação, etc., são expressões ilusórias das relações sociais em nossa sociedade. Aliás, é o estruturalismo que utiliza a expressão subordinação no estudo das relações de parentesco nas sociedades simples. A concepção estruturalista reproduz uma posição que é hegemônica na concepção positivista: busca criar um modelo para encaixar a realidade. A matemática e a lingüística, podem muito bem falar em subordinação, seja de números ou de orações. A ideologia das ordens vem para justificar a sociedade existente, pois diz que a divisão da sociedade em ordens (ao invés de classes e mesmo quando se utiliza esta expressão é no interior de uma concepção de hierarquia e estratificação) sempre existiu e por isso irá continuar existindo. Podemos dizer que existem, factualmente, ordens, mas na ideologia tais ordens são apresentadas como dados naturais (o que torna possível sua universalização) e a-históricos (logo, universais), pois se omite o seu processo de formação, reprodução, os seus fundamentos sócio-históricos. Assim, existe subordinação na sociedade capitalista, mas sua gênese e reprodução é omitida e só resta os dados naturais, comprovados por fatos transformados em fetiches.

Assim, o que se vê é que são duas posições antagônicas a respeito da “dominação masculina” e que este antagonismo não é resultado da visão das sociedades primitivas ou indígenas e sim das contradições da nossa sociedade, que é onde se produzem as categorias, ideologias, visões de mundo, “métodos”, com os quais se analisa ao outras sociedades. O antagonismo está em nossa sociedade. A tese da subordinação universal da mulher é uma ideologia burguesa e nada mais do que isto. Ela projeta e assim naturaliza e universaliza uma forma de opressão desta sociedade, e assim contribuiu com sua reprodução.

E a tese do matriarcado? Já se disse que ela foi aceita tanto pelos adeptos do socialismo quanto por extremistas de direita (Fromm, 1977). Na verdade, o que se pode perguntar é se é possível ter existido um “governo feminino” numa sociedade simples. É difícil comprovar tal tese, mas independente dos fatos que podem elucidar a questão, é preciso dizer que não se trata de “governo feminino”, pois não há governo em tais sociedades. Trata-se de uma utilização indevida de uma noção que se aplica apenas às sociedades de classes. Neste sentido, nunca houve matriarcado. Mas se observarmos o que disse Engels (1988), veremos que ele utilizou a palavra “matriarcado” apenas 5 vezes, sendo que utilizava de preferência a expressão “direito materno” (considerando mesmo esta expressão, utilizada originalmente por Bachofen, inexata, pois não existia “direito” nas sociedades primitivas, e isto revela que Engels era muito mais cuidadoso do que muitos antropólogos de hoje, que falam, de forma ideológica, sobre “governo” e outras expressões inaplicáveis nas sociedades simples).

O que significava matriarcado na concepção de Engels? Para ele, o matriarcado representava o fato de que a mulher possuía um “prestígio” e uma posição muito superior a que a mulher encontra nos dias de hoje. Significava também que a descendência era definida pela linha materna (Engels, 1988). Portanto, Engels nunca falou de algo como um “governo feminino”, embora por vezes ele colocava a opinião, retirada dos dados que lhe eram disponíveis na época, de que elas detinham a decisão sobre as questões mais importantes das sociedades primitivas. No sentido restrito apresentado por Engels, não há nenhuma prova de que o “matriarcado” não tenha existido.

O problema, entretanto, está não na discussão da existência de um matriarcado ou não e sim na da existência da subordinação universal da mulher ou não. No primeiro caso, temos uma idéia de que o poder sempre existiu, ou seja, que ele é constitutivo do social. Assim, a abolição do poder seria impossível, pois seria anti-social.

Na verdade, como já colocamos anteriormente, a tese da subordinação universal da mulher não tem uma fundamentação convincente. As pesquisas das sociedades simples são feitas com esquemas analíticos deficientes (que são produtos da mentalidade da sociedade contemporânea, capitalista, e, portanto, estão carregados de preconceito étnico) e uma ideologia típica da sociedade existente (expressa pelos métodos utilizados: estruturalismo, funcionalismo, etc.). É bastante difícil para um ser humano criado em nossa sociedade imaginar uma outra sociedade sem hierarquia, sem poder, sem divisão, etc., e significa uma limitação na apreensão da especificidade das demais sociedades. A linguagem, os métodos, as hipóteses, etc., são produzidas na sociedade capitalista contemporânea e são, na verdade, na grande maioria dos casos, uma projeção desta sobre as sociedades simples. Aliás, tal visão se projeta não só sobre as sociedades simples mas até mesmo sobre as “sociedades animais”, onde se vê, entre outras coisas, hierarquia, que passa, assim, a ser considerada universal (Moscovici, 1977).

A idéia da subordinação da mulher é fundamentada na sua situação inferior nas sociedades simples ou então numa nova interpretação dos mitos indígenas. Novos dados colhidos, entretanto, refutam a fundamentação que se baseia na situação inferior da mulher (Sacks, 1980; Moore, 1991). Resta, então, a fundamentação baseada nos mitos. Esta é muito mais questionável, pois os mitos podem ser interpretados de mil e uma maneiras, inclusive sobre formas extremamente arbitrárias e deslocadas da realidade no qual eles são produzidos.

Apresentar uma interpretação diferente sobre os mitos que colocam a mulher numa posição inferior, por exemplo, pode ilustrar a limitação deste tipo de análise e também observar a flexibilidade com que um mito ou qualquer outra representação cultural oferece para sua interpretação. Uma interpretação alternativa é a de que os mitos quando colocam a mulher como perigosa, feiticeira, etc., não expressa a visão da mulher em si e sim algo que ela representa. Isto é perfeitamente aceitável tendo-se em vista que o mito se manifesta sob uma linguagem simbólica. Nas sociedades simples as relações de parentesco são marcadas pela regra da exogamia, onde um homem de um clã não pode se casar com uma mulher do mesmo clã e vice-versa. Assim, ele irá se casar com uma mulher do outro clã. As relações entre os clãs que compõem uma tribo são marcadas pela necessidade de retribuição, tanto de pessoas (casamento) quanto de bens (presentes, alimentos, etc.). Assim, podemos interpretar estes mitos como sendo expressão não da visão da mulher em geral ou de todas as mulheres e sim uma utilização da mulher para simbolizar o outro clã, o que reflete uma oposição entre clãs e não entre homens e mulheres. Aliás, segundo alguns antropólogos, a mãe não se inclui nunca entre as mulheres dos quais se desconfia.

Também seria útil analisar a interpretação de Lévi-Strauss sobre a “troca de mulheres”. Ele diz que, de acordo com as regras de exogamia, são os homens que trocam as mulheres e não vice-versa (Lévi-Strauss, 1982). Ora, tal interpretação pode ser questionada, pois o que garante que são as mulheres que são trocadas e não os homens? O simples fato da mulher ir para o clã do homem não é suficiente para provar isto, pois o que é a troca? Uma troca ocorre quando alguém oferece algo em retribuição à outra coisa, ou seja, X oferece um bracelete em troca de um colar que recebe de Y. Portanto, há aqui uma relação social entre dois indivíduos (X e Y) e uma transação de dois objetos (bracelete e colar). Esta relação ocorre no contexto das regras de exogamia? É muito difícil alguém dizer isto, pois se persiste uma relação social não entre indivíduos e sim entre grupos de indivíduos (clãs), não há entretanto a transação entre dois objetos, pois se o que se troca são as mulheres, elas são trocadas pelo quê?

Sem dúvida, Lévi-Strauss e seus discípulos poderiam dizer que as mulheres são trocadas por outras mulheres, pois um homem ao adquirir uma mulher de um clã aceita doar todas as mulheres do seu clã a outro clã. Os objetos da transação seriam as mulheres. Esta concepção retoma o velho individualismo de nossa sociedade e o projeta sobre as sociedades simples, pois na verdade a troca ocorre entre clãs e não entre indivíduos, ou seja, não são os homens enquanto indivíduos e sim os clãs que realizam a troca. Em outras palavras, se o clã X oferece uma mulher, resta saber o que ele recebe em retribuição. Dizer que é outra mulher só faria sentido se esta relação ocorresse entre apenas dois clãs, o que não ocorre na maioria dos casos, que envolvem 4 ou 8 clãs e as regras de exogamia diz que o clã X deve buscar parceiros no clã Y, mas este deve buscá-los no clã Z e este, por sua vez, no R e (no caso de quatro clãs) este no X. Desta forma, o clã X ofereceu uma mulher para o clã Y não este não lhe retribuiu com nada. Assim, vê-se que não há troca nenhuma. Se deixarmos de lado quem vai residir no clã de quem, poderíamos aplicar este esquema defeituoso de análise para dizer que o que existe é uma troca de homens. Para se utilizar a idéia de troca teria que se dizer que o que se troca é mulheres por homens ou homens por mulheres e neste sentido não há troca de mulheres e sim troca de homens por mulheres ou vice-versa. Mas como esta relação ocorre entre clãs, então o mais correto é se afirmar que não existe troca nesta relação. O que existe é uma relação social e a idéia de troca não passa de um reflexo da mentalidade da sociedade capitalista que se projeta sobre as sociedades indígenas, onde não há troca de mulheres.

Outra resposta é a de que em troca das mulheres se recebe pequenos objetos (facas, por exemplo) ou animais (porco, por exemplo). Mas aí não se poderia falar em troca de mulheres e sim em troca de mulheres por objetos. A troca mercantil é uma troca de coisas que se apresentam como equivalentes (mercadoria por mercadoria, que podem sem dúvida ter valores diferentes). A troca não-mercantil é uma troca que não precisa possuir elementos materiais para se manifestar e não possui a necessidade de retribuição imediata. A questão dos presentes relacionados com os “casamentos” significa não uma troca e sim um sinal de amizade e nada mais do que isso.

Mesmo se houvesse tal troca, deveria-se reconhecer que quem a realiza são os clãs e não os homens e isto significa que não há subordinação das mulheres. O próprio Lévi-Strauss, que fala que são os homens que trocam as mulheres, apresenta afirmações, quando se refere ao pedido de casamento entre os bosquímanos da África do Sul, que refutam tal idéia:

Os pais da moça, solicitados por um intermediário, respondem: somos pobres, não podemos nos permitir entregar nossa filha. O pretendente visita então sua futura sogra e diz: vim falar com a senhora; se morrer, eu a enterrarei, se seu marido morrer, eu o enterrarei. A isso se segue imediatamente os presentes” (Lévi-Strauss, 1982, p. 105).

Os itálicos não são de Lévi-Strauss, pois isto significaria reconhecer que se há uma troca de mulheres, o pretendente deveria se dirigir ao pai e não a mãe da pretendida. Isto revela antes de tudo a visão sexista e carregada de preconceito étnico que este antropólogo possui das sociedades simples. Para ele, como é comum em nossa sociedade, o homem é o sujeito e a mulher é o objeto e o primeiro controla o segundo. Visão, portanto, sexista.

Se não há troca de mulheres, então não há necessidade de refutar as teses que buscam explicá-las, tal como a de Godelier, que afirma que a troca de mulheres ocorre pela necessidade dos “indígenas” controlarem as “produtoras de força de trabalho” (Godelier, 1980).

O que resta explicar é a origem da dominação. A origem da dominação masculina não precede a dominação de classes pelo simples fato de que nas sociedades primitivas, assim como nas sociedades indígenas, não existe dominação da mulher. Por isso, a questão a ser respondida não é sobre a origem da dominação da mulher e sim a origem da dominação de classe.

O processo histórico que culminou com a formação das sociedades de classes se caracterizou por ser longo. Não cabe aqui remontar o processo de transição da animalidade para a humanidade, que foi extremamente longa, tal como vários pesquisadores reconhecem (Geertz, 1980; Moscovici, 1977; Leontiev, 1980; Engels, 1980). Mas é necessário colocar em evidencia a existência dessa transição. Sem dúvida, o ser humano foi o resultado de um longo processo histórico, ao contrário do que pensam aqueles que consideram que ele surgiu de repente, em um momento que seria um “ponto crítico”.

A vida animal é uma vida comunitária e não é desprovida de laços entre os seres que compõem uma determinada população animal. A teoria de Mendel segundo a qual a vida animal não deve ser estudada a partir de indivíduos e sim a partir de uma população é extremamente correta. Os macacos de várias espécies (rhesus, chimpanzés, gorilas, etc.) vivem em bandos (Moscovici, 1977). As primeiras sociedades humanas compartilham as mesmas características das populações animais. As sociedades de caçadores-coletores também viviam em bandos (Service, 1971; Moscovici, 1977).

O interessante é descobrir alguma hipótese sobre a origem do poder a partir da transformação da sociedade. Podemos reconhecer que as sociedades de caçadores-coletores eram bastante dependentes dos recursos existentes no meio ambiente. A relação que esta sociedade mantinha com o meio ambiente é fundamental para se compreender as suas relações internas. Isto se deve ao fato de que as sociedades primitivas não possuírem as condições de produzirem seus meios de existência, mas apenas de colher ou caçar o que existe de disponível no meio ambiente.

O desenvolvimento das forças produtivas marca a origem das sociedades de classes. Tal desenvolvimento significou o desenvolvimento da “principal força produtiva”, a força de trabalho. Os seres humanos desenvolveram suas habilidades tanto manuais quanto intelectuais através destas mesmas atividades. Eles também criaram meios exteriores que permitiam-lhes enfrentar os obstáculos do meio ambiente. Tais meios foram armas, técnicas, consciência de aspectos do meio ambiente (tanto do mundo animal quanto vegetal), etc.

Isto já vinha ocorrendo desde a época das sociedades de caçadores-coletores, nas quais se utilizavam armas, tais como arcos e flechas, machados de pedra, etc., e também se desenvolvia a consciência relacionada com o processo da caça, onde se buscava descobrir as formas mais adequadas de encontrar e submeter a caça.

Este desenvolvimento produziu um aumento populacional, pois desta forma cai o índice de mortalidade infantil e aumenta-se a idade média de vida das pessoas, já que há o crescimento da produção, a criação de formas de defesa de outros animais mais eficientes, elevava-se a quantidade de alimentação adquirida, etc. Este crescimento populacional, por sua vez, provocou a criação de diversas regras sociais para controlá-lo. Podemos dizer, que uma das principais características deste tipo de sociedade é a busca incessante do controle sobre o aumento populacional. As regras de exogamia têm como principal objetivo controlar este crescimento. O mesmo acontece com as guerras e é este também o motivo do infanticídio realizado por algumas sociedades primitivas.

O desenvolvimento posterior se caracterizou pela aprendizagem da domesticação dos animais e da agricultura. Daí surge a transição do nomadismo ao sedentarismo. Isto tem várias conseqüências para a sociedade primitiva. Uma delas se encontra no fato de que pela primeira vez se podia falar em propriedade do solo. A agricultura abriu caminho para o domínio sobre territórios e o pastoreio abriu caminho para a propriedade de animais. Entretanto, o aparecimento da propriedade não aparece imediatamente com tal transição. Apenas a sua possibilidade está dada. Cabe lembrar que daí surge a propriedade coletiva. Há assim um crescimento da produção, o que provoca o crescimento populacional. Este crescimento já não era controlado pelas comunidades devido ao fato da produção ter aumentado. Mas aí também se revela um crescimento da divisão do trabalho. Surge a especialização do trabalho. Isto é reforçado com o desenvolvimento da cerâmica e da metalurgia. Pastores, agricultores, ferreiros, etc., componham o novo quadro de divisão do trabalho, que se limitava, na comunidade primitiva, à divisão sexual e etária do trabalho. Também surgem os sacerdotes e como veremos adiante, os guerreiros especializados.

A expansão da divisão social do trabalho não constitui ainda as classes sociais devido ao fato de sua interdependência e a existência de uma unidade social que produzia a cooperação sem haver exploração. A divisão existia mas não produzia classes justamente porque a divisão estava submersa na homogeneidade da comunidade. Entretanto, não só a possibilidade estava dada como a tendência ao surgimento das classes já existia e se manifestava. O crescimento da divisão social do trabalho provocou alterações no conjunto das relações sociais, tal como nas relações de parentesco, nas relações intertribais, no novo papel atribuído às crianças, etc.

O aumento da produção não só proporcionou um crescimento populacional como também possibilitou o surgimento da produção mercantil simples, a troca mercantil simples, o sedentarismo, a expansão territorial, etc. A guerra também se tornou mais intensa. Isto ocorreu devido a diversos motivos, sendo que três se destacavam: a) a utilização de metais como o cobre, que não é encontrado com a mesma facilidade que a pedra e que se encontra principalmente em regiões montanhosas, produziu a necessidade de expedições para tais regiões, o que certamente provocava confrontos entre tribos diferentes (sem dúvida, ao lado das tribos de agricultores e pastores continuavam existindo outras tribos, tanto de caçadores-coletores, quanto de outros tipos que poderíamos chamar de “mistos” ou “intermediários”); b) o aumento populacional que produzia “aldeias-filhas” (Gordon Childe, 1988) e, conseqüentemente, a expansão territorial; e c) o esgotamento do solo pelo seu uso sem utilização de técnicas de restauração, o que tornava necessário a mudança de território.

Esta guerra teve como principal conseqüência a formação de uma casta nova: a casta dos guerreiros. Estes se especializaram na guerra e na proteção de suas aldeias. A produção de um excedente visando a manutenção da comunidade em tempos de entre safra acabou sendo utilizada em parte para sustentar esta casta, que buscava cada vez mais se autonomizar.  Os inimigos eram mortos e a descoberta da possibilidade de “domesticar” os seres humanos abriu caminho para a instituição da escravidão. Podemos colocar a hipótese de que foram os guerreiros que se tornaram os primeiros senhores de escravos e formaram uma união para manter o seu domínio sobre os escravos e posteriormente sobre toda a comunidade. Nasce, assim, a sociedade de classes. Esta união de guerreiros para manter o controle dos escravos e posteriormente de toda sociedade é o que chamamos de estado (que devido ao fetichismo da linguagem sua inicial é escrita geralmente com letra maiúscula e aqui rompemos com tal idolatria). Desta forma, as sociedades de classes e o estado surgem simultaneamente, ou seja, a propriedade privada não antecede a existência do estado e o estado não antecede a existência da propriedade privada e, neste sentido, tanto alguns “anarquistas” quanto alguns “marxistas” estão equivocados. Esta é a origem da dominação, do poder. O estado surge com o surgimento da dominação de classe na produção.

O modo de produção escravista se expande e demonstra o seu potencial econômico subjugando todas as outras formas de produção e o desenvolvimento da troca mercantil simples acabou proporcionando o comércio de escravos e o surgimento de uma nova forma de transformar os homens e mulheres livres em escravos: através da dívida. A moeda, já em uso nesta forma de sociedade, e a troca mercantil simples marcariam um meio adicional de se conseguir escravos, a principal fonte de riquezas do escravismo antigo. 

É assim que surge a sociedade de classes. A opressão da mulher, no verdadeiro sentido do termo e não no sentido fantasioso que se vê em certas concepções, surge a partir daí, embora as relações sociais entre os sexos já tivesse começado a alterar-se durante o período de transição. A mulher livre passava a ter uma posição inferior no interior da unidade de produção e a escravização das mulheres se tornou comum na sociedade escravista. As mulheres foram transformadas, ideologicamente, em seres inferiores e equivalentes aos escravos e estrangeiros, ou seja, possuindo um estatuto social e político inferior. No plano social, o trabalho das mulheres livres não era compensado, pois era revertido para o marido, devido à instauração da monogamia e assim se pode instaurar o processo de herança da propriedade e a opressão da mulher pelo homem.

Em outros lugares, em especial na Ásia, houve uma forma diferente de transição para a sociedade de classes. Trata-se do surgimento não do modo de produção escravista e sim do modo de produção tributário, também chamado de modo de produção asiático. Este se caracterizava pelo surgimento de um grupo de pessoas que controlava as diversas comunidades produtoras através de um poder centralizado e realizava a exploração através da cobrança de tributos justificada pela realização de tarefas coletivas de grande envergadura, tal como a irrigação de terras não aptas para a produção. Aqui também o estado surge junto com as classes sociais. A burocracia tributária domina os aldeões e lhes explora, ou seja, a classe proprietária é ao mesmo tempo a classe dirigente.

No modo de produção escravista, os senhores de escravos dominam estes nas unidades de produção e o controle sobre eles e demais classes e frações de classes é realizado pelo poder coletivo desta classe, o estado. Surge uma divisão no interior da classe dominante entre os que se voltam apenas para a exploração na unidade de produção e aqueles que cuidam da manutenção destas relações, ou seja, se aquartelam no estado. No modo de produção tributário, esta divisão não ocorre e esta é uma das principais diferenças entre estes dois modos de produção. Nesta forma de dominação, marcada pelo conflito entre dominantes e dominados, ou seja, pela luta de classes, surge momentos de crise e de decadência. Abre-se espaço para a formação de novas formas de sociedade. Na Europa ocidental, ocorreu a transição para o modo de produção feudal, o que significou a transição da exploração do escravo pela exploração do servo. Posteriormente, neste mesmo continente, surgiria o modo de produção capitalista, uma nova forma de exploração de classe, marcada pela dominação da classe capitalista sobre a classe operária. Este, com sua tendência expansionista, tomou conta do mundo ou, segundo a expressão de Marx, criou “um mundo a sua imagem”.

Enfim, podemos dizer que a origem do poder significa a origem do estado, das classes sociais, da propriedade privada, etc. Isto tudo significa apenas modos de ver a mesma coisa, são aspectos indissoluvelmente ligados. Neste sentido, o poder, isto é, a relação de dominação, surge com as classes sociais e o seu par inseparável, o estado.



Referências Bibliográficas

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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo . A Origem da Dominação. Revista Possibilidades, Goiânia, v. 04, 26 ago. 2004.

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domingo, 27 de fevereiro de 2011

O ANARQUISMO SEGUNDO DANIEL GUÉRIN


O ANARQUISMO SEGUNDO DANIEL GUÉRIN

Nildo Viana

O livro de Daniel Guérin, O Anarquismo – Da Doutrina à Ação, é uma das obras mais interessantes de introdução ao anarquismo. Além dos clássicos do anarquismo, as obras de introdução ao anarquismo, tais como a de Arvon, Woodcock, Horowitz, Furth, Vega, Pilla Vares, Joll, entre outras, são importantes, mas o livro de Guérin tem algumas diferenças. Em primeiro lugar, não é apenas um exercício acadêmico de expor as diversas teses e práticas anarquistas e sim um livro engajado, fora da pretensão ilusória e prestidigitadora da ideologia burguesa da neutralidade. Em segundo lugar, Guérin consegue sair do mundo das idéias e revela a prática libertária ocorrida em algumas das mais importantes experiências históricas do anarquismo. Em terceiro lugar, coloca as idéias anarquistas no contexto histórico e assim não realiza a descontextualização e desenraizamento social, bastante comum quando se trata de história das idéias. Isto não poderia ser diferente, já que se trata de um autor como Daniel Guérin. Neste pensador, as trajetórias políticas e intelectuais se fundem no sentido de abraçar a causa libertária.

Guérin nasceu em 19 de maio de 1904 em Paris. De família burguesa e formação católica, Guérin escreveu, durante parte de sua juventude, romances e adaptações de obras literárias para o teatro e somente se tornou um militante político com o passar do tempo. Em 1925 defende sua tese de conclusão de curso em Ciência Política, A Evolução Política de Lamartine, do Legitimismo à Revolução de 1848. É a partir de 1930 que ele passa a atuar politicamente. Inicia sua militância ao lado de Pierre Monatte no sindicalismo revolucionário, através da revista Revolution Proletarianne (Revolução Proletária). Posteriormente, sob influência trotskista, inclusive do próprio Leon Trotsky, atua na SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária), fundada em 1905 através da fusão dos seguidores de Jules Guedes e Jean Jaurés, organização na qual haviam entrado militantes trotskistas a partir de 1930 e mais tarde adotará o nome de Partido Socialista Francês. Ele publicou suas primeiras obras importantes neste período, tal como La Peste Brune (A Peste Marrom), escrito em 1932 a partir do relato de sua viagem para a Alemanha ocorrida neste mesmo ano e Fascisme et Grand Capital (Fascismo e Grande Capital), publicado em 1936. As duas obras analisam o fenômeno nazi-fascista, sendo a segunda uma pormenorizada e essencial análise da relação do grande capital e do fascismo.

Ainda na SFIO se alia à Esquerda Revolucionária, grupo animado por Marceau Pivert. Acompanha este último após a exclusão da SFIO na fundação do Partido Socialista Operário e Camponês, que critica a SFIO por ser reformista e o Partido Comunista Francês por ser stalinista. Participa das ocupações de fábrica durante as ações da Frente Popular em combate ao nazi-fascismo, apóia a Revolução Espanhola, se transfere para a Noruega, sendo encarregado em Oslo de criar um secretariado internacional da Frente Operária Contra a Guerra em oposição à guerra imperialista. Além disso, ainda colabora clandestinamente com o trotskismo de 1943 a 1945.

Em 1947 muda para os Estados Unidos, onde fica até 1948, quando é expulso devido à política marchartista, e passa a atuar em estrita ligação com o movimento operário norte-americano e com o movimento negro. Nesta época, escreverá sobre ambos os movimentos, destacando seus livros Descolonização do Negro Americano, publicado em 1951, e os dois volumes (1950-1951) de Aonde vai o Povo Americano? Nesta mesma época escreve vários artigos.

No entanto, logo ele romperia com esta posição e passaria a se aproximar do anarquismo, sem abandonar o marxismo, mas se opondo radicalmente ao que ele chamava “jacobinismo”, isto é, o bolchevismo, e outras tendências que ele denominava, tal como é comum na tradição anarquista, “socialismo autoritário”. Após sua volta para a França, passa a ler as obras completas de Bakunin e sofre o impacto da emergência dos conselhos operários húngaros contra o capitalismo estatal em 1956. Uma nova fase de seu pensamento se inicia neste período, que poderia ser chamada “socialista libertária”. Passa a publicar diversas obras sobre sexualidade, colonialismo, questão racial, entre outros temas. Também passa a ser um militante do anticolonialismo. Cabe destaque ao livro Jeunesse du Socialisme Libertaire (Juventude do Socialismo Libertário), de 1959, texto no qual defende a síntese entre marxismo e anarquismo, o socialismo libertário. Em sua reedição alterada, intitulada Pour un Marxisme Libertaire (Por um Marxismo Libertário), afirma que “socialista libertário”, termo com o qual se definiu por dez anos, havia se tornado inapropriado, pois havia socialismos de todos os tipos, tal como o reformismo social-democrata, o comunismo revisionista e o humanismo adulterado. Guérin diz que precisava de uma “etiqueta própria” para ser identificado e por isso passaria a se autodenominar marxista libertário, inspirado por estudantes italianos com os quais debateu e assim se definiam.

A partir dos anos 60, Daniel Guérin irá produzir um conjunto de obras significativas, além de reeditar algumas obras já publicadas. Claro que não poderíamos deixar de citar suas obras sobre o colonialismo, a questão sexual, a Revolução Francesa, bem como as coletâneas sobre anarquismo e anarquistas que ele organizou. É justamente a partir dos anos 60 que ele produz mais intensamente sobre anarquismo e marxismo libertário, tanto organizando coletâneas (de Proudhon e Bakunin, por exemplo, até Nem Deus Nem Amo, Antologia Histórica do Anarquismo), reavaliando seu próprio pensamento e produzindo obras de destaque, tais como Estados Unidos: 1880-1950 – Movimento Operário e Camponês; O Anarquismo – Da Doutrina à Ação e Rosa Luxemburgo e a Espontaneidade Revolucionária.

Também se aliou ou atuou em diversas organizações políticas neste período, tal como o PSU – Partido Socialista Unificado, oriundo da fusão de diversos grupos e dissidências de partidos e contando com grupos minoritários luxemburguistas e trotskistas, do qual se afasta em 1962 por seu reformismo. Aproximou-se da Revista Rouge e Noir (Vermelho e Negro), periódico anarquista, e do Movimento 22 de Março, e foi um dos fundadores do MCL – Movimento Comunista Libertário, que mais tarde se fundiu com o ORA – Organização Revolucionária Anarquista, até ingressar, juntamente com George Fontenis, no UTCL – União dos Trabalhadores Comunistas Libertários, onde permanece até sua morte, em 1984. Neste ano, lança a última revisão e ampliação de sua obra Jeunesse du Socialisme Libertaire (que já havia se transformado em Pour un Marxisme Libertaire) que passa a ter o título Para uma Investigação do Comunismo Libertário.

É justamente a partir dos anos 80 e sua adesão ao UTCL que ele passa a utilizar preferencialmente a expressão “comunista libertário”, adotando posições consideradas por alguns como sendo “conselhistas”. Porém, Guérin faz questão de afastar a confusão entre o sentido em que ele usa a expressão “comunista libertário” de outros sentidos, especialmente os de Kropotkin e Isaac Puente. Segundo Guérin, Kropotkin e seus discípulos forneciam um sentido utópico a esta palavra ao sonhar com “um paraíso terrestre sem dinheiro” e com “abundância de recursos” que permitiria o livre consumo. Erro semelhante se encontrava na concepção que ele denominou “idílica” de Isaac Puente que antes de 1936 imaginou, no interior da CNT (Confederação Nacional do Trabalho) espanhola, o aparecimento de “comunas livres” numa “bela manhã”.

O livro O Anarquismo – Da Doutrina à Ação é uma obra de 1965 que continua sendo atual e uma das mais importantes sínteses do pensamento e prática anarquistas. A obra que teve inúmeras reedições em vários países, tornou-se, segundo afirma o próprio Guérin, um best-seller após o maio de 1968, movimento no qual exerceu influência. Esta obra não só continua atual como tende a preservar sua atualidade, pois é leitura fundamental que trata de questões essenciais tanto para os militantes anarquistas quanto para os marxistas libertários.

Assim, resta entender o motivo por qual esta obra tenha sido resgatada e sua persistente atualidade. Ora, na França, na década de 60, o contexto era marcado por uma social-democracia vinculada ao Partido Socialista Francês que nada tinha a ver com o projeto revolucionário. O mesmo ocorria com o Partido Comunista Francês, que foi encantado pela sereia reformista-stalinista do eurocomunismo. As seitas trotskistas, que desde a morte do seu fundador e ídolo-fetiche, Leon Trotsky, não tinham nada a oferecer e se limitavam – e não mudou nada de lá para cá – a repetir as eternas ladainhas sobre a crise da direção revolucionária e, no caso de algumas seitas, ainda repetiam dogmaticamente a tese trotskista, elaborada por Trotsky em 1940, segundo a qual o desenvolvimento das forças produtivas havia estagnado, e isto contra todas as evidências advindas do intenso desenvolvimento tecnológico proporcionado pela retomada da acumulação capitalista do pós-Segunda Guerra Mundial. Assim, a esquerda oficial nada tinha a oferecer e se acomodava tranquilamente ao poder.

Também existiram alguns grupos dissidentes, tal como o Socialismo ou Barbárie, de Castoriadis e Lefort, que realizava uma defesa da autogestão numa perspectiva administrativa e que, além disso, não apresentava grande criatividade. Este grupo contribuiu, no entanto, com a discussão sobre autogestão, embora limitada, e a crítica ao bolchevismo e capitalismo de Estado (ou “burocrático”, segundo Castoriadis) e ao retomar idéias e textos ocultados pela esquerda oficial, tal como os de Alexandra Kollontai sobre a Oposição Operária na Rússia de 1921. A Internacional Situacionista, animada por Debord, Vaneigem, Jorn e outros, era uma exceção, mas além de teses muito abstratas, vontade de escandalizar e sectarismo das constantes expulsões de Debord, não conseguiram grande ressonância, a não ser nas vésperas do Maio de 68. Isto, obviamente, não retira os méritos dos situacionistas, principalmente a contribuição para a compreensão da sociedade capitalista no período, denominada por Debord de “sociedade do espetáculo”, bem como a sua crítica ao bolchevismo e social-democracia.

Nos meios intelectuais, havia Sartre e o existencialismo, defendendo, neste período, sua união com o marxismo, em competição com o modismo estruturalista e apresentando algumas teses interessantes. No campo intelectual, o leninismo e suas diversas variantes não saíam de sua estagnação intelectual e dogmatismo, tal como no caso de Lucien Sève, crítico da psicanálise, ou então na tentativa de inovação com a união com o estruturalismo, criando o Frankenstein do “marxismo-estruturalista” de Althusser e seguidores.

O livro de Guérin, assim, representava a expressão de uma alternativa. O anarquismo poderia representar uma nova esperança. Era uma alternativa, que tinha a concorrência do situacionismo, mas que ao contrário deste, tinha um caráter mais concreto e acessível. Assim, Guérin exerce, mesmo sem grandes estardalhaços, certa influência, principalmente sobre setores da juventude. Aliado com outras obras suas, especialmente através de Jeunesse du Socialisme Libertaire ou os artigos que serão publicados em revistas (e acrescentados a esta obra na ocasião da publicação de Por um Marxismo Libertário), consegue estar presente nas lutas sociais que culminam com o Maio de 68 em Paris. A atualidade do movimento que é tema da obra O Anarquismo, e que se manifestou historicamente em 1968 e em vários acontecimentos históricos anteriores e posteriores, reforça a percepção da necessidade de sua leitura nos dias de hoje.

Neste momento, O Anarquismo passa a ser uma leitura que tem a ver diretamente com as lutas cotidianas, de busca de novos caminhos, de se pensar a prática de forma não dogmática, de agir e pensar num sentido libertário. A palavra “libertário” se presta a muita confusão. Como o próprio Guérin explica na presente obra, a expressão utilizada por Joseph Déjacque e retomada por Sébastien Faure, fez com que libertário e anarquismo se tornassem praticamente sinônimos. Porém, historicamente a palavra acabou ganhando outros sentidos e o próprio Guérin se auto-intitulava socialista libertário, mas não querendo com isso se dizer um “anarquista puro” e sim um anarquista marxista.

Posteriormente, ele escolhe “marxismo libertário”. Por fim, termina preferindo “comunismo libertário”. O que significa, então, libertário? Etimologicamente, libertário é quem luta, deseja ou defende a liberdade, no sentido autêntico do termo (não simplesmente as liberdades formais, tal como da democracia burguesa). Assim, em sentido amplo, anarquista e libertário são sinônimos, mas em sentido estrito, são coisas que podem ser distintas, pois o anarquismo não pode querer, a não ser a custa de uma forte contradição, monopolizar o caráter libertário. Por isso, é possível falar em marxismo libertário, ou comunismo libertário, tal como o faz Guérin. Sem dúvida, Guérin era libertário e o foi sendo de certa forma, passando por concepções políticas diferentes, às vezes mais anarquista, às vezes mais marxista, mas sempre libertário, embora não sem contradições e equívocos.

Talvez este seja um dos principais elementos que permitiu a Daniel Guérin exercer forte influência tanto nas lutas sociais na França no final da década de 60 quanto em milhares de militantes políticos, desde marxistas dissidentes, antibolcheviques e anti-reformistas à anarquistas. Cabe destaque, no conjunto da obra de Guérin e neste processo de influência e retomada pós-68, a obra O Anarquismo.

O Anarquismo faz um balanço necessário das idéias e práticas anarquistas, uma das melhores já produzidas. Guérin divide a obra em três partes. A primeira parte aborda as idéias-força do anarquismo; a segunda trata da sociedade futura e, na terceira, a prática anarquista durante as revoluções operárias. A primeira parte abre destaque para o pensamento anarquista, no qual o pensamento de Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Stirner e Malatesta, aparece na discussão de grandes temas da história das idéias anarquistas, tal como o problema do indivíduo, das massas, do Estado, da democracia burguesa, da organização, do termo anarquismo, entre outras. Embora se possa discordar amplamente da forma como ele expõe o pensamento destes pensadores, é visível o esforço de Guérin em mostrar a diversidade de posicionamentos no interior do pensamento anarquista e sua produção num determinado contexto histórico, bem como nas mutações que ocorreram no decorrer da história de vida destes indivíduos que fizeram eles aderirem ou se afastarem do anarquismo, aprofundarem ou recuarem no caráter libertário de seu pensamento.

A discussão sobre o termo anarquia é fundamental. Em primeiro lugar, anarquia não significa, como alguns insistem em pensar, desorganização e caos. Sem dúvida, como coloca Guérin, às vezes até mesmo Proudhon e Bakunin usam a palavra neste sentido. As práticas de anarquistas inexperientes e principalmente uma suposta adesão ao anarquismo sem conhecer os princípios básicos desta tendência, faz com que muitos supostos anarquistas reforcem, com sua prática, este preconceito. Porém, anarquia significa uma sociedade sem governo, ou seja, uma sociedade no qual não existe uma classe social – ou qualquer nome que se lhe dê – de dirigentes ou dominantes, em contraposição a uma maioria dirigida e dominada. Trata-se, nesse caso, de uma sociedade autogerida, autogovernada e, portanto, organizada, mas não burocraticamente. A crítica da burocracia não significa recusa da organização. Significa tão-somente recusa da organização burocrática em favor da auto-organização. Neste sentido, o texto de Guérin é esclarecedor e deveria ser lido por todos os que pretendem criticar o anarquismo, o que muitos fazem por preconceito e sem nenhuma leitura ou pesquisa sobre ele. Assim, poderiam evitar críticas não-fundamentadas, preconceituosas, equivocadas e inaplicáveis ao anarquismo.

A sua discussão sobre o indivíduo e as massas, também é importante, assim como a questão fundamental da recusa do Estado e da crítica da democracia burguesa. Cabe destaque para um dos tópicos do primeiro capítulo, a crítica ao socialismo autoritário. Guérin não comete injustiças, por reconhecer que Marx não se encaixava tão bem na crítica que lhe foi endereçada por Bakunin, mas mostra a validade da crítica para aqueles que em nome dele realizaram uma contra-revolução e implantaram um capitalismo de Estado, isto é, o bolchevismo. Hoje, com a bancarrota do capitalismo estatal, permanece atual a crítica ao bolchevismo que ainda insiste em sobreviver, pois suas bases sociais e psíquicas ainda existem: a burocracia e/ou a personalidade autoritária de alguns indivíduos.
Na segunda parte, dedicada à sociedade do futuro, Guérin coloca as diversas posições entre as várias tendências anarquistas existentes. Ele apresenta a concepção mutualista e federalista de Proudhon, a concepção coletivista de Bakunin e a concepção comunista libertária de Kropotkin, além de outras. É claro que esta parte da obra é uma das mais polêmicas, mesmo porque Guérin não se limita a expor as posições dos demais pensadores, mas assume suas próprias posições. Claro que ao se partir de uma determinada posição, se entra em conflito com outra, a não ser que se crie uma síntese, o que não garante consenso, pois é possível que muitos mantenham a posição inicial.

Neste sentido, Guérin contribui expondo algumas concepções e apresentando a dele, embora se possa discordar dela. O ponto mais polêmico e passível de discordância nos meios libertários se refere justamente ao problema do dinheiro. É possível, no caso do dinheiro e da remuneração, se discordar da solução dos comunistas libertários da tendência de Kropotkin, tal como faz Guérin. Mas também a solução defendida por Guérin e Santillan é questionável. Os primeiros partem do erro de pensar seres humanos totalmente livres e sem heranças negativas da sociedade capitalista, segundo argumentação de Guérin. Guérin e Santillan, por sua vez, partem do erro oposto de tomar como base os seres humanos socializados e adaptados ao modo de vida capitalista, não percebendo que, ao aceitar e propor “novas” relações adequadas a estes seres humanos, abrem uma brecha enorme para a contra-revolução. Assim, fazem tal como Lênin em sua obra Como Iludir o Povo, na qual defende que o dinheiro não desaparece na sociedade socialista, mas se torna a “nata” da sociedade, se generalizando e ampliando o seu uso. Os resultados das teses de Lênin e seu “realismo” todos conhecem.

A terceira e última parte da obra aborda a prática anarquista. Desde o isolamento do movimento operário ocorrido de 1880 a 1914, passando pela Revolução Russa de 1917, pela emergência dos conselhos de fábrica na Itália em 1919, até a Guerra Civil Espanhola, Guérin faz um apanhado histórico da prática anarquista. Depois da maré baixa até 1914, a retomada das lutas operárias conta com a presença anarquista. Isto ocorre tanto na Revolução Russa, embora de forma relativamente marginal (a não ser em locais mais precisos, tal como na Ucrânia com Nestor Machnó), e na Revolução Alemã, atuando nos conselhos operários, tal como Landauer, Musham e outros, e a breve e modesta participação no caso italiano e o papel proeminente na Revolução Espanhola.

Mas Guérin não se limita a descrever os acontecimentos históricos, pois ele faz avaliações e análises. Esta é uma parte muito importante da obra, embora cometa alguns equívocos. Este é o caso de sua afirmação de que Pannekoek confundia Conselhos Operários e ditadura bolchevista. Isto não deixa de ser curioso, porquanto ele cita a obra deste autor que leva o título de Conselhos Operários e na qual realizou uma crítica radical ao bolchevismo, especialmente no capítulo dedicado à Revolução Russa, definindo, não pela primeira vez, o regime russo como capitalismo de Estado. Mas esse pequeno deslize não compromete a reconstituição histórica que ele realiza. O dilema espanhol é o mais importante no contexto da obra, já que foi o caso no qual o anarquismo teve um papel fundamental. Sem dúvida, é possível a discordância em relação à sua explicação das dificuldades e derrota da Revolução Espanhola, mas de qualquer forma ele realizou um exercício necessário de pensar a prática revolucionária e recuperar uma das mais ricas experiências revolucionárias do século 20.

Por fim, Guérin termina sua obra apresentando, em sua conclusão, um balanço da questão da autogestão, abordando sua emergência na Iugoslávia e Argélia na década de 60. Nesta parte, ele é extremamente condescendente com o capitalismo estatal iugoslavo, bem como com o da Argélia, se iludindo com a falsa autogestão, mais uma palavra do que uma prática, como ele mesmo desconfia e coloca em certo momento do texto. Ele apenas retoma a condescendência que já havia tido com Lênin, quando citou, na segunda parte da obra, o livro O Estado e a Revolução, que teria aspectos libertários, embora posteriormente ele mostre o recuo do autor no decorrer de sua argumentação, passando a defender a centralização. Essa condescendência não lhe permite perceber que em tal livro não há nada de libertário, sendo apenas mais uma manifestação do oportunismo de Lênin. Assim, quando na conclusão apresenta que o Marechal Tito explorou “zonas libertárias” do pensamento de Marx e Lênin, encontra tanto em Tito quanto em Lênin o que não existe. Não existem burocratas libertários. Nem mesmo com zonas libertárias em seu pensamento. Os burocratas querem dirigir. Quando aceitam ou propõem a “participação” dos trabalhadores é apenas para domesticá-los e dirigir melhor.

Porém, apesar de discordâncias de pormenores, a obra de Guérin, em sua totalidade, é um avanço para a discussão sobre o anarquismo e o futuro do socialismo libertário. A necessidade de compreender e pesquisar o anarquismo no atual contexto de ampliação da exploração é visível, e isto explica o seu próprio reaparecimento. Hoje, a nova geração de anarquistas deve retomar o pensamento anarquista e impedir sua deformação e assimilação por tendências oriundas das ideologias burguesas produzidas na esfera acadêmica, retirando o seu caráter revolucionário e libertário e domesticando-o, de acordo com os interesses dominantes. Assim, a luta por uma nova sociedade, livre da exploração e da dominação, deve perceber o papel fundamental da consciência, pois a autogestão pressupõe indivíduos conscientes e libertários, bem como a autogestão das lutas, que pressupõe um desenvolvimento da consciência dos agentes deste processo. Neste sentido, a obra de Guérin ajuda a resgatar este elemento essencial para as lutas contemporâneas que é o pensamento anarquista.

O grande mérito de Guérin, presente em outras obras e que se repete nesta, é abrir o caminho para a reflexão não dogmática sobre o marxismo libertário e sobre o anarquismo, “irmãos gêmeos, irmãos inimigos”, como colocou em outra obra, embora sua referência, e daí o “inimigo”, fosse o “marxismo” autoritário. A reflexão crítica e a autocrítica são elementos fundamentais que devem seguir a práxis revolucionária e Guérin produziu obras que incentivam esta prática reflexiva, que só pode gerar efeitos benéficos para a prática libertária. O espírito libertário, portanto, reflexivo, não-dogmático, crítico, autocrítico, é a grande contribuição de obras como esta.

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Prefácio ao livro "O Anarquismo - Da Doutrina à Ação", edição brasileira a ser publicada.

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Informe e Crítica

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A crise do pseudomarxismo


A crise do pseudomarxismo
Nildo Viana


"Desde o início do século 20 se fala  em  uma  “crise do marxismo”. Apesar disso, ele continua vivo, tanto que toneladas de tinta são gastas em textos sobre sua crise. Então, se o marxismo continua vivo, há sentido em se falar de uma crise? Mas, inversamente, poder-se-ia dizer que não existe nenhuma crise no marxismo e que ele está tão forte quanto antes?"


A Crise do Pseudomarxismo


Desde o início do século 20 se fala em uma “crise do marxismo”. Apesar disso, ele continua vivo, tanto que toneladas de tinta são gastas em textos sobre sua crise. Então, se o marxismo continua vivo, há sentido em se falar de uma crise? Mas, inversamente, poder-se-ia dizer que não existe nenhuma crise no marxismo e que ele está tão forte quanto antes?

Para respondermos a estas questões, precisamos, antes, definir os conceitos utilizados, ou seja, é preciso esclarecermos o que entendemos por “crise” e por “marxismo”. Gramsci define crise como sendo um período histórico em que o velho está em estado de perecimento e o novo ainda não pode surgir. Para ele, pensando em termos históricos, o velho é a estrutura econômica estabelecida e o novo é a nova estrutura que irá substituí-la e que se expressa, inicialmente, no plano da ideologia. Está é uma definição demasiadamente estreita, pois cria uma ligação indissolúvel entre “base” e “superestrutura” e por isto este “modelo” se torna inaplicável a certos aspectos da realidade.

A definição de crise fornecida por Habermas é muito mais ampla e útil. Para Habermas, uma crise ocorre quando um sistema encontra dificuldades em se reproduzir. Esta definição, porém, também possui limitações, pois, além da utilização da noção de “sistema”, que é problemática, a idéia de crise perde toda sua radicalidade e até mesmo sua utilidade, já que o marxismo e o capitalismo, entre outros exemplos, apresentam, como uma de suas características, o fato de possuírem dificuldades em realizar sua reprodução.

A definição de Habermas pode servir como ponto de partida para uma outra que consiga apreender o significado deste fenômeno. Sendo assim, sugerimos que o conceito de crise expressa uma situação onde um determinado ser (utilizamos esta categoria em substituição à noção de sistema utilizada por Habermas) encontra dificuldades cada vez maiores para se reproduzir. Portanto, aplicando esta definição de crise ao marxismo, podemos dizer que ele só pode entrar em crise quando suas dificuldades de reprodução se tornam maiores que as que lhe são comuns.

E isto vem ocorrendo atualmente com o marxismo? Para responder a esta questão é necessário anteriormente definir o que é o marxismo. A melhor definição do marxismo, a nosso ver, foi a fornecida por Karl Korsch: ele é uma expressão teórica do movimento operário. Portanto, só pode ser considerado marxismo a teoria que seja expressão do movimento operário e isto exclui, evidentemente, tanto o “marxismo” acadêmico quanto o “marxismo” dos partidos e dos regimes de capitalismo de estado da Rússia e leste europeu. Estes “marxismos” são, na verdade, formas de deformação do marxismo e são justamente estas ideologias pseudomarxistas que estão em crise e não o marxismo autêntico.

Essa idéia de crise do marxismo se reflete nas academias e nos partidos políticos porque, de fato, existe uma crise no pseudomarxismo produzido e reproduzido nestes lugares. Marx dizia que a “ideologia dominante é a ideologia da classe dominante” e, sendo assim, as idéias das classes exploradas são marginais. Isto significa que o marxismo autêntico é um marxismo marginal – ele fica à margem das academias, do estado e dos partidos políticos.

Como a classe trabalhadora não possui os “meios de produção espiritual” (Marx), existe uma dificuldade enorme para o marxismo autêntico se reproduzir. Nos momentos históricos em que a classe trabalhadora se autonomiza, desvencilhando-se de “sua” burocracia, e começa a generalizar a autogestão de suas lutas, o marxismo passa a ter uma penetração maior na sociedade e, por isso, a classe dominante e as suas classes auxiliares buscam deformá-lo para retirar-lhe sua eficácia política.

Essa deformação, entretanto, não é, na maioria dos casos, realizada intencionalmente, pois é produto do modo de vida, dos interesses e da visão de mundo daqueles que reinterpretam o marxismo, mudando o seu caráter de classe, o que significa deformá-lo. O marxismo marginal se reproduz através da obra de indivíduos e grupos políticos não-burocráticos que buscam desenvolver e atualizar a teoria produzida por Karl Marx.

O que faz, então, o “marxismo” acadêmico e o “marxismo” dos partidos políticos e dos países pseudo-socialistas entrar em crise? A discussão em torno da “crise do marxismo”, desde o início do século, gira em torno de duas explicações: a) a “crise do marxismo” é produto das “antinomias do pensamento de Marx”, que ora enfatiza a “estrutura”, ora o “sujeito” ou, então, ora dizia que a transformação social seria resultado do desenvolvimento das forças produtivas, ora colocava que ela é produto da luta operária; b) a “crise do marxismo”, para outros, é uma conseqüência da “crise do movimento operário”.

Desde Rosa Luxemburgo, em 1903, passando por Sorel, Korsch, Deutscher, até chegar a autores contemporâneos como André Gorz, Agnes Heller, Perry Anderson e E. Laclau, a análise da “crise do marxismo” oscila entre uma ou outra destas explicações. Mas, hoje, existe um outro motivo para a atual versão da crise: a derrocada dos regimes “socialistas” da Rússia e Leste Europeu e a vitória do neoliberalismo.

A crítica ao neoliberalismo e o questionamento ao seu “sucesso” já foram feitas muitas vezes e não cabe aqui retomarmos a questão da atual “crise do capitalismo”. Trataremos somente da questão da “crise do socialismo real”. Devemos ressaltar que a Rússia e o Leste Europeu nunca foram socialistas. O marxismo autêntico, pouco conhecido por ser marginal, tanto no interior da Rússia quanto no resto do mundo, sempre caracterizou a Rússia como um capitalismo de estado. Basta citar alguns nomes de representantes do marxismo marginal que defenderam tal tese: Amadeo Bordiga, Otto Rühle, Helmutt Wagner, A. Rosemberg, A. Cilliga, Anton Pannekoek Isto sem falar em pseudomarxistas (como Tony Cliff e Charles Bettelheim, um trotskista e outro maoísta) que, de forma diferente chegaram a mesma conclusão e só por ignorância se pode falar que a teoria do capitalismo de estado é uma “tese maoísta” (mesmo porque a China de Mao Tse-Tung também consiste num capitalismo de estado).

Se os partidos políticos que tinham a URSS como “modelo de socialismo” entram em crise, isto acaba se refletindo nas academias. Ocorre um desencadeamento simultâneo da crise do “marxismo” e “socialismo”. Acontece que a situação fica mais difícil para o “marxismo” acadêmico com o ataque que lhe é dirigido pela ideologia “pós-moderna” (na verdade, pré-moderna). Isto cria uma discussão acadêmica estéril que não leva a lugar algum e, no final das contas, nenhuma das duas ideologias se refere ao marxismo, seja para atacá-lo, seja para defendê-lo, e sim as deformações dele.

Portanto, essas são as razões da crise do pseudomarxismo. Este, com ou sem crise, vai continuar existindo, enquanto o marxismo autêntico existir (pois este é a causa geradora daquele) e esta existência, por sua vez, está garantida, na sua atual forma, enquanto houver a classe trabalhadora e suas lutas, ou seja, enquanto não se encerra a “pré-história da humanidade” e se inicia sua história ou, em outras palavras, até quando permanecer a dominação capitalista e não se instaurar a autogestão social.

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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Crise do Pseudo-Marxismo. Jornal Opção, Goiânia, 1994, p. 14 - 14.

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