Pannekoek: Das Organizações Burocráticas à
Auto-Organização*
Nildo Viana
Anton Pannekoek (1873-1960) é um dos mais importantes autores marxistas
do século 20. A sua importância, teórica e prática, se revela por intermédio de
mais de 50 anos de trabalho intelectual e prática política. Ele não só se
formou num processo de luta como derivado dela combateu as concepções e
organizações que eram obstáculos para a revolução proletária, de forma moderada
no início, até a radicalização relacionada com as mudanças históricas e o
próprio desenvolvimento do movimento operário, o que provocou o desdobramento
teórico em seu pensamento e a parte mais importante dele.
A presente coletânea assume, assim, uma grande importância no sentido de
que ajuda a resgatar o pensamento de um autor relativamente pouco conhecido e
que vem ganhando um maior número de publicações mais recentemente. Sem dúvida, o
que aqui publicamos são apenas alguns poucos textos e limitados ao tema da
questão da organização, um elemento fundamental do seu pensamento e que por
isso é importante resgatar e abrir espaço para novas publicações a seu respeito[1].
Aqui reunimos artigos variados publicados por Pannekoek referentes ao
problema de partidos, sindicatos e conselhos operários, bem como alguns
capítulos de sua principal obra, Os Conselhos Operários. Esta obra é
fundamental para permitir um aprofundamento do conhecimento de sua contribuição
ao marxismo. Evitamos, pois, os primeiros textos de Pannekoek, que abordam a
questão de partidos e sindicatos, pois sua concepção foi sendo alterada com o
desenvolvimento histórico e as experiências destas organizações e do próprio
autor. E também não utilizamos textos de livros, a não ser a exceção acima
apresentada. O conjunto de textos sobre partidos, sindicatos e conselhos, aqui
reunidos, data de sua última fase de pensamento, enquanto representante da
tendência conhecida como comunismo de conselhos.
Qualquer leitor crítico de Pannekoek – e todo marxista ou libertário tem
que assumir o compromisso com a criticidade[2]
– deve estar atento que ele escreveu desde o início do século 20 até os anos
1950, ou seja, meio século. Isto significa que ele viveu durante épocas
diferentes e isso obviamente vai ter ressonâncias em suas obras. Outra questão é estar atento para a evolução
intelectual do autor. Pannekoek produziu suas primeiras obras políticas no
interior da socialdemocracia, como dissidente, mas participante desta. A sua
ruptura com a socialdemocracia provocou mutações em seu pensamento. A sua
oposição à socialdemocracia, quando era interna, apontava para determinados
limites e influências, e, sua oposição posterior, externa, já lhe permite
avançar e entender melhor o significado dos partidos socialdemocratas dessa
época.
Porém, é com a sua crítica radical ao bolchevismo[3]
é que sua compreensão dos partidos políticos avança e ele passa a entender
melhor a socialdemocracia europeia e seu herdeiro russo. Assim, ler um texto de
Pannekoek de 1905 ou 1909 e depois um de 1927, 1936 ou 1953 sem se atentar para
isso, é cometer um equívoco. Inclusive o Pannekoek representante do comunismo
de conselhos recusa os partidos políticos em geral, o que não fazia na época em
que estava no interior da socialdemocracia e retirar da leitura de um texto
dessa época a afirmação que ele acreditava no papel do partido político[4],
é cometer um grave equívoco interpretativo.
Assim, a obra de Pannekoek tem um valor histórico, por expressar as lutas
e dilemas do movimento operário e dos partidos, sindicatos, grupos, existentes
durante um longo tempo, bem como as experiências revolucionárias do
proletariado do início do século 20. Além disso, tem um valor teórico, pois,
apesar de suas teses não serem tão complexas e sua teorização no que diz
respeito ao processo da revolução e formação dos conselhos, possuírem uma base
na teoria marxista, ele acrescenta elementos importantes para ela, uma maior
precisão no que diz respeito à compreensão da autoemancipação proletária,
esboçada por Marx numa época não-revolucionária, apesar das iniciativas
revolucionárias daquele período[5].
Assim, enquanto Marx discutia a questão da “livre associação dos produtores” e
enfatizava a luta operária como meio de autolibertação do proletariado, e,
mesmo quando se baseou na experiência revolucionária do proletariado parisiense
durante a Comuna de Paris, não podia prever as formas de auto-organização que
se desenvolveriam posteriormente, especialmente os conselhos operários, e
Pannekoek, bem como outros, vivenciaram e mostraram ser esta a via da
autoemancipação proletária[6].
Não é possível deixar de lado o valor político da obra de Pannekoek, pois
ele avança no sentido de uma crítica radical dos partidos e sindicatos,
mostrando seus vínculos com o processo de reprodução do capitalismo e, ao mesmo
tempo, analisando as formas como o proletariado desenvolve sua auto-organização
para a revolução social e para a organização da produção na sociedade
comunista. Sem dúvida, esses aspectos estão intimamente relacionados, pois o
valor histórico, teórico e político são inseparáveis (a não ser para os
ideólogos, que podem, obviamente, se agarrar apenas ao aspecto histórico e
desligá-lo do resto, criando mais uma ideologia). Por conseguinte, o conjunto
da obra de Pannekoek precisa ser reavaliado e as obras que se dedicaram a isso
tendem a aumentar e proporcionar um renovado interesse pelo seu pensamento, o
que, em si, já é uma grande contribuição para o processo da luta operária.
Transformações Históricas e Evolução
Intelectual de Pannekoek
É mais fácil compreender os textos aqui reunidos se compreendermos a
evolução intelectual de Pannekoek. E tal evolução intelectual está intimamente
ligada ao processo de transformações do capitalismo e da luta de classes desde
o início do século 20. Assim, para entender Pannekoek é preciso entender as
mudanças sociais que ocorreram e que ele foi um participante ativo na esfera
das lutas sociais. Inclusive, não somente a evolução intelectual de Pannekoek,
mas até mesmo a lógica argumentativa dele reproduz a mesma dinâmica: a crítica
das organizações burocráticas é sucedida pela análise e defesa das formas de
auto-organização do proletariado.
Pannekoek iniciou sua militância na socialdemocracia e ao romper com ela
e seus derivados (incluindo o bolchevismo), foi um crítico dissidente e
interno, mas, por isso mesmo, limitado. Ao romper no horizonte as revoluções
proletárias, há uma radicalização do movimento operário e dos seus
representantes teóricos e políticos, que é o que ocorre com Pannekoek. No
entanto, é somente no bojo das revoluções proletárias e das contrarrevoluções
burocráticas que a ruptura completa ocorreu e o verdadeiro papel de partidos e
sindicatos se revelou. Assim, desde a década de 1920, Pannekoek – e não só ele,
embora alguns antes dele, como Otto Rühle (1975), começa o exercício de crítica
radicalizada de partidos e sindicatos, e com o desenvolvimento do capitalismo
oligopolista e, principalmente do capitalismo oligopolista transnacional (que
ele denomina indistintamente como “capitalismo monopolista”)[7],
acaba aprofundando e negando completamente os partidos e sindicatos[8].
É nesse momento que seu pensamento está suficientemente aprofundado, apesar de
algumas imprecisões posteriormente resolvidas[9],
e que ele desenvolve sua análise mais pertinente do caráter dos partidos e
sindicatos.
Assim, é comum distinguir alguns períodos no pensamento de Pannekoek, que
seriam os seguintes: participação e crítica da socialdemocracia; participação e
crítica do “socialismo radical”; adesão ao comunismo de conselhos (Bricianer,
1975). O período em que participou da socialdemocracia foi aproximadamente
entre 1901 e 1913 (a ruptura com a socialdemocracia por parte de indivíduos e
grupos tardou um pouco mais, geralmente após 1914 e a aprovação pelos deputados
do SPD – Partido Socialdemocrata Alemão – dos créditos de guerra, em que a
Alemanha entrava na Primeira Guerra Mundial). Nessa época, produziu um grande
número de artigos e cartas, bem como publicou em 1909 o livro As Divergências Táticas no Movimento
Operário (Pannekoek, 2007). No entanto, apesar de estar no interior da
socialdemocracia, não poupava críticas a esta. Ele critica as tendências
moderadas da socialdemocracia e o revisionismo de Bernstein explicando que sua
origem nas mudanças do capitalismo e nas influências pequeno-burguesas no seu
interior:
O socialismo busca conseguir todas as vantagens
momentâneas possíveis, e, no entanto, não encontra sua finalidade a não ser na
revolução futura, a derrocada do modo de produção. Por isso não descuida do menor
trabalho de formiga; o trabalho cotidiano é tudo para ele, porém, ao mesmo
tempo, seu objetivo final revolucionário é também tudo para ele. Ele utiliza
para seu combate todas as instituições da sociedade capitalista que lhe
oferecem uma possibilidade de aumentar seu poder e, no entanto, se opõe duramente
a elas por questões de princípio. Situa-se totalmente no terreno do que existe
e, ao mesmo tempo, se mantém em um terreno completamente novo, a partir do qual
recusa e critica tudo o que existe. Vive na exaltação entusiasta por seu
magnífico ideal de futuro, exaltação que faz com que seus partidários sejam
capazes dos atos mais abnegados, mais desinteressados, mais heroicos; e, ao
mesmo tempo, pratica o realismo mais frio, que só atua sobre o terreno sólido
da ciência, dos fatos e para o qual a prática é tudo. Que o socialismo reúna em
um todo unitário estes traços que, segundo a representação habitual, se
contradizem e se excluem, reside no fato que é um movimento natural que nasce
da realidade, que é um elo, uma etapa, em um processo incessante do devir
(Pannekoek, 2007, p. 198-199).
Pannekoek acrescenta que é natural para o espírito humano a tendência em
ver unilateralmente a partir de uma experiência limitada. Desta forma, se cria
a tendência de ver estes dois aspectos como mutuamente excludentes e opostos. Daí
surge duas tendências: a revisionista, que acentua o trabalho prático de
reformas e o anarquismo, que acentua o objetivo final desprezando o “trabalho
de formiga”. Porém, isso não é fruto apenas de concepções equivocadas, mas
também do desenvolvimento econômico insuficiente e determinadas relações
políticas. Mas ambas as concepções expressam uma concepção burguesa de mundo,
que é não-dialética, ao contrário da concepção proletária, que é dialética.
Tanto o anarquismo como o revisionismo “são duas tendências burguesas no
movimento operário, unem uma concepção burguesa de mundo a sentimentos
proletários” (Pannekoek, 2007, p. 220). Seriam, mais exatamente, duas
tendências pequeno-burguesas. Segundo Pannekoek, “o anarquismo é a ideologia do
pequeno-burguês convertido em selvagem, o revisionismo é a do pequeno-burguês
domesticado” (Pannekoek, 2007, p. 221).
Aqui Pannekoek revela uma análise correta e, ao mesmo tempo, equivocada.
Sem dúvida, é excepcional sua percepção da mescla entre concepção burguesa de
mundo e sentimentos proletários, o que ocorre em milhares de casos. Porém, sua
forma de conceber a questão da reforma e da revolução, do imediato e do
objetivo final, é problemática, já que não estabelece o vínculo necessário
entre meios e fins, ou seja, o objetivo final é realmente o fundamental e o que
é preciso é entender quais meios podem ser utilizados para se chegar a
determinado fim, havendo unidade indissolúvel entre ambos (Viana, 2008a), o que
foi ressaltado por Rosa Luxemburgo, sendo um dos elementos fundamentais de todo
o seu pensamento e originado de sua crítica ao reformismo revisionista
(Luxemburgo, 1986).
Outro problema nesta formulação de Pannekoek é sua crítica ao anarquismo.
Sem duvida, o reformismo não ultrapassa o nível do “trabalho prático das
reformas” e por isso é uma concepção burguesa (ou burocrática) – e além disso
que nada tem de “sentimento proletário”, a não ser em casos individuais – mas o
anarquismo ou qualquer tendência que fique apenas no objetivo final é muito
mais útil ao movimento revolucionário do que o reformismo ou seus derivados
(como o bolchevismo, não abordado por Pannekoek devido o fato de ser
inexpressivo nessa época). Também não é possível generalizar uma crítica ao
anarquismo, que possui várias correntes com concepções distintas e muito menos
pensar o anarquismo como algo unitário e que deveria ser simplesmente
descartado (e os supostos “anarquistas” dentro da socialdemocracia nada possuem
de anarquismo, são na verdade as tendências radicais que entram em confronto
com as burocracias partidárias e as concepções dominantes no partido). Além
disso, qualquer indivíduo pode se dizer anarquista sem ter nenhum
aprofundamento ou compromisso real com o anarquismo, o que complica a situação.
Da mesma forma, as tendências revolucionárias no anarquismo não são ligadas
apenas aos objetivos, mas possuem formas de ação que colaboram com o processo
revolucionário. Contudo, o que Pannekoek critica não é exatamente o anarquismo,
um uso indevido para este nome, e sim as tendências que hoje seriam chamadas de
“esquerdistas” no interior da socialdemocracia, e da qual o próprio Pannekoek
fará parte no futuro.
Pannekoek reproduz a tradição socialdemocrata e cai no equívoco de
considerar o revisionismo como ideologia pequeno-burguesa. Na época, poucos,
como Makhaisky (1981) na Rússia, haviam se atentado para a burocracia e a
intelectualidade como classes sociais que não tem sentido em chamar “pequeno
burguesas”, um equívoco terminológico. É por isso que defenderá as lutas
parlamentares e criticará o parlamentarismo exclusivo defendido pelos
revisionistas. Fará o mesmo em relação aos sindicatos, mostrando duas
tendências burguesas, o reformismo e o sindicalismo revolucionário, destacando
seu papel de lutar por melhores condições de trabalho e questões econômicas,
que é campo fértil para o revisionismo, e sua negação expressa um radicalismo
que é outra concepção burguesa, o sindicalismo revolucionário que abandona o papel
do sindicato e se torna outro obstáculo para o desenvolvimento das lutas
proletárias (Pannekoek, 2007; Viana, 2011c)[10].
Sem dúvida, havia uma terceira tendência, com a qual Pannekoek se
identificava, que era a marxista (apesar de que, na socialdemocracia da época,
todos se diziam marxistas, inclusive os reformistas e “anarquistas”). Pannekoek
criticava a tendência dominante da socialdemocracia, revisionista e reformista,
tal como Rosa Luxemburgo fazia ao criticar o revisionismo de Bernstein
(Luxemburgo, 1986). A obra As
Divergências Táticas no Movimento Operário[11]
revela as preocupações básicas do pensamento de Pannekoek que serão permanentes
e já estavam presentes, mas num contexto social, histórico e cultural
desfavorável. Porém, apesar disso é preciso deixar claro que, tal como Rosa
Luxemburgo, Pannekoek não criticou apenas a ala revisionista mas também a dita
“ortodoxa”, especialmente Kautsky, tal como se vê no seu debate com este sobre
a questão da greve, em seu texto Ações de
Massas e Revolução, publicado em 1912 (Pannekoek, 1978)[12].
Isto tudo ocorreu muito antes da chamada “cisão” da Segunda Internacional,
quando as alas dissidentes dos Partidos Socialdemocratas fundaram outros
partidos ou grupos e foi quando Lênin rompeu com seu mestre Kautsky, que virou,
para ele, um renegado, como se já não fosse um falso marxista e revolucionário
há muito tempo.
Porém, é preciso compreender o contexto social para entender a posição
inicial de Pannekoek, ou seja, sua inserção na socialdemocracia e, ao mesmo
tempo, sua posição dissidente interna, sem realizar uma maior radicalização. O
próprio Pannekoek neste mesmo livro apresenta a chave para compreensão de sua
posição inicial, ao explicar a reprodução e manutenção do revisionismo, apesar
das críticas que sofreu. Nesta obra, ele coloca o caso dos militantes
inexperientes que aderem à socialdemocracia:
“Nestes novos membros, se repete, pois, as condições
do começo do movimento, quanto todo o partido tem que buscar, no entanto, penosamente
o caminho. Contudo, ainda não pode nascer tendências diferentes somente por
este fato, pois os novos membros inexperientes geralmente se deixam dirigir
pela experiência mais desenvolvida, pela compreensão mais profunda, pelos
conhecimentos científicos e pela marcha adiante mais segura dos camaradas mais
antigos. Além disso, a comparação com os começos do movimento só é admissível
parcialmente. Efetivamente, não é totalmente necessário que cada indivíduo
passe sempre de novo por todas as ilusões das etapas anteriores do movimento. O
resultado destas experiências e conhecimentos adquiridos penosamente se
encontra à sua disposição na teoria socialista sob uma forma resumida,
condensada. Meio século de movimento operário ascendente e de luta de classe
entre burguesia e proletariado produziu uma grande quantidade de experiências
às quais o movimento socialista atual é devedor de sua tática de luta decidida,
mais segura, e sua história oferece aos novos membros e às jovens gerações uma
fonte inesgotável de ensinamentos preciosos. Graças a estes últimos, a doutrina
do desenvolvimento social e da luta de classe, que Marx e Engels expuseram já
em 1847 no Manifesto Comunista, se
converteu em saber sólido, fundamentado, das classes trabalhadoras mais amplas”
(Pannekoek, 2007, p. 188).
Assim, as novas gerações não possuem as experiências das gerações
anteriores e por isso devem reaprender o que já foi aprendido por outros
anteriormente. Aqui Pannekoek reproduz a tese biológica da recapitulação, também
conhecida como “lei biogenética”, segundo a qual a ontogênese revive a
filogênese, ou seja, o indivíduo revive todas as etapas vividas pela espécie, o
desenvolvimento da humanidade é reproduzido no desenvolvimento de cada ser
humano. Não custa lembrar que Pannekoek publicou Marxismo e Darwinismo no mesmo ano que As Divergências Táticas no Movimento Operário. Claro que ele alerta
que isso não é uma lei, já que isso é parcial e não é “totalmente necessário”.
Esta ideia, inspirada na biologia, no entanto, é rica e possui um
elemento fundamental: as novas gerações de militantes (tanto da
socialdemocracia quanto de qualquer outro partido, grupo ou tendência) não
possuem a experiência e a leitura de todas as teorias produzidas pelas épocas
precedentes. É por isso que grande parte deles adere aos partidos de esquerda
ou a concepções, tendências e grupos existentes sem conhecer a história e o
debate realizado historicamente entre elas, inclusive não sabendo das superações teóricas que ocorreram, mas
que não foram superações práticas.
Pois a socialdemocracia, o bolchevismo, etc., já foram refutados teoricamente
e, no entanto, são tendências hegemônicas devido a diversas questões, entre
elas os seus aparatos burocráticos, recursos, tradição, entre outras (no caso
do bolchevismo, existiu todo um bloco de países se dizendo “socialista” e
reforçando esta ideologia).
Aliás, este é um dos motivos pelos quais muitos são dissidentes dentro da
socialdemocracia e acabam rompendo com ela, formando outros partidos, que por
sua vez, tão logo ocorre sua burocratização, geram novas dissidências e cisões.
Claro que existem outras determinações nesse processo e é justamente o que
Pannekoek vai expor: ritmo de desenvolvimento desigual em diferentes regiões, caráter
dialético da evolução social, existência de outras classes ao lado da burguesia
e do proletariado. Retirando o “caráter dialético da evolução social”, que não
quer dizer nada, e acrescentando a questão das ideologias dominantes, da
burocratização e das frações concorrentes da burocracia como classe social, da
competição social, da sociabilidade e mentalidade burguesas, as relações
afetivas criadas no interior das organizações, etc., temos um quadro
explicativo abrangente.
Como dissemos, isto ajuda a explicar a própria inserção de Pannekoek na
socialdemocracia. Claro que quando Pannekoek escreveu seu livro não era um
militante inexperiente, já era um cientista natural reconhecido, militante de
há muitos anos e autor de diversos textos e livros, além de conhecedor das
obras de Marx, Engels, Dietzgen, Kautsky e inúmeros outros. Porém, em que pese
sua experiência e saber teórico, isto não é suficiente em muitos casos. Existem
as diversas outras determinações que aludimos acima. Porém, no caso de
Pannekoek, as demais determinações que atuaram foram as concepções dominantes,
o vínculo afetivo com a organização, e a crença que a socialdemocracia possuía
um problema de tática, de más influências (de concepções e de classes) e desvios
direitistas e esquerdistas, mas era o caminho e instrumento revolucionário do
proletariado. Essa crença era dominante nos círculos socialdemocratas e em que
pese o papel cada vez mais conservador destes partidos, as tendências
esquerdistas, radicais e dissidentes, atraiam os mais descontentes e alimentava
a esperança em sua mudança de rota no sentido de assumir papel revolucionário,
o que legitimava e reforçava a adesão ao partido. Além disso, a fraseologia
revolucionária, mero discurso para disfarçar seu reformismo, do pseudomarxismo
ortodoxo de Kautsky e outros, ainda iludia alguns integrantes do partido,
embora cada vez mais a prática e o discurso fossem assumindo ares mais
conservadores. É com a burocratização crescente, reforçada pelas vitórias
eleitorais, e conservadorismo também crescente que lhe acompanha, que gera
novas dissidências e cisões. A data chave para isso foi 1914, quando todas as
ilusões daqueles bem intencionados e que ainda carregavam essa crença numa
socialdemocracia revolucionária se desfez diante do apoio à guerra e posição
nacionalista dos partidos socialdemocratas.
Outro problema que fez com que Pannekoek não avançasse foi a não
percepção clara de uma nova classe social oriunda do desenvolvimento
capitalista: a burocracia. As críticas à socialdemocracia, desde o final do
século 19, era a das influências e camadas chamadas “pequeno-burguesas”, ideia
reproduzida por Pannekoek. Pannekoek, muito antes de Poulantzas (1978), já
discutia a diferença entre as classes médias antigas e as novas e percebia a
intelectualidade e a burocracia no interior destas últimas:
“De uma maneira diferente em relação aos vestígios das
antigas classes médias independentes, as classes médias chamadas novas, os
intelectuais, os funcionários, os empregados, constituem uma camada de
transição entre o proletariado e a burguesia. Elas se distinguem das antigas
classes médias devido um ponto essencial: não possuem meios de produção, pois
vivem da venda de sua força de trabalho. Portanto, não possuem nenhum interesse
em manter a produção privada, na conservação da propriedade privada dos meios
de produção. Neste ponto se encontram de acordo com o proletariado. O seu olhar
se dirige para o futuro e não para o passado. Trata-se de uma classe moderna
que está em ascensão e que cada vez se faz mais numerosa e importante na medida
em que desenvolve a sociedade” (Pannekoek, 2007, p. 277).
O processo de percepção da burocratização da socialdemocracia avançava
através tanto de militantes, desde Hans Müller e seu livro A Luta de Classes na Socialdemocracia no final do século 19,
passando por Makhaisky, na Rússia, do mesmo período até a revolução
bolchevique, até obras de acadêmicos e militantes dos anos posteriores.
Makhaisky (1981) teve um papel essencial ao analisar a intelligentsia como classe social privilegiada que se manifestava
na socialdemocracia (e no bolchevismo) e que nada tinha a ver com o movimento
operário e com o comunismo. Porém, a ressonância de sua obra se deu apenas na
Rússia e sem grandes repercussões, a não ser em alguns grupos e indivíduos.
Em 1914, ano emblemático, é publicado o livro do integrante do Partido
Socialdemocrata Alemão, Robert Michels, intitulado Sociologia dos Partidos Políticos, apresentando a sua tese da “lei
férrea da oligarquia”. Nesta obra, fica explícito que a burocracia domina o
partido, e isso é algo comum em todos os partidos políticos existentes, inclusive
nos partidos ditos “socialistas” (Michels, 1982). O aparato partidário, com a
estabilidade dos chefes, o seu poder financeiro, o controle da imprensa, a ação
dos parlamentares, a luta pelo poder entre os chefes (que criam novos grupos e
cisões), as tendências centralizadoras, são abordadas por Michels, bem como a
metamorfose das massas quando aderem ao partido e ganham vantagens nisso. O
crescimento partidário aumenta o burocratismo e o crescimento eleitoral reforça
o conservadorismo e reformismo e ambos se reforçam reciprocamente, pois um
crescimento reforça o outro e as concepções burocráticas e a burocracia
partidária são reforçadas da mesma forma.
“A luta pelo socialismo resulta inevitavelmente no
aburguesamento do movimento socialista – esse é o ponto essencial da clássica
análise de Robert Michels. A luta requer organização; demanda um aparelho
permanente, uma burocracia assalariada; exige que o movimento se dedique a
atividades econômicas próprias. Com isso, os militantes socialistas
forçosamente tornam-se burocratas, editores de jornais, administradores de
companhias de seguro, gerentes de casas funerárias, e até mesmo Parteibudiger –
gerentes de bar do partido. Todas essas ocupações são características da
pequena burguesia” (Przeworski, 1989, p. 27).
Obviamente que essa tendência à burocratização não é derivada da luta
pelo socialismo quando se pensa no caso de um verdadeiro movimento revolucionário
(caso do anarquismo, conselhismo, etc.), mas apenas no caso dos partidos
socialdemocratas e derivados e semelhantes. As organizações revolucionárias são
não-burocráticas e por isso, inclusive, que não crescem de forma a se
constranger a formar uma burocracia interna e quando seu crescimento é além do
comum, se utiliza formas organizativas diferenciadas (federações, articulações,
uniões, etc.) e não hierárquicas.
O crescimento eleitoral da socialdemocracia destrói os sonhos, ilusões e
crenças de que ela ainda teria a possibilidade de assumir uma posição
revolucionária, o que já era impossível desde o início do século 20, devido seu
grau de crescimento e burocratização (e das ideologias e outros aspectos
derivados disso), mas ainda restava a crença que foi diminuindo até se
extinguir com o fortalecimento eleitoral e crescimento partidário da mesma.
“O partido alemão – apontado por Engels como o modelo
a ser seguido – cresceu, apesar dos anos de depressão, de 125 mil votos em 1871
para 312 mil em 1881, 1 427 000 em 1890 e 4 250 000 às vésperas da Primeira
Guerra Mundial. De fato, tão logo se permitiu que caducassem as leis
anti-socialistas, o SPD tornou-se, em 1890, o maior partido da Alemanha, com
19,7% dos votos. Em 1912, sua porcentagem – 34,8% – era mais que o dobro da
relativa ao segundo maior partido. Não é de admirar que, em 1905, Bebel pudesse
“explicitar a hipótese, amplamente aceita por seus correligionários
socialistas, de que a classe operária continuaria a crescer e que o partido
englobaria, um dia, a maioria da população [...]. Vários partidos entraram de
modo ainda mas notável na competição por votos. Em 1907, os social-democratas
finlandeses conseguiram maioria relativa, 37%, na primeira eleição com sufrágio
universal. Os social-democratas austríacos obtiveram 21% quando o direito do
voto foi estendido a todos os indivíduos do sexo masculino, em 1907; em 1911,
sua porcentagem chegou a 25,4%, e em 1919 conquistaram a maioria relativa –
40,8%. O belga Parti Ouvrier
conseguiu 13,2 de votos ao ser abolido o régime
censitaire em 1894, e continuou a crescer aos saltos, chegando em 1925 à
maioria relativa de 39,4%, sucesso que “estimulou-os a supor que a contínua
industrialização produziria um eleitorado crescentemente composto de operários
socialistas”. Mesmo nos países onde os primeiros passos não atingiram
proporções tão eloquentes, o progresso eleitoral parecia inevitável. Na
religiosamente politizada Holanda, o socialismo marchou a passos largos,
passando de 3% de votos em 1896 para 9,5%, 11,2%, 13,9% e, em 1913, 18,5%. O
partido dinamarquês obteve 4,9% em 1884, a primeira eleição que disputou; em
1889, conseguiu apenas 3,5%; a partir daí, o partido jamais deixou de aumentar
sua porcentagem de votos até 1935, quando chegou a 46,1%. Novamente, “houve uma
expectativa geral de que, sendo o único partido a representar o movimento
operário, chegaria ao poder por intermédio da maioria absoluta do eleitorado”.
O partido sueco teve um início humilde, apresentando candidatos em chapa
conjunta com os liberais; alcançou 3,5% em 1902, 9,5% em 1905, 14,6% em 1908,
deu um salto para 28,5% e 1911, com a extensão do direito de voto, aumentou sua
participação para 30,1% e 36,4% nas duas eleições sucessivas de 1914 e,
juntamente com sua ala radical, obteve a maioria relativa de votos – 39,1% – em
1917. O Partido Trabalhista norueguês cresceu cerca de 5% a cada eleição a
partir de 1897, quando obteve 0,6% de votos, até 1915, quando sua porcentagem
atingiu 32,1%” (Przeworski, 1989, p. 33).
Assim, os partidos socialdemocratas cresciam cada vez mais a partir
principalmente do início do século 20 e eleitoralmente ganhava cada vez mais
peso. O crescimento partidário está ligado ao número de militantes e isso tende
a gerar um processo de burocratização. O objetivo eleitoral, por sua vez, torna
necessária a militância, propaganda, imprensa, especialistas, etc. Isso provoca
uma burocratização crescente[13].
Porém, o crescimento eleitoral reforça o crescimento partidário, atraindo os
iludidos e os oportunistas, por um lado, ou seja, o crescimento quantitativo e,
por outro lado, criando novos cargos e espaços institucionais (no próprio
partido, mas principalmente no parlamento e no governo, ou seja, no poder legislativo
e executivo, sendo que um eleito emprega auxiliares, principalmente no último
caso). É bem comum que os partidos socialdemocratas iniciem sua trajetória com
maior radicalismo e proximidade com o proletariado, inclusive a nível de
integrantes, apesar de sempre contar com intelectuais e burocratas, bem como
possivelmente camponeses, pequeno-burgueses e outros. O seu crescimento partidário
e eleitoral logo atrai o que Michels denominou “charlatões e ambiciosos”. Tal
como ele coloca:
“Muitos detestam, conscientemente ou não, a autoridade
do Estado, porque ela lhes é inacessível. É a velha história da raposa e das
uvas muito verdes. O que os empurra é a inveja, a sede insaciável de poder: o
ódio e o ciúme dos caçulas pobres das grandes famílias pelos seus irmãos mais
ricos e mais afortunados” (Michels, 1982, p. 152)[14].
Logo, o partido socialdemocrata torna-se um meio de ascensão social, uma
forma de ganhar a competição social, elemento estrutural da sociabilidade
capitalista (Viana, 2008b) que se reproduz em tais organizações partidárias. Esse
processo, por sua vez, reproduz a mentalidade burguesa e esta reforça a
sociabilidade capitalista através de valores, sentimentos e concepções que
apontam para a reprodução da competição, burocratização e mercantilização das
relações sociais (Viana, 2008b). Isso pode ser visto no que Michels chamou
“metamorfose psicológica dos chefes”, onde, obviamente, o aspecto burocrático
(ânsia pelo poder, direção, dominação) é o elemento mais desenvolvido da mentalidade
burguesa (Michels, 1982).
E isso atinge aos “chefes” (burocratas) de origem burguesa, proletária,
etc. A passagem de uma classe social para outra significa uma mudança de modo
de vida e de mentalidade, que, mesmo tendo variações individuais, no caso do
partido político, expressa um conservadorismo ascendente (com ou sem
contradição e racionalização, para usar termo de origem psicanalítica,
dependendo do caso), já que ao aceitar as relações sociais, as ações que devem
realizar, novos valores, as novas “amizades” e práticas (acordos, conchavos,
alianças) e a mudança de objetivos (da revolução para a vitória eleitoral e
conquista do poder estatal ou pelo menos cargos), não aceita meio termos. Os
que resistem a isso abandonam o partido, seja para formar outro ou para criar
outras formas organizacionais ou, ainda, abandonar a prática política. Claro
que alguns abandonam o partido por descontentamento em não estar no cume da
hierarquia burocrática e assim buscam criar novos partidos e levam com eles uma
legião de iludidos, que, muitas vezes, se tornam desiludidos em pouco tempo e
quanto mais o novo partido cresce.
Nesse processo, se cria uma ampla e forte burocracia partidária, que, por
sua vez, se une com uma também poderosa burocracia sindical e elas se reforçam
mutuamente. Surgem, assim, duas novas frações da classe burocrática[15],
uma classe auxiliar da burguesia, que vive querendo se autonomizar e assumir o
poder estatal, seja pela via eleitoral, como a burocracia moderada
(socialdemocracia), seja pela via insurrecional, como a burocracia radicalizada
(bolchevismo).
A participação de Pannekoek na socialdemocracia se dá neste contexto.
Obviamente que ele fez parte de sua ala dissidente e que somente em raros casos
havia posições distintas da socialdemocrata na época (fora do marxismo havia
apenas o caso do anarquismo e dentro dele, havia casos individuais, como o já
citado Makhaisky). Sem dúvida, suas concepções divergiam da socialdemocracia em
diversos aspectos, tal como sua valoração das ações de massas, apoio ao
movimento grevista, tese da necessidade da destruição do estado, entre outras,
que entrava em flagrante oposição com a ala dominante da socialdemocracia. A
sua participação crítica na socialdemocracia, por sua mentalidade e posições,
levariam, fatalmente, ao rompimento. As mudanças sociais e o crescimento da
socialdemocracia tornaram inevitável a ruptura. E essa época marca uma nova
fase do pensamento de Pannekoek.
Da Socialdemocracia ao socialismo radical
A evolução da socialdemocracia (crescente conservadorismo e
burocratização) acabou constrangendo os dissidentes e radicais a abandonar o
partido, o que se fortalece a partir de 1914 e o processo de apoio à guerra e
nacionalismo que passa a ser defendido pelos partidos socialdemocratas. Nesse
contexto, diversos indivíduos, grupos, tendências, geraram novos partidos ou
permaneceram relativamente autônomos e independentes diante deles. Pannekoek,
que estava na Alemanha, onde lecionava na escola do partido, volta para a
Holanda[16],
e, assim, participa das atividades de vários grupos radicais, especialmente os
“tribunistas”, que publicam o jornal A
Tribuna e tinha em Hermann Gorter um dos seus principais representantes
teóricos. A Conferência de Zimerwald aponta para uma articulação dos grupos
radicais e Pannekoek e Henriette Roland-Host tornam-se responsáveis pela
publicação da revista alemã Verbote,
que conta com a contribuição de socialistas radicais de vários, países,
incluindo Lênin. É nessa época que surge a Liga Spartacus, de Rosa Luxemburgo,
Karl Liebknecht, Franz Mehring e outros, a Esquerda de Bremen, e o grupo
Comunista Internacionalista, na Alemanha. A união de diversos grupos
proporciona a emergência de novos partidos. No caso alemão, o SPD (Partido
Socialdemocrata Alemão) gera o USPD (Partido Socialdemocrata Alemão
Independente) e, posteriormente, o KPD (Partido Comunista Alemão) e da cisão nesse
surgirá o KAPD (Partido Comunista Operário da Alemanha), embora este último
apareça a partir do fim do socialismo radical. A formação do KPD é um momento
importante para entender o radicalismo surgido da ruptura com a
socialdemocracia (Almeida, 1982), pois aglutina várias tendências e grupos
(Liga Spartacus, Esquerda de Bremen, Comunistas Internacionalistas, entre
outros menores) e expressa o socialismo radical. Num determinado momento,
ocorre uma ruptura: os radicais e os esquerdistas.
É neste contexto que Pannekoek irá produzir suas obras no interior do
socialismo radical, novamente como dissidente interno. Ele realizava,
principalmente, uma crítica ao bolchevismo, a versão russa do socialismo
radical, que, no entanto, propunha uma volta ao terreno da socialdemocracia
antes da Primeira Guerra Mundial. Ele faz observações críticas sobre a
Revolução Russa, apesar de apoiá-la, e em O
Novo Blanquismo critica a tática leninista. A sua posição diante do
bolchevismo vai ficando cada vez mais crítica. Após Lênin publicar O Esquerdismo, A Doença Infantil do
Comunismo (Lênin, 1989), na qual dedica a maior parte à esquerda alemã, apresentando
uma crítica a textos de Pannekoek e Gorter, assinados com pseudônimos, a
ruptura se torna aberta. Hermann Gorter publica Carta Aberta ao Companheiro Lênin, uma resposta direta ao livro
deste[17]
e, posteriormente, Pannekoek publica sua principal obra deste período, Revolução Mundial e Tática Comunista.
Nessa obra, Pannekoek retoma a questão da revolução russa e critica o
socialismo radical. Isso ocorreu, obviamente, no contexto de ruptura entre
radicais e esquerdistas. A socialdemocracia, que continua existindo e, de certa
forma, mantendo a hegemonia, propunha ação parlamentar e sindical, e o
socialismo radical propunha ação de massas (Rosa Luxemburgo, Pannekoek) ou
insurreição armada (Lênin), embora, neste último caso, não abandonando a tática
socialdemocrata parlamentar e sindical. No caso alemão, o USPD, a
socialdemocracia independente, tornou-se meramente reformista como seu
antecessor e gerador, o SPD, e o KPD, que representava, então, o socialismo
radical, acabou sendo dominado pelo bolchevismo após a morte de Rosa Luxemburgo
e Karl Liebknecht, e o espartaquismo foi substituído pelo oportunismo de Pau
Levi, que ainda mantinha o nome do grupo mas o reaproximava da
socialdemocracia, e pelo bolchevismo, uma forma distinta de socialismo radical[18].
O Comunismo de Conselhos
Assim, o socialismo radical acaba sendo cada vez mais hegemonizado pelo
bolchevismo, que após a Revolução Bolchevique, se torna uma grande influência e
busca, através da Terceira Internacional, dos escritos de Lênin (especialmente O Esquerdismo), tornar-se modelo a ser
seguido e fazer do partido bolchevique dirigente internacional. O nome
comunismo, retomado de Marx, substitui o nome socialdemocracia e os novos
partidos passam a se chamar comunistas. É neste contexto que ocorre a ruptura:
“A tensão entre a corrente radical e as tendências
extremistas se acentuou. Para dizer a verdade, a corrente radical não superava
o círculo dos dirigentes do partido, a “Central” berlinense e alguns comitês
das províncias. Uma camarilha, porém sustentada pela III Internacional, que só
aspirava a uma coisa: a fusão com os socialistas independentes. Estes,
efetivamente, se encontravam no cruzamento dos caminhos. Por um lado, não havia
nada fundamental que os separasse da tática clássica, dos majoritários, porém,
por outro lado, a maior parte deles estava convencida de que a cooperação com
os partidos burgueses reduzia a quase nada as perspectivas de reformas
eficazes. Além disso, os independentes, tanto como o comitê central do KPD e a
direção da Internacional, não admitiam a ação direta – que eles chamavam de
putschista – suscetível de atemorizar os eleitores e de prejudicar, assim, a
tática parlamentarista” (Bricianer, 1975, p. 176).
Através de maquinações, esse pequeno grupo burocrático do KPD conseguiu
expulsar mais da metade do partido, acusada de ser “esquerdista” (Canne Meijer,
1976; Authier, 1975). Da ruptura, emerge um novo partido, o KAPD, Partido Comunista
Operário da Alemanha, que em seu início contou com Gorter, Rühle, Pannekoek e
outros. Este, no entanto, devido às divergências com a socialdemocracia e bolchevismo,
por um lado, e recusa de sindicatos e partidos, por outro, se dizia como não
sendo “um partido político propriamente dito”. A revolução alemã, iniciada em
1918 e que vai até 1921, com a instauração de várias repúblicas de conselhos
operários em diferentes regiões da Alemanha, em períodos diferentes, o que
prejudicava a luta geral, pois quando avançava num lugar, era derrotado em
outro, foi a determinação fundamental desse processo de ruptura.
Porém, além do impacto dos sovietes (conselhos operários) na Rússia, a
sua emergência na Alemanha e formação de repúblicas de conselhos (sem falar em
outros países, mas com menos radicalidade do que nestes dois), se produziu uma
teoria dos conselhos operários, expressa por aqueles que são chamados
“comunistas conselhistas”, que se opuseram aos “comunistas de partido”
(bolchevismo) e que contava com inúmeros integrantes nessa época, e os que
ficaram mais conhecidos, foram os que deixaram escritos sobre esta época
histórica: Otto Rühle, Hermann Gorter, Helmutt Wagner, Paul Mattick (embora
este mais jovem na época), entre outros, e, entre eles, Anton Pannekoek.
Posteriormente, novos grupos inspirados no comunismo de conselhos irão surgir
na Holanda e outros países, e Karl Korsch se tornará um dos representantes de
tal tendência. Os que não morreram, como Gorter, falecido em 1927 e Rühle,
falecido em 1947, continuaram produzindo intelectualmente e ajudaram a ampliar
as contribuições teóricas do comunismo de conselhos, tal como Paul Mattick,
Karl Korsch e Anton Pannekoek[19].
O comunismo de conselhos apresentará uma crítica radical aos partidos e
sindicatos. Pannekoek será um dos representantes desta tendência que mais irá
discutir estas questões. É a partir desse período que os textos presentes nesta
coletânea foram selecionados. A experiência histórica demonstrou, cabalmente, o
papel dos partidos e sindicatos. Os partidos socialdemocratas e assemelhados,
nunca ultrapassaram o nível do reformismo e do conservadorismo. E quando
explodiam ações espontâneas e radicais do proletariado, sempre foram chamados
para “apagar o fogo”, tal como ocorreu com a Revolução Alemã de 1918, na qual
SPD e USPD foram chamados para compor o governo e combateram a esquerda sem
nenhum pudor, e isso data do assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht,
entre outros. No resto da Europa e do mundo nunca foi diferente. Os partidos
socialdemocratas se tornam grandes máquinas eleitorais e conservadoras. Mesmo
em seu período de nascimento, quando ainda são pequenos, os burocratas
partidários e seus aliados mais próximos (burocratas sindicais, intelectuais,
etc.) fazem um discurso um pouco mais radical, mas já mostrando seu caráter
socialdemocrata, o que é disfarçado graças às tendências mais à esquerda
existentes no seu interior, que vão ou se integrando ou sendo expulsas ou,
ainda, saindo por contra própria.
A crítica da socialdemocracia por parte de Pannekoek partiu desde sua
experiência no seu interior e sua evolução histórica, mas também pelo processo
de reflexão destas experiências e da forma organizativa socialdemocrata. Se,
num primeiro momento, a análise de Pannekoek apontava que os partidos
socialdemocratas tinham desvios, principalmente devido influências
pequeno-burguesas, agora são vistos como obstáculos para a emancipação
proletária devido sua própria forma organizativa, burocrática.
Por outro lado, um tipo de partido diferente, o Partido Bolchevique,
conseguiu atrair uma grande parte dos descontentes da socialdemocracia,
principalmente após a Revolução Bolchevique. A revolução russa de fevereiro foi
resultado da luta espontânea do proletariado, e a emergência dos conselhos
operários (sovietes) mostrou sua força. Porém, isso provocou mudança de
governo, mas não abolição do poder estatal. Nesse contexto, emergiu uma guerra civil aberta ou dualidade
política[20] e
aumento da força proletária, tanto por parte dos conselhos operários quanto por
outras formas de auto-organização complementares ou similares.
As organizações proletárias que emergem no bojo da Revolução Alemã, os
conselhos operários e uniões operárias, marcavam uma nova fase da luta
proletária que terá um profundo impacto no pensamento de Anton Pannekoek (e
outros militantes da época). As lutas proletárias marcaram a emergência de uma
forma de auto-organização que tinha a capacidade de organizar o processo de
produção e as relações sociais territoriais, os conselhos de fábrica, que,
articulados constituem os conselhos operários e estes, por sua vez, fundavam as
uniões operárias, base das repúblicas de conselhos que surgiram na Alemanha.
Neste contexto, ficou mais claro o papel dos sindicatos e partidos que,
claramente, buscavam combater ou dirigir tais formas de auto-organização. O
Partido Socialdemocrata Alemão e os independentes tiveram um papel fundamental
na luta por impedir a radicalização do movimento operário, e a instauração da
República de Weimar significou a última chance da burguesia alemã salvar seu
capitalismo, com apoio dos socialdemocratas, sindicatos e do Partido Comunista
Alemão, após a morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.
Outro processo histórico importante para a elaboração da concepção de
Pannekoek foi a Revolução Russa de 1917. A emergência dos sovietes proporcionou
um entusiasmo geral, já que a luta proletária espontânea e autônoma adquiria
uma nova fase e forma organizacional. O período que vai de fevereiro até
outubro, quando os bolcheviques tomam o poder estatal, é marcado pela força do
proletariado nas unidades de produção e determinadas regiões. A tomada do poder
estatal pelo Partido Bolchevique significou uma contrarrevolução burocrática. O
bolchevismo, desde sua emergência, era uma organização burocrática e
disciplinar, e Lênin foi o seu grande ideólogo.
Desde sua obra clássica, Que Fazer?
na qual teoriza a incapacidade de autolibertação proletária e coloca a necessidade
de um partido de vanguarda para dirigi-la e produzir sua consciência
revolucionária (Lênin, 1988)[21],
passando por diversas outras onde tematiza a disciplina, o ataque aos grupos
dissidentes, internos ou externos ao partido, já era uma prefiguração do que
ocorreria uma vez no poder estatal. Ao contrário do que muitos colocam, não
existiu nenhuma diferença radical entre Lênin antes e depois do poder, as
práticas e concepções eram semelhantes, o que havia de diferença eram slogans e
palavras de ordem para conquistar o apoio das massas (alguns extremamente
famosos como “todo o poder aos sovietes” e “pão, paz e terra”) e concessões
democratizantes falsamente libertárias para conquistar este apoio popular e
combater adversários políticos, como em O
Estado e a Revolução (Lênin, 1987b; Viana, 2011d), durante o momento em que
buscava reunir forças para chegar ao poder estatal.
Existe uma ampla documentação e bibliografia sobre a prática, decretos e
discursos de Lênin no poder, que mostram todo o seu burocratismo, a sua
mentalidade burocrática e dirigista que saiu do casulo do partido e atingiu o
poder estatal e, assim, da burocracia partidária emerge a burocracia estatal, a
forma difere, mas a essência é a mesma[22].
A dissidência interna do partido foi proibida e a externa perseguida (Viana,
2007), os marinheiros de Kronstadt são massacrados (Arvon, 1981), os camponeses
ucranianos são vítimas de armadilha do exército vermelho (Machnó, 1988). Porém,
como na Revolução dos Bichos de
George Orwel (2003), Lênin desconsidera as poucas concessões de O Estado e a Revolução e, tal como fizeram
os porcos desta ficção, Napoleão e Bola de Neve, ele altera os princípios
anteriormente estabelecidos e onde estava escrito “todos devem receber salários
de operários”, leia-se, doravante, “os técnicos e especialistas devem ganhar
salários mais altos”; onde estava dito “todo o poder aos sovietes”, leia-se,
“todo o poder ao partido e ao estado ditatorial”. A lista de Lênin, no entanto,
é cem vezes maior do que a de Napoleão, o porco burocrata.
Assim, é possível ler nas obras de Lênin, totalmente ao contrário do que
dizia Marx[23],
que no socialismo o dinheiro se torna a “nata” da sociedade (Lênin, 1980), que
o taylorismo, forma capitalista de organização do trabalho, deve ser implantado,
que os técnicos e especialistas devem receber salários mais altos, que deve
haver direção única nas fábricas. O processo de esvaziamento foi a estratégia
leninista para combater os conselhos operários (Brinton, 1975). Assim, se os
dissidentes ainda apelavam para o partido e para que este reconhecesse a
autoatividade das massas (Kollontai, 1977; Viana, 2007) não faziam mais que
demonstrar que não entenderam que se tratava de uma luta de classes entre
burocracia e proletariado ao invés de disputa de facções e que apelos aos
líderes burocratas Lênin e Trotsky nada representavam. Isso tudo, inclusive,
foi derivado da concepção vanguardista de Lênin e sua concepção
insurrecionalista de revolução, gerando nada mais do que um golpe de Estado,
como bem identificou Makhaisky (1982) na época e outros reconheceram depois[24].
Porém, uma coisa é o que acontecia na Rússia concretamente, outra coisa
era a imagem disso na Europa e nos resto do mundo. A revolução russa era
saudada como revolução proletária e como instituição do socialismo, enquanto
que Lênin era tido como o grande arquiteto dessa proeza histórica. Os sovietes
eram tidos como a base do regime instaurado na Rússia e o bolchevismo como um
partido que dirigia a transformação socialista deste país. As poucas informações,
vindas dos antagonistas e dos partidários, eram um obstáculo para uma melhor
compreensão. A simpatia pelo acontecimento fazia com que os adeptos do
socialismo, de todas as tendências (anarquismo, bolchevismo, socialismo
radical, etc.) acolhessem com entusiasmo a revolução bolchevique e a crença que
as informações vindas dos seus representantes eram verdadeiras. Poucos
questionaram a Revolução Bolchevique, tal como Rosa Luxemburgo (Luxemburg, 1991)
e, mesmo os que o fizeram, o fazia moderadamente e ainda falando da admiração
pelo bolchevismo.
É por isso que a ruptura com o regime soviético foi sendo feita aos
poucos. A crítica de Rosa Luxemburgo não foi publicada a não ser alguns anos
depois (foi escrita em 1918 e publicada em 1921). As novas informações que
chegavam, as posições dos bolcheviques nas questões internacionais e no
interior da Terceira Internacional, os acontecimentos de Kronstadt, entre
outros, acabaram desiludindo diversos indivíduos e grupos. Otto Rühle, por
exemplo, visitou a Rússia para um Congresso da Terceira Internacional e depois
relatou que lá o proletariado era mais explorado que na Alemanha. Assim, as
polêmicas com o bolchevismo se tornam cada vez mais amplas e as novas
informações e práticas foram se avolumando, e com isso a ruptura se tornou
inevitável.
Assim, Pannekoek passa a integrar o grupo daqueles que caracterizam a
União Soviética como um capitalismo de Estado. Essa tese é desenvolvida na
própria Rússia, mas também na Europa. Na Rússia, a teoria do capitalismo de
Estado é precedida pelos grupos dissidentes no interior do próprio Partido
Bolchevique, que em seus textos de crítica ao regime instalado avisam da ameaça
de sua transformação em capitalismo estatal caso siga o caminho apresentado
pelos líderes do partido e não incentivem a autoatividade das massas. Esse é o
caso dos grupos Oposição Operária, Comunistas de Esquerda e Centralismo
Democrático (Viana, 2007). A definição do regime bolchevique como capitalismo de
Estado ocorre através dos grupos externos ao Partido Bolchevique, tal como os
grupos Verdade Operária, de Bogdanov, e Grupo Operário, de Miasnikov (Viana, 2007).
Na Europa, alguns militantes e grupos realizaram as primeiras teorizações
do capitalismo estatal. Na Alemanha e Holanda, os comunistas conselhistas; na
Itália, Rodolfo Mondolfo e, mais tarde, Amadeo Bordiga; na Inglaterra, Sylvia
Pankhurst e Guy Aldred; assim como inúmeros outros. Depois da Segunda Guerra
Mundial, houve uma tentativa de apropriação da teoria do capitalismo de Estado
por parte de tendências leninistas, de acordo com seu oportunismo político.
Alguns trotskistas mais radicais, tais como Tony Cliff (2011), mas também Chris
Harmann e Alex Callinicos, passaram a definir a URSS como capitalismo de
Estado, mas que só se efetivou a partir da ascensão de Stálin; alguns
stalinistas, por sua vez, passaram a considerar que isso realmente ocorreu, mas
apenas após a morte de Stálin; e, alguns maoístas, como Charles Bettellheim (1979;
1973), passaram a defender tal tese, entre outros.
Pannekoek adota a tese do capitalismo de Estado, mas falta-lhe rigor e
precisão conceitual. Ele coloca, em várias passagens, capitalismo de Estado e,
em outras, Socialismo de Estado. No artigo “Capitalismo
de Estado e Ditadura”, diz que são a mesma coisa e, em Os Conselhos Operários, reveza os dois termos como sendo sinônimos.
O problema da imprecisão conceitual de Pannekoek será abordado adiante, mas,
nesse caso específico, é preciso esclarecer que capitalismo e socialismo são
coisas distintas, embora a deformação no uso desta última palavra (o que não
deixa de ocorrer também no caso da primeira, mas em menor grau e com menos prejuízo
político) acabe apagando parcialmente tal diferença, mas que o uso indistinto
das duas para qualificar o regime “soviético” pode trazer mais confusão do que
esclarecimento e uma das tarefas daqueles que lutam pela transformação social é
justamente, como bem coloca o próprio Pannekoek, a clarificação. A confusão conceitual não ajuda na clarificação
política. Além disso, a palavra socialismo sendo usado para qualificar tal
regime pode ser entendido de forma positiva, e “socialismo de Estado” pode dar
a entender que é possível tal coisa. Em síntese, Pannekoek comete um equívoco
formal que tem consequências teóricas e políticas, tal como discutiremos
adiante.
Pannekoek não desenvolveu nenhuma análise aprofundada da Rússia ou teoria
do capitalismo de Estado. Ele apenas caracterizou e justificou uma definição,
mas sem um aprofundamento maior. Outros comunistas conselhistas, especialmente
Paul Mattick (2011), desenvolveram mais profundamente tal teoria. De qualquer
forma, a caracterização da Rússia como capitalismo de Estado remete a um
conjunto de questões que necessitam ser desenvolvidas ou remetidas para outros
que realizam tal desenvolvimento, o que Pannekoek não fez. Em síntese, é
necessário comprovar o caráter capitalista da Rússia e isso pressupõe uma
definição de capitalismo, que já se encontra em Marx – obviamente existem
outros, mas para quem se diz marxista essa é a referência – e o capitalismo é
definido por esse como um modo de produção fundado na extração de mais-valor. É
por isso que existe um amplo debate sobre a existência ou não de mais-valor no
regime “soviético”, bem como, para os deformadores do marxismo, se pode ou não
existir a “lei do valor” no socialismo[25].
Na verdade, na Rússia nunca deixou de existir a produção de mais-valor,
pois a revolução proletária ocorrida lá foi inacabada e, portanto, não aboliu
totalmente tal produção e a tomada do poder estatal pelos bolcheviques reforçou
sua existência, significando uma contrarrevolução burocrática que implantava um
capitalismo estatal. A sociedade russa após o bolchevismo se constituiu como um
capitalismo de Estado, pois a extração de mais-valor, via trabalho fabril
assalariado, foi mantido e ampliado, realizando uma industrialização forçada e
rápida. Isso permitiu um rápido desenvolvimento capitalista, fundado num alto
grau de exploração do proletariado e do campesinato. Uma questão derivada e de
importância menor é a discussão em torno da propriedade privada. A propriedade
privada, para Marx, é mera expressão jurídica das relações de produção e, por
conseguinte, toda discussão ideológica que uniram os pseudomarxistas da antiga
URSS e até mesmo sociólogos e ideólogos dos EUA e Europa Ocidental, desde Berle
e Means, passando por Gurvitch, Aron e Dahrendorf, sobre propriedade e
controle, revelam uma incompreensão/deformação da teoria de Marx (Viana, 2011b).
A questão da propriedade ou do controle da propriedade é algo sem sentido na
teoria do capitalismo de Marx. As relações de produção capitalistas são
caracterizadas pela produção de mais-valor e é essa que constitui as duas
classes fundamentais do capitalismo, a burguesia, classe exploradora e
apropriadora do mais-valor, e o proletariado, classe explorada e produtora de
mais-valor.
A forma como isso ocorre é outra questão. Assim, a classe capitalista pode
fazer isso individualmente ou coletivamente (sociedade por ações, via poder
estatal, etc.) e a tendência do capitalismo, devido suas características
derivadas (reprodução ampliada do capital, concentração e centralização do
capital) é reduzir o número de proprietários e reuni-los em grandes empresas.
No caso da Rússia, a apropriação do mais-valor se dá através do Estado e é por
isso que é um capitalismo estatal. A classe dominante extrai mais-valor por
intermédio do Estado e por isso é uma burguesia estatal que, ao mesmo tempo, exerce
a função de controle, tanto das empresas quanto da sociedade como um todo,
realizando atividades que, no capitalismo privado, foram separadas e atribuídas
à burocracia.
Assim, quando Pannekoek afirma, em algumas passagens, que se trata de uma
“nova classe dominante” é um equívoco, a não ser que por isso se entenda novos
indivíduos no lugar dos antigos da mesma classe ou, ainda, que é nova forma
dessa classe. A burocracia enquanto classe social realizou uma contrarrevolução
e tomou o poder estatal e, através deste, passou a exercer o papel da classe
capitalista, extrair mais-valor e coordenar a acumulação de capital. Logo,
trata-se de uma burguesia originada da burocracia e fundida com ela, pois une
as atividades burguesas e burocráticas, que passam a ser exercidas por uma
única classe. Assim, a burguesia de Estado é uma fusão da classe capitalista
com a classe burocrática. Essa burguesia burocrática não é uma “nova classe
dominante” no sentido de que não criou um novo modo de produção e nem é uma
novidade radical. Para a burocracia se tornar uma nova classe dominante, teria
que abolir a produção de mais-valor e instaurar uma nova forma de exploração em
seu lugar e isso só poderia ocorrer com sua generalização mundial, o que não
ocorreu. A ideologia do “socialismo em um só país”, defendida por Stálin,
apenas revelava a incapacidade do capitalismo estatal suplantar mundialmente e
imediatamente o capitalismo privado e a chamada “Guerra Fria” assumiu a forma
de embate entre as duas grandes potências que são expressões de duas formas de
capitalismo. Assim, o que emerge na Rússia a partir do bolchevismo não é uma
“nova classe” e sim uma nova forma de burguesia que resulta de sua fusão com a
burocracia.
Voltando ao nosso assunto original, temos, neste breve esboço, alguns dos
principais elementos que compõem o pensamento de Pannekoek: por um lado, recusa
e crítica da socialdemocracia, do parlamento, dos partidos, dos sindicatos, do
bolchevismo, do capitalismo de Estado e, por outro, afirmação da necessidade de
auto-organização, desenvolvimento da consciência revolucionária, ação direta,
greves, conselhos operários. Esse conjunto de elementos faz de Pannekoek um dos
pensadores mais importantes entre os que expressaram a perspectiva do proletariado
e somando isso com a sua contribuição em outras questões (a questão da
consciência, a crítica do materialismo burguês de Lênin, etc.), temos uma das
grandes referências para uma análise do capitalismo e, ao mesmo tempo, da
revolução proletária e dos conselhos operários.
Nesse contexto, as revoluções proletárias inacabadas na Rússia e Alemanha
foram fundamentais para a teoria dos conselhos operários de Pannekoek. Este
escreveu inúmeros textos sobre os conselhos, suas possibilidades e seu antagonismo
com as organizações burocráticas. Mas sua grande obra foi, sem dúvida, Os Conselhos Operários, de 1947. Nesta
obra ele sintetiza e aprofunda vários aspectos já abordados anteriormente,
acrescentando novos elementos e superando alguns problemas. Essa obra assume
uma grande importância na história do marxismo, já que é uma síntese de um
conjunto de concepções, práticas e da história do movimento operário em seu
período de maior radicalidade simultânea em diversos países durante o século
20.
No entanto, a obra de Pannekoek possui alguns pontos problemáticos. Não
se trata aqui de fazer a crítica de alguns aspectos do seu pensamento, mas
apenas de alertar e escapar da apologia acrítica que não combina com o espírito
libertário, com a perspectiva proletária e com o ideal da crítica desapiedada do existente. Claro que, caso não houvesse
problemas, seria desnecessário realizar tal discussão, mas, uma vez que se tem
consciência de alguns problemas, então é nosso dever revolucionário explicitá-los.
Vamos apenas colocar umas breves considerações sobre tais problemas – que, por
sinal, não comprometem o valor e vínculo com o proletariado por parte de
Pannekoek, mesmo porque, tais problemas são mais de caráter formal. O conteúdo
de sua obra é revolucionário, proletário, libertário e isto não está em dúvida.
O primeiro problema é a imprecisão conceitual que Pannekoek cai em muitas
oportunidades e isso cria confusão, não só teórica, mas também política. No que
se refere ao processo de produção teórica, Marx inaugurou toda uma produção
marcada pela coerência – que, obviamente, nunca é total, pois além da evolução
intelectual de um autor, ainda há as dificuldades, obstáculos, etc. que atingem
a todos – e por uma riqueza conceitual até hoje ainda não reconhecida em sua
totalidade. A teoria é a “expressão da realidade” (Korsch, 1977) através de um
universo conceitual articulado que fornece sua explicação (Viana, 2008c).
Assim, uma produção teórica expressa uma concepção aprofundada e desenvolvida
da realidade, elemento necessário para reconstituir a realidade no pensamento e
a precisão conceitual é fundamental por dificultar deformações e incompreensão.
A imprecisão conceitual abre espaço para a deformação do pensamento
teórico revolucionário. Já citamos o caso do capitalismo de Estado e, em
Pannekoek, existem outros exemplos, mas vamos destacar um outro que é algo que
pode ter consequências teóricas e políticas mais graves, que é sua concepção de
partido. Essa concepção já foi analisada (Souza, 2011; Mendonça, 2011) e os
textos de sua última fase de pensamento expressam, muitas vezes, uma recusa do
partido e até da expressão “partido revolucionário”, enquanto que, em outras
passagens, pensa partido como “grupos de opinião”. Essa dubiedade, às vezes
reforçadas por traduções problemáticas, pode dar margem para se pensar que
Pannekoek aceitava a possibilidade de um partido, tal como alguns dizem. Isso
pode ser reforçado pela descontextualização da evolução intelectual de
Pannekoek e pela retomada de textos da época em que ele pertenceu à
socialdemocracia, o que pode gerar a deformação do seu pensamento no sentido de
legitimar os partidos políticos existentes ou usar suas ideias para defender a
formação de mais um partido político. E até mesmo aqueles que querem se inspirar
em seu pensamento podem caminhar no sentido contrário ao dele por apego a
ideias ou afirmações que carecem de maior profundidade e precisão (bem como
leituras rigorosas e, por conseguinte, contextualizadas).
No fundo, Pannekoek não elaborou uma teoria dos partidos políticos e das
organizações revolucionárias[26]
e usou de forma ambígua o termo partido, o que abre espaço para confusão e
deformação. Para elaborar uma teoria dos partidos políticos seria necessária
uma conceituação de partido de forma aprofundada, uma análise de cada elemento
componente do conceito e seus vínculos com outros conceitos que expressam
aspectos da realidade fundamentais para sua explicação (Estado, burocracia, classes
sociais, ideologia, etc.)[27].
Basta ver o que foi feito com a obra de Marx (inclusive o seu uso da palavra
partido, num contexto histórico de inexistência de partidos no sentido atual da
palavra e com significado radicalmente diferente, no Manifesto do “Partido” Comunista, obra posteriormente deformada),
para reconhecer a importância da precisão conceitual. Esta faz parte da luta
cultural e da luta de classes, não é mero preciosismo e sim parte da luta que
influencia a mesma.
Outro problema na obra de Pannekoek, ligado a este, é sua discussão
insuficiente a respeito das classes sociais. Sem dúvida, isso em parte é
desnecessário, já que sendo marxista, usa a teoria das classes sociais de Marx.
Porém, há incongruências entre sua abordagem e a de Marx. O seu uso do termo
“classes médias” é um problema, pois não só recorda as ideologias da
estratificação social da sociologia norte-americana, como cria uma confusão no
entendimento das mesmas. Pannekoek não aprofundou a questão das classes e nem
percebeu ou estudou sua complexidade em Marx. Por isso não pode perceber que,
se Marx usou a expressão “classes médias”, isso não fazia parte de sua teoria
das classes sociais e sim um uso de uma expressão que dava conta de algo ainda
não teorizado e que merecia aprofundamento, além de ser de uso comum por outros
autores. Em síntese, era um elemento “conjuntural” em seu pensamento e não
“estrutural”[28].
Da mesma forma, apesar de discutir e em muitas oportunidades colocar a
burocracia como classe social, não apresenta uma definição ou discussão sobre
esta classe, não só no caso do capitalismo estatal russo, mas no caso do
capitalismo privado quando discute a burocracia partidária e sindical. A
ausência da percepção da classe burocrática produz equívocos políticos e
teóricos, pois entender o papel desta classe nas revoluções proletárias e nas
lutas políticas cotidianas, sendo uma classe auxiliar da burguesia que, em seus
setores mais radicais – que atraí proletários, jovens e indivíduos bem
intencionados e radicalizados – apontam para uma concepção de revolução que, no
entanto, é não proletária e sim burocrática, na qual o partido é dirigente e o
objetivo é a conquista do poder estatal pelo mesmo.
Porém, apesar dessas imprecisões conceituais – e outros usos de
determinados termos poderia ser acrescentado, tal como “massas”, “poder”, “democracia”,
etc. –, a apropriação burguesa ou burocrática do pensamento de Pannekoek é bem
mais difícil do que de outros marxistas, pois sua radicalidade expressa no
conteúdo é um obstáculo difícil de ser removido, embora não impossível e que
seria quase impossível com um maior aprofundamento e precisão conceitual. Isto
não retira seus méritos, apenas serve de alerta para não repetirmos os
equívocos do passado e também não evitarmos a leitura rigorosa e crítica, já
que a falta dessa é caminho para equívocos conceituais e políticos. O melhor
caminho é a proposta de marxismo não-dogmático, crítico e revolucionário, tal
como proposto por Karl Korsch (1977)[29].
Aliás, esse foi o caminho trilhado pelo próprio Pannekoek e este é outro mérito
que ele deixou para os militantes posteriores e que deveria ser uma grande
lição para todos nós. Ao invés de seguir seus textos religiosamente, é mais
útil seguir os princípios libertários que defendeu.
Para encerrar, é preciso resgatar a importância de Pannekoek para a luta
proletária. A sua obra Conselhos
Operários, por exemplo, é uma das mais importantes do século 20, tanto para
o marxismo quanto para o proletariado. Ela revela uma utopia concreta (Maia,
2010) e síntese de lutas que são excelente inspiração para lutas futuras. Ela
destaca as formas próprias e específicas de organização proletária (Marques,
2011) em contraposição às organizações burocráticas da sociedade capitalista. Esta
obra foi publicada em 1947 e expressa não somente um aprofundamento e ordenação
da questão dos conselhos operários, como mostra o caráter da sua produção
intelectual, não presa aos modismos e, além disso, indo em contradição em
relação à cultura dominante em geral. Devido sua data de publicação, se insere
na última fase do pensamento de Pannekoek e no período posterior ao fim da
Segunda Guerra Mundial.
Assim, ao contrário de muitos outros, Pannekoek não abandonou a concepção
revolucionária após as derrotas do movimento operário que gerou o fascismo, o
nazismo e a guerra. Nesse sentido, a teoria de Karl Korsch (1977), segundo a
qual a história do marxismo acompanha a história do movimento revolucionário do
proletariado, sendo que o avanço ou o recuo deste tem efeitos sobre aquele, é
correta e foi isso que aconteceu com o marxismo. O recuo das lutas operárias no
capitalismo oligopolista transnacional fez emergirem ideologias conservadoras,
pseudocríticas, e marginalizou completamente o marxismo. Até alguns dos mais
radicais e revolucionários tombaram nesse conceito. O núcleo teórico do
comunismo de conselhos teve muitas baixas, tal como a morte de Hermann Gorter
em 1927 e Otto Rühle em 1947, mas outros mantiveram sua posição revolucionária
e produziram por mais tempo, mantendo acesa a chama do comunismo de conselhos.
Porém, até o final de sua vida, Pannekoek manteve-se revolucionário e
fiel aos seus princípios. Nesse sentido, ele é um marxista resiliente[30].
Pois enquanto outros abandonaram ou abrandaram o ímpeto revolucionário, ele,
junto com alguns outros poucos, manteve-se fiel ao movimento revolucionário do
proletariado, mesmo em condições adversas, na qual o capitalismo oligopolista
transnacional, através da superexploração internacional, do fordismo e Estado
Integracionista, buscou forjar um aumento da renda e consumo e garantir sua
estabilidade política no bloco imperialista, o que conseguiu relativamente até
meados dos anos 1960. Pannekoek morreu em 1960 e por isso não pode ver a breve
retomada do movimento operário no final dessa década, o que promoveu um renovado
interesse por sua obra e a dos comunistas conselhistas[31].
O marxismo avança teórica e praticamente, quantitativa e qualitativamente, com a
ascensão do movimento revolucionário do proletariado e recua com o refluxo
deste. Porém, as conquistas passadas podem ser preservadas por determinados
indivíduos, que viveram ou se identificaram com tais lutas passadas, mantendo
os seus princípios vivos no presente. Isto é expresso pelo marxismo resiliente
de Pannekoek, Mattick, Korsch, que, mesmo após a derrota e mudança de situação,
preservaram as lições e o caráter revolucionário das lutas passadas (com suas
diferenças, inclusive de grau, é claro). A resiliência revolucionária de
Pannekoek se mostrou em sua firmeza e reflexão sobre a experiência passada,
mantendo e aprofundando a crítica das organizações burocráticas, da mesma forma
que retomando os grandes momentos da luta revolucionária passada que pode ser
retomada sob forma diferente no presente.
É por isso que Pannekoek conseguiu explicitar alguns aspectos fundamentais
da luta proletária revolucionária, expressos nos textos aqui apresentados, tais
como a greve selvagem, o comitê de greve, os conselhos operários. A importância
da greve no pensamento de Pannekoek é uma retomada de sua importância real,
prática, para as lutas proletárias. As greves selvagens são aquelas que ocorrem
independente dos sindicatos ou contra eles (e pode até nascer devido sua
iniciativa, em casos raros, mas logo se autonomiza e ganha continuidade em
contraposição a eles)[32].
A ação direta é outro elemento fundamental de sua contribuição, mostrando
que o proletariado deve se livrar de suas vanguardas, burocracias,
representantes, etc. Da mesma forma, sua análise dos embriões dos conselhos
operários, especialmente os comitês de greve, é fundamental, bem como os
elementos envolvidos nesse processo (solidariedade, ação direta, etc.). A sua
análise dos conselhos operários, no entanto, é sua contribuição fundamental e
que todas as outras são derivadas, pois é nessa forma de auto-organização
proletária que ele vê a forma da luta revolucionária e da organização social
pós-capitalista, órgãos da revolução e da autogestão da sociedade futura. Nesse
sentido, a obra de Pannekoek é uma das grandes obras do pensamento humano e, ao
lado de outros, merece não só leitura, pesquisa, estudos, divulgação, mas o
confronto com a realidade e com as práticas políticas dos militantes e
proletários, mostrando praticamente sua importância teórica e política. Ela
também mostra que a sua ontogênese reproduz sua filogênese, pois a trajetória teórico-política
de Pannekoek reaparece em seus últimos textos, na qual geralmente se passa da
crítica das organizações burocráticas para a defesa das formas proletárias de
auto-organização.
A sua marginalização nos meios acadêmicos e político-institucionais
(partidos, sindicatos, Estado, etc.) mostra não somente seu caráter
revolucionário[33] –
e por isso pouco palatável por estas esferas da sociedade capitalista – como
também que a concepção de Korsch sobre a história do marxismo se mostra correta,
a história do marxismo é dependente da história das lutas operárias e das lutas
de classes em geral. Por fim, a leitura dos textos aqui reunidos é uma rica
fonte de pesquisa e inspiração libertária e revolucionária, e sua publicação –
ao lado de outras – apenas anunciam a tendência de uma nova onda revolucionária
e contribui com ela, tendo, portanto, um papel teórico-prático.
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* Prefácio ao livro:
PANNEKOEK, Anton. Partidos, Sindicatos e Conselhos Operários. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
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[1]
Sempre que há ascensão das lutas operárias, há a tendência de resgate de
pensadores como Pannekoek e foi isso que fez seus textos reaparecerem no final
dos anos 1960 e início dos anos 1970 e novamente a partir do final da década de
1990. Inclusive a internet serviu para a difusão de vários textos dele e para
aumentar sua popularidade nos meios revolucionários e até acadêmicos, em muito
menor escala, é claro. Mas é preciso ressaltar que, se a internet significa um
processo de divulgação importante, ela também deve ser vista criticamente, pois
a qualidade das traduções é muito precária e, algumas vezes, aparecem coisas no
texto que não estão no original. Assim, o cuidado e senso crítico é fundamental
na leitura de textos traduzidos disponibilizados na internet. Claro que o
problema de tradução é grave não apenas na internet, mas nesta é mais grave já
que muitas vezes falta autoria, referências e fontes, tendo, pois, uma
confiabilidade menor.
[2]
Para quem parte de uma perspectiva revolucionária, é extremamente contraditório
ser um leitor dogmático, que faz leituras acríticas e aceitando tudo o que lê
sem reflexão, contextualização, análise, comparação, etc. Esse é um problema
grave nos círculos militantes e que gera oposições rígidas em casos nos quais
não há a menor necessidade. O leitor dogmático acredita que o autor é infalível
e que não há nenhum problema e nada para ser questionado, o que ele disse está
dito e pronto, é a verdade. O leitor crítico, obviamente, pode concordar com a
totalidade do escrito, mas isto não é algo a
priori e sem reflexão e outros procedimentos da leitura crítica. A questão
fundamental não é a concordância ou discordância com o autor e sim o tipo de
leitura que se realiza. A credibilidade de um autor como Pannekoek, sem dúvida,
deve levar em conta sua biografia e compromisso com a transformação social, mas
esse não pode ser um critério absoluto e único, inclusive pelo fato de que ser
bem intencionado não é suficiente, embora fundamental. Além da confiança que o
autor desperta (no caso daqueles que possuem esse mérito por sua história de
vida) é necessária a reflexão racional e crítica, revolucionária, portanto,
não-dogmática, sobre seus escritos. Isso, de forma alguma, significa que se
deva ler para procurar defeitos e problemas e sim que é necessário entender que
é possível encontrar tais elementos e não se deve fazer de conta que eles não
existem ou podem existir e, além disso, se cegar diante disso.
[3]
Aqui não se trata das divergências com o bolchevismo, que já apresentam uma
crítica – que, no entanto, não era “radical”, no sentido de não ir até a raiz
do bolchevismo – e sim do momento em que o bolchevismo é reconhecido como contrarrevolucionário
e a crítica se torna realmente radical.
[4]
Aqui se trata de partido político organizado formalmente e não qualquer
organização política. A confusão pode ser reforçada por certa imprecisão
conceitual de Pannekoek, a qual vamos abordar adiante.
[5] A concepção de Marx sobre a autoemancipação proletária é relativamente pouco
conhecida, devido a diversas determinações: o predomínio da interpretação leninista de sua obra,
a falta de leitura ou má leitura, a seleção de obras e desconsideração por
outras, as más traduções, a dificuldade de acesso a alguns textos, o exército
de comentaristas que não entenderam sua obra ou que fazem leituras parciais
derivando de complementos alheios aos seus escritos os aspectos que não
entendem (vindo especialmente de Lênin ou da socialdemocracia), as críticas
equivocadas de adversários, etc. Pretendemos mostrar o verdadeiro caráter da
concepção de Marx a respeito da revolução proletária no livro Marx
Libertário – Autoemancipação Proletária e Associação Revolucionária. Alguns
autores destacaram esse caráter da obra de Marx, porém, também não são os mais
divulgados e conhecidos, tal como Rubel e Janover (1977), Berger (1977), Guérin
(1969), Guillerm e Bourdet (1976), Bourdet (1974; 1972), Massari (1975), entre
outros.
[6] A
experiência da Comuna de Paris foi teorizada por Marx e acabou sendo a essência
da concepção marxista da revolução proletária, que é autogestionária (embora
sem usar esta palavra), sendo a Comuna considerada a forma encontrada da autoemancipação
(Marx, 2011; Viana, 2011a; Viana, 2011b). Além de Pannekoek, que a partir do
que ele denominou “novo movimento operário” e a emergência dos conselhos
operários, é que se começa a teorizar sobre esta forma de auto-organização como
meio para a revolução social e forma de organização da produção na sociedade
comunista. Sem dúvida, Parvus e Trotsky (o jovem Trotsky, o antibolchevista),
foram os primeiros a destacar a importância dos conselhos operários a partir da
revolução russa de 1905 (Viana, 2010; Trotsky, 1989; Parvus, 1978). Porém, é
com a nova revolução russa de 1917, quando os conselhos reemergem, bem como a
revolução alemã, mas também nos casos italiano e húngaro, entre outros menos
radicais e amplos, sua extensão por diversos países em tentativas de revoluções
proletárias, promovem um conjunto de reflexão e ação política a seu favor,
especialmente pelo chamado comunismo de conselhos, contando com Pannekoek,
Rühle, Gorter, Mattick, Wagner, Brendel, Meijer e vários outros na Holanda e
Alemanha, bem como os ingleses (Sylvia Pankhurst, Guy Aldred), entre outros.
Após esse período revolucionário, tanto os que se inspiraram nestes autores,
quanto outros que se basearam em experiências históricas posteriores (Hungria,
Polônia, Portugal, etc.), continuaram a defender tal posição.
[7] O
capitalismo oligopolista é o que existiu entre a segunda metade do século 19
até o final da Segunda Guerra Mundial, sob o regime de acumulação intensivo,
enquanto que o capitalismo oligopolista transnacional é o que emerge após a
Segunda Guerra Mundial e se mantém até o final dos anos 1970, sob o regime de
acumulação intensivo-extensivo (Viana, 2009), ou regime de acumulação
conjugado.
[8]
Sem dúvida, muitos confundem esse processo por fazer, indistintamente, leitura
de textos de Pannekoek antes e durante esse período. Isso significa não se
atentar para a evolução intelectual do autor e, por conseguinte, não
compreender as alterações de seu pensamento.
[9]
Este é o caso de sua análise dos sindicatos (Viana, 2011c), que, em artigo de
1936 (1977a), ainda apresenta certa ambiguidade, o que será completamente
desfeito em sua obra Os Conselhos
Operários (Pannekoek, 1977b), com edição portuguesa incompleta com o título
de A Revolução Operária (Pannekoek,
2011).
[10] O
sindicalismo revolucionário desenvolveu-se na França, e teve como principal
representante intelectual Georges Sorel.
[11]
Aliás, este texto irá exercer forte influência sobre Lênin, que, inclusive,
escreveu o texto As Divergências no
Movimento Operário Europeu (Lênin, 1983), escrito um ano após o livro de
Pannekoek e contendo pouca diferença em relação a ele. A influência deste
escrito se manifestará posteriormente, quando escrever duas de suas obras
principais: O Esquerdismo, Doença
Infantil do Comunismo (Lênin, 1989), na qual retomará a expressão de
Pannekoek de “enfermidade infantil” (Pannekoek, 2007) e O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo (Lênin, 1987), na qual
retoma a tese de Pannekoek da “aristocracia operária”, só que deformando-a.
Aliás, Lênin não era um pensador muito criativo, o que se mostra inclusive nos
títulos de suas obras, tal como este texto que quase reproduz o título de
Pannekoek, e outros casos, tal como em As
Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo (Lênin, 1985), que
repete título de obra de Kautsky (1980), As
Fontes do Marxismo acrescentando a segunda parte. O problema fundamental,
no entanto, não se encontrava no título – o que seria sem grande importância –
e sim no conteúdo de seus textos, sempre reproduzindo idéias alheias.
[12]
Na mesma época, Rosa Luxemburgo (e outros, como Franz Mehring) debatia a
questão da greve com Waldeverde e outros. A questão é que a ala reformista,
dita “ortodoxa” era contra o movimento grevista e a ala dissidente da
socialdemocracia, representada por Pannekoek, Gorter, Rosa Luxemburgo, Mehring
e vários outros, eram favoráveis ao movimento grevista. Parte desse debate foi
reproduzido em: Parvus, 1978.
[13]
Tais partidos sempre foram burocráticos, no sentido de se organizarem através
da relação entre dirigentes e dirigidos. A burocratização a que nos referimos é
um processo, almejado e desejado pelas burocracias existentes, de expandir os
quadros burocráticos, obviamente dentro da lógica burocrática, ou seja, através
da hierarquia, na qual a criação de novos cargos e contratação de mais
burocratas, proporciona uma hierarquização crescente.
[14]
Isso foi discutido em nível psicanalítico por Erich Fromm (1986), ao distinguir
o caráter rebelde e o caráter revolucionário.
[15]
Existe uma ampla bibliografia sobre a burocracia como classe social, sob
distintas perspectivas (inclusive no interior do marxismo) e com diferentes
denominações, e não poderemos apresentar aqui. Para um breve histórico da
teoria da burocracia como classe social e apresentação da concepção que
defendemos, cf. Viana, 2011d).
[16]
Uma biografia de Pannekoek pode ser vista em: Mendonça, 2011.
[17]
Há uma edição portuguesa (Gorter, 1981), embora falte uma parte, algumas
páginas sobre o oportunismo da Terceira Internacional. Uma versão completa pode
ser encontrada em uma edição espanhola (Gorter e Lênin, 1971).
[18]
No período inicial do KPD, a hegemonia interna era da tendência de Otto Rühle,
um dos principais representantes do futuro comunismo de conselhos e que, nessa
época, representava a tendência dos “comunistas internacionalistas”, mas a
direção do partido estava com Rosa Luxemburgo e a Liga Spartacus, que, apesar
das polêmicas entre ambos os grupos, tinha a confiança do outro grupo que lhe
cedia o que não queria, a direção. Posteriormente, a Liga Spartacus ganha
influência e força, e o grupo de Rühle (e outros) perdem espaço para as tendências
socialdemocratizantes e pró-bolchevique.
[19]
Um debate entre Gorter e Rühle demarcou duas posições distintas durante a
revolução alemã: Gorter defendia a necessidade do KAPD e Rühle defendia sua
abolição e participação das uniões operárias que aglutinavam os conselhos
operários. As duas posições se mantiveram até a resolução prática que foi a
derrota das lutas operárias e consequente enfraquecimento do KAPD e das uniões
operárias, até a extinção de ambas as organizações. O que foi gerado depois
foram pequenos grupos políticos conselhistas, principalmente na Holanda e
Alemanha. Porém, muitos confundem o KAPD com um partido político no sentido
atual do termo, o que não é verdade. A discussão entre Gorter e Rühle era sobre
a necessidade de existir uma “organização unitária”, apenas dos trabalhadores,
ou uma “dupla organização”, a dos trabalhadores (conselhos operários, uniões
operárias) e uma outra política, a dos revolucionários. Por conseguinte, Gorter
não defendeu a existência de partido, a não ser num sentido muito amplo da
palavra, o que voltaremos a discutir adiante.
[20]
Guerra civil aberta é um termo usado por Marx (Marx e Engels, 1988) para
expressar o momento em que a luta de classes se radicaliza e a guerra civil
oculta se torna aberta, que é quando o proletariado entra em cena como classe
revolucionária, corroendo o poder burguês, ou seja, de um lado o proletariado
radicaliza, cria suas formas de auto-organização (como os conselhos operários)
e por outro subsiste o poder estatal burguês, e, nesse momento, ou uma ou outra
forma de organização, a proletária ou a burguesa, vencem a luta decretando a
revolução ou a contrarrevolução.
[21] A
bastante conhecida tese de que o proletariado jogado a si mesmo chega ao máximo
a uma consciência sindical, reformista, de lutas econômicas, enquanto que a
consciência socialista brota nos cérebros dos intelectuais burgueses e
pequeno-burgueses que tem acesso a ciência e se organizam no partido, é de
Kautsky. Lênin apenas retoma essa ideologia e acrescenta alguns aspectos, entre
elas a do centralismo democrático e revolucionários profissionais (Lênin, 1988).
Essa ideologia justifica e legitima a dominação burocrática interna dentro do
partido e deste sobre a classe operária, sendo, pois, uma ideologia da
burocracia. Essa concepção leninista de partido irá encontrar oposição dos
mencheviques e do jovem Trotsky, que irá elaborar a tese do substitucionismo,
na qual o partido substitui a classe, a direção do partido substitui este, o
comitê central substitui a direção e por último um ditador único substitui o
comitê central (Trotsky, 1975). O próprio Trotsky, posteriormente, reproduzirá
esta ideologia, pois seus laços com a revolução bolchevique e o leninismo,
inclusive com o stalinismo – que não teria existido sem sua participação e de
Lênin no sentido de burocratizar o processo revolucionário e retirar a
autogestão das lutas e unidades de produção da classe operária e jogar na
burocracia estatal a direção geral da sociedade russa, foi um dos principais
arquitetos da contrarrevolução burocrática com seu exército vermelho e ideias
como as da militarização dos sindicatos, etc. Assim, stalinismo e trotskismo
são irmãos gêmeos e filhos do leninismo e netos do kautskismo, que possuem suas
divergências por expressarem frações e tendências distintas no interior da
burocracia como classe social.
[22] É
possível encontrar parte dessa documentação sintetizada em algumas obras, como
as de Brinton (1975), Kollontai (1977), Rodrigues e De Fiore (1978), entre
outras. Mas também é possível encontrar grande parte desse material nas
próprias obras de Lênin, tais como algumas coletâneas que abordam o período em
que assumiu a direção do governo bolchevique (Lênin, 1988).
[23] Dois autores tiveram o trabalho de comparar textos de
Marx e Lênin sobre socialismo para mostrar o total antagonismo entre eles:
Berger (1977) e Paresh Chattopadhyay (2011). Marx, baseando-se na Comuna de Paris (Marx, 2011),
defendeu a ideia do “salário igual aos dos operários para todos”, porém, na Crítica ao Programa de Gotha (Marx,
1974), avançava ao propor o fim do salariato e do dinheiro. Lênin, em O Estado e a Revolução, apesar de
conhecer e citar esta última obra de Marx, mantém a versão dos salários iguais,
abstraindo o contexto da Comuna de Paris e seu caráter de revolução proletária
inacabada (Viana, 2011b)
[24]
“Por que não dizer – como não faltaram pessoas que dissessem – que nunca houve
na Rússia nada mais do que o golpe de Estado de um partido que, tendo obtido de
um ou de outro modo o apoio do proletariado, tendia apenas a instaurar sua
própria ditadura e conseguiu fazê-lo?” (Castoriadis, 1985, p. 234).
[25] O que caracteriza o capitalismo, sua essência, não
pode existir no comunismo, obviamente, mas isso é defendido explicitamente por
Stálin (1985) e por ideólogos da antiga União Soviética.
[26]
Sobre as organizações revolucionárias, Pannekoek não realizou uma abordagem
coerente e abrangente. Às vezes se posicionou como não sendo necessárias,
outras vezes como necessárias, mas apenas como grupos de opinião e propaganda.
Isso, por um lado, é correto, pois evita a vanguarda e o dirigismo, mas, por
outro, é equivocado, já que deixa terreno livre para os vanguardistas e limita
a ação revolucionária. Obviamente que as organizações revolucionárias devem
abandonar o dirigismo, mas nem por isso devem se limitar tão-somente à
propaganda e discussão.
[27]
Em outra oportunidade, esboçamos um conceito de partido político (Viana, 2003).
Esse conceito deixa bem claro que todos os partidos políticos são organizações
burocráticas e, portanto, conservadoras e que não servem para o processo
revolucionário mas tão-somente para o processo contrarrevolucionário.
Obviamente que os indivíduos revolucionários podem se unir e organizar, mas
devem fazê-lo em organizações não-burocráticas, ou seja, não em partidos
políticos e sim em grupos políticos, que remete a outra conceituação. É
interesse do bolchevismo realizar tal confusão entre partido político –
organização burocrática, tal como os ditos partidos comunistas e
socialdemocratas – e grupos políticos, organizações não burocráticas, pois assim
legitima o primeiro e a si mesmo.
[28]
Sobre aspectos conjunturais e estruturais de um discurso, cf.: Viana, 2009.
[29]
Todo leitor crítico deve levar em consideração as possíveis idiossincrasias e
falhas individuais, além do contexto histórico, e, para aqueles que concordam
com o autor, devem estar atento as mudanças históricas e possíveis avanços
teóricos que apontam para um horizonte mais amplo do que o de um determinado
autor. Claro que tudo isso depende do autor (e do leitor), e pode nem sequer
existir ou então variar em grau de autor para autor. No caso de Pannekoek, a
questão da importância da linguagem não foi devidamente levada em conta, mas
outros pequenos problemas podem ser encontrados, apesar dos seus acertos no
princípio geral. Um deles, que não podemos destacar pormenorizadamente, é o
caráter repetitivo de seus textos (tal como se poderá notar na presente
coletânea), o que é parcialmente justificado devido ao fato de que escrevia,
muitas vezes, para públicos e publicações distintas. Porém, ao invés disso,
teria sido mais útil se tivesse desenvolvido e aprofundado algumas teses e
análises, tal como da revolução russa, do capitalismo de Estado, da revolução
alemã, da formação dos conselhos operários, do marxismo, do bolchevismo,
partidos, sindicatos, entre inúmeras outras questões que poderia ter escolhido
para realizar produções mais complexas e embasadas teoricamente.
[30] Em física, resiliência significa um material que
recupera a sua forma ou posição original depois de sofrer um choque ou
deformação, mas no sentido figurativo expressa poder de recuperação, de
superação, apesar das adversidades. Geralmente, na época de ascensão das lutas
e mesmo um pouco após seu recuo, a produção intelectual sofre um processo de
radicalização, o que leva à adesão de diversos intelectuais que não tinham a
transformação social como preocupação fundamental, e, com o passar do tempo,
retornam a normalidade dos seus interesses acadêmicos e mesquinhos. Apesar
disso, colaboram com uma ou outra produção intelectual interessante e que
contribui com o avanço da consciência revolucionária. Porém, a sua produção
posterior revela que são revolucionários temporários, acompanham as temporadas
de ascensão da luta revolucionária e voltam ao conservadorismo cotidiano com a
temporada conservadora. No caso dos marxistas resilientes, devido seu
compromisso muito mais profundo com a revolução proletária, mantêm posição
revolucionária em qualquer “temporada”, mesmo que com o preço da marginalização
política, intelectual, entre outras.
[31] O
comunismo de conselhos foi retomado no bojo da ascensão das lutas operárias e
estudantis na Itália, Alemanha, França e outros países. Cohn-Bendit (1988), por
exemplo, deixa claro sua influência do comunismo de conselhos.
[32]
Nesse sentido, Ratgeb, pseudônimo de Raoul Vaneigen, um dos principais teóricos
situacionistas, retoma as análise de Pannekoek, ao conceber o caminho
revolucionário desde as greves selvagens até chegar à autogestão generalizada
(Ratgeb, 1974), tal como Pannekoek.
[33]
“Nada prova de maneira mais peremptória o caráter revolucionário das teorias de
Marx do que a dificuldade de assegurar a sua manutenção nos períodos não
revolucionários” (Mattick, 1977, p. 56).