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terça-feira, 29 de setembro de 2015

Pannekoek: Das Organizações Burocráticas à Auto-Organização


Pannekoek: Das Organizações Burocráticas à Auto-Organização*

Nildo Viana


Anton Pannekoek (1873-1960) é um dos mais importantes autores marxistas do século 20. A sua importância, teórica e prática, se revela por intermédio de mais de 50 anos de trabalho intelectual e prática política. Ele não só se formou num processo de luta como derivado dela combateu as concepções e organizações que eram obstáculos para a revolução proletária, de forma moderada no início, até a radicalização relacionada com as mudanças históricas e o próprio desenvolvimento do movimento operário, o que provocou o desdobramento teórico em seu pensamento e a parte mais importante dele.
A presente coletânea assume, assim, uma grande importância no sentido de que ajuda a resgatar o pensamento de um autor relativamente pouco conhecido e que vem ganhando um maior número de publicações mais recentemente. Sem dúvida, o que aqui publicamos são apenas alguns poucos textos e limitados ao tema da questão da organização, um elemento fundamental do seu pensamento e que por isso é importante resgatar e abrir espaço para novas publicações a seu respeito[1].
Aqui reunimos artigos variados publicados por Pannekoek referentes ao problema de partidos, sindicatos e conselhos operários, bem como alguns capítulos de sua principal obra, Os Conselhos Operários. Esta obra é fundamental para permitir um aprofundamento do conhecimento de sua contribuição ao marxismo. Evitamos, pois, os primeiros textos de Pannekoek, que abordam a questão de partidos e sindicatos, pois sua concepção foi sendo alterada com o desenvolvimento histórico e as experiências destas organizações e do próprio autor. E também não utilizamos textos de livros, a não ser a exceção acima apresentada. O conjunto de textos sobre partidos, sindicatos e conselhos, aqui reunidos, data de sua última fase de pensamento, enquanto representante da tendência conhecida como comunismo de conselhos.
Qualquer leitor crítico de Pannekoek – e todo marxista ou libertário tem que assumir o compromisso com a criticidade[2] – deve estar atento que ele escreveu desde o início do século 20 até os anos 1950, ou seja, meio século. Isto significa que ele viveu durante épocas diferentes e isso obviamente vai ter ressonâncias em suas obras.  Outra questão é estar atento para a evolução intelectual do autor. Pannekoek produziu suas primeiras obras políticas no interior da socialdemocracia, como dissidente, mas participante desta. A sua ruptura com a socialdemocracia provocou mutações em seu pensamento. A sua oposição à socialdemocracia, quando era interna, apontava para determinados limites e influências, e, sua oposição posterior, externa, já lhe permite avançar e entender melhor o significado dos partidos socialdemocratas dessa época.
Porém, é com a sua crítica radical ao bolchevismo[3] é que sua compreensão dos partidos políticos avança e ele passa a entender melhor a socialdemocracia europeia e seu herdeiro russo. Assim, ler um texto de Pannekoek de 1905 ou 1909 e depois um de 1927, 1936 ou 1953 sem se atentar para isso, é cometer um equívoco. Inclusive o Pannekoek representante do comunismo de conselhos recusa os partidos políticos em geral, o que não fazia na época em que estava no interior da socialdemocracia e retirar da leitura de um texto dessa época a afirmação que ele acreditava no papel do partido político[4], é cometer um grave equívoco interpretativo.
Assim, a obra de Pannekoek tem um valor histórico, por expressar as lutas e dilemas do movimento operário e dos partidos, sindicatos, grupos, existentes durante um longo tempo, bem como as experiências revolucionárias do proletariado do início do século 20. Além disso, tem um valor teórico, pois, apesar de suas teses não serem tão complexas e sua teorização no que diz respeito ao processo da revolução e formação dos conselhos, possuírem uma base na teoria marxista, ele acrescenta elementos importantes para ela, uma maior precisão no que diz respeito à compreensão da autoemancipação proletária, esboçada por Marx numa época não-revolucionária, apesar das iniciativas revolucionárias daquele período[5]. Assim, enquanto Marx discutia a questão da “livre associação dos produtores” e enfatizava a luta operária como meio de autolibertação do proletariado, e, mesmo quando se baseou na experiência revolucionária do proletariado parisiense durante a Comuna de Paris, não podia prever as formas de auto-organização que se desenvolveriam posteriormente, especialmente os conselhos operários, e Pannekoek, bem como outros, vivenciaram e mostraram ser esta a via da autoemancipação proletária[6].
Não é possível deixar de lado o valor político da obra de Pannekoek, pois ele avança no sentido de uma crítica radical dos partidos e sindicatos, mostrando seus vínculos com o processo de reprodução do capitalismo e, ao mesmo tempo, analisando as formas como o proletariado desenvolve sua auto-organização para a revolução social e para a organização da produção na sociedade comunista. Sem dúvida, esses aspectos estão intimamente relacionados, pois o valor histórico, teórico e político são inseparáveis (a não ser para os ideólogos, que podem, obviamente, se agarrar apenas ao aspecto histórico e desligá-lo do resto, criando mais uma ideologia). Por conseguinte, o conjunto da obra de Pannekoek precisa ser reavaliado e as obras que se dedicaram a isso tendem a aumentar e proporcionar um renovado interesse pelo seu pensamento, o que, em si, já é uma grande contribuição para o processo da luta operária.
Transformações Históricas e Evolução Intelectual de Pannekoek
É mais fácil compreender os textos aqui reunidos se compreendermos a evolução intelectual de Pannekoek. E tal evolução intelectual está intimamente ligada ao processo de transformações do capitalismo e da luta de classes desde o início do século 20. Assim, para entender Pannekoek é preciso entender as mudanças sociais que ocorreram e que ele foi um participante ativo na esfera das lutas sociais. Inclusive, não somente a evolução intelectual de Pannekoek, mas até mesmo a lógica argumentativa dele reproduz a mesma dinâmica: a crítica das organizações burocráticas é sucedida pela análise e defesa das formas de auto-organização do proletariado.
Pannekoek iniciou sua militância na socialdemocracia e ao romper com ela e seus derivados (incluindo o bolchevismo), foi um crítico dissidente e interno, mas, por isso mesmo, limitado. Ao romper no horizonte as revoluções proletárias, há uma radicalização do movimento operário e dos seus representantes teóricos e políticos, que é o que ocorre com Pannekoek. No entanto, é somente no bojo das revoluções proletárias e das contrarrevoluções burocráticas que a ruptura completa ocorreu e o verdadeiro papel de partidos e sindicatos se revelou. Assim, desde a década de 1920, Pannekoek – e não só ele, embora alguns antes dele, como Otto Rühle (1975), começa o exercício de crítica radicalizada de partidos e sindicatos, e com o desenvolvimento do capitalismo oligopolista e, principalmente do capitalismo oligopolista transnacional (que ele denomina indistintamente como “capitalismo monopolista”)[7], acaba aprofundando e negando completamente os partidos e sindicatos[8]. É nesse momento que seu pensamento está suficientemente aprofundado, apesar de algumas imprecisões posteriormente resolvidas[9], e que ele desenvolve sua análise mais pertinente do caráter dos partidos e sindicatos.
Assim, é comum distinguir alguns períodos no pensamento de Pannekoek, que seriam os seguintes: participação e crítica da socialdemocracia; participação e crítica do “socialismo radical”; adesão ao comunismo de conselhos (Bricianer, 1975). O período em que participou da socialdemocracia foi aproximadamente entre 1901 e 1913 (a ruptura com a socialdemocracia por parte de indivíduos e grupos tardou um pouco mais, geralmente após 1914 e a aprovação pelos deputados do SPD – Partido Socialdemocrata Alemão – dos créditos de guerra, em que a Alemanha entrava na Primeira Guerra Mundial). Nessa época, produziu um grande número de artigos e cartas, bem como publicou em 1909 o livro As Divergências Táticas no Movimento Operário (Pannekoek, 2007). No entanto, apesar de estar no interior da socialdemocracia, não poupava críticas a esta. Ele critica as tendências moderadas da socialdemocracia e o revisionismo de Bernstein explicando que sua origem nas mudanças do capitalismo e nas influências pequeno-burguesas no seu interior:
O socialismo busca conseguir todas as vantagens momentâneas possíveis, e, no entanto, não encontra sua finalidade a não ser na revolução futura, a derrocada do modo de produção. Por isso não descuida do menor trabalho de formiga; o trabalho cotidiano é tudo para ele, porém, ao mesmo tempo, seu objetivo final revolucionário é também tudo para ele. Ele utiliza para seu combate todas as instituições da sociedade capitalista que lhe oferecem uma possibilidade de aumentar seu poder e, no entanto, se opõe duramente a elas por questões de princípio. Situa-se totalmente no terreno do que existe e, ao mesmo tempo, se mantém em um terreno completamente novo, a partir do qual recusa e critica tudo o que existe. Vive na exaltação entusiasta por seu magnífico ideal de futuro, exaltação que faz com que seus partidários sejam capazes dos atos mais abnegados, mais desinteressados, mais heroicos; e, ao mesmo tempo, pratica o realismo mais frio, que só atua sobre o terreno sólido da ciência, dos fatos e para o qual a prática é tudo. Que o socialismo reúna em um todo unitário estes traços que, segundo a representação habitual, se contradizem e se excluem, reside no fato que é um movimento natural que nasce da realidade, que é um elo, uma etapa, em um processo incessante do devir (Pannekoek, 2007, p. 198-199).
Pannekoek acrescenta que é natural para o espírito humano a tendência em ver unilateralmente a partir de uma experiência limitada. Desta forma, se cria a tendência de ver estes dois aspectos como mutuamente excludentes e opostos. Daí surge duas tendências: a revisionista, que acentua o trabalho prático de reformas e o anarquismo, que acentua o objetivo final desprezando o “trabalho de formiga”. Porém, isso não é fruto apenas de concepções equivocadas, mas também do desenvolvimento econômico insuficiente e determinadas relações políticas. Mas ambas as concepções expressam uma concepção burguesa de mundo, que é não-dialética, ao contrário da concepção proletária, que é dialética. Tanto o anarquismo como o revisionismo “são duas tendências burguesas no movimento operário, unem uma concepção burguesa de mundo a sentimentos proletários” (Pannekoek, 2007, p. 220). Seriam, mais exatamente, duas tendências pequeno-burguesas. Segundo Pannekoek, “o anarquismo é a ideologia do pequeno-burguês convertido em selvagem, o revisionismo é a do pequeno-burguês domesticado” (Pannekoek, 2007, p. 221).
Aqui Pannekoek revela uma análise correta e, ao mesmo tempo, equivocada. Sem dúvida, é excepcional sua percepção da mescla entre concepção burguesa de mundo e sentimentos proletários, o que ocorre em milhares de casos. Porém, sua forma de conceber a questão da reforma e da revolução, do imediato e do objetivo final, é problemática, já que não estabelece o vínculo necessário entre meios e fins, ou seja, o objetivo final é realmente o fundamental e o que é preciso é entender quais meios podem ser utilizados para se chegar a determinado fim, havendo unidade indissolúvel entre ambos (Viana, 2008a), o que foi ressaltado por Rosa Luxemburgo, sendo um dos elementos fundamentais de todo o seu pensamento e originado de sua crítica ao reformismo revisionista (Luxemburgo, 1986).
Outro problema nesta formulação de Pannekoek é sua crítica ao anarquismo. Sem duvida, o reformismo não ultrapassa o nível do “trabalho prático das reformas” e por isso é uma concepção burguesa (ou burocrática) – e além disso que nada tem de “sentimento proletário”, a não ser em casos individuais – mas o anarquismo ou qualquer tendência que fique apenas no objetivo final é muito mais útil ao movimento revolucionário do que o reformismo ou seus derivados (como o bolchevismo, não abordado por Pannekoek devido o fato de ser inexpressivo nessa época). Também não é possível generalizar uma crítica ao anarquismo, que possui várias correntes com concepções distintas e muito menos pensar o anarquismo como algo unitário e que deveria ser simplesmente descartado (e os supostos “anarquistas” dentro da socialdemocracia nada possuem de anarquismo, são na verdade as tendências radicais que entram em confronto com as burocracias partidárias e as concepções dominantes no partido). Além disso, qualquer indivíduo pode se dizer anarquista sem ter nenhum aprofundamento ou compromisso real com o anarquismo, o que complica a situação. Da mesma forma, as tendências revolucionárias no anarquismo não são ligadas apenas aos objetivos, mas possuem formas de ação que colaboram com o processo revolucionário. Contudo, o que Pannekoek critica não é exatamente o anarquismo, um uso indevido para este nome, e sim as tendências que hoje seriam chamadas de “esquerdistas” no interior da socialdemocracia, e da qual o próprio Pannekoek fará parte no futuro.
Pannekoek reproduz a tradição socialdemocrata e cai no equívoco de considerar o revisionismo como ideologia pequeno-burguesa. Na época, poucos, como Makhaisky (1981) na Rússia, haviam se atentado para a burocracia e a intelectualidade como classes sociais que não tem sentido em chamar “pequeno burguesas”, um equívoco terminológico. É por isso que defenderá as lutas parlamentares e criticará o parlamentarismo exclusivo defendido pelos revisionistas. Fará o mesmo em relação aos sindicatos, mostrando duas tendências burguesas, o reformismo e o sindicalismo revolucionário, destacando seu papel de lutar por melhores condições de trabalho e questões econômicas, que é campo fértil para o revisionismo, e sua negação expressa um radicalismo que é outra concepção burguesa, o sindicalismo revolucionário que abandona o papel do sindicato e se torna outro obstáculo para o desenvolvimento das lutas proletárias (Pannekoek, 2007; Viana, 2011c)[10].
Sem dúvida, havia uma terceira tendência, com a qual Pannekoek se identificava, que era a marxista (apesar de que, na socialdemocracia da época, todos se diziam marxistas, inclusive os reformistas e “anarquistas”). Pannekoek criticava a tendência dominante da socialdemocracia, revisionista e reformista, tal como Rosa Luxemburgo fazia ao criticar o revisionismo de Bernstein (Luxemburgo, 1986). A obra As Divergências Táticas no Movimento Operário[11] revela as preocupações básicas do pensamento de Pannekoek que serão permanentes e já estavam presentes, mas num contexto social, histórico e cultural desfavorável. Porém, apesar disso é preciso deixar claro que, tal como Rosa Luxemburgo, Pannekoek não criticou apenas a ala revisionista mas também a dita “ortodoxa”, especialmente Kautsky, tal como se vê no seu debate com este sobre a questão da greve, em seu texto Ações de Massas e Revolução, publicado em 1912 (Pannekoek, 1978)[12]. Isto tudo ocorreu muito antes da chamada “cisão” da Segunda Internacional, quando as alas dissidentes dos Partidos Socialdemocratas fundaram outros partidos ou grupos e foi quando Lênin rompeu com seu mestre Kautsky, que virou, para ele, um renegado, como se já não fosse um falso marxista e revolucionário há muito tempo.
Porém, é preciso compreender o contexto social para entender a posição inicial de Pannekoek, ou seja, sua inserção na socialdemocracia e, ao mesmo tempo, sua posição dissidente interna, sem realizar uma maior radicalização. O próprio Pannekoek neste mesmo livro apresenta a chave para compreensão de sua posição inicial, ao explicar a reprodução e manutenção do revisionismo, apesar das críticas que sofreu. Nesta obra, ele coloca o caso dos militantes inexperientes que aderem à socialdemocracia:
“Nestes novos membros, se repete, pois, as condições do começo do movimento, quanto todo o partido tem que buscar, no entanto, penosamente o caminho. Contudo, ainda não pode nascer tendências diferentes somente por este fato, pois os novos membros inexperientes geralmente se deixam dirigir pela experiência mais desenvolvida, pela compreensão mais profunda, pelos conhecimentos científicos e pela marcha adiante mais segura dos camaradas mais antigos. Além disso, a comparação com os começos do movimento só é admissível parcialmente. Efetivamente, não é totalmente necessário que cada indivíduo passe sempre de novo por todas as ilusões das etapas anteriores do movimento. O resultado destas experiências e conhecimentos adquiridos penosamente se encontra à sua disposição na teoria socialista sob uma forma resumida, condensada. Meio século de movimento operário ascendente e de luta de classe entre burguesia e proletariado produziu uma grande quantidade de experiências às quais o movimento socialista atual é devedor de sua tática de luta decidida, mais segura, e sua história oferece aos novos membros e às jovens gerações uma fonte inesgotável de ensinamentos preciosos. Graças a estes últimos, a doutrina do desenvolvimento social e da luta de classe, que Marx e Engels expuseram já em 1847 no Manifesto Comunista, se converteu em saber sólido, fundamentado, das classes trabalhadoras mais amplas” (Pannekoek, 2007, p. 188).
Assim, as novas gerações não possuem as experiências das gerações anteriores e por isso devem reaprender o que já foi aprendido por outros anteriormente. Aqui Pannekoek reproduz a tese biológica da recapitulação, também conhecida como “lei biogenética”, segundo a qual a ontogênese revive a filogênese, ou seja, o indivíduo revive todas as etapas vividas pela espécie, o desenvolvimento da humanidade é reproduzido no desenvolvimento de cada ser humano. Não custa lembrar que Pannekoek publicou Marxismo e Darwinismo no mesmo ano que As Divergências Táticas no Movimento Operário. Claro que ele alerta que isso não é uma lei, já que isso é parcial e não é “totalmente necessário”.
Esta ideia, inspirada na biologia, no entanto, é rica e possui um elemento fundamental: as novas gerações de militantes (tanto da socialdemocracia quanto de qualquer outro partido, grupo ou tendência) não possuem a experiência e a leitura de todas as teorias produzidas pelas épocas precedentes. É por isso que grande parte deles adere aos partidos de esquerda ou a concepções, tendências e grupos existentes sem conhecer a história e o debate realizado historicamente entre elas, inclusive não sabendo das superações teóricas que ocorreram, mas que não foram superações práticas. Pois a socialdemocracia, o bolchevismo, etc., já foram refutados teoricamente e, no entanto, são tendências hegemônicas devido a diversas questões, entre elas os seus aparatos burocráticos, recursos, tradição, entre outras (no caso do bolchevismo, existiu todo um bloco de países se dizendo “socialista” e reforçando esta ideologia).
Aliás, este é um dos motivos pelos quais muitos são dissidentes dentro da socialdemocracia e acabam rompendo com ela, formando outros partidos, que por sua vez, tão logo ocorre sua burocratização, geram novas dissidências e cisões. Claro que existem outras determinações nesse processo e é justamente o que Pannekoek vai expor: ritmo de desenvolvimento desigual em diferentes regiões, caráter dialético da evolução social, existência de outras classes ao lado da burguesia e do proletariado. Retirando o “caráter dialético da evolução social”, que não quer dizer nada, e acrescentando a questão das ideologias dominantes, da burocratização e das frações concorrentes da burocracia como classe social, da competição social, da sociabilidade e mentalidade burguesas, as relações afetivas criadas no interior das organizações, etc., temos um quadro explicativo abrangente.
Como dissemos, isto ajuda a explicar a própria inserção de Pannekoek na socialdemocracia. Claro que quando Pannekoek escreveu seu livro não era um militante inexperiente, já era um cientista natural reconhecido, militante de há muitos anos e autor de diversos textos e livros, além de conhecedor das obras de Marx, Engels, Dietzgen, Kautsky e inúmeros outros. Porém, em que pese sua experiência e saber teórico, isto não é suficiente em muitos casos. Existem as diversas outras determinações que aludimos acima. Porém, no caso de Pannekoek, as demais determinações que atuaram foram as concepções dominantes, o vínculo afetivo com a organização, e a crença que a socialdemocracia possuía um problema de tática, de más influências (de concepções e de classes) e desvios direitistas e esquerdistas, mas era o caminho e instrumento revolucionário do proletariado. Essa crença era dominante nos círculos socialdemocratas e em que pese o papel cada vez mais conservador destes partidos, as tendências esquerdistas, radicais e dissidentes, atraiam os mais descontentes e alimentava a esperança em sua mudança de rota no sentido de assumir papel revolucionário, o que legitimava e reforçava a adesão ao partido. Além disso, a fraseologia revolucionária, mero discurso para disfarçar seu reformismo, do pseudomarxismo ortodoxo de Kautsky e outros, ainda iludia alguns integrantes do partido, embora cada vez mais a prática e o discurso fossem assumindo ares mais conservadores. É com a burocratização crescente, reforçada pelas vitórias eleitorais, e conservadorismo também crescente que lhe acompanha, que gera novas dissidências e cisões. A data chave para isso foi 1914, quando todas as ilusões daqueles bem intencionados e que ainda carregavam essa crença numa socialdemocracia revolucionária se desfez diante do apoio à guerra e posição nacionalista dos partidos socialdemocratas.
Outro problema que fez com que Pannekoek não avançasse foi a não percepção clara de uma nova classe social oriunda do desenvolvimento capitalista: a burocracia. As críticas à socialdemocracia, desde o final do século 19, era a das influências e camadas chamadas “pequeno-burguesas”, ideia reproduzida por Pannekoek. Pannekoek, muito antes de Poulantzas (1978), já discutia a diferença entre as classes médias antigas e as novas e percebia a intelectualidade e a burocracia no interior destas últimas:
“De uma maneira diferente em relação aos vestígios das antigas classes médias independentes, as classes médias chamadas novas, os intelectuais, os funcionários, os empregados, constituem uma camada de transição entre o proletariado e a burguesia. Elas se distinguem das antigas classes médias devido um ponto essencial: não possuem meios de produção, pois vivem da venda de sua força de trabalho. Portanto, não possuem nenhum interesse em manter a produção privada, na conservação da propriedade privada dos meios de produção. Neste ponto se encontram de acordo com o proletariado. O seu olhar se dirige para o futuro e não para o passado. Trata-se de uma classe moderna que está em ascensão e que cada vez se faz mais numerosa e importante na medida em que desenvolve a sociedade” (Pannekoek, 2007, p. 277).
O processo de percepção da burocratização da socialdemocracia avançava através tanto de militantes, desde Hans Müller e seu livro A Luta de Classes na Socialdemocracia no final do século 19, passando por Makhaisky, na Rússia, do mesmo período até a revolução bolchevique, até obras de acadêmicos e militantes dos anos posteriores. Makhaisky (1981) teve um papel essencial ao analisar a intelligentsia como classe social privilegiada que se manifestava na socialdemocracia (e no bolchevismo) e que nada tinha a ver com o movimento operário e com o comunismo. Porém, a ressonância de sua obra se deu apenas na Rússia e sem grandes repercussões, a não ser em alguns grupos e indivíduos.
Em 1914, ano emblemático, é publicado o livro do integrante do Partido Socialdemocrata Alemão, Robert Michels, intitulado Sociologia dos Partidos Políticos, apresentando a sua tese da “lei férrea da oligarquia”. Nesta obra, fica explícito que a burocracia domina o partido, e isso é algo comum em todos os partidos políticos existentes, inclusive nos partidos ditos “socialistas” (Michels, 1982). O aparato partidário, com a estabilidade dos chefes, o seu poder financeiro, o controle da imprensa, a ação dos parlamentares, a luta pelo poder entre os chefes (que criam novos grupos e cisões), as tendências centralizadoras, são abordadas por Michels, bem como a metamorfose das massas quando aderem ao partido e ganham vantagens nisso. O crescimento partidário aumenta o burocratismo e o crescimento eleitoral reforça o conservadorismo e reformismo e ambos se reforçam reciprocamente, pois um crescimento reforça o outro e as concepções burocráticas e a burocracia partidária são reforçadas da mesma forma.
“A luta pelo socialismo resulta inevitavelmente no aburguesamento do movimento socialista – esse é o ponto essencial da clássica análise de Robert Michels. A luta requer organização; demanda um aparelho permanente, uma burocracia assalariada; exige que o movimento se dedique a atividades econômicas próprias. Com isso, os militantes socialistas forçosamente tornam-se burocratas, editores de jornais, administradores de companhias de seguro, gerentes de casas funerárias, e até mesmo Parteibudiger – gerentes de bar do partido. Todas essas ocupações são características da pequena burguesia” (Przeworski, 1989, p. 27).
Obviamente que essa tendência à burocratização não é derivada da luta pelo socialismo quando se pensa no caso de um verdadeiro movimento revolucionário (caso do anarquismo, conselhismo, etc.), mas apenas no caso dos partidos socialdemocratas e derivados e semelhantes. As organizações revolucionárias são não-burocráticas e por isso, inclusive, que não crescem de forma a se constranger a formar uma burocracia interna e quando seu crescimento é além do comum, se utiliza formas organizativas diferenciadas (federações, articulações, uniões, etc.) e não hierárquicas.
O crescimento eleitoral da socialdemocracia destrói os sonhos, ilusões e crenças de que ela ainda teria a possibilidade de assumir uma posição revolucionária, o que já era impossível desde o início do século 20, devido seu grau de crescimento e burocratização (e das ideologias e outros aspectos derivados disso), mas ainda restava a crença que foi diminuindo até se extinguir com o fortalecimento eleitoral e crescimento partidário da mesma.
“O partido alemão – apontado por Engels como o modelo a ser seguido – cresceu, apesar dos anos de depressão, de 125 mil votos em 1871 para 312 mil em 1881, 1 427 000 em 1890 e 4 250 000 às vésperas da Primeira Guerra Mundial. De fato, tão logo se permitiu que caducassem as leis anti-socialistas, o SPD tornou-se, em 1890, o maior partido da Alemanha, com 19,7% dos votos. Em 1912, sua porcentagem – 34,8% – era mais que o dobro da relativa ao segundo maior partido. Não é de admirar que, em 1905, Bebel pudesse “explicitar a hipótese, amplamente aceita por seus correligionários socialistas, de que a classe operária continuaria a crescer e que o partido englobaria, um dia, a maioria da população [...]. Vários partidos entraram de modo ainda mas notável na competição por votos. Em 1907, os social-democratas finlandeses conseguiram maioria relativa, 37%, na primeira eleição com sufrágio universal. Os social-democratas austríacos obtiveram 21% quando o direito do voto foi estendido a todos os indivíduos do sexo masculino, em 1907; em 1911, sua porcentagem chegou a 25,4%, e em 1919 conquistaram a maioria relativa – 40,8%. O belga Parti Ouvrier conseguiu 13,2 de votos ao ser abolido o régime censitaire em 1894, e continuou a crescer aos saltos, chegando em 1925 à maioria relativa de 39,4%, sucesso que “estimulou-os a supor que a contínua industrialização produziria um eleitorado crescentemente composto de operários socialistas”. Mesmo nos países onde os primeiros passos não atingiram proporções tão eloquentes, o progresso eleitoral parecia inevitável. Na religiosamente politizada Holanda, o socialismo marchou a passos largos, passando de 3% de votos em 1896 para 9,5%, 11,2%, 13,9% e, em 1913, 18,5%. O partido dinamarquês obteve 4,9% em 1884, a primeira eleição que disputou; em 1889, conseguiu apenas 3,5%; a partir daí, o partido jamais deixou de aumentar sua porcentagem de votos até 1935, quando chegou a 46,1%. Novamente, “houve uma expectativa geral de que, sendo o único partido a representar o movimento operário, chegaria ao poder por intermédio da maioria absoluta do eleitorado”. O partido sueco teve um início humilde, apresentando candidatos em chapa conjunta com os liberais; alcançou 3,5% em 1902, 9,5% em 1905, 14,6% em 1908, deu um salto para 28,5% e 1911, com a extensão do direito de voto, aumentou sua participação para 30,1% e 36,4% nas duas eleições sucessivas de 1914 e, juntamente com sua ala radical, obteve a maioria relativa de votos – 39,1% – em 1917. O Partido Trabalhista norueguês cresceu cerca de 5% a cada eleição a partir de 1897, quando obteve 0,6% de votos, até 1915, quando sua porcentagem atingiu 32,1%” (Przeworski, 1989, p. 33).
Assim, os partidos socialdemocratas cresciam cada vez mais a partir principalmente do início do século 20 e eleitoralmente ganhava cada vez mais peso. O crescimento partidário está ligado ao número de militantes e isso tende a gerar um processo de burocratização. O objetivo eleitoral, por sua vez, torna necessária a militância, propaganda, imprensa, especialistas, etc. Isso provoca uma burocratização crescente[13]. Porém, o crescimento eleitoral reforça o crescimento partidário, atraindo os iludidos e os oportunistas, por um lado, ou seja, o crescimento quantitativo e, por outro lado, criando novos cargos e espaços institucionais (no próprio partido, mas principalmente no parlamento e no governo, ou seja, no poder legislativo e executivo, sendo que um eleito emprega auxiliares, principalmente no último caso). É bem comum que os partidos socialdemocratas iniciem sua trajetória com maior radicalismo e proximidade com o proletariado, inclusive a nível de integrantes, apesar de sempre contar com intelectuais e burocratas, bem como possivelmente camponeses, pequeno-burgueses e outros. O seu crescimento partidário e eleitoral logo atrai o que Michels denominou “charlatões e ambiciosos”. Tal como ele coloca:
“Muitos detestam, conscientemente ou não, a autoridade do Estado, porque ela lhes é inacessível. É a velha história da raposa e das uvas muito verdes. O que os empurra é a inveja, a sede insaciável de poder: o ódio e o ciúme dos caçulas pobres das grandes famílias pelos seus irmãos mais ricos e mais afortunados” (Michels, 1982, p. 152)[14].
Logo, o partido socialdemocrata torna-se um meio de ascensão social, uma forma de ganhar a competição social, elemento estrutural da sociabilidade capitalista (Viana, 2008b) que se reproduz em tais organizações partidárias. Esse processo, por sua vez, reproduz a mentalidade burguesa e esta reforça a sociabilidade capitalista através de valores, sentimentos e concepções que apontam para a reprodução da competição, burocratização e mercantilização das relações sociais (Viana, 2008b). Isso pode ser visto no que Michels chamou “metamorfose psicológica dos chefes”, onde, obviamente, o aspecto burocrático (ânsia pelo poder, direção, dominação) é o elemento mais desenvolvido da mentalidade burguesa (Michels, 1982).
E isso atinge aos “chefes” (burocratas) de origem burguesa, proletária, etc. A passagem de uma classe social para outra significa uma mudança de modo de vida e de mentalidade, que, mesmo tendo variações individuais, no caso do partido político, expressa um conservadorismo ascendente (com ou sem contradição e racionalização, para usar termo de origem psicanalítica, dependendo do caso), já que ao aceitar as relações sociais, as ações que devem realizar, novos valores, as novas “amizades” e práticas (acordos, conchavos, alianças) e a mudança de objetivos (da revolução para a vitória eleitoral e conquista do poder estatal ou pelo menos cargos), não aceita meio termos. Os que resistem a isso abandonam o partido, seja para formar outro ou para criar outras formas organizacionais ou, ainda, abandonar a prática política. Claro que alguns abandonam o partido por descontentamento em não estar no cume da hierarquia burocrática e assim buscam criar novos partidos e levam com eles uma legião de iludidos, que, muitas vezes, se tornam desiludidos em pouco tempo e quanto mais o novo partido cresce.
Nesse processo, se cria uma ampla e forte burocracia partidária, que, por sua vez, se une com uma também poderosa burocracia sindical e elas se reforçam mutuamente. Surgem, assim, duas novas frações da classe burocrática[15], uma classe auxiliar da burguesia, que vive querendo se autonomizar e assumir o poder estatal, seja pela via eleitoral, como a burocracia moderada (socialdemocracia), seja pela via insurrecional, como a burocracia radicalizada (bolchevismo).
A participação de Pannekoek na socialdemocracia se dá neste contexto. Obviamente que ele fez parte de sua ala dissidente e que somente em raros casos havia posições distintas da socialdemocrata na época (fora do marxismo havia apenas o caso do anarquismo e dentro dele, havia casos individuais, como o já citado Makhaisky). Sem dúvida, suas concepções divergiam da socialdemocracia em diversos aspectos, tal como sua valoração das ações de massas, apoio ao movimento grevista, tese da necessidade da destruição do estado, entre outras, que entrava em flagrante oposição com a ala dominante da socialdemocracia. A sua participação crítica na socialdemocracia, por sua mentalidade e posições, levariam, fatalmente, ao rompimento. As mudanças sociais e o crescimento da socialdemocracia tornaram inevitável a ruptura. E essa época marca uma nova fase do pensamento de Pannekoek.
Da Socialdemocracia ao socialismo radical
A evolução da socialdemocracia (crescente conservadorismo e burocratização) acabou constrangendo os dissidentes e radicais a abandonar o partido, o que se fortalece a partir de 1914 e o processo de apoio à guerra e nacionalismo que passa a ser defendido pelos partidos socialdemocratas. Nesse contexto, diversos indivíduos, grupos, tendências, geraram novos partidos ou permaneceram relativamente autônomos e independentes diante deles. Pannekoek, que estava na Alemanha, onde lecionava na escola do partido, volta para a Holanda[16], e, assim, participa das atividades de vários grupos radicais, especialmente os “tribunistas”, que publicam o jornal A Tribuna e tinha em Hermann Gorter um dos seus principais representantes teóricos. A Conferência de Zimerwald aponta para uma articulação dos grupos radicais e Pannekoek e Henriette Roland-Host tornam-se responsáveis pela publicação da revista alemã Verbote, que conta com a contribuição de socialistas radicais de vários, países, incluindo Lênin. É nessa época que surge a Liga Spartacus, de Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Franz Mehring e outros, a Esquerda de Bremen, e o grupo Comunista Internacionalista, na Alemanha. A união de diversos grupos proporciona a emergência de novos partidos. No caso alemão, o SPD (Partido Socialdemocrata Alemão) gera o USPD (Partido Socialdemocrata Alemão Independente) e, posteriormente, o KPD (Partido Comunista Alemão) e da cisão nesse surgirá o KAPD (Partido Comunista Operário da Alemanha), embora este último apareça a partir do fim do socialismo radical. A formação do KPD é um momento importante para entender o radicalismo surgido da ruptura com a socialdemocracia (Almeida, 1982), pois aglutina várias tendências e grupos (Liga Spartacus, Esquerda de Bremen, Comunistas Internacionalistas, entre outros menores) e expressa o socialismo radical. Num determinado momento, ocorre uma ruptura: os radicais e os esquerdistas.
É neste contexto que Pannekoek irá produzir suas obras no interior do socialismo radical, novamente como dissidente interno. Ele realizava, principalmente, uma crítica ao bolchevismo, a versão russa do socialismo radical, que, no entanto, propunha uma volta ao terreno da socialdemocracia antes da Primeira Guerra Mundial. Ele faz observações críticas sobre a Revolução Russa, apesar de apoiá-la, e em O Novo Blanquismo critica a tática leninista. A sua posição diante do bolchevismo vai ficando cada vez mais crítica. Após Lênin publicar O Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo (Lênin, 1989), na qual dedica a maior parte à esquerda alemã, apresentando uma crítica a textos de Pannekoek e Gorter, assinados com pseudônimos, a ruptura se torna aberta. Hermann Gorter publica Carta Aberta ao Companheiro Lênin, uma resposta direta ao livro deste[17] e, posteriormente, Pannekoek publica sua principal obra deste período, Revolução Mundial e Tática Comunista.
Nessa obra, Pannekoek retoma a questão da revolução russa e critica o socialismo radical. Isso ocorreu, obviamente, no contexto de ruptura entre radicais e esquerdistas. A socialdemocracia, que continua existindo e, de certa forma, mantendo a hegemonia, propunha ação parlamentar e sindical, e o socialismo radical propunha ação de massas (Rosa Luxemburgo, Pannekoek) ou insurreição armada (Lênin), embora, neste último caso, não abandonando a tática socialdemocrata parlamentar e sindical. No caso alemão, o USPD, a socialdemocracia independente, tornou-se meramente reformista como seu antecessor e gerador, o SPD, e o KPD, que representava, então, o socialismo radical, acabou sendo dominado pelo bolchevismo após a morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, e o espartaquismo foi substituído pelo oportunismo de Pau Levi, que ainda mantinha o nome do grupo mas o reaproximava da socialdemocracia, e pelo bolchevismo, uma forma distinta de socialismo radical[18].
O Comunismo de Conselhos
Assim, o socialismo radical acaba sendo cada vez mais hegemonizado pelo bolchevismo, que após a Revolução Bolchevique, se torna uma grande influência e busca, através da Terceira Internacional, dos escritos de Lênin (especialmente O Esquerdismo), tornar-se modelo a ser seguido e fazer do partido bolchevique dirigente internacional. O nome comunismo, retomado de Marx, substitui o nome socialdemocracia e os novos partidos passam a se chamar comunistas. É neste contexto que ocorre a ruptura:
“A tensão entre a corrente radical e as tendências extremistas se acentuou. Para dizer a verdade, a corrente radical não superava o círculo dos dirigentes do partido, a “Central” berlinense e alguns comitês das províncias. Uma camarilha, porém sustentada pela III Internacional, que só aspirava a uma coisa: a fusão com os socialistas independentes. Estes, efetivamente, se encontravam no cruzamento dos caminhos. Por um lado, não havia nada fundamental que os separasse da tática clássica, dos majoritários, porém, por outro lado, a maior parte deles estava convencida de que a cooperação com os partidos burgueses reduzia a quase nada as perspectivas de reformas eficazes. Além disso, os independentes, tanto como o comitê central do KPD e a direção da Internacional, não admitiam a ação direta – que eles chamavam de putschista – suscetível de atemorizar os eleitores e de prejudicar, assim, a tática parlamentarista” (Bricianer, 1975, p. 176).
Através de maquinações, esse pequeno grupo burocrático do KPD conseguiu expulsar mais da metade do partido, acusada de ser “esquerdista” (Canne Meijer, 1976; Authier, 1975). Da ruptura, emerge um novo partido, o KAPD, Partido Comunista Operário da Alemanha, que em seu início contou com Gorter, Rühle, Pannekoek e outros. Este, no entanto, devido às divergências com a socialdemocracia e bolchevismo, por um lado, e recusa de sindicatos e partidos, por outro, se dizia como não sendo “um partido político propriamente dito”. A revolução alemã, iniciada em 1918 e que vai até 1921, com a instauração de várias repúblicas de conselhos operários em diferentes regiões da Alemanha, em períodos diferentes, o que prejudicava a luta geral, pois quando avançava num lugar, era derrotado em outro, foi a determinação fundamental desse processo de ruptura.
Porém, além do impacto dos sovietes (conselhos operários) na Rússia, a sua emergência na Alemanha e formação de repúblicas de conselhos (sem falar em outros países, mas com menos radicalidade do que nestes dois), se produziu uma teoria dos conselhos operários, expressa por aqueles que são chamados “comunistas conselhistas”, que se opuseram aos “comunistas de partido” (bolchevismo) e que contava com inúmeros integrantes nessa época, e os que ficaram mais conhecidos, foram os que deixaram escritos sobre esta época histórica: Otto Rühle, Hermann Gorter, Helmutt Wagner, Paul Mattick (embora este mais jovem na época), entre outros, e, entre eles, Anton Pannekoek. Posteriormente, novos grupos inspirados no comunismo de conselhos irão surgir na Holanda e outros países, e Karl Korsch se tornará um dos representantes de tal tendência. Os que não morreram, como Gorter, falecido em 1927 e Rühle, falecido em 1947, continuaram produzindo intelectualmente e ajudaram a ampliar as contribuições teóricas do comunismo de conselhos, tal como Paul Mattick, Karl Korsch e Anton Pannekoek[19].
O comunismo de conselhos apresentará uma crítica radical aos partidos e sindicatos. Pannekoek será um dos representantes desta tendência que mais irá discutir estas questões. É a partir desse período que os textos presentes nesta coletânea foram selecionados. A experiência histórica demonstrou, cabalmente, o papel dos partidos e sindicatos. Os partidos socialdemocratas e assemelhados, nunca ultrapassaram o nível do reformismo e do conservadorismo. E quando explodiam ações espontâneas e radicais do proletariado, sempre foram chamados para “apagar o fogo”, tal como ocorreu com a Revolução Alemã de 1918, na qual SPD e USPD foram chamados para compor o governo e combateram a esquerda sem nenhum pudor, e isso data do assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, entre outros. No resto da Europa e do mundo nunca foi diferente. Os partidos socialdemocratas se tornam grandes máquinas eleitorais e conservadoras. Mesmo em seu período de nascimento, quando ainda são pequenos, os burocratas partidários e seus aliados mais próximos (burocratas sindicais, intelectuais, etc.) fazem um discurso um pouco mais radical, mas já mostrando seu caráter socialdemocrata, o que é disfarçado graças às tendências mais à esquerda existentes no seu interior, que vão ou se integrando ou sendo expulsas ou, ainda, saindo por contra própria.
A crítica da socialdemocracia por parte de Pannekoek partiu desde sua experiência no seu interior e sua evolução histórica, mas também pelo processo de reflexão destas experiências e da forma organizativa socialdemocrata. Se, num primeiro momento, a análise de Pannekoek apontava que os partidos socialdemocratas tinham desvios, principalmente devido influências pequeno-burguesas, agora são vistos como obstáculos para a emancipação proletária devido sua própria forma organizativa, burocrática.
Por outro lado, um tipo de partido diferente, o Partido Bolchevique, conseguiu atrair uma grande parte dos descontentes da socialdemocracia, principalmente após a Revolução Bolchevique. A revolução russa de fevereiro foi resultado da luta espontânea do proletariado, e a emergência dos conselhos operários (sovietes) mostrou sua força. Porém, isso provocou mudança de governo, mas não abolição do poder estatal. Nesse contexto, emergiu uma guerra civil aberta ou dualidade política[20] e aumento da força proletária, tanto por parte dos conselhos operários quanto por outras formas de auto-organização complementares ou similares.
As organizações proletárias que emergem no bojo da Revolução Alemã, os conselhos operários e uniões operárias, marcavam uma nova fase da luta proletária que terá um profundo impacto no pensamento de Anton Pannekoek (e outros militantes da época). As lutas proletárias marcaram a emergência de uma forma de auto-organização que tinha a capacidade de organizar o processo de produção e as relações sociais territoriais, os conselhos de fábrica, que, articulados constituem os conselhos operários e estes, por sua vez, fundavam as uniões operárias, base das repúblicas de conselhos que surgiram na Alemanha. Neste contexto, ficou mais claro o papel dos sindicatos e partidos que, claramente, buscavam combater ou dirigir tais formas de auto-organização. O Partido Socialdemocrata Alemão e os independentes tiveram um papel fundamental na luta por impedir a radicalização do movimento operário, e a instauração da República de Weimar significou a última chance da burguesia alemã salvar seu capitalismo, com apoio dos socialdemocratas, sindicatos e do Partido Comunista Alemão, após a morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.
Outro processo histórico importante para a elaboração da concepção de Pannekoek foi a Revolução Russa de 1917. A emergência dos sovietes proporcionou um entusiasmo geral, já que a luta proletária espontânea e autônoma adquiria uma nova fase e forma organizacional. O período que vai de fevereiro até outubro, quando os bolcheviques tomam o poder estatal, é marcado pela força do proletariado nas unidades de produção e determinadas regiões. A tomada do poder estatal pelo Partido Bolchevique significou uma contrarrevolução burocrática. O bolchevismo, desde sua emergência, era uma organização burocrática e disciplinar, e Lênin foi o seu grande ideólogo.
Desde sua obra clássica, Que Fazer? na qual teoriza a incapacidade de autolibertação proletária e coloca a necessidade de um partido de vanguarda para dirigi-la e produzir sua consciência revolucionária (Lênin, 1988)[21], passando por diversas outras onde tematiza a disciplina, o ataque aos grupos dissidentes, internos ou externos ao partido, já era uma prefiguração do que ocorreria uma vez no poder estatal. Ao contrário do que muitos colocam, não existiu nenhuma diferença radical entre Lênin antes e depois do poder, as práticas e concepções eram semelhantes, o que havia de diferença eram slogans e palavras de ordem para conquistar o apoio das massas (alguns extremamente famosos como “todo o poder aos sovietes” e “pão, paz e terra”) e concessões democratizantes falsamente libertárias para conquistar este apoio popular e combater adversários políticos, como em O Estado e a Revolução (Lênin, 1987b; Viana, 2011d), durante o momento em que buscava reunir forças para chegar ao poder estatal.
Existe uma ampla documentação e bibliografia sobre a prática, decretos e discursos de Lênin no poder, que mostram todo o seu burocratismo, a sua mentalidade burocrática e dirigista que saiu do casulo do partido e atingiu o poder estatal e, assim, da burocracia partidária emerge a burocracia estatal, a forma difere, mas a essência é a mesma[22]. A dissidência interna do partido foi proibida e a externa perseguida (Viana, 2007), os marinheiros de Kronstadt são massacrados (Arvon, 1981), os camponeses ucranianos são vítimas de armadilha do exército vermelho (Machnó, 1988). Porém, como na Revolução dos Bichos de George Orwel (2003), Lênin desconsidera as poucas concessões de O Estado e a Revolução e, tal como fizeram os porcos desta ficção, Napoleão e Bola de Neve, ele altera os princípios anteriormente estabelecidos e onde estava escrito “todos devem receber salários de operários”, leia-se, doravante, “os técnicos e especialistas devem ganhar salários mais altos”; onde estava dito “todo o poder aos sovietes”, leia-se, “todo o poder ao partido e ao estado ditatorial”. A lista de Lênin, no entanto, é cem vezes maior do que a de Napoleão, o porco burocrata.
Assim, é possível ler nas obras de Lênin, totalmente ao contrário do que dizia Marx[23], que no socialismo o dinheiro se torna a “nata” da sociedade (Lênin, 1980), que o taylorismo, forma capitalista de organização do trabalho, deve ser implantado, que os técnicos e especialistas devem receber salários mais altos, que deve haver direção única nas fábricas. O processo de esvaziamento foi a estratégia leninista para combater os conselhos operários (Brinton, 1975). Assim, se os dissidentes ainda apelavam para o partido e para que este reconhecesse a autoatividade das massas (Kollontai, 1977; Viana, 2007) não faziam mais que demonstrar que não entenderam que se tratava de uma luta de classes entre burocracia e proletariado ao invés de disputa de facções e que apelos aos líderes burocratas Lênin e Trotsky nada representavam. Isso tudo, inclusive, foi derivado da concepção vanguardista de Lênin e sua concepção insurrecionalista de revolução, gerando nada mais do que um golpe de Estado, como bem identificou Makhaisky (1982) na época e outros reconheceram depois[24].
Porém, uma coisa é o que acontecia na Rússia concretamente, outra coisa era a imagem disso na Europa e nos resto do mundo. A revolução russa era saudada como revolução proletária e como instituição do socialismo, enquanto que Lênin era tido como o grande arquiteto dessa proeza histórica. Os sovietes eram tidos como a base do regime instaurado na Rússia e o bolchevismo como um partido que dirigia a transformação socialista deste país. As poucas informações, vindas dos antagonistas e dos partidários, eram um obstáculo para uma melhor compreensão. A simpatia pelo acontecimento fazia com que os adeptos do socialismo, de todas as tendências (anarquismo, bolchevismo, socialismo radical, etc.) acolhessem com entusiasmo a revolução bolchevique e a crença que as informações vindas dos seus representantes eram verdadeiras. Poucos questionaram a Revolução Bolchevique, tal como Rosa Luxemburgo (Luxemburg, 1991) e, mesmo os que o fizeram, o fazia moderadamente e ainda falando da admiração pelo bolchevismo.
É por isso que a ruptura com o regime soviético foi sendo feita aos poucos. A crítica de Rosa Luxemburgo não foi publicada a não ser alguns anos depois (foi escrita em 1918 e publicada em 1921). As novas informações que chegavam, as posições dos bolcheviques nas questões internacionais e no interior da Terceira Internacional, os acontecimentos de Kronstadt, entre outros, acabaram desiludindo diversos indivíduos e grupos. Otto Rühle, por exemplo, visitou a Rússia para um Congresso da Terceira Internacional e depois relatou que lá o proletariado era mais explorado que na Alemanha. Assim, as polêmicas com o bolchevismo se tornam cada vez mais amplas e as novas informações e práticas foram se avolumando, e com isso a ruptura se tornou inevitável.
Assim, Pannekoek passa a integrar o grupo daqueles que caracterizam a União Soviética como um capitalismo de Estado. Essa tese é desenvolvida na própria Rússia, mas também na Europa. Na Rússia, a teoria do capitalismo de Estado é precedida pelos grupos dissidentes no interior do próprio Partido Bolchevique, que em seus textos de crítica ao regime instalado avisam da ameaça de sua transformação em capitalismo estatal caso siga o caminho apresentado pelos líderes do partido e não incentivem a autoatividade das massas. Esse é o caso dos grupos Oposição Operária, Comunistas de Esquerda e Centralismo Democrático (Viana, 2007). A definição do regime bolchevique como capitalismo de Estado ocorre através dos grupos externos ao Partido Bolchevique, tal como os grupos Verdade Operária, de Bogdanov, e Grupo Operário, de Miasnikov (Viana, 2007).
Na Europa, alguns militantes e grupos realizaram as primeiras teorizações do capitalismo estatal. Na Alemanha e Holanda, os comunistas conselhistas; na Itália, Rodolfo Mondolfo e, mais tarde, Amadeo Bordiga; na Inglaterra, Sylvia Pankhurst e Guy Aldred; assim como inúmeros outros. Depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma tentativa de apropriação da teoria do capitalismo de Estado por parte de tendências leninistas, de acordo com seu oportunismo político. Alguns trotskistas mais radicais, tais como Tony Cliff (2011), mas também Chris Harmann e Alex Callinicos, passaram a definir a URSS como capitalismo de Estado, mas que só se efetivou a partir da ascensão de Stálin; alguns stalinistas, por sua vez, passaram a considerar que isso realmente ocorreu, mas apenas após a morte de Stálin; e, alguns maoístas, como Charles Bettellheim (1979; 1973), passaram a defender tal tese, entre outros.
Pannekoek adota a tese do capitalismo de Estado, mas falta-lhe rigor e precisão conceitual. Ele coloca, em várias passagens, capitalismo de Estado e, em outras, Socialismo de Estado. No artigo “Capitalismo de Estado e Ditadura”, diz que são a mesma coisa e, em Os Conselhos Operários, reveza os dois termos como sendo sinônimos. O problema da imprecisão conceitual de Pannekoek será abordado adiante, mas, nesse caso específico, é preciso esclarecer que capitalismo e socialismo são coisas distintas, embora a deformação no uso desta última palavra (o que não deixa de ocorrer também no caso da primeira, mas em menor grau e com menos prejuízo político) acabe apagando parcialmente tal diferença, mas que o uso indistinto das duas para qualificar o regime “soviético” pode trazer mais confusão do que esclarecimento e uma das tarefas daqueles que lutam pela transformação social é justamente, como bem coloca o próprio Pannekoek, a clarificação. A confusão conceitual não ajuda na clarificação política. Além disso, a palavra socialismo sendo usado para qualificar tal regime pode ser entendido de forma positiva, e “socialismo de Estado” pode dar a entender que é possível tal coisa. Em síntese, Pannekoek comete um equívoco formal que tem consequências teóricas e políticas, tal como discutiremos adiante.
Pannekoek não desenvolveu nenhuma análise aprofundada da Rússia ou teoria do capitalismo de Estado. Ele apenas caracterizou e justificou uma definição, mas sem um aprofundamento maior. Outros comunistas conselhistas, especialmente Paul Mattick (2011), desenvolveram mais profundamente tal teoria. De qualquer forma, a caracterização da Rússia como capitalismo de Estado remete a um conjunto de questões que necessitam ser desenvolvidas ou remetidas para outros que realizam tal desenvolvimento, o que Pannekoek não fez. Em síntese, é necessário comprovar o caráter capitalista da Rússia e isso pressupõe uma definição de capitalismo, que já se encontra em Marx – obviamente existem outros, mas para quem se diz marxista essa é a referência – e o capitalismo é definido por esse como um modo de produção fundado na extração de mais-valor. É por isso que existe um amplo debate sobre a existência ou não de mais-valor no regime “soviético”, bem como, para os deformadores do marxismo, se pode ou não existir a “lei do valor” no socialismo[25].
Na verdade, na Rússia nunca deixou de existir a produção de mais-valor, pois a revolução proletária ocorrida lá foi inacabada e, portanto, não aboliu totalmente tal produção e a tomada do poder estatal pelos bolcheviques reforçou sua existência, significando uma contrarrevolução burocrática que implantava um capitalismo estatal. A sociedade russa após o bolchevismo se constituiu como um capitalismo de Estado, pois a extração de mais-valor, via trabalho fabril assalariado, foi mantido e ampliado, realizando uma industrialização forçada e rápida. Isso permitiu um rápido desenvolvimento capitalista, fundado num alto grau de exploração do proletariado e do campesinato. Uma questão derivada e de importância menor é a discussão em torno da propriedade privada. A propriedade privada, para Marx, é mera expressão jurídica das relações de produção e, por conseguinte, toda discussão ideológica que uniram os pseudomarxistas da antiga URSS e até mesmo sociólogos e ideólogos dos EUA e Europa Ocidental, desde Berle e Means, passando por Gurvitch, Aron e Dahrendorf, sobre propriedade e controle, revelam uma incompreensão/deformação da teoria de Marx (Viana, 2011b). A questão da propriedade ou do controle da propriedade é algo sem sentido na teoria do capitalismo de Marx. As relações de produção capitalistas são caracterizadas pela produção de mais-valor e é essa que constitui as duas classes fundamentais do capitalismo, a burguesia, classe exploradora e apropriadora do mais-valor, e o proletariado, classe explorada e produtora de mais-valor.  
A forma como isso ocorre é outra questão. Assim, a classe capitalista pode fazer isso individualmente ou coletivamente (sociedade por ações, via poder estatal, etc.) e a tendência do capitalismo, devido suas características derivadas (reprodução ampliada do capital, concentração e centralização do capital) é reduzir o número de proprietários e reuni-los em grandes empresas. No caso da Rússia, a apropriação do mais-valor se dá através do Estado e é por isso que é um capitalismo estatal. A classe dominante extrai mais-valor por intermédio do Estado e por isso é uma burguesia estatal que, ao mesmo tempo, exerce a função de controle, tanto das empresas quanto da sociedade como um todo, realizando atividades que, no capitalismo privado, foram separadas e atribuídas à burocracia.
Assim, quando Pannekoek afirma, em algumas passagens, que se trata de uma “nova classe dominante” é um equívoco, a não ser que por isso se entenda novos indivíduos no lugar dos antigos da mesma classe ou, ainda, que é nova forma dessa classe. A burocracia enquanto classe social realizou uma contrarrevolução e tomou o poder estatal e, através deste, passou a exercer o papel da classe capitalista, extrair mais-valor e coordenar a acumulação de capital. Logo, trata-se de uma burguesia originada da burocracia e fundida com ela, pois une as atividades burguesas e burocráticas, que passam a ser exercidas por uma única classe. Assim, a burguesia de Estado é uma fusão da classe capitalista com a classe burocrática. Essa burguesia burocrática não é uma “nova classe dominante” no sentido de que não criou um novo modo de produção e nem é uma novidade radical. Para a burocracia se tornar uma nova classe dominante, teria que abolir a produção de mais-valor e instaurar uma nova forma de exploração em seu lugar e isso só poderia ocorrer com sua generalização mundial, o que não ocorreu. A ideologia do “socialismo em um só país”, defendida por Stálin, apenas revelava a incapacidade do capitalismo estatal suplantar mundialmente e imediatamente o capitalismo privado e a chamada “Guerra Fria” assumiu a forma de embate entre as duas grandes potências que são expressões de duas formas de capitalismo. Assim, o que emerge na Rússia a partir do bolchevismo não é uma “nova classe” e sim uma nova forma de burguesia que resulta de sua fusão com a burocracia.
Voltando ao nosso assunto original, temos, neste breve esboço, alguns dos principais elementos que compõem o pensamento de Pannekoek: por um lado, recusa e crítica da socialdemocracia, do parlamento, dos partidos, dos sindicatos, do bolchevismo, do capitalismo de Estado e, por outro, afirmação da necessidade de auto-organização, desenvolvimento da consciência revolucionária, ação direta, greves, conselhos operários. Esse conjunto de elementos faz de Pannekoek um dos pensadores mais importantes entre os que expressaram a perspectiva do proletariado e somando isso com a sua contribuição em outras questões (a questão da consciência, a crítica do materialismo burguês de Lênin, etc.), temos uma das grandes referências para uma análise do capitalismo e, ao mesmo tempo, da revolução proletária e dos conselhos operários.
Nesse contexto, as revoluções proletárias inacabadas na Rússia e Alemanha foram fundamentais para a teoria dos conselhos operários de Pannekoek. Este escreveu inúmeros textos sobre os conselhos, suas possibilidades e seu antagonismo com as organizações burocráticas. Mas sua grande obra foi, sem dúvida, Os Conselhos Operários, de 1947. Nesta obra ele sintetiza e aprofunda vários aspectos já abordados anteriormente, acrescentando novos elementos e superando alguns problemas. Essa obra assume uma grande importância na história do marxismo, já que é uma síntese de um conjunto de concepções, práticas e da história do movimento operário em seu período de maior radicalidade simultânea em diversos países durante o século 20.
No entanto, a obra de Pannekoek possui alguns pontos problemáticos. Não se trata aqui de fazer a crítica de alguns aspectos do seu pensamento, mas apenas de alertar e escapar da apologia acrítica que não combina com o espírito libertário, com a perspectiva proletária e com o ideal da crítica desapiedada do existente. Claro que, caso não houvesse problemas, seria desnecessário realizar tal discussão, mas, uma vez que se tem consciência de alguns problemas, então é nosso dever revolucionário explicitá-los. Vamos apenas colocar umas breves considerações sobre tais problemas – que, por sinal, não comprometem o valor e vínculo com o proletariado por parte de Pannekoek, mesmo porque, tais problemas são mais de caráter formal. O conteúdo de sua obra é revolucionário, proletário, libertário e isto não está em dúvida.
O primeiro problema é a imprecisão conceitual que Pannekoek cai em muitas oportunidades e isso cria confusão, não só teórica, mas também política. No que se refere ao processo de produção teórica, Marx inaugurou toda uma produção marcada pela coerência – que, obviamente, nunca é total, pois além da evolução intelectual de um autor, ainda há as dificuldades, obstáculos, etc. que atingem a todos – e por uma riqueza conceitual até hoje ainda não reconhecida em sua totalidade. A teoria é a “expressão da realidade” (Korsch, 1977) através de um universo conceitual articulado que fornece sua explicação (Viana, 2008c). Assim, uma produção teórica expressa uma concepção aprofundada e desenvolvida da realidade, elemento necessário para reconstituir a realidade no pensamento e a precisão conceitual é fundamental por dificultar deformações e incompreensão.
A imprecisão conceitual abre espaço para a deformação do pensamento teórico revolucionário. Já citamos o caso do capitalismo de Estado e, em Pannekoek, existem outros exemplos, mas vamos destacar um outro que é algo que pode ter consequências teóricas e políticas mais graves, que é sua concepção de partido. Essa concepção já foi analisada (Souza, 2011; Mendonça, 2011) e os textos de sua última fase de pensamento expressam, muitas vezes, uma recusa do partido e até da expressão “partido revolucionário”, enquanto que, em outras passagens, pensa partido como “grupos de opinião”. Essa dubiedade, às vezes reforçadas por traduções problemáticas, pode dar margem para se pensar que Pannekoek aceitava a possibilidade de um partido, tal como alguns dizem. Isso pode ser reforçado pela descontextualização da evolução intelectual de Pannekoek e pela retomada de textos da época em que ele pertenceu à socialdemocracia, o que pode gerar a deformação do seu pensamento no sentido de legitimar os partidos políticos existentes ou usar suas ideias para defender a formação de mais um partido político. E até mesmo aqueles que querem se inspirar em seu pensamento podem caminhar no sentido contrário ao dele por apego a ideias ou afirmações que carecem de maior profundidade e precisão (bem como leituras rigorosas e, por conseguinte, contextualizadas).
No fundo, Pannekoek não elaborou uma teoria dos partidos políticos e das organizações revolucionárias[26] e usou de forma ambígua o termo partido, o que abre espaço para confusão e deformação. Para elaborar uma teoria dos partidos políticos seria necessária uma conceituação de partido de forma aprofundada, uma análise de cada elemento componente do conceito e seus vínculos com outros conceitos que expressam aspectos da realidade fundamentais para sua explicação (Estado, burocracia, classes sociais, ideologia, etc.)[27]. Basta ver o que foi feito com a obra de Marx (inclusive o seu uso da palavra partido, num contexto histórico de inexistência de partidos no sentido atual da palavra e com significado radicalmente diferente, no Manifesto do “Partido” Comunista, obra posteriormente deformada), para reconhecer a importância da precisão conceitual. Esta faz parte da luta cultural e da luta de classes, não é mero preciosismo e sim parte da luta que influencia a mesma.
Outro problema na obra de Pannekoek, ligado a este, é sua discussão insuficiente a respeito das classes sociais. Sem dúvida, isso em parte é desnecessário, já que sendo marxista, usa a teoria das classes sociais de Marx. Porém, há incongruências entre sua abordagem e a de Marx. O seu uso do termo “classes médias” é um problema, pois não só recorda as ideologias da estratificação social da sociologia norte-americana, como cria uma confusão no entendimento das mesmas. Pannekoek não aprofundou a questão das classes e nem percebeu ou estudou sua complexidade em Marx. Por isso não pode perceber que, se Marx usou a expressão “classes médias”, isso não fazia parte de sua teoria das classes sociais e sim um uso de uma expressão que dava conta de algo ainda não teorizado e que merecia aprofundamento, além de ser de uso comum por outros autores. Em síntese, era um elemento “conjuntural” em seu pensamento e não “estrutural”[28].
Da mesma forma, apesar de discutir e em muitas oportunidades colocar a burocracia como classe social, não apresenta uma definição ou discussão sobre esta classe, não só no caso do capitalismo estatal russo, mas no caso do capitalismo privado quando discute a burocracia partidária e sindical. A ausência da percepção da classe burocrática produz equívocos políticos e teóricos, pois entender o papel desta classe nas revoluções proletárias e nas lutas políticas cotidianas, sendo uma classe auxiliar da burguesia que, em seus setores mais radicais – que atraí proletários, jovens e indivíduos bem intencionados e radicalizados – apontam para uma concepção de revolução que, no entanto, é não proletária e sim burocrática, na qual o partido é dirigente e o objetivo é a conquista do poder estatal pelo mesmo.
Porém, apesar dessas imprecisões conceituais – e outros usos de determinados termos poderia ser acrescentado, tal como “massas”, “poder”, “democracia”, etc. –, a apropriação burguesa ou burocrática do pensamento de Pannekoek é bem mais difícil do que de outros marxistas, pois sua radicalidade expressa no conteúdo é um obstáculo difícil de ser removido, embora não impossível e que seria quase impossível com um maior aprofundamento e precisão conceitual. Isto não retira seus méritos, apenas serve de alerta para não repetirmos os equívocos do passado e também não evitarmos a leitura rigorosa e crítica, já que a falta dessa é caminho para equívocos conceituais e políticos. O melhor caminho é a proposta de marxismo não-dogmático, crítico e revolucionário, tal como proposto por Karl Korsch (1977)[29]. Aliás, esse foi o caminho trilhado pelo próprio Pannekoek e este é outro mérito que ele deixou para os militantes posteriores e que deveria ser uma grande lição para todos nós. Ao invés de seguir seus textos religiosamente, é mais útil seguir os princípios libertários que defendeu.
Para encerrar, é preciso resgatar a importância de Pannekoek para a luta proletária. A sua obra Conselhos Operários, por exemplo, é uma das mais importantes do século 20, tanto para o marxismo quanto para o proletariado. Ela revela uma utopia concreta (Maia, 2010) e síntese de lutas que são excelente inspiração para lutas futuras. Ela destaca as formas próprias e específicas de organização proletária (Marques, 2011) em contraposição às organizações burocráticas da sociedade capitalista. Esta obra foi publicada em 1947 e expressa não somente um aprofundamento e ordenação da questão dos conselhos operários, como mostra o caráter da sua produção intelectual, não presa aos modismos e, além disso, indo em contradição em relação à cultura dominante em geral. Devido sua data de publicação, se insere na última fase do pensamento de Pannekoek e no período posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Assim, ao contrário de muitos outros, Pannekoek não abandonou a concepção revolucionária após as derrotas do movimento operário que gerou o fascismo, o nazismo e a guerra. Nesse sentido, a teoria de Karl Korsch (1977), segundo a qual a história do marxismo acompanha a história do movimento revolucionário do proletariado, sendo que o avanço ou o recuo deste tem efeitos sobre aquele, é correta e foi isso que aconteceu com o marxismo. O recuo das lutas operárias no capitalismo oligopolista transnacional fez emergirem ideologias conservadoras, pseudocríticas, e marginalizou completamente o marxismo. Até alguns dos mais radicais e revolucionários tombaram nesse conceito. O núcleo teórico do comunismo de conselhos teve muitas baixas, tal como a morte de Hermann Gorter em 1927 e Otto Rühle em 1947, mas outros mantiveram sua posição revolucionária e produziram por mais tempo, mantendo acesa a chama do comunismo de conselhos.
Porém, até o final de sua vida, Pannekoek manteve-se revolucionário e fiel aos seus princípios. Nesse sentido, ele é um marxista resiliente[30]. Pois enquanto outros abandonaram ou abrandaram o ímpeto revolucionário, ele, junto com alguns outros poucos, manteve-se fiel ao movimento revolucionário do proletariado, mesmo em condições adversas, na qual o capitalismo oligopolista transnacional, através da superexploração internacional, do fordismo e Estado Integracionista, buscou forjar um aumento da renda e consumo e garantir sua estabilidade política no bloco imperialista, o que conseguiu relativamente até meados dos anos 1960. Pannekoek morreu em 1960 e por isso não pode ver a breve retomada do movimento operário no final dessa década, o que promoveu um renovado interesse por sua obra e a dos comunistas conselhistas[31]. O marxismo avança teórica e praticamente, quantitativa e qualitativamente, com a ascensão do movimento revolucionário do proletariado e recua com o refluxo deste. Porém, as conquistas passadas podem ser preservadas por determinados indivíduos, que viveram ou se identificaram com tais lutas passadas, mantendo os seus princípios vivos no presente. Isto é expresso pelo marxismo resiliente de Pannekoek, Mattick, Korsch, que, mesmo após a derrota e mudança de situação, preservaram as lições e o caráter revolucionário das lutas passadas (com suas diferenças, inclusive de grau, é claro). A resiliência revolucionária de Pannekoek se mostrou em sua firmeza e reflexão sobre a experiência passada, mantendo e aprofundando a crítica das organizações burocráticas, da mesma forma que retomando os grandes momentos da luta revolucionária passada que pode ser retomada sob forma diferente no presente.
É por isso que Pannekoek conseguiu explicitar alguns aspectos fundamentais da luta proletária revolucionária, expressos nos textos aqui apresentados, tais como a greve selvagem, o comitê de greve, os conselhos operários. A importância da greve no pensamento de Pannekoek é uma retomada de sua importância real, prática, para as lutas proletárias. As greves selvagens são aquelas que ocorrem independente dos sindicatos ou contra eles (e pode até nascer devido sua iniciativa, em casos raros, mas logo se autonomiza e ganha continuidade em contraposição a eles)[32].
A ação direta é outro elemento fundamental de sua contribuição, mostrando que o proletariado deve se livrar de suas vanguardas, burocracias, representantes, etc. Da mesma forma, sua análise dos embriões dos conselhos operários, especialmente os comitês de greve, é fundamental, bem como os elementos envolvidos nesse processo (solidariedade, ação direta, etc.). A sua análise dos conselhos operários, no entanto, é sua contribuição fundamental e que todas as outras são derivadas, pois é nessa forma de auto-organização proletária que ele vê a forma da luta revolucionária e da organização social pós-capitalista, órgãos da revolução e da autogestão da sociedade futura. Nesse sentido, a obra de Pannekoek é uma das grandes obras do pensamento humano e, ao lado de outros, merece não só leitura, pesquisa, estudos, divulgação, mas o confronto com a realidade e com as práticas políticas dos militantes e proletários, mostrando praticamente sua importância teórica e política. Ela também mostra que a sua ontogênese reproduz sua filogênese, pois a trajetória teórico-política de Pannekoek reaparece em seus últimos textos, na qual geralmente se passa da crítica das organizações burocráticas para a defesa das formas proletárias de auto-organização.
A sua marginalização nos meios acadêmicos e político-institucionais (partidos, sindicatos, Estado, etc.) mostra não somente seu caráter revolucionário[33] – e por isso pouco palatável por estas esferas da sociedade capitalista – como também que a concepção de Korsch sobre a história do marxismo se mostra correta, a história do marxismo é dependente da história das lutas operárias e das lutas de classes em geral. Por fim, a leitura dos textos aqui reunidos é uma rica fonte de pesquisa e inspiração libertária e revolucionária, e sua publicação – ao lado de outras – apenas anunciam a tendência de uma nova onda revolucionária e contribui com ela, tendo, portanto, um papel teórico-prático.
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* Prefácio ao livro: 
PANNEKOEK, Anton. Partidos, Sindicatos e Conselhos Operários. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
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[1] Sempre que há ascensão das lutas operárias, há a tendência de resgate de pensadores como Pannekoek e foi isso que fez seus textos reaparecerem no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 e novamente a partir do final da década de 1990. Inclusive a internet serviu para a difusão de vários textos dele e para aumentar sua popularidade nos meios revolucionários e até acadêmicos, em muito menor escala, é claro. Mas é preciso ressaltar que, se a internet significa um processo de divulgação importante, ela também deve ser vista criticamente, pois a qualidade das traduções é muito precária e, algumas vezes, aparecem coisas no texto que não estão no original. Assim, o cuidado e senso crítico é fundamental na leitura de textos traduzidos disponibilizados na internet. Claro que o problema de tradução é grave não apenas na internet, mas nesta é mais grave já que muitas vezes falta autoria, referências e fontes, tendo, pois, uma confiabilidade menor.
[2] Para quem parte de uma perspectiva revolucionária, é extremamente contraditório ser um leitor dogmático, que faz leituras acríticas e aceitando tudo o que lê sem reflexão, contextualização, análise, comparação, etc. Esse é um problema grave nos círculos militantes e que gera oposições rígidas em casos nos quais não há a menor necessidade. O leitor dogmático acredita que o autor é infalível e que não há nenhum problema e nada para ser questionado, o que ele disse está dito e pronto, é a verdade. O leitor crítico, obviamente, pode concordar com a totalidade do escrito, mas isto não é algo a priori e sem reflexão e outros procedimentos da leitura crítica. A questão fundamental não é a concordância ou discordância com o autor e sim o tipo de leitura que se realiza. A credibilidade de um autor como Pannekoek, sem dúvida, deve levar em conta sua biografia e compromisso com a transformação social, mas esse não pode ser um critério absoluto e único, inclusive pelo fato de que ser bem intencionado não é suficiente, embora fundamental. Além da confiança que o autor desperta (no caso daqueles que possuem esse mérito por sua história de vida) é necessária a reflexão racional e crítica, revolucionária, portanto, não-dogmática, sobre seus escritos. Isso, de forma alguma, significa que se deva ler para procurar defeitos e problemas e sim que é necessário entender que é possível encontrar tais elementos e não se deve fazer de conta que eles não existem ou podem existir e, além disso, se cegar diante disso.
[3] Aqui não se trata das divergências com o bolchevismo, que já apresentam uma crítica – que, no entanto, não era “radical”, no sentido de não ir até a raiz do bolchevismo – e sim do momento em que o bolchevismo é reconhecido como contrarrevolucionário e a crítica se torna realmente radical.
[4] Aqui se trata de partido político organizado formalmente e não qualquer organização política. A confusão pode ser reforçada por certa imprecisão conceitual de Pannekoek, a qual vamos abordar adiante.
[5] A concepção de Marx sobre a autoemancipação proletária é relativamente pouco conhecida, devido a diversas determinações: o predomínio da interpretação leninista de sua obra, a falta de leitura ou má leitura, a seleção de obras e desconsideração por outras, as más traduções, a dificuldade de acesso a alguns textos, o exército de comentaristas que não entenderam sua obra ou que fazem leituras parciais derivando de complementos alheios aos seus escritos os aspectos que não entendem (vindo especialmente de Lênin ou da socialdemocracia), as críticas equivocadas de adversários, etc. Pretendemos mostrar o verdadeiro caráter da concepção de Marx a respeito da revolução proletária no livro Marx Libertário – Autoemancipação Proletária e Associação Revolucionária. Alguns autores destacaram esse caráter da obra de Marx, porém, também não são os mais divulgados e conhecidos, tal como Rubel e Janover (1977), Berger (1977), Guérin (1969), Guillerm e Bourdet (1976), Bourdet (1974; 1972), Massari (1975), entre outros.
[6] A experiência da Comuna de Paris foi teorizada por Marx e acabou sendo a essência da concepção marxista da revolução proletária, que é autogestionária (embora sem usar esta palavra), sendo a Comuna considerada a forma encontrada da autoemancipação (Marx, 2011; Viana, 2011a; Viana, 2011b). Além de Pannekoek, que a partir do que ele denominou “novo movimento operário” e a emergência dos conselhos operários, é que se começa a teorizar sobre esta forma de auto-organização como meio para a revolução social e forma de organização da produção na sociedade comunista. Sem dúvida, Parvus e Trotsky (o jovem Trotsky, o antibolchevista), foram os primeiros a destacar a importância dos conselhos operários a partir da revolução russa de 1905 (Viana, 2010; Trotsky, 1989; Parvus, 1978). Porém, é com a nova revolução russa de 1917, quando os conselhos reemergem, bem como a revolução alemã, mas também nos casos italiano e húngaro, entre outros menos radicais e amplos, sua extensão por diversos países em tentativas de revoluções proletárias, promovem um conjunto de reflexão e ação política a seu favor, especialmente pelo chamado comunismo de conselhos, contando com Pannekoek, Rühle, Gorter, Mattick, Wagner, Brendel, Meijer e vários outros na Holanda e Alemanha, bem como os ingleses (Sylvia Pankhurst, Guy Aldred), entre outros. Após esse período revolucionário, tanto os que se inspiraram nestes autores, quanto outros que se basearam em experiências históricas posteriores (Hungria, Polônia, Portugal, etc.), continuaram a defender tal posição.
[7] O capitalismo oligopolista é o que existiu entre a segunda metade do século 19 até o final da Segunda Guerra Mundial, sob o regime de acumulação intensivo, enquanto que o capitalismo oligopolista transnacional é o que emerge após a Segunda Guerra Mundial e se mantém até o final dos anos 1970, sob o regime de acumulação intensivo-extensivo (Viana, 2009), ou regime de acumulação conjugado.
[8] Sem dúvida, muitos confundem esse processo por fazer, indistintamente, leitura de textos de Pannekoek antes e durante esse período. Isso significa não se atentar para a evolução intelectual do autor e, por conseguinte, não compreender as alterações de seu pensamento.
[9] Este é o caso de sua análise dos sindicatos (Viana, 2011c), que, em artigo de 1936 (1977a), ainda apresenta certa ambiguidade, o que será completamente desfeito em sua obra Os Conselhos Operários (Pannekoek, 1977b), com edição portuguesa incompleta com o título de A Revolução Operária (Pannekoek, 2011).
[10] O sindicalismo revolucionário desenvolveu-se na França, e teve como principal representante intelectual Georges Sorel.
[11] Aliás, este texto irá exercer forte influência sobre Lênin, que, inclusive, escreveu o texto As Divergências no Movimento Operário Europeu (Lênin, 1983), escrito um ano após o livro de Pannekoek e contendo pouca diferença em relação a ele. A influência deste escrito se manifestará posteriormente, quando escrever duas de suas obras principais: O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo (Lênin, 1989), na qual retomará a expressão de Pannekoek de “enfermidade infantil” (Pannekoek, 2007) e O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo (Lênin, 1987), na qual retoma a tese de Pannekoek da “aristocracia operária”, só que deformando-a. Aliás, Lênin não era um pensador muito criativo, o que se mostra inclusive nos títulos de suas obras, tal como este texto que quase reproduz o título de Pannekoek, e outros casos, tal como em As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo (Lênin, 1985), que repete título de obra de Kautsky (1980), As Fontes do Marxismo acrescentando a segunda parte. O problema fundamental, no entanto, não se encontrava no título – o que seria sem grande importância – e sim no conteúdo de seus textos, sempre reproduzindo idéias alheias.
[12] Na mesma época, Rosa Luxemburgo (e outros, como Franz Mehring) debatia a questão da greve com Waldeverde e outros. A questão é que a ala reformista, dita “ortodoxa” era contra o movimento grevista e a ala dissidente da socialdemocracia, representada por Pannekoek, Gorter, Rosa Luxemburgo, Mehring e vários outros, eram favoráveis ao movimento grevista. Parte desse debate foi reproduzido em: Parvus, 1978.
[13] Tais partidos sempre foram burocráticos, no sentido de se organizarem através da relação entre dirigentes e dirigidos. A burocratização a que nos referimos é um processo, almejado e desejado pelas burocracias existentes, de expandir os quadros burocráticos, obviamente dentro da lógica burocrática, ou seja, através da hierarquia, na qual a criação de novos cargos e contratação de mais burocratas, proporciona uma hierarquização crescente.
[14] Isso foi discutido em nível psicanalítico por Erich Fromm (1986), ao distinguir o caráter rebelde e o caráter revolucionário.
[15] Existe uma ampla bibliografia sobre a burocracia como classe social, sob distintas perspectivas (inclusive no interior do marxismo) e com diferentes denominações, e não poderemos apresentar aqui. Para um breve histórico da teoria da burocracia como classe social e apresentação da concepção que defendemos, cf. Viana, 2011d).
[16] Uma biografia de Pannekoek pode ser vista em: Mendonça, 2011.
[17] Há uma edição portuguesa (Gorter, 1981), embora falte uma parte, algumas páginas sobre o oportunismo da Terceira Internacional. Uma versão completa pode ser encontrada em uma edição espanhola (Gorter e Lênin, 1971).
[18] No período inicial do KPD, a hegemonia interna era da tendência de Otto Rühle, um dos principais representantes do futuro comunismo de conselhos e que, nessa época, representava a tendência dos “comunistas internacionalistas”, mas a direção do partido estava com Rosa Luxemburgo e a Liga Spartacus, que, apesar das polêmicas entre ambos os grupos, tinha a confiança do outro grupo que lhe cedia o que não queria, a direção. Posteriormente, a Liga Spartacus ganha influência e força, e o grupo de Rühle (e outros) perdem espaço para as tendências socialdemocratizantes e pró-bolchevique.
[19] Um debate entre Gorter e Rühle demarcou duas posições distintas durante a revolução alemã: Gorter defendia a necessidade do KAPD e Rühle defendia sua abolição e participação das uniões operárias que aglutinavam os conselhos operários. As duas posições se mantiveram até a resolução prática que foi a derrota das lutas operárias e consequente enfraquecimento do KAPD e das uniões operárias, até a extinção de ambas as organizações. O que foi gerado depois foram pequenos grupos políticos conselhistas, principalmente na Holanda e Alemanha. Porém, muitos confundem o KAPD com um partido político no sentido atual do termo, o que não é verdade. A discussão entre Gorter e Rühle era sobre a necessidade de existir uma “organização unitária”, apenas dos trabalhadores, ou uma “dupla organização”, a dos trabalhadores (conselhos operários, uniões operárias) e uma outra política, a dos revolucionários. Por conseguinte, Gorter não defendeu a existência de partido, a não ser num sentido muito amplo da palavra, o que voltaremos a discutir adiante.
[20] Guerra civil aberta é um termo usado por Marx (Marx e Engels, 1988) para expressar o momento em que a luta de classes se radicaliza e a guerra civil oculta se torna aberta, que é quando o proletariado entra em cena como classe revolucionária, corroendo o poder burguês, ou seja, de um lado o proletariado radicaliza, cria suas formas de auto-organização (como os conselhos operários) e por outro subsiste o poder estatal burguês, e, nesse momento, ou uma ou outra forma de organização, a proletária ou a burguesa, vencem a luta decretando a revolução ou a contrarrevolução.
[21] A bastante conhecida tese de que o proletariado jogado a si mesmo chega ao máximo a uma consciência sindical, reformista, de lutas econômicas, enquanto que a consciência socialista brota nos cérebros dos intelectuais burgueses e pequeno-burgueses que tem acesso a ciência e se organizam no partido, é de Kautsky. Lênin apenas retoma essa ideologia e acrescenta alguns aspectos, entre elas a do centralismo democrático e revolucionários profissionais (Lênin, 1988). Essa ideologia justifica e legitima a dominação burocrática interna dentro do partido e deste sobre a classe operária, sendo, pois, uma ideologia da burocracia. Essa concepção leninista de partido irá encontrar oposição dos mencheviques e do jovem Trotsky, que irá elaborar a tese do substitucionismo, na qual o partido substitui a classe, a direção do partido substitui este, o comitê central substitui a direção e por último um ditador único substitui o comitê central (Trotsky, 1975). O próprio Trotsky, posteriormente, reproduzirá esta ideologia, pois seus laços com a revolução bolchevique e o leninismo, inclusive com o stalinismo – que não teria existido sem sua participação e de Lênin no sentido de burocratizar o processo revolucionário e retirar a autogestão das lutas e unidades de produção da classe operária e jogar na burocracia estatal a direção geral da sociedade russa, foi um dos principais arquitetos da contrarrevolução burocrática com seu exército vermelho e ideias como as da militarização dos sindicatos, etc. Assim, stalinismo e trotskismo são irmãos gêmeos e filhos do leninismo e netos do kautskismo, que possuem suas divergências por expressarem frações e tendências distintas no interior da burocracia como classe social.
[22] É possível encontrar parte dessa documentação sintetizada em algumas obras, como as de Brinton (1975), Kollontai (1977), Rodrigues e De Fiore (1978), entre outras. Mas também é possível encontrar grande parte desse material nas próprias obras de Lênin, tais como algumas coletâneas que abordam o período em que assumiu a direção do governo bolchevique (Lênin, 1988).
[23] Dois autores tiveram o trabalho de comparar textos de Marx e Lênin sobre socialismo para mostrar o total antagonismo entre eles: Berger (1977) e Paresh Chattopadhyay (2011). Marx, baseando-se na Comuna de Paris (Marx, 2011), defendeu a ideia do “salário igual aos dos operários para todos”, porém, na Crítica ao Programa de Gotha (Marx, 1974), avançava ao propor o fim do salariato e do dinheiro. Lênin, em O Estado e a Revolução, apesar de conhecer e citar esta última obra de Marx, mantém a versão dos salários iguais, abstraindo o contexto da Comuna de Paris e seu caráter de revolução proletária inacabada (Viana, 2011b)
[24] “Por que não dizer – como não faltaram pessoas que dissessem – que nunca houve na Rússia nada mais do que o golpe de Estado de um partido que, tendo obtido de um ou de outro modo o apoio do proletariado, tendia apenas a instaurar sua própria ditadura e conseguiu fazê-lo?” (Castoriadis, 1985, p. 234).
[25] O que caracteriza o capitalismo, sua essência, não pode existir no comunismo, obviamente, mas isso é defendido explicitamente por Stálin (1985) e por ideólogos da antiga União Soviética.
[26] Sobre as organizações revolucionárias, Pannekoek não realizou uma abordagem coerente e abrangente. Às vezes se posicionou como não sendo necessárias, outras vezes como necessárias, mas apenas como grupos de opinião e propaganda. Isso, por um lado, é correto, pois evita a vanguarda e o dirigismo, mas, por outro, é equivocado, já que deixa terreno livre para os vanguardistas e limita a ação revolucionária. Obviamente que as organizações revolucionárias devem abandonar o dirigismo, mas nem por isso devem se limitar tão-somente à propaganda e discussão.
[27] Em outra oportunidade, esboçamos um conceito de partido político (Viana, 2003). Esse conceito deixa bem claro que todos os partidos políticos são organizações burocráticas e, portanto, conservadoras e que não servem para o processo revolucionário mas tão-somente para o processo contrarrevolucionário. Obviamente que os indivíduos revolucionários podem se unir e organizar, mas devem fazê-lo em organizações não-burocráticas, ou seja, não em partidos políticos e sim em grupos políticos, que remete a outra conceituação. É interesse do bolchevismo realizar tal confusão entre partido político – organização burocrática, tal como os ditos partidos comunistas e socialdemocratas – e grupos políticos, organizações não burocráticas, pois assim legitima  o primeiro e a si mesmo.
[28] Sobre aspectos conjunturais e estruturais de um discurso, cf.: Viana, 2009.
[29] Todo leitor crítico deve levar em consideração as possíveis idiossincrasias e falhas individuais, além do contexto histórico, e, para aqueles que concordam com o autor, devem estar atento as mudanças históricas e possíveis avanços teóricos que apontam para um horizonte mais amplo do que o de um determinado autor. Claro que tudo isso depende do autor (e do leitor), e pode nem sequer existir ou então variar em grau de autor para autor. No caso de Pannekoek, a questão da importância da linguagem não foi devidamente levada em conta, mas outros pequenos problemas podem ser encontrados, apesar dos seus acertos no princípio geral. Um deles, que não podemos destacar pormenorizadamente, é o caráter repetitivo de seus textos (tal como se poderá notar na presente coletânea), o que é parcialmente justificado devido ao fato de que escrevia, muitas vezes, para públicos e publicações distintas. Porém, ao invés disso, teria sido mais útil se tivesse desenvolvido e aprofundado algumas teses e análises, tal como da revolução russa, do capitalismo de Estado, da revolução alemã, da formação dos conselhos operários, do marxismo, do bolchevismo, partidos, sindicatos, entre inúmeras outras questões que poderia ter escolhido para realizar produções mais complexas e embasadas teoricamente.
[30] Em física, resiliência significa um material que recupera a sua forma ou posição original depois de sofrer um choque ou deformação, mas no sentido figurativo expressa poder de recuperação, de superação, apesar das adversidades. Geralmente, na época de ascensão das lutas e mesmo um pouco após seu recuo, a produção intelectual sofre um processo de radicalização, o que leva à adesão de diversos intelectuais que não tinham a transformação social como preocupação fundamental, e, com o passar do tempo, retornam a normalidade dos seus interesses acadêmicos e mesquinhos. Apesar disso, colaboram com uma ou outra produção intelectual interessante e que contribui com o avanço da consciência revolucionária. Porém, a sua produção posterior revela que são revolucionários temporários, acompanham as temporadas de ascensão da luta revolucionária e voltam ao conservadorismo cotidiano com a temporada conservadora. No caso dos marxistas resilientes, devido seu compromisso muito mais profundo com a revolução proletária, mantêm posição revolucionária em qualquer “temporada”, mesmo que com o preço da marginalização política, intelectual, entre outras.
[31] O comunismo de conselhos foi retomado no bojo da ascensão das lutas operárias e estudantis na Itália, Alemanha, França e outros países. Cohn-Bendit (1988), por exemplo, deixa claro sua influência do comunismo de conselhos.
[32] Nesse sentido, Ratgeb, pseudônimo de Raoul Vaneigen, um dos principais teóricos situacionistas, retoma as análise de Pannekoek, ao conceber o caminho revolucionário desde as greves selvagens até chegar à autogestão generalizada (Ratgeb, 1974), tal como Pannekoek.
[33] “Nada prova de maneira mais peremptória o caráter revolucionário das teorias de Marx do que a dificuldade de assegurar a sua manutenção nos períodos não revolucionários” (Mattick, 1977, p. 56).