Capitalismo e
Desemprego:
O
Lumpemproletariado na Dinâmica da Acumulação Integral
Nildo Viana*
A
questão do desemprego é uma constante na história do capitalismo. Em
determinados momentos históricos, tal como o atual, ele assume um alto grau, o
que gera a necessidade de sua compreensão mais profunda. Sem dúvida, existem
diversas abordagens do desemprego, mas que ficam no campo da ideologia, ou
seja, fazem parte de um sistema de pensamento ilusório, marcado pela apologia e
legitimação da sociedade existente ou então não ultrapassando os limites
intransponíveis da consciência burguesa (Marx, 1988a; Zweig, 1961) e sempre se
renovando e adequando aos novos modismos acadêmicos, tal como aqueles que
entendem que o desemprego é uma “invenção” (Gautié, 1998).
O
nosso objetivo, no presente texto, é abordar a questão do desemprego a partir
da perspectiva marxista, ou seja, partindo das contribuições de Marx e outros
marxistas e utilizando o método dialético e materialismo histórico como fio
condutor da análise. É fundamental uma análise dialética da questão do
desemprego, pois é preciso superar as ideologias, bem como as simplificações e
problemas interpretativos, seja do pensamento de Marx, seja da realidade
concreta.
Uma
abordagem dialética da questão do desemprego remete, inicialmente, para o uso
das categorias fundamentais do método dialético (Marx, 1983; Korsch, 1983;
Viana, 2007a; Viana, 2007b), tais como totalidade, historicidade, determinação
fundamental, entre outras, como recurso heurístico para analisar este fenômeno
social. Sem dúvida, o tema do desemprego é típico da sociedade capitalista[1],
remete à especificidade histórica do modo de produção capitalista. Os
conceitos, como expressão da realidade (Marx, 1983; Viana, 2007b), se alteram
com a alteração desta e, portanto, existem conceitos específicos de cada modo
de produção, convivendo com conceitos gerais (o próprio conceito de modo de
produção, por exemplo). Obviamente que a questão do desemprego está intimamente
ligada à questão da totalidade da sociedade capitalista e remete a diversos
outros conceitos, entre os quais o de população, sobrepopulação relativa[2],
exército industrial de reserva, etc. Contudo, não se trata de uma “trama de
conceitos” e sim de realidade concreta. A expressão dessa realidade concreta,
sob a forma teórica, assume a forma de um universo conceitual. Nesse universo conceitual,
manifesta-se tanto conceitos universais quanto particulares.
O
primeiro elemento a ser analisado é a relação entre população e classes
sociais. As classes sociais só podem ser compreendidas no interior da
totalidade da sociedade, pois remete ao processo de divisão social do trabalho.
A população é composta por diversas classes sociais e o “excedente
populacional” ou “sobrepopulação” varia de acordo com o modo de produção. Antes
de focalizar o caso específico do modo de produção capitalista, é necessário
apresentar breves observações sobre a teoria da população de Marx e a questão
da população. A teoria da população de Marx se organiza a partir do princípio
que Korsch denominou “especificidade histórica” (Korsch, 1983; Viana, 2012a).
Cada modo de produção, possui sua dinâmica populacional específica e, portanto,
ao contrário da ideologia malthusiana (Viana, 2006), não existe lei geral e
universal da população em todas as sociedades. Tal como afirma Marx (1985, p.
110):
Em diferentes
modos de produção sociais, diferentes leis regem o aumento da população e da
sobrepopulação; a última é idêntica ao pauperismo. Estas leis diferentes se
podem reduzir simplesmente às diferentes maneiras em que o indivíduo se
relaciona com as condições de produção ou – com respeito ao indivíduo vivente –
de reprodução de si mesmo como membro da sociedade, já que o homem só na
sociedade trabalha e pratica a apropriação. A dissolução destas relações com
respeito a tal ou qual indivíduo, ou à parte da população, os colocam à margem
das condições que reproduzem essa base determinada, por fim na qualidade de sobrepopulação
e não só como privados de recursos, mas como incapazes de apropriar-se dos
meios de sobrevivência por meio do trabalho; em consequência, como pobres.
Logo,
Marx relaciona essa sobrepopulação com “paupers”,
pauperismo, marginalidade. A palavra paupers
(traduzida acima como “pobres”), existente em vários idiomas, significa
indigentes, pobres, necessitados. No capitalismo, são os “pobres” ou lumpemproletários,
para usar terminologia marxista. Essa sobrepopulação constitui uma classe
social marginal, que nem sequer pode usar sua força de trabalho e isso lhe
caracteriza como classe marginal. No entanto, graças ao fato de que a
sobrepopulação, em cada modo de produção, possui relação distinta com o modo de
produção dominante, então assume formas distintas. Em modos de produção
distintos, classe marginal distinta[3].
Segundo Marx, é apenas no modo de produção capitalista que “o pauperismo se apresenta
como resultado do trabalho mesmo, do desenvolvimento da força produtiva do
trabalho” (Marx, 1985, p. 111). Marx distingue a plebe romana, dos colonos
antigos, bem como os “bárbaros” da antiguidade.
Contudo,
o que nos interessa aqui é a sobrepopulação no modo de produção capitalista. A
abordagem de Marx sobre a sobrepopulação é fundamental e foi retomada por
alguns autores, principalmente na época da discussão sobre “marginalidade”. Sem
dúvida, o termo marginalidade é abstrato, mas a ideologia da marginalidade é
muito mais problemática, tal como sua irmã contemporânea, a ideologia da
exclusão social (Viana, 2009). No entanto, alguns autores se fundamentaram em
Marx para desenvolver essa discussão, tal como José Nun (1978) e sua tese da
“massa marginal”. Não poderemos fazer uma discussão mais profunda e nem
apresentar uma crítica a tal autor, pois ele faz uma interpretação problemática
de Marx e comete alguns equívocos que já apontamos em outro lugar (Viana, 2006).
Entre os equívocos de Nun, há a ideia de que “sobrepopulação relativa” e
“exército industrial de reserva” são coisas distintas (Viana, 2006). Sem
dúvida, sobrepopulacão relativa é um conceito muito mais geral e exército
industrial de reserva é específico ao modo de produção capitalista. Contudo, o
que ocorre é a manifestação particular de um fenômeno geral, o que é o mesmo
que dizer que o modo de produção capitalista é um modo de produção específico,
mas não deixa de ser modo de produção. Da mesma forma, o exército industrial de
reserva é uma manifestação específica da sobrepopulação relativa, mas não deixa
de ser sobrepopulação relativa. O problema da abordagem de Nun é, além de
interpretativo, a sua abordagem de inspiração estruturalista althusseriana. Contudo,
nos limitaremos a estas breves observações e voltaremos a nosso foco analítico.
A
teoria da sobrepopulação relativa no capitalismo faz emergir o conceito de
exército industrial de reserva. É aqui que a análise de Marx é extremamente
útil para qualquer teoria do desemprego. Em O
Capital, Marx apresenta a determinação fundamental do desemprego: a
acumulação de capital. Esse será, portanto, o nosso ponto de partida para
analisar a questão do desemprego. Nesse sentido, retomaremos a teoria do
exército industrial de reserva de Marx que expõe a determinação fundamental do
desemprego.
Porém,
não nos limitaremos a isto. Pois, segundo o método dialético, “o concreto é o
resultado de suas múltiplas determinações” (Marx, 1983; Hegel, 1980). Em O Capital, Marx analisa o modo de
produção capitalista[4] e
não a sociedade capitalista em sua totalidade. Ao retomarmos a totalidade da
sociedade capitalista, observaremos novas determinações. Da mesma forma, é
necessário recuperar, junto com a categoria totalidade, a de historicidade. O
modo de produção capitalista, bem como a sociedade capitalista como um todo,
são históricos, mantém sua essência, mas assumem novas formas de existência e
tais mutações não podem ser abstraídas na análise concreta e para compreender a
contemporaneidade.
O
processo de desenvolvimento capitalista é melhor compreendido a partir do
conceito de regime de acumulação. As mutações do capitalismo podem ser
entendidas como sucessão de regimes de acumulação (Viana, 2003; Viana, 2009). Esses
regimes de acumulação são formas assumidas pela acumulação de capital em
determinados momentos da história do capitalismo, formas cristalizadas de luta
de classes que se manifestam no processo de valorização, formas estatais e de
exploração internacional. Por isso dedicaremos um item para analisar a questão
do desemprego em relação com o processo de desenvolvimento capitalista,
demonstrando que a sucessão de regimes de acumulação também significa uma nova
dinâmica no processo do desemprego.
Porém,
antes de iniciar essa caminhada, é necessário esclarecer o conceito de
desemprego. Não é possível analisar um fenômeno sem ter clareza do seu
significado. No campo da pesquisa preliminar isso é possível, mas no estágio da
análise, já não é. Obviamente que a exposição difere da análise, como já dizia Marx
(1988a), e o que fazemos aqui é a exposição da análise, o que pressupõe que ela
já foi realizada. Logo, não se trata de uma construção a priori e sim a posteriori,
mas uma vez conquistada, ao ser exposta, não se começa pelo mesmo procedimento,
realizando os passos que chegam ao conceito e sim expondo esse para se chegar
ao processo de entendimento do mesmo em sua concreticidade.
O
conceito de desemprego, numa abordagem marxista, remete ao conceito de força de
trabalho. O desemprego é uma relação social inserida numa totalidade e, nesse
processo, ganha um significado preciso. De forma mais simples, é possível dizer
que o desemprego expressa a existência de uma força de trabalho não utilizada.
Contudo, isso não explica e não permite compreender a totalidade das relações
sociais e a questão do desemprego no seu interior. Sem dúvida, existe a) uma
força de trabalho efetiva, a força de trabalho empregada; b) a força de
trabalho potencial, ou seja, que pode vir a ser empregada, como é o caso de
crianças e outros setores da sociedade, formando uma reserva potencial que em
certas ocasiões são usadas de forma massiva, tal como na época da revolução
industrial; c) a força de trabalho excedente, que é composta por pessoas com
capacidade e necessidade (absoluta) de trabalho sem acesso aos meios de
produção, seja como proprietários, seja como meros utilizadores daqueles que
são pertencentes a outros[5].
É
possível acrescentar uma fatia da força de trabalho, que fica entre o caso
potencial e do excedente, que é composto pelos indivíduos das classes
privilegiadas[6].
Estes não estão diretamente inseridos nas relações de classes, pois se o
tivesse não estaria sem emprego, mas pertencem à classe por ser de uma família
cuja classe social é privilegiada[7].
Um filho de um burguês é, indiretamente, pertencente à classe burguesa, apesar
de não exercer nenhuma atividade como proprietário de meios de produção e força
de trabalho e não extrair diretamente mais-valor. Se ele não exerce nenhuma
atividade, seja como proprietário, seja como força de trabalho, então não está
“empregado”, mas também não está “desempregado”, porquanto sua necessidade de
trabalho é relativa e não absoluta. Isso tanto é verdadeiro que para estes
indivíduos existem inúmeras formas de emprego que eles conseguiriam com a maior
facilidade e o recusam.
Contudo,
os indivíduos das classes exploradoras (burgueses, latifundiários) não
necessitam de emprego e apenas esperam para ocupar o lugar dos pais, a não ser
em casos de falência, mas nesse caso há uma mudança no pertencimento de classe.
Por isso, esse outro setor da força de trabalho que fica entre o potencial e o
excedente é composto por aqueles indivíduos pertencentes às classes auxiliares
da burguesia, a burocracia e a intelectualidade, que são classes assalariadas
improdutivas. É uma força de trabalho setorial devido seu pertencimento de
classe que faz com que sua necessidade de emprego seja relativa e ao invés de
serem considerados desempregados podem ser denominados como “demandantes”.
No
caso do capitalismo, a força de trabalho excedente é aquela que excede as
necessidades de uso da força de trabalho na sociedade capitalista e o desemprego
é a situação dos indivíduos enquanto força de trabalho excedente, significa a
existência de um contingente de pessoas que não é força de trabalho efetiva e
nem potencial, pois esta possui uma necessidade relativa de emprego, enquanto
que a excedente possui uma necessidade absoluta, ou seja, relacionada com sua
sobrevivência. Esta força de trabalho excedente é composta por indivíduos fora
das relações de produção capitalistas, das relações de produção
não-capitalistas, relações de distribuição e das instituições burguesas, o que
significa que estão marginalizados na divisão social do trabalho, compondo o
lumpemproletariado (Viana, 2012)[8].
Retomaremos alguns destes elementos na nossa análise seguinte.
Acumulação
de Capital e Desemprego
A
acumulação de capital é a determinação fundamental do processo de emprego ou
desemprego da força de trabalho no capitalismo. E aqui não se trata apenas da
força de trabalho industrial, mas da força de trabalho geral, tal como
colocaremos a seguir. No entanto, vamos abordar apenas a questão do emprego da
força de trabalho industrial, tal como exposto por Marx. Para entender o emprego
ou desemprego da força de trabalho, é necessário entender a determinação
fundamental do modo de produção capitalista, a produção de mais-valor:
Força de trabalho
é aí comprada não para satisfazer, mediante seu serviço ou seu produto, às
necessidades pessoais do comprador. Sua finalidade é a valorização de seu
capital, produção de mercadorias que contenham mais trabalho do que ele paga,
portanto, que contenham uma parcela de valor que nada lhe custa e que, ainda
assim, é realizada pela venda de mercadorias. Produção de mais-valia ou geração
de excedente é a lei absoluta desse modo de produção. Só à medida que mantém os
meios de produção como capital, que reproduz seu próprio valor como capital e
que fornece em trabalho não-pago uma fonte de capital adicional é que a força
de trabalho é vendável. As condições de sua venda, quer sejam mais quer sejam
menos favoráveis para o trabalhador, incluem, portanto, a necessidade de sua
contínua revenda e a contínua reprodução ampliada da riqueza como capital (Marx,
1988b, p. 182-183).
A
relação entre acumulação e emprego/desemprego da força de trabalho coloca, em
primeiro lugar, o processo de multiplicação do proletariado.
Crescimento do
capital implica crescimento de sua parcela variável ou convertida em força de
trabalho. Uma parcela da mais-valia transformada em capital adicional precisa
ser sempre retransformada em capital variável ou fundo adicional de trabalho.
Suponhamos que, além de mantidas constantes as demais circunstâncias, a
composição do capital permaneça inalterada, ou seja, que determinada massa de
meios de produção ou de capital constante requeira sempre a mesma massa de
força de trabalho para ser posta em movimento, então cresce evidentemente a
demanda de trabalho e o fundo de subsistência dos trabalhadores
proporcionalmente ao capital, e tanto mais rapidamente quanto mais rapidamente
cresce o capital. Como o capital produz anualmente uma mais-valia, da qual
parte é adicionada anualmente ao capital original, como esse incremento mesmo
cresce anualmente com o tamanho crescente do capital já em função e como,
finalmente, sob o aguilhão particular do impulso ao enriquecimento, por exemplo
a abertura de novos mercados, de novas esferas dos investimentos de capital em
decorrência de necessidades sociais recém-desenvolvidas etc., a escala da
acumulação é subitamente ampliável mediante mera repartição modificada da
mais-valia ou do mais-produto em capital e renda, as necessidades da acumulação
do capital podem superar o crescimento da força de trabalho ou do número de
trabalhadores, a demanda de trabalhadores pode se tornar maior que a sua oferta
e por isso os salários se elevam. Esse tem de ser, afinal de contas, o caso,
permanecendo inalterados os pressupostos acima. Como a cada ano mais
trabalhadores são ocupados do que no anterior, mais cedo ou mais tarde tem de
se chegar ao ponto em que as necessidades da acumulação começam a crescer além
da oferta habitual de trabalho, em que, portanto, começa o aumento salarial.
Queixas quanto a isso ressoam na Inglaterra durante todo o século XV e primeira
metade do século XVIII. As circunstâncias mais ou menos favoráveis em que os
assalariados se mantêm e se multiplicam em nada modificam, no entanto, o
caráter básico da produção capitalista. Assim como a reprodução simples
reproduz continuamente a própria relação capital, capitalistas de um lado,
assalariados do outro, também a reprodução em escala ampliada ou a acumulação
reproduz a relação capital em escala ampliada, mais capitalistas ou
capitalistas maiores neste pólo, mais assalariados naquele. A reprodução da
força de trabalho, que incessantemente precisa incorporar-se ao capital como
meio de valorização, não podendo livrar-se dele e cuja subordinação ao capital
só é velada pela mudança dos capitalistas individuais a que se vende, constitui
de fato um momento da própria reprodução do capital. Acumulação do capital é,
portanto, multiplicação do proletariado.
Aqui
temos o processo segundo o qual a acumulação capitalista gera mais
investimento, reprodução ampliada do capital, e, assim, mais emprego de força
de trabalho. Contudo, esse mesmo processo gera o processo de concentração e
centralização do capital e do aumento de produtividade. O resultado disso é o
desemprego da força de trabalho:
Os capitais
adicionais [...] constituídos no transcurso da acumulação normal servem
preferencialmente como veículo para a exploração de novas invenções e
descobertas, sobretudo de aperfeiçoamentos industriais. Mas também o velho
capital alcança com o tempo o momento de sua renovação da cabeça aos pés,
quando ele muda de pele e igualmente renasce na configuração técnica
aperfeiçoada, em que uma massa menor de trabalho basta para pôr em movimento
uma massa maior de maquinaria e matérias-primas (Marx, 1988b, p.259).
O
processo de acumulação capitalista marca um desenvolvimento contraditório entre
emprego e desemprego da força de trabalho, num movimento cíclico. Contudo, há
uma tendência geral. Segundo Marx, a composição orgânica do capital se altera e
atinge o processo de emprego da força de trabalho, “Com o crescimento do
capital global na verdade também cresce seu componente variável, ou a força de trabalho
nele incorporada, mas em proporção continuamente decrescente” (Marx, 1988b, p.
260). Segundo Max, “no entanto, a acumulação capitalista produz constantemente
— e isso em proporção à sua energia e às suas dimensões — uma população
trabalhadora adicional relativamente supérflua ou subsidiária, ao menos no
concernente às necessidades de aproveitamento por parte do capital (Marx, 1988b,
p. 261).
A
expansão da acumulação de capital sob bases técnicas antigas promove uma
expansão do emprego da força de trabalho e em bases novas um decréscimo, embora
proporcional. Isso gera a determinação fundamental do emprego/desemprego da
força de trabalho no modo de produção capitalista. O desenvolvimento das forças
produtivas, gerando a reprodução ampliada do capital e aumento da produtividade
e base técnica, ocorre a redundância relativa de trabalhadores: “Com a
acumulação do capital produzida por ela mesma, a população trabalhadora produz,
portanto, em volume crescente, os meios de sua própria redundância relativa”
(Marx, 1988b, p. 262). Essa “população trabalhadora excedente” cria um exército
industrial de reserva, ou seja, um grande contingente de trabalhadores
desempregados que podem ser utilizados sempre que houver uma nova necessidade
do capital.
Essa
sobrepopulação é resultado do desenvolvimento capitalista e, ao mesmo tempo,
condição e alavanca da própria acumulação de capital, sendo até uma “condição
para sua existência”. Essa sobrepopulação pressiona os salários para baixo. No
entanto, esse processo não é simples, pois depende do setor do capital e dos
fluxos de capital e trabalho direcionados para eles, criando situações de maior
crescimento e afluxo de trabalhadores que gera, posteriormente, uma oferta
maior de força de trabalho que, por sua vez, faz cair os salários.
Marx
aborda a questão da sobrepopulação flutuante (líquida), latente e estagnada. A
sobrepopulação flutuante é composta pelo fluxo constante de jovens (a renovação
de gerações de trabalhadores, crescimento natural, cujo quantum está ligado a casamentos precoces, por exemplo), pelo
crescimento do número de adultos dispensados (excetuando os que imigram ou
aceitam posições inferiores) e pelo êxodo rural. A sobrepopulação latente é
aquela existente no campo, composta pelos trabalhadores rurais. A
sobrepopulação estagnada é o “exército ativo de trabalhadores”, “mas com
ocupação completamente irregular”, é um “reservatório inesgotável de força de
trabalho disponível”. Marx apresenta um novo segmento:
Finalmente, o mais
profundo sedimento da superpopulação relativa habita a esfera do pauperismo.
Abstraindo vagabundos, delinquentes, prostitutas, em suma, o lumpemproletariado
propriamente dito, essa camada social consiste em três categorias. Primeiro, os
aptos para o trabalho. Basta apenas observar superficialmente a estatística do
pauperismo inglês e se constata que sua massa se expande a cada crise e
decresce a toda retomada dos negócios. Segundo, órfãos e crianças indigentes.
Eles são candidatos ao exército industrial de reserva e, em tempos de grande
prosperidade, como, por exemplo, em 1860, são rápida e maciçamente incorporados
ao exército ativo de trabalhadores. Terceiro, degradados, maltrapilhos,
incapacitados para o trabalho. São notadamente indivíduos que sucumbem devido a
sua imobilidade, causada pela divisão do trabalho, aqueles que ultrapassam a
idade normal de um trabalhador e finalmente as vítimas da indústria, cujo
número cresce com a maquinaria perigosa, minas, fábricas químicas etc., isto é,
aleijados, doentes, viúvas etc. O pauperismo constitui o asilo para inválidos
do exército ativo de trabalhadores e o peso morto do exército industrial de
reserva. Sua produção está incluída na produção da superpopulação relativa, sua
necessidade na necessidade dela, e ambos constituem uma condição de existência
da produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza. Ele pertence ao faux
frais [falsos custos] da
produção capitalista que, no entanto, o capital sabe transferir em grande parte
de si mesmo para os ombros da classe trabalhadora e da pequena classe média
(MARX, 1988b, p. 199-200).
Essa
tradução é problemática no sentido em que no original inglês Marx escreveu “the
‘dangerous’ classes”, ou seja, “classes perigosas” e o último termo entre
aspas, o que significa que usou terminologia de uso comum – tal como a de
Julian Hunter, médico citado por Marx (1988b, p. 288) – e não sua própria
terminologia (tal como lumpemproletariado), sendo uma “dedução” infeliz e
inexata dos tradutores. Logo, o lumpemproletariado não é citado nesse capítulo
em O Capital. Aqui teríamos novamente
o pauperismo, a classe marginal, a qual preferimos denominar lumpemproletariado
(como Marx faz em outras obras).
Marx
coloca que quanto maior a riqueza social, a acumulação de capital, maior
grandeza absoluta e força produtiva do proletariado, maior o exército
industrial de reserva. O processo de acumulação capitalista gera o crescimento
da grandeza proporcional do exército industrial de reserva.
Mas quanto maior
esse exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto
mais maciça a superpopulação consolidada, cuja miséria está em razão inversa do
suplício de seu trabalho. Quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da
classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior o
pauperismo oficial. Essa é a lei absoluta geral, da acumulação capitalista. Como
todas as outras leis, é modificada em sua realização por variegadas
circunstâncias, cuja análise não cabe aqui (Marx, 1988b, p. 200).
Assim,
a produção de uma sobrepopulação relativa é determinada pela dinâmica da
acumulação de capital. Esta é a determinação fundamental da produção de uma
sobrepopulação relativa. Marx, em O
Capital, usa a palavra “lei”, mas esta, como ele mesmo diz, “são
tendências”, não são leis no sentido das ciências naturais e do positivismo e
que carregam contratendências e “circunstâncias variadas” que são outras
determinações do fenômeno.
Aqui
temos um aspecto importante que foi deixado de lado pelos comentaristas de
Marx. A análise de Marx é referente ao modo de produção capitalista e no caso
da sobrepopulação remete apenas à sua determinação fundamental. É por isso que
ele coloca em vários trechos, e assim também o fizemos em algumas passagens, o
termo “população trabalhadora”[9] e
não “população em geral”. Isso é importante, pois teremos que, para fazer uma
análise concreta da sociedade capitalista, acrescentar a questão do emprego e
desemprego da força de trabalho fora do modo de produção capitalista, ou seja,
no conjunto da sociedade capitalista, o que inclui também as relações de
distribuição, as relações de produção não-capitalistas e as instituições
burguesas. Da mesma forma, outras determinações do fenômeno devem ser incluídas
na análise.
Mas,
antes de encerrar, consideramos importante reavaliar a discussão de Marx. A sua
colocação de que a dinâmica da acumulação de capital é a determinação
fundamental da produção de sobrepopulação é um elemento essencial para qualquer
discussão sobre emprego e desemprego da força de trabalho. Contudo, os termos
usados por ele são, em alguns casos, problemáticos. O termo “sobrepopulação”
(ou superpopulação como coloca algumas traduções) acaba gerando mais confusão
do que esclarecimento, mesmo porque o foco é a “população trabalhadora”. Por
isso, o termo força de trabalho é mais esclarecedor.
Nesse
sentido, ao invés de pensar em sobrepopulação flutuante, latente e estagnada,
julgamos mais adequado pensar em força de trabalho potencial e força de
trabalho disponível. A força de trabalho potencial é composta pelos setores da
sociedade que podem integrar a força de trabalho efetiva (o “exército ativo de
trabalhadores”, segundo Marx) mas que não tem essa necessidade de forma imediata,
tal como crianças, jovens, etc. Este é o caso também de parcela da população
rural. A força de trabalho disponível é o que Marx denomina “exército
industrial de reserva”, e engloba a sobrepopulação estagnada e parte da
flutuante, tal como os adultos dispensados do trabalho. Nesse sentido, a
“sobrepopulação trabalhadora” não seria três e sim duas, composta pela força de
trabalho potencial, que é uma reserva cuja utilização é remota, a não ser em
determinados períodos (guerras, por exemplo) e a disponível, o exército
industrial de reserva, composto tanto pelos que vivem de trabalhos irregulares
(desemprego disfarçado), quando os desempregados em geral, incluindo aqueles na
situação que Marx denomina “pauperismo”. Esse conjunto de desempregados e
trabalhadores irregulares compõe, em nossa perspectiva, o lumpemproletariado[10],
a classe marginal do capitalismo (Viana, 2012b; Viana, 2009; Braga, 2013).
A
análise de Marx sobre a relação entre emprego e desemprego da força de trabalho
e acumulação de capital será o ponto de partida para nossa discussão que visa
abordar o processo histórico e concreto do desemprego na sociedade capitalista.
Assim, iniciaremos uma discussão sobre os regimes de acumulação e sobre o
conjunto da sociedade capitalista.
Regimes
de Acumulação e Desemprego
O
desenvolvimento capitalista é marcado pelo desenvolvimento do modo de produção
capitalista e este provoca um impacto em todas as demais relações sociais. A
força de trabalho total é maior do que a força de trabalho industrial. O uso da
força de trabalho no modo de produção capitalista gera o seu uso em outros
setores da sociedade. O processo de acumulação de capital gera demanda por
força de trabalho, como Marx já havia dito (embora o contrário também ocorra). O
que os economistas chamam de “crescimento econômico” é resultado do aumento na
acumulação de capital e isso tem efeitos no processo de demanda por força de
trabalho:
Quando ocorre um
aumento no investimento, digamos, na indústria de construções, em uma época de
desemprego generalizado, são oferecidos empregos naquela indústria, na de
fabricação de materiais, como tijolos, vidros e maçanetas, e nos transportes. O
emprego adicional assim criado chama-se incremento primário no emprego, devido
a um aumento no investimento. Quando o nível de ocupação aumenta, as pessoas
beneficiadas elevam sua taxa de consumo – comprando mais sapatos, camisas,
toucinho e queijo. Da mesma forma, quanto maiores forem os lucros recebidos
pelos construtores e outros empresários, mais gastarão, em bens de consumo,
aqueles cujas rendas crescerem. Assim, o nível de emprego subirá, e maiores
lucros serão obtidos na manufatura de sapatos e outros bens para os quais houve
melhoria no mercado. As pessoas que operam na indústria de sapatos, por seu turno,
têm mais dinheiro para gastar quando sua atividade melhora; os acionistas
recebem maiores dividendos; as lojas, cinemas e garagens obtém mais lucros. Com
maiores rendas sendo auferidas nas indústrias de bens de consumo, ocorre um
novo incremento no consumo, de forma que o emprego e os lucros, no ramo de
calçados, na venda de derivados de petróleo, etc. crescem ainda mais. Rendas
mais altas ocasionarão, novamente, maior consumo, e assim por diante. O
acréscimo de emprego na indústria de bens de consumo é o incremento secundário
na ocupação, devido ao incremento no investimento (Robinson, 1980, p. 32).
O
incremento primário reforça o incremento secundário. Assim, se um setor da
produção industrial recebe maiores investimentos, isso terá ressonância em
diversos outros setores, tal como os fornecedores (de matérias-primas,
máquinas, mercado consumidor, etc.), bem como tem impacto no mercado consumidor.
A análise de Marx, anteriormente sintetizada, refere-se, fundamentalmente, ao
uso da força de trabalho industrial. Contudo, a expansão da acumulação
capitalista também provoca uma expansão das necessidades de distribuição e
circulação. As relações de distribuição na sociedade capitalista – devido às
características do modo de produção capitalista – também promove a necessidade
de uso de um grande quantum de força
de trabalho. O desenvolvimento capitalista amplia a divisão social do trabalho,
cria uma expansão espacial, cria novas necessidades e assim, nova demanda por
força de trabalho. É através das relações de distribuição que se efetiva o
processo de exploração, pois a produção de mais-valor ocorre nas unidades de
produção (fábricas, empresas agrícolas, construção civil, minas, etc.), mas sua
realização ocorre com a venda, ou seja, no mercado.
O
mercado, contudo, não é uma abstração metafísica, tal como a realizada por
economistas e ideólogos. O mercado é um conjunto de relações sociais nas quais
seres humanos de carne e osso realizam o processo de troca de mercadorias, onde
se concretiza as relações de distribuição capitalistas. Os agentes principais
desse processo são os capitalistas e os comerciários. O capital comercial drena
parte do mais-valor para si em detrimento do capital produtivo e para isso
realiza o processo de exploração dos trabalhadores do comércio. Estes, no
entanto, não produzem mais-valor, são trabalhadores improdutivos[11].
Esses trabalhadores improdutivos não produzem mais-valor, mas fornecem lucro ao
capital comercial e este constitui em um excedente que é apropriado, cuja
origem está no mais-valor extraído anteriormente dos trabalhadores produtivos. A
questão aqui é que se trata de uma outra forma de exploração.
As
relações de distribuição capitalistas também geram a necessidade de transporte
de mercadorias, o que gera não somente a necessidade de existirem trabalhadores
envolvidos nisso (ferroviários, motoristas, etc.) como produção dos meios de
transporte, mais material para outro setor do capital produtivo. O que
interessa, no entanto, é que o capital comercial, bem como o capital financeiro
e diversas outras formas de capital em diversas outras atividades, empregam
força de trabalho.
O
capital produtivo não só produz demanda de força de trabalho para as relações
de distribuição e tudo que circula em volta delas, mas também para a reprodução
e formação da força de trabalho (o que gera a necessidade de serviços de saúde
e educação, por exemplo), transporte de trabalhadores (serviços de transporte
coletivo) e estes empregam força de trabalho, seja via capital privado ou
empresas estatais.
A
reprodução do capitalismo, como um todo, faz emergir diversas instituições
burguesas, a começar pelo Estado e suas diversas instituições, bem como instituições
privadas (algumas sendo resquícios do feudalismo, como as igrejas, que se
adaptam ao modo de produção capitalista) e isso gera nova demanda por força de
trabalho. As instituições burguesas empregam um grande volume de força de
trabalho improdutiva.
A
acumulação de capital cria inúmeras necessidades e as rendas elevadas de
diversos setores possibilita a ampliação do emprego doméstico, o que Marx
denominou “classe de serviçais” (Viana, 2012b) e um conjunto de outros serviços
que empregam uma grande quantidade de trabalhadores assalariados improdutivos.
Desta forma, a força de trabalho total é composta pelos trabalhadores
assalariados produtivos e pelos trabalhadores assalariados improdutivos (no
Estado, instituições burguesas, trabalho doméstico, setores do capital
improdutivo, etc.).
A
acumulação de capital é fundamental nesse processo. Ela é a determinação
fundamental não apenas da dinâmica do emprego e desemprego dos trabalhadores
produtivos, mas também dos improdutivos. Contudo, a acumulação de capital não é
sempre a mesma e nem sempre promove o mesmo movimento. Em determinados
momentos, há um crescimento da demanda da força de trabalho produtiva e
improdutiva simultaneamente, enquanto que em outros pode ocorrer uma
discrepância. Isso, no entanto, é melhor entendido no plano concreto da análise
histórica. Se o modo de produção capitalista se mantém em sua essência, ele
muda suas formas e esta mutação é melhor entendida através do conceito de
regime de acumulação. Tal como colocamos em outra oportunidade (Viana, 2009;
Viana, 2003), um regime de acumulação é caracterizado por determinada forma
assumida no processo de valorização, forma estatal e forma de exploração
internacional. Esse conjunto significa uma cristalização da luta de classes e
de uma determinada correlação de forças. Não poderemos realizar uma análise
profunda da sucessão de regimes de acumulação na história do capitalismo e sua
relação com o emprego e desemprego da força de trabalho, mas tão-somente
apresentar de forma bem sucinta esse processo e focalizar o atual regime de
acumulação, o integral.
O
regime de acumulação extensivo, marcado pela revolução industrial, era
caracterizado por um alto grau de extração de mais-valor absoluto, com absorção
de um grande contingente de força de trabalho pela indústria, o que foi
caracterizado por um amplo processo de proletarização e lumpemproletarização[12],
bem como uso de força de trabalho infantil e feminina. O Estado liberal teve um
papel fundamental no processo de expulsão dos camponeses de suas terras – tal
como no caso clássico inglês – e permitiu esse processo, bem como produziu
formas de repressão daqueles que iam para as cidades e não empregavam sua força
de trabalho. Esse regime de acumulação enfrentou, no entanto, a resistência
operária, desde as formas iniciais e mais ordinárias, até chegar às formas mais
radicais. Essas marcaram a crise desse regime de acumulação, especialmente a
luta pela redução da jornada de trabalho e contra o trabalho infantil e
feminino[13].
Isso
marcou a passagem para o regime de acumulação intensivo, no qual a redução da
jornada de trabalho provocou a emergência do taylorismo e a busca de compensar
a queda do mais-valor absoluto com o aumento da extração de mais-valor relativo
e o novo processo de expansão do capital promoveu redução do desemprego
temporariamente, mesmo porque o crescimento industrial gerava um emprego
adicional de outros setores, tal como nas instituições burguesas e nas relações
de distribuição, bem como em outras atividades. Obviamente que essa redução do
desemprego foi proporcional e era marcado por distintas situações nacionais e
conjunturais, provocando aumentos e recuos[14].
O Estado liberal-democrático amplia o espaço para novas profissões burocráticas[15] e
a formação da universidade moderna, etc. era gerador de empregos e novas
necessidades (formação, qualificação, etc.). Nesse contexto, a expansão
capitalista reduziu proporcionalmente o desemprego.
Contudo,
a nova crise proporciona uma mutação no emprego e desemprego da força de
trabalho. Os primeiros sinais de alteração mais brusca ocorrem com a Primeira
Guerra Mundial, já que a composição da força de trabalho sofre com esse
processo, no sentido de que várias pessoas que não estão na ativa no exército
podem ser recrutadas e geralmente são, nos casos dos países mais envolvidos
(Alemanha, Inglaterra, etc.) e as necessidades de produção sofrem alterações
(aumenta a necessidade de produção de armamentos, por exemplo), e as revoluções
proletárias inacabadas de 1917 a 1921, bem como a Guerra Civil Espanhola nos
anos 1930, também interferem no emprego e desemprego da força de trabalho, pois
as mortes, pressão da classe trabalhadora, etc., bem como a crise instaurada,
coloca o emprego da força de trabalho em oscilação. A crise financeira de 1929
abre uma nova vaga de desemprego nos Estados Unidos e na Europa e a Segunda
Guerra Mundial, com a destruição em massa de forças produtivas, permite a
retomada da acumulação capitalista sob novas bases a partir de 1945[16].
É
nesse período que emerge o regime de acumulação conjugado, marcado pela
preponderância do fordismo, instauração do Estado integracionista (welfare state) e pela expansão do
capital transnacional. É nesse momento que a obra do economista John Maynard
Keynes irá se tornar hegemônica em sua análise do emprego. Um novo período de
expansão da acumulação com a reconstrução europeia, a nova supremacia
norte-americana, bem como o amplo processo de transferência de mais-valor do
capitalismo subordinado para o capitalismo imperialista, permitiu um processo
de amplo emprego da força de trabalho e as políticas de “pleno emprego”
avançaram no sentido de reduzir, por um bom período de tempo, as taxas de
desemprego[17].
Claro
que as mortes de jovens na Segunda Guerra Mundial e a composição etária da
população após isto, marcada por um alto grau de idosos e crianças, mas com
adultos e jovens em menor proporção, facilitou esse processo por duas décadas.
É a partir de 1960, época em que as crianças já eram jovens ou adultos, que o
problema do desemprego começava a se tornar mais grave e é no final desta
década que os jovens serão um ponto de pressão sobre os estados capitalistas da
Europa, que expande o ensino superior, o que cria um período de “desemprego
disfarçado” e que contém as exigências de emprego dessa parte da força de
trabalho potencial. Inclusive esse processo esteve ligado ao crescimento da
contestação juvenil, ao lado de outras determinações, e da crise da
universidade francesa e emergência da rebelião estudantil de maio de 1968. É
justamente neste período que ocorre a crise do regime de acumulação conjugado e
que se abre caminho para o atual regime de acumulação, o integral.
Após
esse breve resumo da questão do emprego e desemprego da força de trabalho na
história do capitalismo, trataremos da atualidade deste problema. O regime de
acumulação integral é a resposta capitalista para a queda da taxa de lucro
ocorrida a partir do final dos anos 1960 e às lutas operárias e estudantis em
diversos países (França, Alemanha, Itália, etc.), sendo que os últimos suspiros
destas lutas foram a Revolução dos Cravos, em Portugal, e a Revolução Polonesa
de 1980. As derrotas do proletariado e de outros setores da sociedade, foram
marcadas por uma busca de retomada da acumulação capitalista, desde os anos
1970, mas que só constituiu um novo regime de acumulação a partir dos anos
1980, paulatinamente em diversos países, começando com a Inglaterra e Estados
Unidos e depois se espalhando pelo mundo. O toyotismo, neoliberalismo e
neoimperialismo (Viana, 2003; Viana, 2009) caracterizam o novo regime de
acumulação, cujo objetivo é aumentar a exploração em todos os sentidos, como
bem observou Bourdieu (1998) e outros.
Esse
aumento da exploração está intimamente ligado ao toyotismo e reestruturação
produtiva, através dos processos de busca de extração de mais-valor relativo e
absoluto, precarização, etc., como da ação estatal com suas políticas
neoliberais que permitem a desregulamentação da legislação trabalhista, novas
políticas financeiras e recuo dos gastos estatais, etc. Essa busca de aumento
da exploração iniciou-se, em alguns países, no início dos anos 1980 e foi se
expandido pelo mundo, mas traz como novidade (e sinal de esgotamento das
estratégias capitalistas de exploração) a corrosão da situação privilegiada dos
trabalhadores dos países imperialistas. A precarização, desemprego, aumento da
jornada de trabalho, entre diversos outros elementos, mostram uma situação que
vai se constituindo e que significa, por um lado, maior exploração da força de
trabalho empregada, e, por outro, aumento da quantidade de força de trabalho
desempregada. Segundo Dedecca:
A onda liberal,
originada nos Estados Unidos e Inglaterra, e o fortalecimento da órbita
monetária e financeira forçaram um ajustamento das políticas econômicas e
sociais dos países desenvolvidos, durante os anos 80, e impuseram igual
ajustamento aos países em desenvolvimento. Os problemas de emprego foram
relacionados diretamente a supostas disfunções existentes nos mercados de
trabalho que exigiam medidas corretivas, como a desregulamentação dos mercados
e das relações de trabalho. Assim, a política proposta era de uma oxigenação –
flexibilização – dos contratos que estabeleciam empregadores e empregados. Com timings
bastante diferenciados, a oxigenação foi promovida explicitamente pelos
governos, através da flexibilização das normas de uso e remuneração da força de
trabalho, e/ou implicitamente, pelo enfraquecimento do mercado de trabalho,
provocado pelo crescimento do desemprego e das formas precárias de ocupação e
pela desarticulação dos sistemas de negociações coletivas. A flexibilização
atingiu tanto os países onde existia uma fraca regulação do mercado e das
relações de trabalho como, por exemplo, os Estados Unidos quanto aqueles onde
ela era bastante forte, como Alemanha e Suécia. O alcance do processo de
desregulação foi diferente de país para país, sendo muito acentuado na
Inglaterra, Espanha, França e Itália e atingindo duramente a Suécia, mas lento
e limitado na Alemanha (Dedecca, 1996, p. 19).
As
novas exigências da acumulação capitalista e a ação estatal promovem não
somente uma situação de crescimento da exploração como também de desemprego da
força de trabalho. Esse aumento do desemprego, por sua vez, significa a
retomada do seu papel de pressão por diminuição do preço da força de trabalho,
ou seja, dos salários, no capitalismo imperialista. Os dados abaixo mostram o
crescimento do desemprego em alguns destes países:
Apud. Dedecca, 1996.
|
No
capitalismo subordinado, por sua vez, com os seus altos índices de desemprego
já existentes, a situação piora um pouco mais. As determinações desse processo
são as mesmas de sempre. A acumulação capitalista é a determinação fundamental
e outras determinações completam o quadro. O quadro difere não somente na divisão
entre países imperialistas e subordinados, mas também no seu interior e com
mudanças no decorrer dos anos. O desenvolvimento tecnológico contribui com o
desemprego em certos setores e assim colocam parte da força de trabalho que
antes estava empregada na situação de desemprego e na competição em geral no
mercado de trabalho. A situação de cada país, antes desse processo, também é
importante para explicar especificidades e como esse processo é mais forte e
intenso em alguns países, e menor em outros. No caso argentino, por exemplo, a
situação específica da acumulação subordinada e o processo de lutas sociais
após o regime militar, criam todo um processo que culmina com o movimento
piquetero, uma das mais radicais formas de resistência política do lumpemproletariado
(Braga, 2013). Sem dúvida, também na França, surge um movimento de
desempregados, tido como “milagre social”, por Bourdieu (1998), mas cuja
radicalidade e força são muito mais restritas do que no caso argentino. No
Brasil, esse processo também tem suas especificidades e o movimento dos
trabalhadores desempregados é um processo distinto, embora ganhe destaque no
sentido de que com suas diferenças, o lumpemproletariado como um processo de
auto-organização inexistente anteriormente.
Juntamente
com isso, o processo de criminalização e repressão aumenta (Wacquant, 2001;
Braga, 2013). Da mesma forma, surgem ideologias que, supostamente, visam
explicar o fenômeno, mas acabam criando processos de ocultamento da realidade e
busca de integra o lumpemproletariado no regime de acumulação integral, tal
como a ideologia da exclusão social (Viana, 2009), emergente na França para
explicar o crescimento do desemprego e outros fenômenos corretados.
Desemprego
e Luta de Classes no Regime de Acumulação Integral
O
desemprego tem como determinação fundamental o regime de acumulação, ou seja, a
luta de classes estabilizada sob a forma de imposição do capital de
determinadas relações no processo de valorização, na forma estatal e na
exploração internacional. Trata-se de uma luta de classes cristalizada e
ordinária, na qual o capital possui a supremacia nas relações sociais concretas
e hegemonia no plano cultural.
Mesmo
havendo essa supremacia e hegemonia, há resistência e luta por parte das
classes exploradas e grupos oprimidos, apesar de serem lutas limitadas,
cotidianas, travadas sob hegemonia burguesa. O proletariado luta cotidianamente
e constantemente, mas ao estar sob hegemonia burguesa, esta luta é a de uma
classe determinada pelo capital. Não se trata da luta de uma classe
autodeterminada que confronta o capital não para ganhar vantagens (salariais)
no interior da sociedade capitalista e sim para abolir tal relação[18].
Porém, essas lutas ordinárias, cotidianas, são elementos de politização e de
desenvolvimento de lutas mais amplas e radicais, tal como Marx já havia
colocado (Marx e Engels, 1988; Marx, 1989), servindo ao processo de
autoeducação e associação da classe (Marx e Engels, 1988; Viana, 2004). Essas
lutas ordinárias assumem algumas características específicas em cada regime de
acumulação, devido às mudanças sociais gerais.
A
luta do proletariado é o elemento fundamental não só porque é o definidor de
determinada relação com o capital que caracteriza determinado regime de
acumulação, ou seja, uma determinada fase do capitalismo, como também é
fundamental para todas as demais lutas sociais travadas na sociedade
capitalista, inclusive como que as outras classes exploradas, grupos oprimidos,
etc., se colocam na luta entre o próprio proletariado e a burguesia. Quanto
mais débil o movimento operário, mais poderosa é a hegemonia burguesa sobre as
outras classes e movimentos sociais.
Nesse
sentido, entender a ação do lumpemproletariado e do conjunto de desempregados,
aqueles que estão marginalizados na divisão social do trabalho na sociedade
capitalista, pressupõe compreender a dinâmica da luta entre as duas classes
fundamentais do capitalismo, o proletariado e a burguesia. Nesse caso, é
preciso entender tanto as lutas ordinárias, que mostra a imposição do capital e
a resistência proletária, quanto as lutas extraordinárias, que significa a
passagem do proletariado de classe determinada para classe autodeterminada.
No
capitalismo contemporâneo, as lutas de classes ordinárias são não somente as da
resistência cotidiana, individual, luta salarial, reivindicações, mas também
grandiosas manifestações, protestos, greves, revoltas, que inclusive retornam
nos países capitalistas imperialistas. Elas são lutas comandadas pela hegemonia
burguesa, tal como as revoltas nos países árabes[19],
como também são aquelas em que há uma radicalização do movimento operário, como
no caso argentino (Viana, 2009).
A
hegemonia burguesa no plano cultural e na sociedade civil é um dos elementos
fundamentais para explicar a razão dos movimentos sociais não ultrapassarem o
nível das lutas ordinárias. O microrreformismo está intimamente ligado à
ideologia pós-estruturalista e é representada por obras de ideólogos como
Michel Foucault (1989) e Félix Guatari (1981), com suas teses sobre
“microfísica do poder” e “revolução molecular”, que torna-se dominante e cumpre
o papel de amortecer as lutas de classes, cooptar setores da sociedade, fortalecer
a cultura burguesa e a reprodução do capital.
A
questão dos desempregados assume, assim, uma nova forma no regime de acumulação
integral. Tais ideologias exercem uma determinada influência no
lumpemproletariado, principalmente através da ação de ideólogos oriundos da
academia, militantes de partidos políticos e outras organizações influenciadas
pelas ideologias vigentes, meios oligopolistas de comunicação, etc. Contudo,
sua influência é menor, tendo em vista que a situação de classe e penúria é um obstáculo
para a primazia ao cultural ou ao problema da “identidade”, além de sua
exposição não tão constante às ideologias vigentes.
Por
outro lado, desde o chamado “movimento antiglobalização”, mas já um pouco
antes, o aumento geral da exploração e a crise do capitalismo estatal na Rússia
e Leste Europeu, promoveu a retomada de autores esquecidos e tendências
hipermarginalizadas, tal como o conselhismo, o situacionismo e o anarquismo.
Contudo, esse e outros movimentos são marcados pela mescla de diversas
concepções, criando muitas vezes (mas não todas) um ecletismo problemático e
que apontam grandes influências das ideologias burguesas, especialmente o
pós-estruturalismo (Viana, 2009). Assim, a recuperação de teses, autores,
tendências caminha junto com a permanência enfraquecida das concepções e
organizações hegemônicas anteriores (partidos, sindicatos) e com novas
tendências emergentes sob hegemonia burguesa e, em diversos casos, com a mescla
tanto no plano cultural quanto no plano concreto da luta.
No
contexto do regime de acumulação integral, aumenta o número de indivíduos nas
fileiras do lumpemproletariado à escala mundial, o que serve de pressão para
uma maior extração de mais-valor, via rebaixamento dos salários e incentivo
para aceitação de trabalho precarizado (e superexplorado). Isso ocorre até no
bloco imperialista. Até o sociólogo Pierre Bourdieu, que nada tem de
revolucionário, chegou a elogiar o “milagre social” do movimento dos
desempregados: “O movimento dos desempregados é um acontecimento único,
extraordinário. Ao contrário do que nos repetem sem cessar os jornais escritos
e falados, essa exceção francesa é algo de que podemos nos orgulhar. Todos os
estudos científicos mostraram efetivamente que o desemprego destrói aqueles que
atinge, suprime suas defesas e suas disposições subversivas” (Bourdieu, 1998,
p. 128).
Esse
elogio é acompanhado da percepção da novidade histórica e de sua importância.
Contudo, devido os “limites intransponíveis da consciência burguesa”, Bourdieu
não pôde perceber que esse movimento é importante, mas ainda não
revolucionário, expressa a ação de uma classe determinada e não
autodeterminada. No entanto, a situação de uma classe autodeterminada é
distinta dependendo de qual classe é. No caso do proletariado, a sua autodeterminação
contribui com sua autoemancipação e, por conseguinte, com a emancipação humana
em geral. No caso de outras classes, que não estão envolvidas nas relações de
produção capitalistas e que não podem constituir novas relações de produção,
sendo classe explorada ou oprimida, então a sua autodeterminação só tem sentido
revolucionário ao se aliar ao proletariado e contribuir, assim, com a revolução
proletária e constituição de uma sociedade autogerida.
As
lutas ordinárias dos desempregados na França é um passo para lutas
extraordinárias e por isso merecem apoio. Contudo, não se trata de apoio como o
de Bourdieu, que faz o elogio e não faz a crítica necessária para apontar a
necessidade de ir além e não reivindicar apenas emprego e sim abolir a necessidade
de emprego, o monopólio dos meios de produção, a divisão social do trabalho, o
Estado e o capital. Contudo, essa “organização dos desempregados” não é
privilégio dos franceses, pois experiências semelhantes vão surgindo em
diversos outros países, tal como o caso brasileiro, no qual emerge o MTD –
Movimento dos Trabalhadores Desempregados (Leal, 2011; Ferraz e Menna-Barreto,
2012).
Contudo,
na maioria dos casos tais movimentos estão sob a hegemonia burguesa e, portanto,
eles não ultrapassam o nível do reformismo. Claro que isso depende do país,
região, época. No caso argentino, por exemplo, a radicalidade do movimento
piquetero mostra que a ideia do lumpemproletariado como “classe reacionária” é
equivocada. Sem dúvida, Marx havia colocado essa tendência, mas o que era uma
tendência se tornou um dogma para os seus intérpretes (Viana, 2012b; Passos
Guimarães, 1981). Alguns tentaram ressignificar o sentido político do
lumpemproletariado (Fanon, 1979; Viana, 2012b; Braga, 2013) e entender que Marx
observava duas possibilidades: de ser arrastado para a revolução proletária ou
se vender para a reação (Marx e Engels, 1988). Contudo, isso ocorreu na época
de Marx e este estava não apenas num contexto cultural de condenação do
lumpemproletariado (“desocupados”, “vagabundos”, etc.) e tomando como
experiência a cooptação desta classe pelo bonapartismo (Marx, 1986). Claro,
também, que Marx muitas vezes pensava o lumpemproletariado apenas como a fração
mais pauperizada do que denominou “sobrepopulação relativa”, pois ampliando
aqueles que se incluem nesta classe, também a percepção se torna diferenciada.
O
lumpemproletariado no regime de acumulação integral tende a assumir uma maior
radicalidade e se aproximar do proletariado, saindo, portanto, da hegemonia
burguesa. Embora dependendo do país, região, período, possa assumir maior ou
menor radicalidade, no geral houve um avanço dessa classe no sentido de avançar
no processo de se tornar uma classe autodeterminada, o que significa ser uma
classe aliada do proletariado. Isso tem como determinação fundamental o novo
regime de acumulação e o crescimento quantitativo de desempregados ao lado de
uma crescente precarização de diversos setores das classes trabalhadoras[20]. Esse
processo e os novos contingentes que passam a somar nas fileiras do
lumpemproletariado[21]
levam, através de alguns indivíduos, elementos culturais diferenciados e experiências
de luta que contribuem com uma maior politização do mesmo.
No
caso brasileiro, no qual não houve nenhum processo de grande mobilização ou
radicalização da classe lumpemproletária como um todo, houve um processo de
avanço organizativo e desenvolvimento de consciência. Alguns setores
organizados do lumpemproletariado assume uma maior proximidade com as lutas
proletárias. Isso é perceptível, por exemplo, no blog do MTD Pela Base do Rio
de Janeiro:
O Movimento dos
Trabalhadores Desempregados “Pela Base” é um movimento social que busca, a
partir da mobilização do povo organizado, lutar na
reivindicação dos direitos e das necessidades mais imediatas do nosso
povo, seja na educação, saúde, cultura, trabalho, etc. Para isso, de forma coletiva e horizontal também buscamos construir ferramentas
de luta que ajudem na caminhada cotidiana em direção a estes
objetivos, como centros de cultura, bibliotecas, oficinas, atividades culturais,
trabalhos de produção e geração coletiva de renda, espaços de educação e
outros. Acreditamos também que existem iniciativas de organização popular
e comunitária de nossa classe que criam espaços de luta, resistência e de
socialização, como associações e centros comunitários, atividades culturais,
organizações de base, iniciativas de produção coletiva e outros. Nos bairros,
periferias, favelas, ocupações, no local de trabalho ou de estudo, estas
iniciativas e espaços devem ser estimulados e apoiados, sendo fundamentais para
se criar as condições de fortalecimento do protagonismo do povo e do poder popular nas
lutas cotidianas. Assim, no presente, com base nos acúmulos anteriores, vamos
construindo nosso futuro, com igualdade, independência e autonomia política e
econômica, organização e luta, caminhando para uma sociedade igualitária, livre
e fraterna!
Apesar
das imprecisões conceituais e terminológicas, o conteúdo é bastante avançado. A
ênfase na organização “horizontal”, no “protagonismo do povo” é positiva,
retirando, é claro, os termos imprecisos e vagos como “povo” e “poder popular”,
e em certas influências oriundas de ideologias e concepções problemáticas
(“protagonismo”, “poder popular”, “produção coletiva”, que lembra “economia
solidária”) e os limites dos objetivos propostos (“reivindicação dos direitos e
das necessidades mais imediatas do nosso povo”, “educação, saúde, cultura,
trabalho, etc.”), o que tem seu lado positivo por ser objeto de luta e
necessidades reais, por um lado, é ponto de partida para lutas mais amplas e,
por outro, já demonstra um avanço no sentido de defender a auto-organização da
classe. No final, há um avanço no sentido de postular uma “sociedade
igualitária, livre e fraterna”, o que significa que as lutas reivindicativas
são parte de algo mais amplo e que, portanto, esse limite não existe em tal
movimento. Na Carta de Princípios, há
mais esclarecimentos que mostram o avanço do movimento:
Carta de Princípios do MTD “Pela Base!” –
RJ
·
O
MTD “Pela Base!” (Movimento dos Trabalhadores Desempregados) é um movimento de
caráter classista, anti-autoritário, antirreformista e revolucionário.
Defendemos a organização dos trabalhadores desempregados, não-empregados e subempregados,
caminhando para a conquista dos meios de produção. Nosso projeto amplo é a
construção de uma sociedade socialista, fraterna e justa, sem explorados e nem
exploradores;
·
Entendemos
que a luta dos trabalhadores e trabalhadoras deve ser conduzida por eles
próprios, sem intermediários (governos, políticos, partidos, vanguardas, etc.).
Assim defendemos a autogestão dos meios de produção, a autonomia e o
federalismo. Apoiamos todos os outros movimentos classistas, que se organizem
pela base, de forma horizontal e anti-autoritária;
·
Nossas
lutas e reivindicações não se esgotam apenas em agendas pontuais, mas se
intensificam num programa geral de transformação. Portanto, não nos limitamos à
satisfação de necessidades de curto prazo. Depois das conquistas imediatas, não
passamos a responsabilidade da fase posterior de organização social a governos,
partidos, etc. Ou seja, superadas as dificuldades materiais iniciais, teremos
mais condições de continuar na luta autônoma e revolucionária;
·
Também
defendemos a ruptura incondicional com o modelo de organização social
capitalista, que atualmente passa pela fase neoliberal. Entendemos que este
sistema se faz perverso para os trabalhadores e a população em geral, em função
da concentração de capital e das riquezas nas mãos da minoria, que constrói
toda a máquina de exploração, repressão e de controle político e econômico;
·
Defendemos
a autogestão do solo urbano, a reforma agrária e o uso dos recursos ambientais
pelos povos que deles dependem e a autossustentabilidade do planeta para todos
os seres;
·
O
MTD ”Pela Base!” apoia as lutas internacionais (na América Latina e no
resto do mundo) afinadas com nossas premissas básicas, indicadas nesse
documento;
·
O
MTD ”Pela Base!” se organiza em torno de núcleos de base e na divisão de
tarefas por comissões (1. comunicação/cultura; 2. formação política; 3. nucleamento/articulação;
e 4. estrutura/projetos/finanças);
·
Como
movimento classista, nossa luta se direciona ao fortalecimento dos espaços das
classes populares, de moradia ou trabalho, como subúrbios, periferias, favelas
e ocupações do movimento sem teto;
·
Instituímos
como disciplina militante: a responsabilidade, o comprometimento, a
autodisciplina e a ética, que são motores da organização autônoma e de massas.
Essas premissas devem ser observadas por todos os membros do MTD “Pela Base!”,
individualmente, para o fortalecimento do coletivo. Assim, cada militante deve
respeitar o que foi discutido, analisado e aprovado em assembleia interna, sua
instância máxima deliberativa. Qualquer decisão individual, que violar as
disposições desta assembleia estará sujeita a sanções, determinadas pelo
coletivo;
·
É
garantido a todo militante, no momento de seu ingresso, como parte do
compromisso ético do MTD “Pela Base!”, esclarecimento sobre todos os pontos da
Carta de Princípios.
Aqui
se observa que há uma politização e radicalidade que mostra um setor que
expressa o lumpemproletariado como classe autodeterminada, com algumas
ambiguidades. Obviamente que é um setor da classe e não ela em sua totalidade
(nem sequer é o MTD como um todo, mas o do Rio de Janeiro), mas um setor
organizado e que, sem dúvida, oferece ferramentas intelectuais para outros
setores e indivíduos fora dele. Sem dúvida, a presença de coletivos anarquistas
é uma das fontes do discurso e prática do MTD-RJ, mas isso faz parte da luta de
classes e o próprio renascimento do anarquismo é parte do novo contexto do
capitalismo a partir do surgimento do regime de acumulação integral.
É
perceptível, também, que os problemas terminológicos (e de concepção, pois não
é questão apenas de palavras, mas de seu significado no conjunto discursivo) têm
sua fonte também no anarquismo presente em tal movimento. Assim, trata-se de se
pensar enquanto “povo”, e não enquanto lumpemproletariado ou, sob forma mais
popular, desempregados ou empobrecidos, e por isso não há a explicitação da
necessidade de aliança com o proletariado e nem de como se passa da nossa
sociedade para outra, a não ser a nível organizativo (horizontalidade,
“autogestão”), que, não aponta, por exemplo, para a necessidade de abolição do
Estado e do capital e nem do papel do proletariado nesse processo, ou seja, da
necessidade de instituição de novas relações de produção. Assim, trata-se de
uma posição de um setor do lumpemproletariado bastante avançado, mas com alguns
limites presentes. Contudo, pelas proposições apresentadas e pelos objetivos
colocados, tal movimento está sob hegemonia proletária e não sob hegemonia
burguesa.
Nesse
sentido, o regime de acumulação integral mudou a tendência dominante no
interior do lumpemproletariado e seu crescimento quantitativo dificulta as
tentativas de cooptação geral. Desta forma, o lumpemproletariado se torna um
dos aliados potenciais mais fortes das futuras lutas proletárias.
Considerações
Finais
O
trajeto que percorremos aqui foi no sentido de analisar a relação entre
capitalismo e desemprego, buscando um esclarecimento conceitual e teórico e, ao
mesmo tempo, analisando as determinações dos fenômenos sociais no processo
histórico real. O objetivo fundamental foi realizar uma discussão teórica e
conceitual sobre o desemprego para demonstrar que ele é uma relação social que
se caracteriza pelas relações entre uma classe social de desempregados com as
demais classes e que a determinação fundamental desse processo é a acumulação
de capital, tal como Marx já havia colocado, mas que existem outras
determinações, tais como a ação estatal (incluída, em nossa análise, no
conceito de regime de acumulação), cultura, etc.
Há
uma mudança na compreensão da grande massa dos desempregados, que passa a ser
considerada como pertencentes ao lumpemproletariado, termo que aqui não tem a
carga negativa e o sentido pejorativo que assumiu historicamente em diversas
ocasiões. Nesse sentido, o lumpemproletariado é uma classe determinada pelo
capital e que realiza uma luta constante pela sobrevivência e assim se defronta
com outras classes e se encontra com outras. Devido suas condições de
existência, pode assumir uma posição conservadora, principalmente alguns de
suas frações mais empobrecidas, mas também pode, tal como colocamos
anteriormente, assumir uma tendência revolucionária e se aliar ao proletariado.
Assim, na luta de classes entre burguesia e proletariado, o lumpemproletariado
pode ficar do lado de um ou de outro, mas esse posicionamento depende de
diversas determinações, entre as quais o processo concreto de acumulação de
capital, a ação estatal, as lutas culturais, a questão regional e nacional, as
divisões internas de suas frações e setores, entre outras.
No
caso do capitalismo contemporâneo, comandado pelo regime de acumulação
integral, o que ocorre é um processo de crescimento quantitativo do
lumpemproletariado, bem como uma maior tendência em sua radicalização e
aproximação ao proletariado. Esse processo torna mais difícil um processo de
corrupção e cooptação do lumpemproletariado tal como ocorreu com maior
facilidade no passado. E isso é ainda mais intenso numa situação de busca de
aumento da exploração dos trabalhadores em geral, precarização do trabalho
assalariado em diversos setores, busca de diminuição dos gastos estatais. As
constantes crises financeiras reforçam esse quadro desfavorável para uma
cooptação massiva do lumpemproletariado.
Assim,
a questão do desemprego e do lumpemproletariado hoje, tanto no nível de sua
quantidade quanto no nível de sua ação política, mostra um quadro no qual a
tendência é aumentar o desemprego, matéria para mais lutas do
lumpemproletariado e do proletariado, e radicalização desta classe. Obviamente
que existem diversas outras determinações, e, dentre estas, a luta cultural da
qual fazemos parte, além das demais lutas sociais e ações políticas gerais de
indivíduos e grupos. Esse processo amplo e complexo de luta é o que determinará
o futuro do lumpemproletariado.
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Publicado originalmente em:
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na Dinâmica da Acumulação Integral. In: SOUZA, Davisson Cangusssu (org.). Desemprego e Protestos Sociais no Brasil. São Paulo: FAP-Unifesp, 2015.
* Nildo Viana é Professor da
Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás; Doutor em
Sociologia pela Universidade de Brasília.
[1] O conceito de desemprego só tem
sentido ao lado do conceito de emprego, trabalho assalariado. Por conseguinte,
só existe desemprego no capitalismo, que é onde existe emprego. Na sociedade
escravista, onde predomina o trabalho escravo e não existe trabalho
assalariado, ou emprego, então não há desemprego, o que há é sobrepopulação.
[2] A tradução, no Brasil, é geralmente
“superpopulação”. Contudo, consideramos que a tradução espanhola,
“sobrepoblación” (embora também usem superpoblación) é mais adequada, pois não
somente a impressão imediata é mais fiel ao fenômeno, pois é uma população
sobrante, excedente, como também é mais exata, no sentido que não é apenas
excedente ou sobrante, mas é algo que se acrescenta, o que também se pode
pensar com o termo superpopulação, que, no entanto, geralmente é associado a um
valor e positividade que não é o caso da realidade social dos indivíduos nesta
situação.
[3] Em algumas passagens de sua obra,
Marx atribui o caráter de classe aos marginais, o que ocorre principalmente no
caso do capitalismo. Contudo, somente uma análise pormenorizada de sua obra é
que pode explicitar suas teorias das classes sociais e esclarecer este, entre
outros aspectos (Viana, 2012b) e não poderemos desenvolver esta questão aqui.
[4] Isso é uma obviedade, mas tendo em
vista os milhares de não-leitores e mau-leitores de Marx, nunca é demais citar
o autor para comprovar a afirmação: “O que eu, nesta obra, me proponho a
pesquisar é o modo de produção capitalista e as suas relações correspondentes
de produção e de circulação” (Marx, 1988a, p. 18).
[5] Isso significa que nosso conceito
de desempregado é distinto da definição problemática do B.I.T (Bureau
Internacional do Trabalho): “Segundo a definição elementar e imprecisa do
B.I.T., mas adotada gradativamente por todos os países, é considerado
desempregado o indivíduo sem trabalho, disponível para exercê-lo e à procura de
um emprego. A população ativa é a adição dos indivíduos entre 15 e 64 anos
trabalhando ou buscando um trabalho remunerado. Ficam, assim, excluídos os
aposentados e os estudantes, mas, sobretudo, todos aqueles que, embora
necessitados, tenham desistido de entrar ou de permanecer no mercado de
trabalho” (Catani, 1996, p. 45). A diferença fundamental é que não colocamos “à
procura de trabalho” e sim com “necessidade de trabalho”. Essa diferença é
importante, pois os indivíduos das classes privilegiadas (veja notas abaixo)
podem estar à procura de emprego, mas não possuem necessidade absoluta do
mesmo. Nesses casos, são demandantes e não desempregados. Por outro lado, os
indivíduos pertencentes às classes desprivilegiadas podem não estar procurando
emprego (em determinado momento, ou, como coloca Catani, por ter “desistido”),
mas possuem a necessidade de empregar sua força de trabalho para sobreviver. As
consequências da definição problemática acima nas estatísticas oficiais são
analisadas por Catani (1996).
[6] As classes privilegiadas são o
conjunto de classes que inclui a classe dominante e suas classes auxiliares e
por eventuais classes anteriormente dominantes que sobrevivem durante um
período de tempo numa nova sociedade de classes emergente ou outras classes
exploradoras secundárias em determinada sociedade. No caso do capitalismo
contemporâneo, as classes privilegiadas são a burguesia, a burocracia, a
intelectualidade. Em determinados lugares e épocas poderia se acrescentar a
nobreza e os latifundiários. As classes desprivilegiadas são as demais. O termo
“privilégio” significa, nesse caso, as vantagens adquiridas do pertencimento de
classe, tais como estar acima na hierarquia social, possuir maiores rendas,
poder nas instituições, status, etc.
[7] A relação entre família e classe
social é pouco desenvolvida nas análises marxistas e sociológicas, contudo,
possui grande importância explicativa. A nossa posição sobre o assunto é a de
que os indivíduos que não estão inseridos diretamente nas relações de classe
são pertencentes indiretamente às classes de sua família (Viana, 2013).
[8] Marx aborda o lumpemproletariado
em diversos textos e sua definição não é precisa, às vezes aparece como
equivalente a “exército industrial de reserva” ou “desempregados”, às vezes
aparece como apenas uma parte do mesmo (Viana, 2012). Aqui entendemos por
lumpemproletariado uma classe social que é composta pelos marginalizados na
divisão social do trabalho, ou seja, exatamente como a força de trabalho
excedente.
[9] Um exemplo: “mas, se uma população
trabalhadora excedente é produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento
da riqueza com base no capitalismo, essa superpopulação torna-se, por sua vez,
a alavanca da acumulação capitalista, até uma condição do modo de produção
capitalista” (MARX, 1988b, p. 191).
[10] A noção de precariado, utilizada
por Standing (Braga, 2012) e retomada num sentido diferente por Ruy Braga
(2012), é não só imprecisa como é constituída a partir de critérios externos à
teoria marxista, sendo mais uma palavra inserida numa discussão que usa
terminologia marxista do que um conceito propriamente dito.
[11] Existe uma extensa produção
bibliográfica que discute a questão do trabalho produtivo e improdutivo, bem
como inúmeras interpretações do que Marx afirmou sobre isso. Não poderemos aqui
entrar nessa discussão, por razões óbvias, mas tão-somente colocar nossa
posição e remeter a uma obra na qual discutimos esta questão e fundamentamos
nossa interpretação de Marx (Viana, 2012b). A nossa posição é a de que apenas aqueles que
produzem mais-valor são trabalhadores produtivos e que são atingidos pela forma
especificamente capitalista de exploração. A produção de mais-valor ocorre via
produção de mercadorias, bens materiais portadores de valores de uso e de troca
e que, portanto, não inclui o comércio e, nem, tal como afirma uma ideologia
recente, o “trabalho imaterial”, tal como criticamos em outra oportunidade
(Viana, 2009).
[12] Claus Offe (1984) apresenta esse
processo como sendo proletarização passiva (lumpemproletarização, em nossa
linguagem), que é marcada pela produção de um grande contingente de força de
trabalho disponível, e proletarização ativa, que é o processo pelo qual se concretiza
o uso da força de trabalho proletária efetivamente (proletarização, em nossos
termos).
[13] Obviamente que o foco aqui é o
caso europeu e, secundariamente, o norte-americano, pois estamos analisando o
capitalismo. A força de trabalho deslocada da África para a América do Sul, não
é abordada, pois o que se constitui no Brasil, por exemplo, é um modo de
produção escravista colonial subordinado ao capitalismo nascente, ou seja, não
se trata de modo de produção capitalista.
[14] Em 1907, John Bates Clark,
economista norte-americano, buscava justificar a existência do desemprego: “um
suprimento de mão-de-obra desempregada está sempre disponível e não seria nem
possível nem normal que esse suprimento não existisse. O bem-estar dos
trabalhadores exige que o progresso continue, e isto é impossível de ser
alcançado sem causar a dispensa temporária de trabalhadores” (apud, Rifkin, 1995,
p. 17).
[15] Marx percebeu que a imensa máquina
burocrática estatal na França, no regime de acumulação anterior, sustentava um
milhão e meio de pessoas (Marx, 1986).
[16] No capitalismo subordinado, tal
como no caso brasileiro, embora haja muitas diferenças de acordo com o país e o
processo de industrialização em cada um, começa a emergir um processo de
emprego e desemprego da força de trabalho industrial, mas convivendo com
relações de produção não-capitalistas no campo, cuja corrosão se dará,
paulatinamente, após a Segunda Guerra Mundial, embora seus primórdios, no caso
brasileiro, tenha sido a Revolução de 1930.
[17] Isso ocorreu em termos gerais, mas
em certos setores houve diminuição do emprego de força de trabalho. Esse é o
caso do emprego na agricultura, pois na indústria houve um crescimento. Nos
Estados Unidos, por exemplo, houve um crescimento de 24,5 em 1930 para 25,9,
bem como no Japão, Alemanha, França, etc. “Dessa forma, como afirma Singelmann,
a mudança na estrutura do mercado de trabalho nesta metade de século (1920-1970)
foi da agricultura, e não da indústria, para o setor de serviços e construção”
(Castells, 2011, p. 272-273).
[18] A ideia de classe determinada e
classe autodeterminada é exposta por Marx como a divisão entre “classe em si” e
“classe para si”, usando terminologia hegeliana (Marx, 1989). Essa divisão
realizada por Marx geralmente foi interpretada como significando, no primeiro
caso, uma classe sem consciência de classe revolucionária, o que ocorreria no
segundo caso. Contudo, o significado dessa distinção em Marx é muito mais ampla
(Viana, 2012b).
[19] Este artigo foi concluído em
fevereiro de 2013 e revisado em setembro para publicação e por isso poderíamos
acrescentar o caso das manifestações no Brasil em maio e junho deste ano.
[20] Usamos aqui o termo “classes
trabalhadoras” ou “classes exploradas” no sentido de aglutinar todas as classes
sociais compostas por trabalhadores explorados, não somente o proletariado, mas
também o campesinato e trabalhadores do comércio e outros setores.
[21] “Os indivíduos afetados
recentemente pelo desemprego e pela precarização não estão submetidos às mesmas
condições econômicas objetivas, não possuem a mesma identidade social e não têm
práticas simbólicas e políticas homogêneas” (Catani, 1996, p. 69). Deixando de
lado a linguagem problemática, o que se mostra aqui é a diferenciação no
interior do novo lumpemproletariado, bem como dele com os setores mais antigos.