O Fogo Utópico
ou a Recusa da Mediocridade
Nildo Viana
O fogo simboliza diversas
coisas e uma delas é a vida e outra é a inspiração. Falar em “fogo
utópico” é colocar que a inspiração é utópica. Recusar a mediocridade
significa romper com o comodismo e conformismo e ter ideais, utopias.
Segundo Ingenieros:
Considerado individualmente, a mediocridade poderá ser definida como
uma ausência de características pessoais que permitam distinguir o
indivíduo em sua sociedade. Esta oferece a todos o mesmo fardo de
rotinas, preconceitos e domesticidade; basta reunir cem homens para
coincidirem na impersonalidade; ‘reúnam mil gênios num Concílio e terão
a alma de um medíocre’. Essas palavras denunciam o que em cada homem
não pertence a ele mesmo e que, ao se somar muitos, revela-se pelo
baixo nível das opiniões coletivas (Ingenieros, p. 39).
Segundo Ingenieros, os medíocres “atravessam o mundo às
escondidas, temerosos de que alguém possa recriminar a ousadia de
existir em vão, como contrabandistas da vida” (Ingenieros, p. 39).
Segundo Ingenieros, a moral social justifica que tudo existe por
necessidade, inclusive a mediocridade, “O eterno contraste das forças
que competem nas sociedades humanas traduz-se pela luta entre duas
grandes atitudes, que agitam a mentalidade coletiva: o espírito
conservador ou rotineiro e o espírito original ou de rebeldia”
(Ingenieros, p. 49). Para não ser medíocre, inclusive intelectualmente,
é necessário possuir ideais, utopias.
Sartre (1989), em uma de suas obras, pergunta por qual motivo
escrever. A resposta é o engajamento, o projeto. Não se trata de
escrever por escrever ou para ganhar dinheiro, fama, ascensão social ou
subir na carreira, tal como é predominante hoje na esfera científica.
Como já dizia Marx (Marx e Engels, 1986), é preciso, no capitalismo, "ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas não se deve viver e
escrever para ganhar dinheiro". Ingenieros também toca nesse ponto:
O poder que se manipula, os favores que se mendigam, o dinheiro que se
acumula, as honrarias que se conseguem, têm certo valor efêmero que
pode satisfazer os apetites daquele que não leva dentro de si, em suas
virtudes intrínsecas, as forças morais que embelezam e qualificam a
vida; a afirmação da própria personalidade e a quantidade de humanismo
posto na dignificação do ‘eu’. Viver é aprender, para ignorar menos; é
amar, para se vincular à humanidade; é admirar, para compartilhar as
excelências da natureza e dos homens; é um esforço para se melhorar, um
incessante afã de elevação em direção a ideais definidos (Ingenieros,
p. 40).
A busca da utopia, de
ideais, de realização do projeto como sentido da vida é bloqueado na
sociedade capitalista (nome que deve causar horror aos neoconformistas
que querem censurar palavras e verdades), na qual a burocratização,
mercantilização e competição social realiza um processo de ampliação da
mediocridade e conformismo em grande escala. As condições de vida, as
necessidades (autênticas e/ou impostas), o dinheiro, o poder, serve
para um processo de corrupção geral da consciência humana. O capital
comunicacional, as ideologias e valores dominantes, os modismos, as
hierarquias e controle burocráticos, tudo isso vem para impedir a
utopia. E sem utopia, sendo apenas integrante da engrenagem
capitalista, burocrática, mercantil, os seres humanos são coisificados
e transformados em seres medíocres. Na esfera científica, na produção
intelectual, os compromissos não são com a utopia, com a verdade, mas
com ganhar a competição, se tornar dominante, tal como demonstra
Bourdieu (1984) em seu estudo sobre o que ele denomina “campo
científico”. Na esfera artística, a mesma lógica competitiva diminui,
embora não no mesmo grau, o engajamento (Viana, 2009; 2007).
Questionar o sentido da vida é algo inusitado e a resposta não
será a busca da felicidade, da utopia, da transformação social, na
maioria dos casos será apenas o trabalho, a carreira, o sucesso, o
poder. Alguns querem se convencer que são felizes com o modo de vida
fútil a que estão submetidos. Somente o fogo utópico pode desbloquear a
reflexão sobre o sentido da vida e promover a superação da coisificação.
O fogo utópico, no entanto, não se apaga. Ele persiste. É mais
forte em casos individuais, pequenos grupos, momentos históricos, no
inconsciente coletivo ou individual. E ele queima quem quer apagá-lo,
e continuará queimando. A utopia está na literatura, no cinema, nos
quadrinhos, na arte em geral. Ernst Bloch, o teórico da utopia,
conseguiu mostrar suas formas de manifestação e apontar para o caráter
utópico do ser humano (Bicca, 1987). Ele tende a aumentar e incendiar a
mediocridade e contribuir com a constituição de uma nova sociedade e
novas relações sociais nas quais as necessidades e potencialidades
humanas possam ser sastifeitas.
Referências
BICCA, Luiz.
Marxismo e Liberdade. São Paulo: Edições Paulinas, 1987.
BOURDIEU, Pierre. O Campo
Científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu.
São Paulo: Ática, 1984.
INGENIEROS, José. O Homem Medíocre. Curitiba: Chain.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Sobre Literatura e Arte. 4ª edição, São Paulo, Global, 1986.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a Literatura? São Paulo, Ática, 1989.
VIANA, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre: Zouk, 2007.
VIANA, Nildo. Arte, Especialização e Engajamento. Revista Espaço Livre. Vol. 4, num. 07, jan.jun./2009.