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quinta-feira, 26 de março de 2020

Marx não é “Marxista” - As Origens do Pseudomarxismo


Marx não é “Marxista”
As Origens do Pseudomarxismo

Nildo Viana

É célebre a frase de Marx: “tudo que eu sei é que não sou marxista”. O seu significado, no entanto, não é claro, para a maioria daqueles que tem acesso a ela. O que Marx quis dizer com isso? O nosso objetivo é justamente para tentar esclarecer o significado dessa afirmação.

As frases isoladas são mau interpretadas, podem gerar deformações, ou então simplificações grosseiras. É comum, por exemplo, alguns extraírem frases de Marx fora do contexto para dizer que ele é racista. Uma das mais famosas – e cômicas – é quando subtraem uma frase em que ele ironiza Proudhon sobre escravidão e, com o isolamento, atribuem ela a um pensamento de Marx. Esse é um caso de deformação (e geralmente intencional) do pensamento de Marx. Outros citam frases como “a religião é o ópio do povo” e, deixando de lado o contexto e outras afirmações associadas, para simplificar sua análise do fenômeno religioso.

Isso significa que, para entender uma frase inserida num contexto mais amplo e efetivada no âmbito de um saber noosférico (complexo, como é a filosofia, a ciência, o marxismo), é necessário contextualizá-la. É por isso que efetivaremos a contextualização da frase de Marx em que afirma que não é marxista, pois somente assim se torna possível sua compreensão mais profunda.

O termo “marxista” foi criado por Bakunin, no contexto da divergência de ambos na I Internacional, como termo pejorativo (HAUPT, 1987; VIANA, 2008). No entanto, os “marxistas” que Bakunin se referia eram os “seguidores” de Marx, especialmente na AIT, que seriam fundamentalmente os socialistas franceses e alemães. Assim, o primeiro significado, pejorativo, de “marxismo”, era os adeptos das ideias e posições políticas de Karl Marx. Marx, desde que começou a produzir intelectualmente e atuar politicamente, começou a ter um conjunto de indivíduos que concordam com suas concepções e posições políticas (alguns de forma mais geral, outros menos, assim como havia o caso daqueles que concordavam mais com as produções intelectuais e outros mais com as posições políticas, sem adotar o outro elemento integralmente).

É nesse contexto que o nome “marxismo” vai começar a ser usado e vai perdendo o sentido bakuninista e, paulatinamente, ganhar um novo sentido, positivo. É possível perceber o uso do termo quando Marx ainda era vivo e depois que ele morre. No final da vida de Marx, o sentido positivo já havia avançado. Ou seja, o nome “marxismo” passa a ser usado não apenas pelos adversários, mas também pelos adeptos das ideias e posições de Marx. Porém, é somente após a sua morte que o significado positivo se impõe e torna-se de amplo uso.

O contexto que Marx afirmou não ser marxista é da passagem para o significado positivo do termo. Nesse mesmo contexto, surgia, na França, os supostos adeptos de Marx. Através do genro de Marx, Paul Lafargue, que ficaria famoso com o seu panfleto O Direito à Preguiça (1983) e Jules Guesde, que formaram o Partido Operário Francês, houve o primeiro momento do “marxismo” na França. A compreensão dessa história fica mais fácil recorrendo para as cartas de Marx e Engels, no qual explicam sua relação com tal partido, bem como a origem da frase referente ao marxismo. Através da correspondência de Marx e Engels entre si e com diversos outros interlocutores, é possível recuperar o sentido da célebre frase. Mas o contexto histórico e político que envolvia Marx e Engels também é importante para contextualizar o seu significado.

O contexto inicial da frase remente aos supostos adeptos das ideias e posições de Marx na França, Lafargue e Guesde. Lafargue iniciou sua ação política influenciado pelo anarquismo e, com o passar do tempo, conhece Marx e se aproxima de suas ideias. Marx não nutria grande simpatia por Lafargue, sendo que o criticou tanto antes quanto depois do casamento dele com sua filha, Jenny. Lafargue saiu do proudhonismo e se aproximou de Marx e suas ideias, e acabou se tornando um dos principais contatos na França e depois articulador político. Ele se aliou a Jules Guesde, outro adepto das ideias de Marx, e que se destacou no movimento socialista no final do século 19 até o início do século. Os dois foram os principais articuladores do PO – Partido Operário (que depois de 1893 passa a se chamar Partido Operário Francês – POF).

É importante entender a formação desse partido para compreender a relação entre Marx e os “marxistas” franceses. Através das correspondências (MARX; ENGELS, 2010a), ficamos sabendo que O Programa do Partido Operário, escrito em 1880, teve a colaboração de Marx. Este escreveu o Preâmbulo do documento[1]. O seu conteúdo era o seguinte:

Considerando,

Que a emancipação da classe produtiva é a de todos os seres humanos sem distinção de sexo ou de raça,

Que os produtores só podem ser livres desde que possuam os meios de produção (terras, fábricas, navios, bancos, créditos, etc.),

Que existem apenas duas formas pelas quais os meios de produção podem pertencer a eles:

A forma individual que jamais existiu geralmente e efetivamente e que é cada vez mais eliminada pelo progresso industrial;
A forma coletiva, cujos elementos materiais e intelectuais são constituídos pelo próprio desenvolvimento da sociedade capitalista.

Considerando,

Que essa apropriação coletiva só pode resultar da ação revolucionária da classe produtiva - ou proletariado - organizada como um partido político distinto;

Que essa organização deve ser perseguida por todos os meios à disposição do proletariado, incluindo o sufrágio universal, transformado de um instrumento de ilusão, como tem sido até então, em um instrumento de emancipação;

Os trabalhadores socialistas franceses, dando como objetivo a expropriação política e econômica da classe capitalista e o retorno à coletividade de todos os meios de produção, decidiram, como meio de organização e luta, entrar nas eleições com as seguintes demandas imediatas [...][2].
O texto acima não foi o redigido por Marx e sim o que foi aprovado pelo Congresso Fundador do Partido no mesmo ano de sua redação, com emendas e por isso não sabemos se é exatamente o mesmo texto ou se houve alguma alteração[3]. Sem dúvida, não deve ter ocorrido grandes mudanças no documento e, menos ainda, no Preâmbulo. A sequência do documento foi redigida por Guesde, com a colaboração de Marx, Engels e Lafargue. O documento possuía duas seções, uma política e outra econômica. A seção política colocava a necessidade de liberdade de imprensa e organização, revogação de ações estatais contra os trabalhadores e suas organizações, tal como a Associação Internacional dos Trabalhadores, abolição da dívida pública e do exército permanente (e sua substituição pelo “povo armado”), entre outras. A seção econômica reivindicava descanso semanal para os trabalhadores, redução da jornada de trabalho, salário mínimo baseado em estatísticas em preço local de alimentos a ser definido por um comitê estatístico de trabalhadores, igualdade salarial entre os dois sexos, responsabilização das empresas por velhos e inválidos, etc.

Após a elaboração e adoção do Programa, emergem divergências entre Marx e representantes do PO. Guesde considerava que o programa mínimo (as seçoes política e econômica) tinham o objetivo de apenas atrair os trabalhadores e o fundamental era o programa máximo (o preâmbulo, escrito por Marx), que remetia ao objetivo final, abolição do capitalismo e instauração do comunismo. Marx considera que as lutas econômicas e imediatas emergiram espontaneamente do proletariado e por isso deveriam ser metas concretas da luta operária, como meio para organização do proletariado. A diferença era basicamente a de que Guesde e Lafargue se apegavam apenas ao objetivo final e desconsiderava as lutas imediatas. Dentro do partido, por sua vez, existia aqueles que se preocupavam apenas com o programa mínimo e com as lutas e reivindicações imediatas. Marx e Engels questionavam ambas as tendências. A tendência maximalista de Guesde e Lafargue era oriunda do anarquismo e sua posição remetia para uma “fraseologia revolucionária” sem maior vínculo com as lutas operárias e entendimento da articulação entre interesses imediatos e interesses fundamentais, lutas imediatas e lutas pelo objetivo final. A questão da greve geral, considerada anarquista, por Marx e Engels, exemplifica isso. Guesde e Lafargue entendia por greve geral uma ideia a ser propagandeada e que seria “revolucionária”, enquanto que Marx e Engels considerava tal concepção “anarquista”, não por se oporem às greves, e sim por seu caráter abstrato e sem fundamento nas lutas operárias, pois elas deveriam brotar das ações dos trabalhadores e somente depois gerar um processo mais amplo de generalização[4].

A luta interna no partido ocorria entre os seguidores de Malon e Brousse, chamados de “possibilistas” e os chamados “coletivistas” (Guesde e Lafargue). Marx e Engels reprovavam algumas ações e atitudes, bem como textos, de Lafargue e Guesde. Da mesma forma, contestam os minimalistas do Partido Operário. Engels inclusive afirmou em uma carta que eles ameaçavam o caráter de classe do partido.

É nesse contexto que Engels cita a afirmação de Marx sobre o “marxismo” pela primeira vez. Engels usou o termo “marxismo” e “marxista” antes, sempre entre aspas. Numa carta para Bernstein, Engels cita a afirmação segundo a qual o “marxismo” (sempre entre aspas, tal como ele já usara antes em outras cartas) é “peculiar”: “Ora, o que é conhecido como ‘marxismo’ na França é, de fato, um produto completamente peculiar – tanto que Marx certa vez disse a Lafargue: ‘o que é certo é que eu não sou marxista” (ENGELS, 2010a, p. 356).

As aspas são reveladoras, pois não se trata de “marxismo” e mais tarde, como veremos, Engels volta a isso. A carta, no entanto, oferece margem para interpretações diferentes. Em primeiro lugar, Engels questiona Bernstein que conhece o “marxismo” francês por segunda mão, através de Malon, e por isso aponta a “baixa autoestima” do Partido Operário. Ele responde dizendo que o “marxismo” francês é “peculiar”. E cita a passagem de Marx, afirmando que foi uma fala direcionada para Lafargue: “o que é certo é que não sou marxista”. Alguns podem interpretar que ele está tratando do PO como um todo, o que, curiosamente, incluiria o próprio Lafargue. Outra interpretação é que ele estaria se referindo aos minimalistas do Partido Operário, e por isso a fala para Lafargue, um maximalista[5]. O que é certo, e as cartas deixam isso evidente, é que Marx discordava tanto dos minimalistas (possibilistas), que se limitam a reivindicações imediatas, quanto de maximalistas (coletivistas), que se limitam ao discurso geral sobre revolução. Logo, se ele disse que não é “marxista” para Lafargue, isso significava que ele não era favorável aos minimalistas, mas ele também discordava dos maximalistas e, por conseguinte, mesmo que não tenha sido explícito, se aplicava também a este.

Uma outra carta de Engels parece reforçar essa última interpretação, pois ele, escrevendo para Lafargue, lhe diz que nunca o chamou – mas se refere aos coletivistas, pois está no plural e de forma antagônica aos possibilistas – de outra coisa a não ser “os chamados marxistas” (entre aspas) e que ficaria contente se ele achasse outra expressão sucinta para substitui-la, pois “antipossibilistas” seria censurada por ele mesmo. A carta é de 1889, e o “marxismo” já não tem mais tom pejorativo. Mas aqui Engels contrapõe possibilistas (minimalistas) como não-marxistas e coletivistas, que ele denomina “assim chamados marxistas”, entre aspas. Se apenas os coletivistas são “marxistas”, então a frase de Marx era para eles. Contudo, o mais provável é que o “não-marxismo” de Marx se referia a todas as tendências do partido. Além disso, essa carta é de 1889, ou seja, 7 anos após a cisão do partido e, nesse contexto, os possibilistas devem ter deixado de ser considerados marxistas[6].

Mas toda essa discussão visa contextualizar a frase de Marx e o resultado geral, devido à falta de clareza da afirmação de Engels e aos diversos problemas contextuais, não oferece nenhuma certeza. O que temos de conclusivo é: Marx e Engels tiveram influência e importância na formação do Partido Operário na França, bem como tinham grande proximidade com Guesde e Lafargue, “marxistas”, e que, no entanto, criticam tantos os possibilistas quanto os coletivistas, com suas concepções minimalistas e maximalistas, respectivamente. A recusa do minimalismo dos possibilistas ocorre pelo abandono do caráter de classe e da luta de classes, ficando no nível do “programa mínimo”, abandonando o objetivo final (comunismo). A recusa do maximalismo dos coletivistas ocorre pela desconsideração total, com exceção da propagandística, das lutas imediatas dos trabalhadores, bem como devido a outras questões, tais como a influência anarquista, imaturidade, entre outros problemas.

Nesse contexto, uma das divergências de Marx e Engels com o anarquismo reaparece na discussão. Isso ajuda a entender a discordância com Guesde e Lafargue, pois de forma isolada pode parecer que Marx era favorável ao eleitoralismo. A crítica de Engels aos possibilistas e abandono do caráter de classe deixa claro que não havia nenhum eleitoralismo na concepção dele e de Marx. Engels deixou claro que discordava da tendência minimalista de renunciar ao programa revolucionário com o objetivo de conseguir mais adeptos e mais votos nas eleições. A crítica de Marx e Engels ao apoliticismo anarquista, que se aplica aos maximalistas franceses, é a de abandonar a luta concreta e substituí-las por fraseologias supostamente revolucionárias. A ideia é que é necessário usar todas as formas de luta para fazer a classe operária avançar e assim se autonomizar, até conseguir as condições para efetivar uma revolução social. Nesse contexto, a luta eleitoral era vista como uma das possibilidades de ação do movimento operário. Ao mesmo tempo, era possível Marx criticar o “cretinismo parlamentar”. A oposição às eleições realizada pelos anarquistas – e de certo modo pelos maximalistas – era fundada em princípios gerais abstratificados e não em estratégia e análise da realidade concreta.

Assim, é possível dizer que Marx chegou, nesse caso específico das eleições, numa conclusão errada a partir de um caminho certo, enquanto que os anarquistas (e maximalistas, num certo momento) chegaram à conclusão certa a partir do caminho errado. Mas, por partirem do caminho errado, erraram em inúmeras outras coisas. Porém, o equívoco de Marx não pode ser descontextualizado. Na época histórica em que apresentou suas concepções sobre eleições, não a recusando sob a forma de princípio inquestionável, era num momento histórico em que o processo de burocratização e os mecanismos burocráticos da democracia burguesa nascente eram muito menos perceptíveis. Marx não percebeu o fenômeno da burocratização crescente da sociedade civil e nem que os nascentes partidos “operários” geravam uma burocracia partidária (que crescia com o crescimento do partido, mas o que, nesse momento, era incipiente pela pouca força deles) que constituía interesses próprios. Os anarquistas – e os maximalistas – também não perceberam isso[7], pois a recusa do processo eleitoral era derivada de “princípios gerais” e ideias gerais sobre poder e corrupção do ser humano.

Mas, voltando ao problema da afirmação de Marx, à qual conclusão podemos chegar? Até aqui, preliminarmente, podemos dizer que Marx recusa o suposto “marxismo” (seja dos maximalistas, dos minimalistas ou de ambos) que outros dizem defender. Logo, ele não está, obviamente, recusando suas próprias ideias, o que seria absurdo. Porém, para avançar nessa conclusão, é preciso deixar claro o que significa “marxismo”. Antes disso, porém, vamos tratar de outra carta de Engels no qual reaparece a afirmação de Marx, sob outra forma.

Porém, essa afirmação de Marx reaparece no seguinte trecho:
A concepção materialista da história tem hoje em dia numerosos amigos que a utilizam como desculpa para não estudar história. Como Marx costumava dizer, referindo-se aos “marxistas” franceses dos fins dos anos 70: “tudo que sei é que não sou um marxista” (ENGELS, 1987, p. 36)[8].
Aqui novamente Engels retoma a afirmação de Marx, acrescentando que era seu “costume” afirmar isso e que a afirmação se dirigia aos “marxistas” (entre aspas) franceses do final dos anos 1870 (embora isso possa não ser tão exato assim). Esses supostos “marxistas” poderiam ser os mesmos que geraram o Partido Operário, ou alguns deles. A novidade aqui é que Engels aponta para a sua adoção da frase de Marx para qualificar como “não-marxista” aqueles que usam o materialismo histórico (concepção materialista da história) como uma receita que encaixa o processo histórico e assim evita estudar a história. No mesmo mês, em carta a Lafargue, Engels cita novamente a frase de Marx:
De forma usual, eles consideravam suas universidades burguesas como Saint-Cyrs[9] socialistas, dando-lhes o direito a ingressar no partido na categoria de oficiais, se não na de general. Todos esses nobres senhores se interessam pelo marxismo, embora sejam do tipo que você conheceu na França há dez anos e dos quais Marx disse: "Tudo o que sei é que não sou marxista". E ele sem dúvida diria sobre esses nobres senhores o que Heine disse a respeito de seus imitadores: "Semeei dragões e colhi pulgas" (ENGELS, 2010b, p. 21-22).
Esta carta de Engels é curiosa, pois ele aparentemente cai em contradição. A carta é endereçada para Lafargue e a afirmação de Marx, segundo Engels, na primeira carta em que cita isso, seria para ele. Se Marx não falou diretamente para Lafargue, então ele poderia ser um dos “marxistas” franceses citados. Aqui ele retoma o argumento de que aqueles que não entenderam o marxismo se aplica o que Marx afirmou. A citação de Heine aponta exatamente para esse significado: os supostos "marxistas” são pulgas que imitam um dragão.

Uma diferença nas cartas seguintes de Engels é que a palavra marxista começa a aparecer sem aspas, o que significa estar ganhando um significado positivo. Numa carta de julho de 1892, para Schorlemmer, ele diz que a Federação social-democrata se diz marxista (sem aspas) em princípio, mas é antimarxista na prática (ENGELS, 2010b). Numa carta a Kautsky ele volta a tratar da Federação Social-Democrata, afirmando que ela é uma seita pura e simples que ossificou o marxismo em um dogma rígido ao recusar todo movimento de trabalhadores que não fosse marxista ortodoxo e “marxista de uma maneira muito errada”. Nas cartas a partir de 1892 aparece a palavra “marxista” sem aspas e se referindo aos alemães e franceses, de forma positiva. Ele passa a falar de programa marxista, plataforma marxista, teoria marxista e contar o número de marxistas nas disputas políticas. Assim, ele cita Werner Sombart como “marxista bastante eclético”. A sua “flexibilização” do que é marxismo é visível, tal como se pode observar em sua afirmação segundo a qual:
Jaurès está no caminho certo. Ele está aprendendo o marxismo e não deve se apressar demais. No entanto, ele já fez um bom progresso, muito mais do que eu ousara ter esperança. Quanto ao resto, não vamos exigir muita ortodoxia! O partido é grande demais, e a teoria de Marx se tornou muito difundida para pessoas relativamente confusas e isoladas que causam muitos danos no Ocidente. Na sua parte do mundo, é diferente, como aconteceu conosco em 1845-59 (ENGELS, 2010c, p. 451).
Para quem considerou os maximalistas e minimalistas do Partido Operário como “marxistas” entre aspas, a consideração de Sombart e Jaurés como “marxistas”, mesmo chamando um de “eclético” e ou “aprendendo” já demonstra a mudança de Engels e seu envolvimento com a social-democracia. Aliás, Jaurés, que adentra ao Partido Operário Francês, mas, depois de conflitos com Jules Guesde, acaba saindo e formando o PS – Partido Socialista, reformista.

Enfim, depois dessa reconstituição histórica, podemos voltar ao tema fundamental, que é o significado da afirmação de Marx. A afirmação de Marx, independentemente para quem foi efetivamente dirigida, significa que ele não é “marxista” no sentido em que se atribuía tal termo, na França (bem como na Alemanha). Mas o que significa ser “marxista”? Quando o termo surgiu com Bakunin, significava, pejorativamente, um indivíduo adepto das concepções e posições políticas de Karl Marx. Quando Marx afirma que não é “marxista”, o significado é outro, pois está implícito de que aqueles que se autodeclaram assim não são adeptos de suas concepções e posições, mas, mais do que isso, significa não expressar teórica e politicamente a perspectiva do proletariado.

Isso fica mais claro na sua crítica aos social-democratas alemães, tanto em cartas quanto na Crítica ao Programa de Gotha (MARX, 1974; VIANA, 2017) Neste texto, além de criticar o programa em si e suas afirmações, ainda coloca que o Estatuto da Associação Internacional dos Trabalhadores e o Manifesto Comunista (MARX; ENGELS, 1988) foram deformados na sua “tradução” para tal documento. Marx coloca a desvinculação com o movimento revolucionário do proletariado. Em uma carta ele é ainda mais explícito:
No que nos diz respeito, com todo o nosso passado, só nos resta um caminho a seguir. Há quase 40 anos colocamos em primeiro plano a luta de classes como o motor da história e, especialmente, a luta de classes entre burguesia e proletariado, como a grande alavanca da revolução social moderna. É-nos impossível, portanto, caminharmos juntos com pessoas que querem suprimir esta luta de classes do movimento. Quando fundamos a Internacional e formulamos em termos claros seu grito de guerra: “a libertação da classe operária será obra da própria classe operária”. Não podemos evidentemente caminhar com pessoas que declaram aos quatro cantos que os operários são muito pouco instruídos para poder emancipar a si mesmos, e que só a partir de cima eles podem ser libertados, pelas cúpulas, pelos filantropos burgueses e pequeno-burgueses. Se o novo órgão do partido toma uma atitude que corresponda às ideias destes senhores, se essa orientação é burguesa e não proletária, não nos restará mais nada a fazer, por mais lamentável que seja, do que declarar abertamente nossa oposição e romper a solidariedade da qual demos prova até agora, na qualidade de representantes do partido alemão no exterior”. Esperemos, contudo, que não se chegue até ai. [...] (MARX, 2014, p. 229).
Aqui Marx coloca o elemento programático e o caráter de classe da deformação. Como elemento programática, está a teoria marxista da luta de classes e da autoemancipação proletária e, como elemento de deformação de classe, está na afirmação que a orientação dos social-democratas “é burguesa e não proletária”. Assim, temos um duplo questionamento: o abandono da concepção (marxista) e um abandono da perspectiva do proletariado[10].

Desta forma, podemos avançar na discussão explicitando o que é o marxismo e o que significa a afirmação de Marx sobre não ser “marxista”. O marxismo não é as concepções e posições políticas de Marx, como queria Bakunin, e sim a expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado, tal como definido por Karl Korsch (1977). Essa definição une o caráter de classe, proletário, e a sua expressão formal, a teoria. Porém, trata-se do proletariado revolucionário, ou seja, não como classe determinada pelo capital[11]. O fato de Marx ter expressa pela primeira vez sob forma teórica e formando uma episteme proletária liga, obviamente, a questão do pensamento e da classe social. Assim, não se trata de uma fidelidade ao pensamento de Marx e sim manter a perspectiva revolucionária do proletariado. Nesse caso, como Marx manifestou pioneiramente e de forma mais aprofundada a episteme marxista, então isso coincide com a coerência em relação ao seu pensamento. 
Contudo, isso não significa concordar com tudo que Marx colocou, pois como ser humano, por mais que tivesse uma base sólida em método, teoria, perspectiva de classe (valores, sentimentos, etc.), ele não era infalível. E isso é mais forte ainda em questões imediatas, sem uma maior reflexão, ou em questões periféricas ou, ainda, pontuais e conjunturais. A sua posição diante das eleições, por exemplo, é equivocada, embora isso seja explicado pelo momento histórico e pela burocratização inicial do processo eleitoral. Na essência e na totalidade, no entanto, a concepção de Marx é superior a qualquer outra. Aliás, Engels coloca justamente isso ao dizer que militantes de diversos países buscavam seus conselhos e sabiam que eram os melhores (ENGELS, 2010b). Isso é possível pelo motivo de que ele dominava método, teoria, além dos valores, o que lhe proporcionava condições favoráveis para acertar, enquanto que outros, por suas ambiguidades ou valores não-axionômicos, por deficiência teórica e metodológica, possuíam condições desfavoráveis e por isso os equívocos constantes, a começar por Engels.

A partir desse esclarecimento, o significado da afirmação de Marx remete para duas questões (tal como se vê na crítica que ele efetiva aos social-democratas): o afastamento da perspectiva do proletariado e da expressão teórica dessa classe expressa em duas ideias. Ou seja, é simultaneamente uma questão de perspectiva de classe (valores, sentimentos, interesses) e de desenvolvimento da consciência (num sentido mais amplo). Marx afirma que não é “marxista”, pois aqueles que dizem ser “marxistas” não expressam a perspectiva do proletariado revolucionário e por isso apresentam ideias incompatíveis com as produzidas por ele. Nos casos concretos que constam nas cartas, esse é o caso dos minimalistas (possibilistas), maximalistas (coletivistas) e social-democratas. Os minimalistas ficam ao nível do proletariado como classe determinada e se afastam drasticamente das ideias de Marx; os maximalistas busca expressar o proletariado revolucionário, mas de forma abstratificada e com fraseologias revolucionárias, tal como o anarquismo da época e assim produzem ideias incompatíveis com o marxismo; a social-democracia é a mais distante da concepção e posição marxista, pois se vincula a outras classes sociais[12] e sua deformação do pensamento de Marx é mais grave e evidente. Assim, nenhuma dessas concepções é marxista, por mais que se autodeclarem desta forma.

A célebre frase de Marx, uma vez entendido o contexto acima aludido, não significa, obviamente, uma recusa das próprias ideias e sim daqueles que dizem segui-las e no fundo as simplificam e deformam. A frase que seria mais compreensível é “Tudo que eu sei é que não sou pseudomarxista”. E isso nos remete ao problema de definir o pseudomarxismo, que não é marxismo. O pseudomarxismo é um falso “marxismo”, pois se declara marxista, usa termos marxistas (geralmente misturados com as de ideologias burguesas ou burocráticas), diz expressar o proletariado (na maioria das vezes, pois muitos pseudomarxistas abandonam até isso), mas não só é incompatível com as ideias e posições de Karl Marx como, também e principalmente, expressa valores, sentimentos, interesses, posições, que não são as do proletariado revolucionário e sim de outras classes ou o faz isso ambiguamente (como no caso dos maximalistas franceses). Hoje podemos definir o pseudomarxismo como toda concepção que se autodeclara marxista, mas que é incoerente com o marxismo tanto no plano das ideias quanto da perspectiva de classe que está em sua base, não sendo uma expressão teórica do proletariado revolucionário. Marx não era pseudomarxista e foi um dos primeiros críticos do pseudomarxismo[13].

Referências

ENGELS, Friedrich. Engels a Konrad Schmidt (Londres, 05 de agosto de 1890). In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Cartas Filosóficas e Manifesto Comunista de 1848. São Paulo, Moraes, 1987.

ENGELS, Friedrich. Engels to Bernstein. 2-3 November 1882. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Vol. 46. Londres: Lawrence & Wishart, 2010a.

ENGELS, Friedrich. Engels to Eduard Bernstein. 25 October, 1881. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Vol. 46. Londres: Lawrence & Wishart, 2010a.

ENGELS, Friedrich. Engels to Georgi Plekhanov. 26 February, 1895. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Vol. 49. Londres: Lawrence & Wishart, 2010c.

ENGELS, Friedrich. Engels to Kautsky. 12 August, 1892. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Vol. 49. Londres: Lawrence & Wishart, 2010b.

ENGELS, Friedrich. Engels to Lafargue. 27 August, 1890. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Vol. 49. Londres: Lawrence & Wishart, 2010b.

HAUPT, Georg. Marx e o Marxismo. In: HOBSBAWM, E. (Org.). História do Marxismo. Vol. 1. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.
MARX, Karl. “O Manifesto dos Três de Zurique”. Marxismo e Autogestão. Vol. 01, num. 02, jul./dez. de 2014.
MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª edição, São Paulo: Global, 1989.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. Lisboa, Nunes, 1974.
MARX, Karl. O Manifesto dos Três de Zurique. Marxismo e Autogestão. Vol. 01, num. 02, jul./dez. de 2014.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

VIANA, Nildo. Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente. Curitiba: Prismas, 2017.
VIANA, Nildo. O Que é Marxismo? Rio de Janeiro, Elo, 2008.






[1] “Mas é verdade que Guesde apareceu quando se tratava de elaborar o projeto de programa do Partido Operário Francês. Seu preâmbulo foi ditado palavra por palavra por Marx na presença de Lafargue e de mim mesmo aqui na minha sala” (ENGELS, 2010a, p. 148). Engels não poupou elogio ao texto: “uma obra-prima da argumentação convincente raramente encontrada, escrita clara e sucintamente para as massas” (ENGELS, 2010a, p. 148).
[3] “Esse programa foi posteriormente discutido pelos franceses e aceito com algumas alterações, inclusive algumas incluídas por Malon, que não foram, de forma alguma, melhorias (ENGELS, 2010a, p. 148).
[4] Marx reflete sobre a greve em A Miséria da Filosofia (1989).
[5] A carta é de novembro de 1882, sendo que no Congresso do Partido Operário em setembro havia ocorrido a cisão entre os possibilistas e os coletivistas, o que poderia dar a entender que se tratava de uma referência aos minimalistas. Porém, os possibilistas não se declaravam “marxistas” e sim os coletivistas. Assim, é difícil ter uma certeza sobre a quem Marx efetivamente se referia, devido à falta de clareza de Engels.
[6] Inclusive os social-democratas apoiavam os possibilistas e foi Engels que os convenceu a mudar seu apoio para os guesdistas, como também ficaram conhecidos.
[7] Aliás, até hoje grande parte dos anarquistas ainda não percebeu e por isso regridem ao apartidarismo (ao invés do antipartidarismo do anarquismo antigo) e defesa de sindicatos, hoje completamente burocratizados.
[8] Veja edição inglesa em Marx e Engels, 2010b.
[9] Escola especial militar, fundada em Fontainbleau em 1803 e transferida para Saint-Cyr, perto de Versalhes, em 1808. Ela treinava oficiais de infantaria e cavalaria e o curso completo durava dois anos, e esse deve ser o motivo para Engels sugerir a qualidade duvidosa da aprendizagem nesse contexto e a transferir para os socialistas oriundos de universidade.
[10] Em outra passagem do mesmo escrito, Marx enfatiza a questão da teoria e sua relação com a questão da universidade e perspectiva de classe: “Há lá uma falta absoluta de material de cultura real, efetivo ou teórico. Ao invés disso, realizam tentativas para pôr o pensamento socialista superficialmente apropriado em consonância com os pontos de vista teóricos mais diversos que os senhores trouxeram consigo da Universidade ou de qualquer outro lugar e sendo que um é ainda mais confuso do que o outro, graças ao processo de putrefação em que se encontram os restos da filosofia alemã nos dias de hoje. Ao invés de, para começar, estudarem eles próprios fundamentadamente a nova ciência, cada um prefere aproximá-la dos pontos de vista que trouxeram consigo, fazer dela uma ciência privada própria sem nenhuma hesitação e aparece mesmo com a pretensão de a querer ensinar. Por isso, entre estes senhores existem tantos pontos de vista quanto número de cabeças; ao invés de trazerem clareza seja lá ao que for, apenas estabeleceram uma grave confusão – felizmente, quase só conhecida entre eles próprios. O partido pode muito bem passar sem semelhantes elementos de cultura, cujo primeiro princípio é ensinar o que ainda não aprenderam” (MARX, 2014, p. 227-228).
[11] Essa é a posição dos “minimalistas” anteriormente citados e de grande parte de anarquistas e autonomistas. Ao não ultrapassarem as reivindicações imediatas e não colocarem o projeto revolucionário ao lado das lutas cotidianas, ficam ao reboque da classe operária determinada pelo capital, ou seja, sob hegemonia burguesa. O reboquismo é um mau oposto ao do vanguardismo, e por isso a posição social-democrata e bolchevista é burocrática, dirigista, mas para isso precisam que o proletariado fique no nível de classe determinada, e esta é a razão da recusa de sua radicalização e autonomização, desde a negação das lutas espontâneas até as lutas autônomas e autogestionárias.
[12] Marx vincula à burguesia e pequeno-burguesia, por não ter conseguido perceber a emergência de novas frações da classe burocrática, tal como a partidária.
[13] Engels, um marxista ambíguo, também realiza críticas, mas muitas vezes reproduz o que critica. Ainda dedicaremos uma obra específica para analisar de forma mais global e analisando a evolução do seu pensamento para explicitar o real significado de sua obra no interior do marxismo.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Maurício Tragtenberg: Um Sociólogo Libertário



Maurício Tragtenberg: Um Sociólogo Libertário

Nildo Viana*

Maurício Tragtenberg foi um dos mais importantes sociólogos brasileiros e, apesar de ter seguido uma orientação diferenciada da maioria dos demais colegas de profissão, acabou exercendo grande influência e admiração por parte de muitas pessoas, inclusive alunos e colegas. O sentido da vida e obra de Tragtenberg foi, a nosso ver, a luta pela autogestão.
Tragtenberg nasceu em Erexim, Rio Grande do Sul, no dia 4 de novembro de 1929. Filho de família judaica e camponesa, morava com os avôs e a mãe, pois o pai morreu jovem. A família se transfere para Porto Alegre. Sua experiência escolar foi apenas durante o que era denominado primário. Tragtenberg foi reprovado no primeiro ano em aula de canto. Ele matava aula para jogar futebol ou ir ao cinema (Tragtenberg, 1999). Fora da escola, Tragtenberg gostava de ler e escrever e tinha muitos livros em casa, deixado pelo pai.
Posteriormente, a família muda para São Paulo. Lá existia o Centro de Cultura Democrático e movimentos de jovens judeus, de várias orientações políticas. Neste período voltou à escola, onde o método do castigo era amplamente utilizado. Lá aprendia português, hebraico e iídiche, já que era uma escola judaica. O domínio do iídiche (um alemão medieval que os judeus assimilaram para viver na Alemanha) o possibilitou a ler obras de Rosa Luxemburgo, de Trotsky, dos mencheviques. Foi desta forma que teve acesso a um pensamento socialista não leninista, hegemônico a partir da tomada do poder na Rússia em 1917 e, principalmente, depois da chamada “bolchevização dos partidos comunistas”. Este acervo bibliográfico era oriundo da imigração de judeus poloneses e de outras regiões. Nesta época, Tragtenberg tinha 10 anos e já lia estes e outros autores, em iídiche.
O irmão e a irmã compravam livros, tal como o Manifesto Comunista, de Marx e Engels, e obra de Stefan Zweig, que ele era proibido de ler e assim lia escondido no telhado da casa. Assim, ele era a “ovelha negra” da família, pois, além disso, não gostava de comércio, elemento fundamental para a sua família judaica e para o qual os irmãos se dirigiam. Com a redemocratização e a legalização do Partido Comunista Brasileiro, passou a existir uma movimentação política e Tragtenberg foi se aproximando do partido. Participou de uma “célula” do partido, juntamente com um sapateiro e um pedreiro. Pouco depois passou a freqüentar a Biblioteca Municipal de São Paulo e a família Abramo. Esta família teve influência em sua formação, já que as pessoas eram cultas e eruditas, possuindo a capacidade de repassar muita informação. Pouco depois se aproxima do Partido Socialista Brasileiro, na época, composto por intelectuais e sem grande influência junto aos trabalhadores. Nesta época, lia o jornal Vanguarda Socialista, editado por Mário Pedrosa, e freqüentava os cursos do Partido Socialista, ministrado por intelectuais como Antônio Cândido, Azis Simão e teve contato com Florestan Fernandes, quando ainda era garçom, Paul Singer, quando era eletricista, entre vários outros futuros grandes intelectuais.
Outra grande influência na formação de Tragtenberg foi o Centro de Cultura Social, de orientação anarquista. Foi neste contexto que ele foi convidado para fazer um quadro explicativo da Guerra Civil Espanhola a pedido dos organizadores de um evento sobre este acontecimento histórico e que uniria anarquistas, comunistas (bolchevistas) e socialistas (social-democratas). Tragtenberg narra que quanto mais lia, mas descobria o papel do Partido Comunista Russo na contra-revolução na Espanha, beneficiando o ditador Franco. Porém, ele não sabia do acordo estabelecido entre os grupos políticos envolvidos para acentuar as concordâncias, e quando fez sua exposição gerou uma forte polêmica.
Tragtenberg acaba rompendo com o PCB, devido, entre outras coisas, a divergência com a linha política (apoio à burguesia progressista contra o imperialismo) e outros elementos, tal como o caso no qual o partido lhe chamou a atenção por ler obras de Marx e Lênin, pois deveria ler apenas os jornais do partido. Continuou sua formação intelectual através dos centros de cultura, Biblioteca Municipal, amizades. Participou de debates e organizações políticas, desde social-democratas passando pelo trotskismo e anarquismo. Certo dia, Antônio Cândido lhe diz que existe uma lei que garante a quem fizer uma monografia, sendo aprovada pela Congregação da universidade, pode ser aceito sem ter formação escolar. Ele apresentou sua monografia (publicada como livro com o título Planificação: Desafio do Século 20) que foi aprovada e passou a fazer parte da esfera acadêmica.
Na esfera acadêmica, do ponto de vista intelectual, produziu várias obras, tal como sua tese Burocracia e Ideologia, no início da década de 1970, e depois produziu inúmeras obras, desde livros, passando por prefácios de outras obras, organização de livros e artigos para revistas e jornais. Inclusive, foi colunista do jornal Notícias Populares, por considerar mais próximo da população trabalhadora. Ele teve vários problemas em diversas universidades, desde o contratempo que teve devido ao regime militar e seu enquadramento no Ato Institucional I (sem grandes motivos, já que ele, nessa época, não militava em nenhum partido ou organização). Como disse em algumas oportunidades, era campeão em ganhar concursos e perder contrato. Passou pelo ensino secundário, pela Fundação Getúlio Vargas, USP, Unicamp, entre outras universidades.
Dentre seus interesses intelectuais, algumas temáticas foram basilares de seu pensamento. A questão da burocracia, desde sua monografia de aspiração à entrada na USP, passando por sua tese doutoral, e diversas obras, sempre foi constante. O estudo da burocracia tinha como grande influência o sociólogo Max Weber, mas também Marx, Bakunin e vários outros estavam envolvidos em suas reflexões sobre o fenômeno burocrático. A questão da autogestão também foi uma das mais permanentes em sua produção e reflexão, ou seja, a negação da burocracia também foi foco de seus estudos. Porém, neste caso também ia além da simples “objeto de estudo”, tratava-se, também de opção política, expressa magistralmente em sua obra Reflexões sobre o Socialismo. As lutas dos trabalhadores, a autonomia e auto-organização do proletariado e campesinato foram uma preocupação constante, tal como se pode perceber em sua produção intelectual. Desde a juventude era um leitor de Rosa Luxemburgo, mas também outros autores marginais ou “malditos”, atraíram o seu interesse (Makhaïsky, Korsch, Bordiga, Pannekoek, Gorter, etc.).
A Burocracia
A preocupação de Maurício Tragtenberg com o fenômeno burocrático tem sua origem na sua inserção na luta política e no PCB. Sem dúvida, a estrutura hierárquica e burocrática do partido chamou sua atenção e a estrutura do culto ao chefe, tal como faziam com Luis Carlos Prestes, o que não lhe passava despercebido (Tragtenberg, 1999). É sugestivo que seu primeiro livro publicado comece como um capítulo cujo título é “O Homem”. Nesta obra, retoma Marx e o tema do trabalho alienado, abordando a natureza humana e sua alienação na sociedade de classes. O homem se desencontrou de sua própria essência ao instaurar a relação de exploração, ao fundar, com a divisão social do trabalho, o domínio de uma classe sobre outra. Assim, Dostoievsky, Kafka, Nietzsche, Kierkegard, Kant, etc., são autores que aparecem para mostrar a situação humana. A questão que Tragtenberg coloca é: em que condições o socialismo pode contribuir para esta superação da alienação? Pergunta fundamental, que encerrará com uma análise do bolchevismo, da burocratização, da Rússia e do capitalismo de Estado. Na sua conclusão apresenta a tese básica que será desenvolvida em suas obras posteriores: a alienação é provocada pela divisão social do trabalho e separação do indivíduo com o cidadão, através do processo de exploração e somente a reintegração do homem na humanidade e em sua essência, através do socialismo, será possível a emancipação humana.
Esta obra já mostrava as preocupações fundamentais de Tragtenberg e algumas respostas preliminares que, devido ao conjunto de influências que ainda carregava – e já se desvencilhava delas – não conseguiu avançar mais, embora já rompesse com o bolchevismo e o capitalismo estatal e via o socialismo como produto da luta operária.
Tragtenberg, em seu segundo livro, Burocracia e Ideologia, irá analisar a formação e características das teorias gerais da administração. Ele faz um histórico que se inicia com a discussão referente ao modo de produção asiático e passa pelas concepções das “harmonias administrativas” de Saint-Simon a Elton Mayo, até chegar ao sociólogo Max Weber e sua sociologia da burocracia. Ele analisa as teorias gerais da administração como ideologias, formas de falsa consciência, representando os interesses das classes dominantes, que são operacionais no nível técnico e que mudam de acordo com a mudança nos processos econômicos e sociais. A sua interpretação de Max Weber e sua relação com a crise da consciência liberal é um dos momentos mais interessantes de sua análise.
No livro seguinte, Administração, Poder e Ideologia, ele continua desenvolvendo esta preocupação fundamental e dedica a analisar a ideologia administrativa das grandes corporações e adentra por questões como a co-gestão, o participacionismo e outras formas que as grandes empresas utilizam para enquadrar e integrar os trabalhadores.
Em sua obra Sobre Educação, Política e Sindicalismo, o autor faz uma severa crítica ao burocratismo reinante nas escolas e universidades, utilizando-se das contribuições de Weber, Lobrot, Selznick, entre outros. Na verdade, o conjunto de artigos (já publicados em outras publicações), revela uma das grandes preocupações intelectuais de Tragtenberg, o processo educacional, mas envolvido com as duas outras preocupações básicas: a burocracia e a autogestão. O sistema de ensino tem como objetivo adequar os indivíduos ao processo de trabalho, mas de tal forma que ele saiba se adequar às mutações sociais. Para isso, é formado todo uma burocracia escolar e pedagógica cujo objetivo é garantir a burocratização de todo o processo de ensino: sistema de exames, conformidade ao programa e docilidade estudantil, através da organização, planejamento e estímulo.
“A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o tipo de formação através das transformações introduzidas na escola, que coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames – esse ‘batismo burocrático do saber’. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de ‘exclusão’ que possui a empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela ‘exclui’ o candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível – esse de posse da chamada ‘informação’ que possui espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já constituem um sistema ideológico” (Tragtenberg, 1990, p. 13).
A Educação Libertária e Autogestão das Lutas Operárias
A educação não tem apenas o papel de reprodução, não expressa apenas a burocracia e a dominação. Inclusive, Tragtenberg foi um dos primeiros a perceber o reprodutivismo da sociologia da educação de Bourdieu. Para Tragtenberg, há espaço para o questionamento e a busca de alternativas no sistema escolar. É por isso que ele irá se dedicar ao que se costuma chamar “pedagogia libertária” ou “autogestão pedagógica”. Assim, ele coloca a opção social (capitalismo ou autogestão social) também no plano educacional: educação burocrática ou educação libertária. A universidade não produz apenas o intelectual orgânico da burguesia, cujo papel é organizar a hegemonia burguesa, inculcando “as formas de sentir, pensar e agir da classe dominante como sendo naturais”, mas, também, o intelectual crítico, que em períodos de ascensão das lutas sociais, pode legitimamente representar as classes desprivilegiadas (Tragtenberg, 1979, p. 9).
Assim, ele analisava os educadores libertários, tal como Francisco Ferrer, e as experiências históricas, tal como a experiência de autogestão pedagógica na Espanha (Tragtenberg, 1980). Uma das preocupações mais importantes de Tragtenberg é com uma educação no qual o aluno possa desenvolver suas potencialidades sem as restrições burocráticas, o autoritarismo professoral e o controle estatal. Assim, ele valorizava a autonomia do indivíduo, autogestão pedagógica, solidariedade e luta pela educação gratuita. Ele pensava não só a crítica da educação burocrática, mas a auto-educação individual e coletiva da classe trabalhadora, levando em consideração que o conhecimento da classe operária no processo de trabalho era expropriado pela classe capitalista e, em determinados momentos históricos, reapropriado.
Esse processo de constituição de uma nova sociedade seria, tal como em Marx, obra da classe operária, de sua auto-educação e auto-organização. Para Tragtenberg, as lutas sociais podem tender para a burocratização, mas a classe trabalhadora reage a este processo criando organizações horizontais, igualitárias, novas relações sociais. A corrosão do capitalismo está no desenvolvimento destas formas de auto-organização do proletariado. Ele retoma Marx para colocar que os trabalhadores lutam por suas reivindicações através da associação e depois passam a lutar pela própria associação. Esta associação (comissões de fábrica, comitês de greve, conselhos operários) é originada na luta de classes e forma o embrião da futura sociedade autogerida.
“O que corrói o capitalismo é a criação dessas organizações, pois elas negam o verticalismo dos organismos existentes, seja o Estado, o partido ou o sindicato. Estes são despojados de sua finalidade de controle da mão-de-obra através da ação direta dos trabalhadores. Por mediação das instituições criadas no processo político-social, a classe operária possui a autogestão das suas lutas, ficando, portanto, a decisão e a execução em mãos dos trabalhadores. Assim, socialismo é entendido aqui como o regime onde a autogestão operária extingue o Estado como órgão separado e acima da sociedade, elimina o administrador dirigente da empresa em nome do capital e, ao mesmo tempo, elimina o intermediário político, isto é, o político profissional” (Tragtenberg, 1986, p. 10).
Assim, esta breve citação deixa espaço para se pensar os pontos fundamentais do pensamento de Tragtenberg sobre o Estado, os intermediários (partidos, sindicatos, políticos profissionais), e sua posição diante do regime chamado “socialismo real”. Em relação ao Estado, Tragtenberg mantém a postura de Marx, isto é, o Estado é um instrumento de dominação de classe. Os partidos, mesmo os que se dizem de esquerda, são dirigidos por castas e não representam os trabalhadores. Os sindicatos, por sua vez, possuem o mesmo papel que os partidos: reproduzir o capitalismo e beneficiar seus dirigentes. O “socialismo real”, na verdade, é um capitalismo de Estado, explorador e reprodutor da burocratização da sociedade (Tragtenberg, 1986). Em outra obra aprofunda esta análise da URSS (Tragtenberg, 1988). Enfim, socialismo é autogestão social e já teve várias experiências históricas:
“Essa é uma tendência que aparece nos momentos decisivos da luta dos trabalhadores: na Comuna de Paris (1871), na Revolução Russa de 1917, nas revoluções alemã e húngara de 1918, na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), no Movimento de Maio de 1968 na Europa e na criação do sindicato Solidariedade na Polônia (1978); toma a forma de comissões de fábrica (sovietes, conselhos), visando dirigir a vida econômica, política e social” (Tragtenberg, 1986, p. 5).
Enfim, podemos dizer que Tragtenberg foi um dos grandes nomes da sociologia brasileira e um dos mais profundos e originais pesquisadores da burocracia e da autogestão, incluindo também o processo educacional e as experiências históricas dos trabalhadores. Mas, mais do que um sociólogo, foi um libertário, ou seja, não separou o indivíduo, ser político vivendo numa sociedade repressiva, marcada por conflitos, dominação e exploração, do acadêmico ou do sociólogo, um mero e frio estudioso das relações sociais. Ele foi além, deixando de lado a ficção da neutralidade científica e se posicionou diante da sociedade, fazendo preponderar o indivíduo libertário, e daí criou o seu diferencial em relação a milhares de outros sociólogos, preocupados tão-somente com a academia e seu destino profissional individual.

Referências Bibliográficas
Silva, D. e Marrach, S. Maurício Tragtenberg – Uma Vida para as Ciências Humanas. São Paulo, Unesp, 2001.
Tragtenberg, M. (org.). Marxismo Heterodoxo. São Paulo, Brasiliense, 1981.
Tragtenberg, M. A Delinqüência Acadêmica. São Paulo, Muro, 1979.
Tragtenberg, M. A Revolução Russa. São Paulo, Àtica, 1988.
Tragtenberg, M. Administração, Poder e Ideologia. 2ª Edição, São Paulo, Cortez, 1989.
Tragtenberg, M. Burocracia e Ideologia. São Paulo, Àtica, 1985.
Tragtenberg, M. “Marx/Bakunin”. Escrita Ensaio. Ano V, n. 11/12. 1983.
Tragtenberg, M. Memórias de um Autodidata no Brasil. São Paulo, Escuta, 1999.
Tragtenberg, M. “O Conhecimento Expropriado e Reapropriado pela Classe Operária: Espanha 80”. Educação e Sociedade. São Paulo, Cortez, Setembro de 1980.
Tragtenberg, M. Planificação – Desafio do Século 20. São Paulo, Senzala, 1967.
Tragtenberg, M. Reflexões sobre o Socialismo. 3ª Edição, São Paulo, Moderna, 1986.
Tragtenberg, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. 2ª Edição, São Paulo, Cortez, 1990.
VIANA, Nildo. Maurício Tragtenberg - Um Sociólogo Libertário. São Paulo, Escala, Revista Sociologia, Ciência e Vida, v. 2, p. 64-71, 2008.



* Professor da Universidade Federal de Goiás; Autor dos livros “O Capitalismo na Era da Acumulação Integral”; “A Esfera Artística”; “A Concepção Materialista da História do Cinema”; “A Consciência da História”; “Escritos Metodológicos de Marx”, entre outros.

quinta-feira, 12 de março de 2020

CURSO "O PENSAMENTO DE KARL MARX":

CURSO "O PENSAMENTO DE KARL MARX":




CURSO: O PENSAMENTO DE KARL MARX
REALIZAÇÃO: NUPAC
APOIO: GPDS/UFG; NPM/UEG; NEPALM/UFMS
DATA: 18 DE ABRIL Á 16 DE MAIO
LOCAL: RUPTURA - ESPAÇO CULTURAL


Inscrição:

Datas:
1) até 14/03 = 20,00;
2) 15/03 a 31/03 = 25,00
3) 01 a 17/04 = 30,00

Vagas: 30 – Não serão aceitas inscrições para além das vagas disponíveis. Não serão aceitas inscrições no evento.

Para realizar a inscrição é necessário efetivar o pagamento e enviar o comprovante para o e-mail abaixo. Caso seja necessário o CPF do titular da conta, para transferências a partir de outros bancos, entrar em contato:

Carga Horária: 20 horas

Depósito Bancário
Caixa Econômica Federal
Conta Poupança: 49398-0
Agência: 1575
Operação: 013
André de Melo Santos

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